Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1821/22.9T8ALM.L1-6
Relator: JORGE ALMEIDA ESTEVES
Descritores: SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
VÍCIO DE VONTADE
VÍCIO DA SENTENÇA
PODERES ESPECIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Pode haver recurso de apelação da sentença homologatória duma transação, o qual apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória, não cabendo no objeto do recurso a apreciação de eventual vício da vontade; se a parte pretender arguir a nulidade ou peticionar a anulação da transação os meios adequados são os previstos no art.º 291º/1 e 2 do CPC.
II- A invocação da falta de manifestação de vontade por parte da autora-recorrente quanto à transação que foi homologada por sentença constitui um vício da decisão homologatória, suscetível, portanto, de fundamentar o recurso da sentença.
III- Não basta que na ata da audiência final conste que a parte estava presente para que se considere que deu o seu acordo à transação que foi homologada; é necessário que conste ou, pelo menos, resulte da ata que a parte cujo mandatário não tinha poderes para o ato declarou que concordava com os termos do negócio jurídico.
IV- Não resultando da ata que o legal representante da recorrente deu o seu acordo à transação que foi homologada, verifica-se a nulidade decorrente da falta de poderes do mandatário judicial, que decorre da violação do art.º 45º/2 do CPC.
V- Tal nulidade é sanada pela forma prevista no art.º 291º/3 do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que compõem este Coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Autora recorrente: JF, Unipessoal, Lda.
Ré recorrida: HV.
A autora instaurou ação de condenação sob a forma comum de declaração formulando o seguinte pedido: ser a ré condenada no pagamento da quantia de €24.935,47 (vinte e quatro mil novecentos e trinta e cinco euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, até integral e efetivo pagamento desde a data da entrega da obra por parte da empreiteira, que era a autora.
Para fundamentar a ação invocou que no dia 3 de Julho de 2018 autora e ré celebraram um contrato de empreitada que tinha por objeto a construção de uma moradia unifamiliar no lote 145 D, na Rua …. A obra iniciou-se em 25-09-2018 e foi concluída e entregue à dona da em 03-07-2019. A Ré aceitou a obra.
A empreitada foi adjudicada pela quantia de €149.755,10, encontrando-se por liquidar o montante de €24.935,47, ora peticionado, que a ré não pagou alegando defeitos e atrasos da obra, que a autora entende serem inexistentes.
Foi junta procuração pela qual foram concedidos aos mandatários da autora poderes forenses gerais.
A ré contestou, aceitando a celebração do invocado contrato, mas referindo que existem defeitos da obra, em cuja reparação gastou a quantia de 4.560€, ao que acrescem as penalizações previstas pelos atrasos verificados na conclusão da obra, que ascendem a 27.404,25€.
Assim, fazendo operar a compensação com o que é devido à autora por via do contrato, resulta um crédito a favor da ré, no valor de 7.028,78€ que a autora deve ser condenada a pagar à ré, formulando pedido reconvencional de condenação daquela nesse montante.
Com a contestação foi junta procuração pela qual foram concedidos ao mandatário da ré poderes forenses gerais e ainda os especiais para confessar, desistir e transigir.
A autora apresentou réplica na qual impugnou o alegado pela ré para fundamentar o pedido reconvencional.
Foi proferido despacho saneador que julgou tabelarmente verificados os pressupostos processuais e admitiu o pedido reconvencional.
Enunciaram-se o objeto do litígio e os temas da prova.
Foi designada data para a audiência final.
Na data designada foi lavrada ata da qual consta a presença do legal representante da autora JF, do Mandatário da autora Dr. AB, da ré HV e do Mandatário da ré Dr. PN.
Consta também da ata o seguinte:
Logo de seguida foi pela Mma. Juiz perguntado às partes sobre a possibilidade de acordo, ao que referiram que até ao momento não tinham conseguido.
Após algumas questões colocadas pela Mma. Juiz, as partes solicitaram tempo para conversar sobre a hipótese de acordo, tempo que o Tribunal deferiu.
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Retomada a presente audiência de Julgamento às 10H50, foi logo de seguida pelas partes declarado terem chegado a acordo nos seguintes termos:
1. A Autora pagará à Ré a quantia de €7.000,00 (sete mil euros).
2. Com o referido pagamento, as partes declaram nada mais terem a receber uma da outra, tendo por objeto o litígio dos autos.
