Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1479/17.7T8LSB.L1-2
Relator: GABRIELA CUNHA RODRIGUES
Descritores: CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A força de caso julgado da sentença é um fenómeno essencial à garantia dos valores constitucionais da confiança e da segurança jurídica, bem como à prossecução da finalidade da pacificação social.
II – Na exceção do caso julgado, a identidade substancial da causa de pedir não é afetada por via da qualificação jurídica dos factos concretos em que se fundamenta a pretensão, nem por qualquer alteração ou ampliação factual que não afete o núcleo essencial da causa de pedir que subjaz a ambas as ações (reconvenção e ação).
III – Há identidade de causa de pedir quando o substrato factual de ambas as ações é essencialmente idêntico, radicando a diferença entre ambas no modo como as expressões factuais são empregues – na reconvenção da primeira ação, a aí Reconvinte utilizou as expressões “subtraiu a totalidade de valores de conta e é detentor na sua posse e na petição inicial da segunda ação, a ora Autora utilizou expressões como «sem conhecimento, autorização ou acordo da A.», «Com o referido apoderamento, o R. subtraiu o valor dos saldos ao património comum».
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa,

I - Relatório

1 - HM... intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AF..., formulando os seguintes pedidos de condenação do Réu:
a) Pagar à Autora metade do saldo da conta à ordem na C... com o n.º 002... (NIB PT50...) no valor de 11.404,53 €, acrescida de juros legais a contar da data da citação;
b) Pagar à Autora metade do valor que o automóvel de matrícula 2..-...-... tinha em setembro de 2013, de 9.000,00 €;
c) Pagar à Autora metade dos saldos das contas bancárias da C..., mencionadas no artigo 79.º da p.i., existentes à data dos respetivos encerramentos, que vier a ser apurado em liquidação de sentença;
d) Pagar à Autora juros de mora que se vencerem sobre a pedida quantia de 20.404,53 €, à taxa de 4% ao ano, e sobre as quantias que vierem a ser liquidadas em execução de sentença, contados desde a data da citação até integral pagamento.
Alegou, em suma, que:
- Autora e Réu casaram no dia 16.4.1977 (no regime da comunhão de adquiridos), separaram-se de facto em julho de 2011, divorciaram-se por sentença de 7.6.2013, transitada em julgado em 15.7.2013, e ainda não não procederam à partilha dos bens comuns;
- Na constância do casamento, a Autora era co-titular com o Réu de contas bancárias na C... e estava autorizada a movimentar outra conta bancária naquela instituição bancária, titulada em nome do Réu;
- Estas contas bancárias eram constituídas por rendimentos de trabalho do Réu, pelo que os saldos das contas eram bens comuns do casal;
- Após a separação de facto, em julho de 2011, e antes da propositura da ação de divórcio, em 30.4.2012, o Réu procedeu ao levantamento, transferência e encerramento destas contas bancárias, bem como ao cancelamento da autorização de movimentação pela Autora de uma conta à ordem, sem conhecimento, autorização ou acordo da desta;
- Com o procedimento descrito, o Réu lesou a Autora em 50% do valor depositado de uma das referidas contas bancárias, no montante de 11.404,53 €;
- Ainda casados, Autora e Réu, adquiriram em 6.12.2005, por compra, um veículo pelo preço de 30.000,00 €, cuja propriedade foi transferida para outrem pelo Réu, após ter sido decretado o divórcio, o que ocorreu mais uma vez sem o conhecimento, autorização ou acordo da Autora;
- Com a transferência da propriedade do veículo, o Réu diminuiu em 18.000,00 € o valor do património comum do casal, lesando a Autora em metade deste valor, ou seja em 9.000,00 €.
Em sede de contestação, o Réu invocou a exceção da litispendência entre os pedidos indicados nas alíneas a) e b) da petição inicial. Arguiu que tais pedidos se reconduzem à condenação no pagamento da quantia de 11.404,53 €, correspondente a metade do saldo existente na conta da C... n.º 002..., e da quantia de 9.000,00 €, correspondente a metade do valor que o automóvel de matrícula 2..-...-... tinha em setembro de 2013, por já ter formulado pedido idêntico, com base na mesma causa de pedir, em sede de pedido reconvencional deduzido no processo n.º 1983/15.1T8LSB. Mais invocou a pendência de processo de inventário em que a ora Autora apresentou reclamação à relação de bens por falta de relacionamento do saldo da conta bancária mencionada e reclamou quanto ao valor de venda do veículo automóvel.
A Autora respondeu, pugnando pela improcedência da exceção.
Tendo sido junto aos autos o acórdão confirmatório da decisão proferida em sede de primeira instância, o Tribunal a quo convidou as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a exceção do caso julgado, o que fizeram.
O Tribunal a quo proferiu despacho saneador em 28.2.2018, no qual determinou a absolvição o Réu da instância quanto ao primeiro pedido formulado pela Autora, referente ao saldo da conta à ordem da C..., no valor de 11.404,53 €, por verificação da exceção do caso julgado, prosseguindo a ação quanto aos demais pedidos formulados sob as alíneas b), c) e d) da petição inicial, com custas a cargo da Autora. Observou-se no referido despacho saneador que ambas as ações têm por fundamento a responsabilidade por facto ilícito prevista no artigo 1681.º, n.º 1, do Código Civil.