3. O pagamento será efetuado em duas prestações no montante de €3.500.00 (três mil e quinhentos euros) cada, sendo a primeira a liquidar até ao dia 05-07-2023 e a segunda a liquidar até ao dia 05-08-2023.
4. O pagamento será efetuado através de transferência bancária para o NIB …226, conforme comprovativo que ficará nos presentes autos.
5. Custas a meias, prescindindo Autora e Ré de custas de parte.
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Seguidamente foi pela Mma. Juíza proferida a seguinte:
SENTENÇA
Atento o objeto da presente ação, a qualidade dos intervenientes, que para o efeito têm legitimidade e os necessários poderes, bem como o cumprimento da forma legal, julgo válida a transação celebrada e, em consequência, absolvo e condeno as partes nela intervenientes nos seus precisos termos (artigos 283.º, n.º 2, 284.º, 289.º, n.º 1, e 290.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil).
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Declaro extinta a instância, por força do disposto no artigo 277.º, alínea d), do Código de Processo Civil.
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Custas conforme acordado, nos termos do artigo 537.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Consigna-se que o valor da causa foi fixado através de despacho saneador proferido em 16-01-2023.
Registe e notifique.
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Logo de seguida e pelas 10:56 horas foi pela Mma. Juíza dado por encerrada a presente audiência.
De tudo foram os presentes notificados que declararam ficar cientes”.
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Inconformada com a sentença homologatória proferida, apelou a autora, tendo apresentado alegações e as seguintes conclusões:
1. A recorrente insurge-se contra a sentença que homologou a transação das partes e que em consequência, absolveu e condenou as partes nela intervenientes nos seus precisos termos.
2. Na verdade, sobre uma qualquer transação judicial terá sempre de recair uma sentença homologatória, sem o que o acordo das partes não produz efeito – cfr. art.º 300º, n.º 3 CPC;
3. A função dessa sentença não é decidir a controvérsia substancial, essa fica na disposição das partes, mas apenas fiscalizar a regularidade e a validade do acordo. E por isso se diz que a verdadeira fonte da resolução do litígio é o acto de vontade das partes e não a sentença homologatória do proferida pelo Juiz;
4. Logo no início da diligência o legal representante da Autora foi encaminhado pelo oficial de justiça para a sala das testemunhas onde ali permaneceu grande parte do tempo, desconhecendo tudo o que se passava no interior da sala de audiências;
5. A Autora nunca teve conhecimento de quaisquer diligências na obtenção de um acordo, nunca conheceu os termos do acordo e mais importante nunca deu o seu aval, a sua concordância, a tal acordo.
6. Nunca o Tribunal lhe leu o acordo, nunca a senhora Juiz lhe perguntou se o mesmo concordava com os termos exarados pelo seu mandatário.
7. Só no exterior do tribunal é que o seu advogado, lhe referiu que houve um problema com a taxa de justiça e que a opção era entre pagar €31.000,00 ou €7.000,00 e que este fez o melhor possível.
8. É verdade que do Texto da acta resulta quem estava presente, e na qual consta a presença do legal representante da autora, o sr. JF;
9. É verdade que resulta do texto da acta que «retomada a presente audiência de julgamento às 10h50. Foi logo de seguida pelas partes declarado terem chegado a acordo nos seguintes termos». Mas quando a acta se refere às partes, devia referir-se aos mandatários das partes, pois o legal representante da Autora, esteve todo o tempo não no interior da sala de audiências, mas sim colocado na sala das testemunhas!!
10. E quando foi chamado á sala de audiências não ouviu os termos do acordo, pois estes já tinham sido ditados e apenas se apercebeu da parte final, sendo que em momento algum alguém lhe explicou ou lhe perguntou algo sobre o acordo, desde logo se concordava com o mesmo.
11. É, pois, aqui que falha a sentença homologatória, falha ao não sindicar da validade da transação, não tanto da substância do objecto, mas da legitimidade dos outorgantes.
12. E este é o vicio da própria sentença homologatória, que não cuidou de aferir se a Autora, parte legitima na acção, dava ou não dava o seu acordo à transacção que o seu mandatário acabara de informar o tribunal, com pleno desconhecimento da Autora.
13. No caso em apreço a parte não estava presente, ou seja, não estava na sala de audiências, antes tinha sido encaminhada pelo Oficial de Justiça para a sala das testemunhas, razão pela qual não foi tida nem achada no presente acordo, e não lhe tendo sido lido e explicado os referidos termos e no final perguntado se concordava com os mesmos, não pode o mesmo valer contra ele.
14. Os mandatários judiciais representam a parte em todos os actos e termos do processo, sem prejuízo das disposições que exijam a outorga de poderes especiais pelo mandante – art.º 44º, nº 2, CPC.
15. Com efeito, aqueles só podem transigir sobre o objecto da acção quando estejam munidos de procuração que os autorize expressamente a praticar tal acto – art.º 45º, nº 2.
16. Caso na transacção não intervenha a parte (no caso concreto, porque estava na sala das testemunhas e não na sala de audiências) mas o seu mandatário judicial, este com falta de poderes ou munido de mandato irregular, ocorre nulidade – nulidade esta que, contudo, embora de cariz substantivo porque derivada da celebração de negócio marginalmente aos poderes representativos conferidos e de cariz processual porque materializadora de um acto revel à norma daquele art.º 45º, nº 2, é suprível mediante ratificação, ainda que presumida, nos termos do nº 3, do art.º 291º, CPC.
17. Uma coisa é, pois, a nulidade da transacção enquanto contrato, com fundamento em qualquer dos vícios invalidantes de negócios jurídicos da mesma natureza. Outra coisa é a nulidade processual, com fundamento na prática de acto não admitido por lei ou na omissão de acto ou de formalidade prescritos na lei.
18. A arguição e conhecimento desta regem-se pelo regime da nulidade dos actos e omissões emergente dos art.ºs 195º e sgs., do CPC.
19. Ora, a falta de especiais poderes de representação do mandatário forense (advogado) para poder em nome da parte mandante outorgar a transacção tem uma dimensão processual na medida em que viola o disposto no nº 2, do art.º 45º, do CPC, mas, ao mesmo tempo, uma dimensão substantiva, porquanto o negócio celebrado por aquele, sem poderes para tal, é ineficaz em relação a este se não for por ele ratificado, como decorre do nº 1, do art.º 268º, nº 1, CC.
20. De facto, a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
21. O que, afinal, permanece originariamente inquinado, e porventura carente de notificação para ratificação, é a própria transacção e bastava a mesma ter sido lida e explicado o seu conteúdo à parte e perguntado à mesma se ela concordava com o seu teor, para estar cumprido o pressuposto da legitimidade da parte.
22. A sentença recorrida viola os normativos plasmados nos artigos 290º e 291º/3 do CPC., razão pela qual deve a mesma ser reparada, revogando-se a douta sentença homologatória, devendo os autos prosseguir para julgamento.
*
A ré apresentou contra-alegações, que terminou com as seguintes conclusões:
a) A sentença homologatória limitou-se apenas a homologar a transação das partes, nos termos do disposto no art.º 290º nº 3 do CPC, declarando por sentença que as mesmas são condenadas e absolvidas nos precisos termos, não declarando a sentença homologatória, nem o devendo fazer (uma vez que as partes lograram transigir) que existe um vencedor ou um vencido.
b) Em parte alguma do seu requerimento, alegações ou conclusões de recurso, a recorrente alega que não concordou com os termos da transacção, e que da mesma lhe advém algum prejuízo ou resultado desfavorável, ou que saiu vencida.
c) Nem a autora reconvinda, parte principal na causa, ficou vencida com a decisão, nem a referida decisão, sentença homologatória, lhe foi desfavorável.
d) Não se encontra preenchido o requisito do art.º 629º nº 1 do CPC, porquanto a decisão impugnada, como se vê, não foi desfavorável à recorrente, nem o requisito do disposto no art.º 631º nº 1 do CPC, do qual decorre que, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa tenha ficado vencido.
e) Não deve ser admitido o recurso interposto, por ser inadmissível, tudo com as legais consequências.
f) Com o recurso, a recorrente pretendeu apenas e tão só não cumprir a transação celebrada, não tendo pago à Ré reconvinte nas datas acordadas as quantias a que se obrigou, tendo o despudor de escrever factos falsos e proferir afirmações desprovidas de qualquer sentido de verdade e desconformes com a realidade e sem qualquer prova ou suporte.
g) Conforme informação expressa do IGFEJ de 12/06/2023, que consta nos autos a Fls. …, decorre exactamente a prova e a conclusão do não pagamento da taxa de justiça e da multa pela ora recorrente.