2 - Inconformada com o assim decidido, a Autora interpôs recurso de apelação do despacho saneador, no segmento em que concluiu existir total identidade entre a causa de pedir na presente ação e a causa de pedir na reconvenção formulada na ação que correu termos entre as mesmas partes, no processo n.º 1983/15.1T8LSB, do Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 18, e absolveu o Réu da instância, por verificação da exceção do caso julgado.
São as seguintes as CONCLUSÕES da Recorrente:
«1ª -A causa de pedir é constituída pelo facto jurídico, concreto, genético do direito que se pretende fazer valer,
2ª -Não são os mesmos, nem têm o mesmo efeito jurídico, por um lado, os factos constitutivos da causa de pedir, alegados em reconvenção na ação n° 1983/15.1T8LSB, de que o A. (Reconvindo) subtraiu e mantém na sua posse a totalidade dos valores de certa conta bancária de que ele era primeiro titular e, por outro lado, os factos constitutivos da causa de pedir alegados pela A. na presente ação, de que o R. (Reconvindo na ação anterior), procedeu ao levantamento do saldo da mesma conta bancária, bem comum do casal, sem conhecimento, autorização ou acordo da A. (anteriormente Reconvinte), se apoderou de tal quantia, que a subtraiu ao património comum de ambos e que por isso lesou a A. em 50% de tal valor.
3ª -É errada a conclusão extraída dos factos mencionados na conclusão anterior, de que na reconvenção da ação 1983/15.1T8LSB está em causa a responsabilidade civil por facto ilícito, tal como na presente ação».
Propugna, por isso, a Apelante a revogação da decisão recorrida, a qual absolveu o Réu da instância quanto ao pedido de pagar à Autora a quantia de 11.404,53 € e o conhecimento de mérito deste pedido, identificado sob a alínea a) da petição inicial.

3 - O Recorrido não apresentou contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II - Âmbito do recurso de apelação

Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões da Recorrente (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), a solução a alcançar pressupõe a análise da seguinte questão:
- Saber se entre a reconvenção deduzida pela ora Autora contra o ora Réu na ação correspondente ao processo n.° 1983/15.1T8LSB e a presente ação, sucessivamente propostas, intercede uma identidade objetiva que conduza à verificação da exceção dilatória do caso julgado.
*
III - Fundamentação

Fundamentação de facto

Para além dos factos acima descritos do iter processual, os factos que relevam para a decisão a proferir, que se encontram provados por certidões juntas aos autos (cf. artigo 607.º, n.º 4 ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), são os seguintes:

1. A Autora e o Réu foram casados um com o outro, tendo o seu casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida no dia 7.6.2013 e transitada em julgado no dia 4.10.2013.

2. A ação de divórcio foi instaurada pela ora Ré no dia 30.4.2012 e, no âmbito da mesma, foi declarado provado que não viviam como marido e mulher desde julho de 2011.

3. Nenhuma das partes requereu que os efeitos do divórcio retroagissem à data da separação.

4. Na ação com o n.º 1983/15.1T8LSB, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível - Juiz 18, o ora Réu AF..., intentou contra a ora Autora HM..., uma ação declarativa, com processo comum, pedindo ao Tribunal a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 27.000,00 €, acrescida de juros, alegando em suma que:
- O Autor e a Ré foram casados entre si, o seu casamento foi dissolvido por sentença transitada em julgado em 4.10.2014 e a separação do casal não serviu de causa de pedir na ação de divórcio nem nenhum dos cônjuges requereu que os efeitos retroagissem à data da separação;
- Ambos são contitulares da conta bancária n.º 027... do Banco ..., na qual existiam depósitos e aplicações financeiras em valor superior a 54.000,00 €, fruto de economias e rendimentos comuns do casal;
- No dia 14.6.2011, sem o conhecimento nem a autorização do Autor, a Ré procedeu à transferência da quantia de 54.000,00 € para uma conta sua, fazendo seu tal montante, com o que prejudicou o Autor em 27.000,00 €.