h) O acordo foi alcançado na sala de audiências, com presença das partes e seus mandatários, conforme decorre da respectiva acta, onde todos são dados como presentes.
i) A Recorrente está efectivamente a alegar factos e invocar razões e fundamentos, contrários aos factos e aos actos concretos por si praticados, nomeadamente perante o Mmo. Juiz ‘a quo’, que assim também é posto em causa, perante as invocadas (inexistentes) nulidades.
j) A atitude processual temerária da Recorrente, configura uma conduta processual que se reconduz às situações desenhadas no art.º 542º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), do Código de Processo Civil.
k) Pelo que, resulta evidente, que a Recorrente agiu com dolo directo, uma vez que representou um facto, que por seu turno, preenche uma actuação, ilícita processualmente, mas actuou, efectivamente, com a intenção de a praticar.
l) Consequentemente, encontram-se preenchidos os requisitos típicos objectivos e subjectivos de que depende a condenação da Recorrente como litigante de má-fé, em multa condigna.
m) A que deverá acrescer ainda, o que desde já expressamente requer, uma indemnização a pagar pela Recorrente à recorrida (ré reconvinte), que compreenda o reembolso das despesas, taxas e honorários de mandatário, que a conduta de má-fé da Recorrente tenha determinado, a ser fixado, após notificação à Recorrida (ré reconvinte) no momento próprio, caso venha no douto acórdão a ser-lhe reconhecido esse direito em face da condenação da Recorrente como litigante de má-fé.
Nestes termos,
E nos demais de direito e com o douto suprimento de V. Exas.
- Não deve ser admitido o Recurso por inadmissível e falta de requisitos e pressupostos legais;
Ou, caso assim não suceda,
- Deve ser mantida a decisão (sentença homologatória) proferida pelo Tribunal ‘a quo’, no sentido acima exposto, não padecendo a mesma de qualquer vício ou nulidade;
Em todo o caso,
- Devendo a recorrente ser condenada como litigante de má-fé em multa e indemnização condigna, a fixar e liquidar nos termos processuais, com as legais consequências, assim fazendo V. Exas a sempre costumada Justiça!

FUNDAMENTAÇÃO

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Objeto do Recurso

O objeto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Verifica-se que a recorrida não suscitou a ampliação do objeto do recurso, mas veio invocar a existência de litigância de má-fé pela interposição deste recurso, peticionando a condenação da recorrente em multa e indemnização.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, a questão a apreciar é a de saber se o invocado pela recorrente integra algum fundamento válido de impugnação da sentença homologatória recorrida e, em caso afirmativo, se essa decisão padece do vício que lhe é apontado e que radica no desconhecimento/concordância por parte do legal representante da autora dos termos do acordo que foi homologado pela sentença recorrida, posto que o mandatário daquela não dispunha de poderes forenses especiais para transigir.
Também é objeto do recurso a existência de má-fé suscitada pela recorrida.

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Matéria de facto
A factualidade a atender para a apreciação do recurso é a que consta do relatório supra, sem necessidade de mais acrescentos.
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Fundamentação jurídica
Diz a recorrente, na conclusão 12 (que consideramos ser a que contém o fundamento que constitui o cerne fulcral do recurso), e com as devidas adaptações, que o tribunal a quo, antes de proferir a sentença homologatória, não cuidou de aferir se a autora, parte legitima na ação, dava ou não dava o seu acordo à transação que o seu mandatário acabara de informar o tribunal, cujos termos eram, no momento daquele proferimento, do desconhecimento da autora.
É jurisprudência e doutrina assentes que pode haver recurso de apelação da sentença homologatória duma transação. Mas esse recurso apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória, não cabendo no objeto do recurso a apreciação de eventual vício da vontade. Se a parte pretender arguir a nulidade ou peticionar a anulação da transação os meios adequados são os previstos no art.º 291º/1 e 2 do CPC.
Neste sentido temos os seguintes acórdãos[1]:
- Ac. da RL de 12/12/2013, proc. 6898/11.0TBCSC.L1-1, em cujo sumário consta (importa especialmente para o caso a conclusão VII):          
I- Sobre a transacção judicial terá de recair uma sentença homologatória, sem o que o acordo das partes não produz efeito (art.º 300.º, n.º 3 do C.P.C);
II- Todavia, a função dessa sentença não é decidir a controvérsia substancial, mas apenas fiscalizar a regularidade e a validade do acordo. Por isso, pode afirmar-se que a verdadeira fonte da resolução do litígio é o acto de vontade das partes e não a sentença homologatória proferida pelo Juiz;
III- A transacção (como negócio das partes) vale por si, sendo a intervenção do Juiz de mera fiscalização sobre a legalidade do objecto desse contrato e da qualidade das pessoas que o celebram, não conhecendo do mérito, antes sancionando a solução que as partes encontraram para a demanda;
IV- A homologação judicial deste tipo de acordo não traduz a resolução do litígio, mas tão-somente, o sindicar da validade da transacção, quer na perspectiva da legitimidade dos outorgantes, quer da substância do objecto;
V- A homologação da transacção, necessária apenas para apreciação da legalidade dos seus pressupostos quanto ao objecto e à qualidade dos intervenientes, não lhe retira, contudo, o carácter e natureza contratual, pelo que, como contrato que é (art.º 1248.º do Código Civil), a transacção está sujeita ao respectivo regime geral (arts. 405.º e segs do Cód. Civil) e ao regime geral dos negócios jurídicos (arts. 217.º e segs. do mesmo diploma);
VI- Por isso, o trânsito em julgado da sentença proferida sobre a transacção não obsta a que se intente acção destinada à declaração da sua nulidade ou à sua anulação, sem prejuízo da caducidade do direito a esta última (art.º 301.º, n.º 2, do C.P.C);
VII- De qualquer modo, o recurso da sentença homologatória duma transacção apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória e não sobre o mérito da transacção homologada, a validade intrínseca do contrato de transacção celebrado entre as partes;
VIII- Assim sendo, o recurso a interpor da sentença homologatória duma transacção não constitui a sede própria para se pôr em causa a validade substantiva do contrato de transacção;
- Ac. da RL de 17/03/2015, proc. 51/15.0YLPRT.L1-2, onde se afirma que:
“Ora, se alguma das partes pretende no próprio processo em que foi proferida a sentença de homologação da transacção que esta seja revogada, e que, em consequência dessa revogação, seja reposta a situação anterior à mesma, de modo a que a causa venha a ser julgada em função dos factos nela alegados – como parece ser o caso da aqui apelante - apenas o poderá fazer se no recurso que dela interponha fizer valer a inexistência em concreto de algumas das acima referidas condições para a mesma ter sido proferida.
Quer dizer, haverá de demonstrar – pese embora a sua responsabilidade pelo resultado homologatório, pois que o pediu enquanto parte do negócio em que a transacção se analisa - que a fiscalização pelo juiz da regularidade e validade do acordo foi irregularmente realizada, já que, afinal, o objecto do litigio não estava na disponibilidade das partes, ou não tinha idoneidade negocial, ou as pessoas que intervieram na transacção não se apresentavam com capacidade e legitimidade para se ocuparem desse objecto.
O recurso da sentença homologatória da transacção há-de, pois, incidir sobre um vício da própria sentença homologatória, como se faz notar no Ac desta Relação 12/12/2013 [proc. 6898/11.0TBCSC.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl] sendo que o normal é que, existindo tal vício, se apresente a fazê-lo valer em recurso dessa sentença terceiro que se mostre afectado pelo caso julgado que daquela decorre (…).
- Ac. da RE de 17/03/2015, proc. 1682/14.1TBFAR.E1, em cujo sumário consta:
I - A desistência do pedido é de qualificar como acto jurídico unilateral em qualquer fase do processo, enquanto a transacção, assume a natureza de negócio jurídico bilateral.
II - Tendo as partes manifestado por aquelas declarações no processo a vontade de subtraírem ao juiz a composição da lide, a sentença recorrida, que homologa a desistência e a transacção, limita-se a apreciar da validade e regularidade das declarações das partes e, concluindo pela respectiva validade, quanto ao seu objecto e à qualidade das partes, confirma os termos e efeitos desses actos ou negócios jurídicos de direito substantivo praticados no processo, absolvendo do pedido e/ou condenando nos termos que resultam da transacção.
III - Por isso que, a revogação em sede de recurso da sentença homologatória de qualquer um dos indicados actos de auto-composição do litígio, só possa ter por fundamento a violação de um dos requisitos que o juiz tem que verificar.