5. A ora Autora apresentou contestação no referido processo n.º 1983/15.1T8LSB, tendo deduzido pedido reconvencional contra o ora Réu, pedindo que este fosse condenado a pagar à Reconvinte a quantia de 26.489,35 €, acrescida dos juros à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da notificação da reconvenção até ao efetivo pagamento, alegando, para tal, nos artigos 19.º a 31.º, que:
«19º
Independentemente da R. ter transferido ou não quantia monetária para uma conta solidária, também o A. subtraiu a totalidade de valores de conta em que ele era o primeiro titular, no valor de Eur 22.809,06, cfr Doc 1 que se junta.
20º
Nem sequer prestou contas relativamente ao IRS de 2011, no valor de Eur 169,64,cfr. Doc. 2 que se junta.
21º
Mais, bem sabe o A. que ainda utiliza em seu próprio proveito, sem nenhuma mais valia para a R., o veículo automóvel Mercedes C 220 CDI, comprado pela R. com dinheiro da conta desta e que custou Eur 30.000,00, cfr. Docs 3 a 5, que desde já se juntam.
22º
Ora só por estes bens já tem o A. a seu favor, sem dar contas à R. a quantia de Eur 52.978,70.
(...) 28.º
Conforme o já supra explanado, o A. é detentor na sua posse da quantia de Eur 52.978,70, correspondente a IRS 2011, conta solidária em seu nome e veículo automóvel Mercedes 220 CDI.
29.º
Uma vez que a R. ficou inibida de usufruir de tais bens, uma vez que se encontram na posse do A. pretende a R., lhe seja ressarcida a sua quota parte, na medida de 50%, no valor de Eur 26.489,35.
30º
A R. encontra-se lesada nesse valor, uma vez que não tem qualquer proveito de bens que estão a ser gozados pelo A. e foram comprados na pendência do casamento.
31º
Além desse capital, são devidos também juros, à taxa legal de 4% ao ano, contados desde a notificação desta contestação até integral pagamento”.

6. A 14.10.2016, foi proferida sentença no processo n.º 1983/15.1T8LSB, na qual se decidiu julgar improcedente, por não provado, o pedido reconvencional, dele se absolvendo o Reconvindo AF..., com a seguinte fundamentação:
Do Pedido Reconvencional
A Ré/Reconvinte pretende que «haja um encontro de contas» e que o Reconvindo, seu ex-marido, seja condenado a pagar-lhe a quantia de e 26.489,35, acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da notificação da reconvenção até ao efectivo pagamento.
A Reconvinte alega que o Reconvindo, seu ex-marido, «subtraiu a totalidade de valores da conta da qual ele era o primeiro titular, e que tinha um saldo de € 22.809,06», que «não prestou contas relativamente ao IRS de 2011, no valor de € 169,64» e que «utiliza em seu proveito próprio, sem nenhuma mais valia para a Ré, o veículo automóvel Mercedes C 220 CDI, comprado pela Ré, com dinheiro da conta desta.».
Apreciando.
Este tribunal é incompetente para proceder à partilha dos bens que integram o património comum do Autor e da Ré e que foi adquirido na pendência do matrimónio.
Para que o Reconvindo possa ser condenado a pagar à Reconvinte a quantia por ela peticionada, é necessário que se verifiquem os pressupostos da responsabilidade civil previstos no art. 1681.°, n.° 1, do Código Civil.
Ou seja, a Reconvinte teria de alegar e de provar que, na constância do matrimónio, o Reconvindo, na administração de bens comuns, praticou intencionalmente actos que a prejudicaram ou que prejudicaram o casal. E não o fez, como desde já se adianta.
No caso em análise, a Reconvinte alegou que o Reconvindo «subtraiu a totalidade de valores da conta da qual ele era o primeiro titular, e que tinha um saldo de € 22.809,06», mas apenas se provou que o Autor e a Ré são co-titulares de uma conta de depósitos à ordem na C... com o n.º 002... a qual apresentava, em 30 de Outubro de 2010 o saldo de € 22.102,82. Ou seja, a Reconvinte não logrou provar que, durante a constância do matrimónio, o Reconvindo se apropriou da totalidade daquele saldo (ou que o administrou em prejuízo do casal) (…)”.

7. Da sentença referida no ponto 6 foi interposto recurso, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa confirmado a sentença por acórdão transitado em julgado no dia 3.4.2017.