- Ac. da RP de 24/09/2018, proc. 572/15.5T8GDM.P1, em cujo sumário consta:          
I - O recurso de sentença homologatória duma transacção apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória e não sobre o mérito da transacção homologada, a validade intrínseca do contrato de transacção celebrado entre as partes.
- Ac. da RG de 16/05/2019, proc. 6144/17.2T8BRG.G1, em cujo sumário consta:
1 – O recurso interposto da sentença homologatória de uma transação apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória e não sobre o mérito da transação homologada, ou seja, sobre a validade intrínseca do contrato de transação celebrado entre as partes.
2 – Ao juiz só cabe assegurar-se da disponibilidade do objeto da transação, da qualidade das partes que nela intervieram, da idoneidade negocial (que o contrato não versa sobre negócio jurídico ilícito) e que o contrato de transação abarca as pretensões deduzidas no processo.
- Ac. da RC de 26/04/2022, proc. 651/20.7T8LMG-A.C1, em cujo sumário consta:
I - Se alguma das partes pretender, no próprio processo em que foi proferida a sentença de homologação da transacção, que esta seja anulada terá de demonstrar que o objecto do litigio não estava na disponibilidade das partes ou não tinha idoneidade negocial ou as pessoas que intervieram na transacção não se apresentavam com capacidade e legitimidade para se ocuparem desse objecto.
II – Se a parte pretender dar sem efeito a transacção com base na existência de vícios da vontade ou de vícios no objecto do negócio jurídico em que se traduz a transacção terá de instaurar acção na qual peça a declaração da nulidade ou a anulação desse negócio jurídico.
Como resulta da factualidade a considerar para efeitos de apreciação do recurso e que acima se expôs, o mandatário da autora dispunha de poderes forenses gerais, não tendo, portanto, poderes forenses para transigir.
Nos termos do disposto no artigo 45º/2 do CPC, os mandatários, para confessar, transigir e desistir do pedido ou da instância têm de estar munidos de procuração com poderes especiais. Assim, caso na transação não intervenha a parte, mas o seu mandatário sem que tenha poderes para isso, ocorre a nulidade, conforme decorre do artigo 291º/3 do CPC, que, contudo, pode ser suprida se a sentença homologatória for notificada pessoalmente ao mandante, devendo tal notificação conter a cominação de, se a parte nada disser, o ato ser havido por ratificado e a nulidade suprida; se declarar que não ratifica o ato do mandatário, este não produz quanto a si qualquer efeito.
É exatamente este o vício invocado pela recorrente, que, como se constata, a lei comina com a nulidade, se bem que preveja também um expediente de suprimento específico. Como referem Abrantes Geraldes e outros[2], “trata-se de uma via pouco ortodoxa, mas que procura responder de modo pragmático a necessidades do sistema, tendo como pressuposto, que a experiência largamente demonstra, que, em regra, aquele que se presta a desistir, confessar ou transigir em representação de uma parte no processo (em geral, o mandatário judicial que não demonstra a atribuição de poderes específicos para o ato) tem, na realidade, poderes para tal, ainda que na ocasião não estejam devidamente formalizados ou demonstrados”.
Temos, portanto, que o fundamento do recurso se enquadra dentro das situações em que é admissível recurso de apelação da sentença homologatória pois o vício que é apontado à decisão recorrida é um vício da própria sentença homologatória.
O recurso é, portanto, admissível e a recorrente tem legitimidade para o instaurar na medida em que só não a teria caso o ato homologado tivesse sido de desistência e/ou confissão do pedido, principal e reconvencional, efetuado pela parte contrária. Só nesse caso é que se poderia considerar que a recorrente, beneficiária da desistência e/ou da confissão, não tinha ficado vencida com o ato de homologação. No caso da confissão ou da desistência, o confitente e o desistente é que têm legitimidade para impugnar a decisão, seja com fundamento nos vícios da sentença homologatória, através do recurso de apelação, seja pelos vícios materiais do ato, aqui pelas vias processuais previstas no art.º 291º/2 do CPC (ação destinada à nulidade ou anulação ou a revisão de sentença, sendo que neste caso também assiste legitimidade aos terceiros prejudicados com o negócio jurídico que foi homologado). Mas no caso da transação, ambas as partes têm legitimidade para tais impugnações.
Improcedem, portanto, as considerações que, quanto a este aspeto da legitimidade, a recorrida veio invocar.
Vejamos então se o vício apontado à decisão é procedente.