Enquadramento jurídico

No processo n.º 1983/15.1T8LSB foi proferida sentença no sentido da absolvição Autor/Reconvindo (ora Réu) do pedido reconvencional deduzido pela Ré/Reconvinte (ora Autora), por esta não ter logrado demonstrar, como lhe incumbia nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, os pressupostos da responsabilidade civil previstos no artigo 1681.º, n.° 1, do referido Código, maxime que houve apropriação do saldo bancário em questão durante a constância do casamento – cf. ponto 6 da factualidade provada.
A referida sentença foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado no dia 3.4.2017 – ponto 7 da factualidade provada.
Cumpre indagar se se verifica uma identidade entre a reconvenção deduzida pela ora Autora contra o ora Réu no processo n.° 1983/15.1T8LSB e a presente ação, conducente à exceção dilatória do caso julgado.
Nos termos do disposto no artigo 580.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, as exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa. Repete-se uma causa quando se propõe uma ação idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir – artigo 581.º, n.º 1, do mesmo Código (tríplice identidade).
A decisão considera-se transitada em julgada logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação, nos termos do artigo 628.º do Código de Processo Civil.
Com o trânsito em julgado, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º – n.º 1 do artigo 619.º do Código de Processo Civil.
A sentença é, na sua essência, «um ato de racionalidade prático-jurídica, através do qual o juiz julga os factos provados e os não provados e, nessa base, convoca o quadro normativo aplicável, declarando o direito em concreto para valer com força de caso julgado» (Manuel Tomé Gomes, Da Sentença Cível, “Caderno V - O Novo Processo Civil, Textos e Jurisprudência”, Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, setembro 2015, in <URL:http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf, p. 330).
A força de caso julgado da sentença é um fenómeno essencial à garantia dos valores constitucionais da confiança e da segurança jurídica, bem como à prossecução da finalidade da pacificação social.
Espraia-se sob diferentes prismas ou modalidades.
Pode ocorrer por força da exceção do caso julgado, a qual reflete a denominada função negativa do caso julgado.
Pelo contrário, «a figura da autoridade do caso julgado tem a ver com a existência de relação – já não de identidade jurídica – mas de prejudicialidade entre objectos processuais: julgada, em termos definitivos, certa matéria numa acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objecto desta primeira causa, sobre essa precisa questio judicata, impõe-se necessariamente em todas as outras acções que venham a correr termos entre as mesmas partes – incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda acção» - chamada função positiva do caso julgado (acórdão do STJ de 24.4.2015, proferido no processo n.º 7770/07.3TBVFR.P1.S1, in www.dgsi.pt.
Em analogia com o caso julgado, surge ainda a figura do efeito preclusivo, decorrente das normas constantes dos artigos 564.º, alínea c), e 573.º do Código de Processo Civil, impondo ao demandado o ónus da oportuna dedução de todos os meios de defesa que considere ter ao seu dispor no confronto da pretensão do autor, sob pena de lhe ficar vedada a possibilidade de colocar questões não abordadas e decididas em ações futuras que corram entre as mesmas partes (cf. acórdão do STJ de 10.10.2012, proferido no processo n.º 1999/11.7TBGMR.G1.S1, in www.dgsi.pt).
No caso dos autos, está em causa a modalidade do caso julgado relativa à exceção dilatória, envolvendo a definição da identidade objetiva das duas ações (reconvenção e ação) sucessivamente propostas entre as mesmas partes.
Na verdade, falamos em identidade objetiva porque o primeiro segmento da tríplice identidade não oferece dúvidas. As partes são as mesmas na reconvenção supra descrita e na presente ação.
Poderá, na específica situação em espécie, considerar-se que se verifica uma identidade do pedido e da causa de pedir?
Na presente ação, a Autora peticiona, sob a alínea a), a condenação do Réu a pagar-lhe metade do saldo da conta à ordem na C... com o n.º 002..., no valor de 11.404,53 €, acrescido de juros legais a contar da data da citação.
Na reconvenção apresentada no processo n.º 1983/15.1T8LSB, a Reconvinte peticiona a condenação do Reconvindo a pagar-lhe a quantia de 26.489,35 €, acrescida de juros legais a contar desde a notificação da contestação.
O valor global peticionado corresponde às seguintes quantias parcelares:
. 22.809,06 € - totalidade de valores da conta de que o Reconvindo era o primeiro titular e que terá subtraído;
. 169,64 € - contas alegadamente não prestadas, relativamente ao IRS de 2011;