Para a apreciação da questão temos que nos ater exclusivamente à ata que contém a sentença recorrida, pois que a mesma não foi impugnada. Dessa ata consta que o legal representante da recorrente estava presente. Consta também o seguinte: “Retomada a presente audiência de Julgamento às 10H50, foi logo de seguida pelas partes declarado terem chegado a acordo nos seguintes termos”. Esta referência às partes é, porém, dúbia, na medida em que os mandatários, por um lado, e as partes, por outro lado, são sujeitos processuais diferentes e, no caso, a distinção impunha-se na medida em que um dos mandatários não dispunha de poderes forenses para o ato que se seguiu.
Dos termos literais que constam da ata resulta que foram as partes, por si, sem os respetivos mandatários, a dirigir-se à juiz da causa a fim de informar da obtenção de acordo. Acontece, porém, que resulta das regras de experiência que em sede de audiência e estando as partes representadas por mandatário, são estes que se dirigem ao juiz da causa e não as partes por si próprias[3]. Pode ter acontecido que tal conduta tenha sido tomada pelos os mandatários, acompanhados pelas partes que patrocinavam. Mas, sendo essa a situação que efetivamente se verificou, tinha de constar da ata essa circunstância, referindo-se expressamente que se tratavam das partes e dos respetivos mandatários. Não havendo tal referência expressa, não podemos concluir que daquela parte da ata resulta que o legal representante da autora tenha comunicado ao tribunal que pretendia o negócio jurídico que foi homologado.
Ora, consideramos que não basta que na ata conste que a parte estava presente para que se considere que deu o seu acordo à transação que foi homologada. É necessário que conste, ou pelo menos resulte, da mesma que a parte cujo mandatário não tinha poderes para o ato concordava com os termos do negócio jurídico. É que se tratam de realidades diferentes. O estar presente significa simplesmente que não faltou ao ato. Não significa de todo que tenha dado o seu acordo aos negócios jurídicos celebrados perante o juiz da causa.
O art.º 50º do Código do Notariado, sob a epígrafe “Leitura e explicação dos actos”, estabelece que:
1 - A leitura prevista na alínea l) do n.º 1 do artigo 46.º é feita pelo notário, ou por oficial perante o notário, em voz alta e na presença simultânea de todos os intervenientes.
2 - A leitura do instrumento lavrado pode ser dispensada se todos os intervenientes declararem que a dispensam, por já o terem lido ou por conhecerem o seu conteúdo, e se o notário não vir inconveniente.
3 - A explicação do conteúdo dos instrumentos e das suas consequências legais é feita pelo notário, antes da assinatura, em forma resumida, mas de modo que os outorgantes fiquem a conhecer, com precisão, o significado e os efeitos do acto”.
Esta é a norma do sistema jurídico relativo à celebração de negócios jurídicos perante notário, mas que se pode aplicar, extensivamente, a todos os atos praticados perante outras entidades públicas. Como se pode constatar, a lei dá importância até à leitura e explicação do negócio jurídico, não bastando que os outorgantes estejam presentes aquando da respetiva celebração. Só não há lugar à leitura perante os intervenientes nos termos do nº 2. Acresce ainda que no caso dos notários, as partes manifestam a vontade na celebração do negócio jurídico apondo a sua assinatura no documento que o formaliza. No caso dos negócios jurídicos celebrados perante o juiz e formalizados em ata isso não acontece, pois, a ata é unicamente assinada pelo juiz. Por isso é necessário rodear de especiais cautelas a manifestação de vontade da parte que não concedeu poderes especiais ao respetivo mandatário relativamente ao negócio que irá ser homologado por sentença.
Assim, não resultando da ata que o legal representante da recorrente deu o seu acordo à transação que foi homologada, verifica-se a nulidade decorrente da falta de poderes do mandatário judicial, que decorre da violação do art.º 45º/2 do CPC, estando também prevista no art.º 291º/3 do CPC, que estabelece a forma de suprir tal nulidade.
E não se pode dizer que do facto de no final da ata constar que “De tudo foram os presentes notificados que declararam ficar cientes” resulta suprida a nulidade. Como se referiu acima, o art.º 291º/3 do CPC não se basta com a mera notificação do ato à parte. Tal notificação tem de ser acompanhada das cominações aí previstas. Não o sendo, não é válida para efeito de suprir a nulidade cometida.
Deste modo, temos de concluir que o recurso é procedente, padecendo a sentença recorrida do vício que a recorrente lhe aponta, o qual, porém, é suprido pela notificação a que se reporta o mencionado art.º 291º/3.
Procedendo o recurso, improcede necessariamente a questão da má-fé suscitada pela recorrida.
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DECISÃO
Nestes termos decide-se julgar procedente o presente recurso de apelação, em função do que se ordena a notificação pessoal da sentença homologatória da transação proferida nos autos à autora-recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 291º/3, do CPC, após o que se seguirão os ulteriores termos do processo, em conformidade com a atitude que a mesma vier a oferecer na sequência de tal notificação, como previsto no citado preceito.
Custas pela recorrida (art.º 527º/1 e 2 do CPC).

TRLx, 18abr2024
Jorge Almeida Esteves
Teresa Soares
Anabela Calafate (vencida)

Voto vencida, porquanto:
1. Na acta lê-se que feita a chamada para a audiência final estavam presentes o legal representante da autora JF, Unipessoal, Lda, JF e a ré HV;
2. Na acta consta, ao que agora importa: «Retomada a presente audiência de Julgamento às 10H50, foi logo de seguida pelas partes declarado terem chegado a acordo nos seguintes termos» e «Atento o objeto da presente ação, a qualidade dos intervenientes, que para o efeito têm legitimidade e os necessários poderes, bem como o cumprimento da forma legal, julgo válida a transação (…)»;
3. Ora, não foi deduzido incidente de falsidade da acta, pelo que considero inaceitável que neste acórdão seja colocado em dúvida que a senhora juiz se tenha bastado com a transmissão do teor da transacção pelos mandatários sem a presença de JF, legal representante da autora, apesar de o mandatário não estar munido de procuração com poderes especiais para transigir;
4. Ainda assim, procedi à audição da gravação da diligência e dela é perceptível que as próprias partes – não só os mandatários – estavam presentes quando a senhora juiz ditou para a acta o teor da transacção e a homologou, pois terminou a diligência dizendo «Por hoje é tudo, muito bom dia, bom dia às partes também»;
5. O Código de Processo Civil contém a disciplina sobre a realização da transacção, pelo que não há que convocar normas do Código do Notariado;
6. No dispositivo do acórdão consta: «decide-se julgar procedente o presente recurso de apelação, em função do que se ordena a notificação pessoal da sentença homologatória da transação proferida nos autos à autora-recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 291º/3, do CPC, após o que se seguirão os ulteriores termos do processo, em conformidade com a atitude que a mesma vier a oferecer na sequência de tal notificação, como previsto no citado preceito»;
7. Porém, a apelante já expressou não querer aquela transacção e por isso vem pedido: «revogando-se a douta sentença homologatória, devendo os autos prosseguir para julgamento.»,
7. Pelo que tal notificação configura acto inútil que o tribunal não deve praticar (cfr art.º 6º do CPC);
8. Por fim, o que resulta da alegação recursiva é que o legal representante da apelante se arrependeu de ter celebrado a transacção, que aceitou fazer por lhe ter sido transmitido que não poderia fazer prova por falta de pagamento de taxa de justiça e de multa, e pretende que seja realizado o julgamento, tendo agora outro mandatário.
Lisboa, 18 de Abril de 2024
Anabela Calafate
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[1] Todos in www.dgsi.pt.
[2] In “Código de Processo Civil Anotado”, tomo I, Almedina, Coimbra, 2019, págs. 337-338.
[3] A 06.02.2024 foi proferido despacho pela Mmª Senhora Juíza que presidiu ao ato aqui em causa, cuja intervenção foi provocada pela Mmª Senhora Juíza que tramitava o processo à data da instauração do presente recurso, que solicitou à primeira que se pronunciasse sobre a questão suscitada pela recorrente nas respetivas alegações e conclusões. 
Nesse despacho diz-se: "Nessa mesma data e estando todas as partes presentes, informaram os I. Mandatários que as mesmas chegaram a acordo, nos termos que foram consignados em ata". Ou seja, tal significa que naquela parte da ata em que se refere que "Retomada a presente audiência de Julgamento às 10H50, foi logo de seguida pelas partes declarado terem chegado a acordo nos seguintes termos", a expressão "partes" refere-se aos mandatários e não às partes propriamente ditas, o que vem confirmar aquilo que o próprio recorrente veio dizer nas alegações e conclusões.