. 30.000,00 € - utilização pelo Reconvindo, em seu próprio proveito e sem nenhuma mais valia para a Reconvinte, de um veículo automóvel por esta adquirido com dinheiro da sua conta e que terá custado aquele montante.
Da soma destas quantias resulta o valor global de 52.978,70 €, pedindo a Reconvinte o ressarcimento da sua quota-parte, na medida de 50% (cf. artigo 29.º do articulado da contestação no processo n.º 1983/15.1T8LSB), ou seja, o montante de 26.489,35 €.
Pode, assim, constatar-se que a ora Autora deduziu pedido reconvencional contra o ora Réu, pedindo que este fosse condenado a restituir metade do valor da conta da C... n.º 002... de que se apropriou, fixando o valor do saldo em 22.809,06 €, cuja percentagem de 50% correspondem aos ora peticionados 11.404,53 € (alínea a) do petitório).
Assim, o efeito prático-jurídico pretendido pela ora Autora em ambas as ações é, claramente, o da obtenção de metade do valor da conta da C... de que o ora Réu era primeiro titular.
Resta apreciar se existirá ou não identidade de causa de pedir relativamente aos dois pedidos sucessivamente formulados e, para tal, cumpre verificar se ocorre nesta ação alguma inovação fáctica suscetível de configurar uma nova causa petendi.
Registe-se que não pode relevar para este efeito uma inovação que apenas se circunscreva ao plano da qualificação jurídico-normativa do elenco dos factos concretos invocados em ambas as ações.
Na verdade, o juiz pode operar livremente a qualificação jurídica da factualidade invocada pelas partes como fundamento ou suporte das respetivas pretensões, uma vez que «não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito», nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Deste modo, as várias possíveis configurações ou qualificações, situadas num plano puramente normativo dos factos concretos alegados, não podem suportar a propositura de uma nova ação.
No plano dos factos substantivamente relevantes para a apreciação da matéria de facto, pode também afirmar-se com segurança que a essencial identidade e individualidade da causa de pedir não é afetada por qualquer alteração ou ampliação factual que não afecte o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as ações.
Na verdade, pode verificar-se alguma adição ou mutação desses factos, continuando, porém, a causa de pedir a ser normativamente entendida como a mesma.
Transpondo estas considerações gerais para a especificidade do caso em apreço, cumpre apreciar.
Alega a Recorrente, na 2.ª conclusão das alegações de recurso, que não são os mesmos nem têm o mesmo efeito jurídico «os factos constitutivos da causa de pedir, alegados em reconvenção na ação n° 1983/15.1T8LSB, de que Reconvindo subtraiu e mantém na sua posse a totalidade dos valores de certa conta bancária de que ele era primeiro titular e, por outro lado, os factos constitutivos da causa de pedir alegados pela A. na presente ação, de que o R. (Reconvindo na ação anterior), procedeu ao levantamento do saldo da mesma conta bancária, bem comum do casal, sem conhecimento, autorização ou acordo da A. (anteriormente Reconvinte), se apoderou de tal quantia, que a subtraiu ao património comum de ambos e que por isso lesou a A. em 50% de tal valor».
E remata na 3.ª conclusão que «É errada a conclusão extraída dos factos mencionados na conclusão anterior, de que na reconvenção da ação 1983/15.1T8LSB está em causa a responsabilidade civil por facto ilícito, tal como na presente ação».
Ressalta da análise da contestação apresentada no processo n.º 1983/15.1T8LSB que, em lado algum do seu articulado, a aí Reconvinte enuncia expressamente que o instituto aplicável ao caso é o da responsabilidade civil por facto ilícito.
Já na presente ação, a Autora invoca expressamente este instituto nos artigos 40.º a 44.º da petição inicial, designadamente o disposto nos artigos 1681º, n.º 1, 583.º, 562.º e 564.º do Código Civil.
Neste domínio, importa ter presente que a causa de pedir se pode desdobrar, analiticamente, em duas vertentes:
a) uma factualidade alegada, que constitui o respetivo substrato factual, também designada pela doutrina por causa de pedir remota;
b) uma vertente normativa significante na perspetiva do pedido formulado, designada por causa de pedir próxima, não necessariamente adstrita à qualificação dada pelo autor, mas delineada no quadro das soluções de direito plausíveis em função do pedido formulado, aliás nos latos termos permitidos ao tribunal, em sede de enquadramento jurídico; é o que alguma doutrina designa por princípio da causa de pedir aberta (cf. acórdão do TRL de 1.6.2010, proferido no processo n.º 405/07.6TVLSB.L1-7, in www.dgsi.pt).
Assim sendo, no que aqui releva, sobre a Reconvinte impendia o ónus de indicar o concreto efeito prático-jurídico pretendido e de alegar uma factualidade específica ou concreta que viabilizasse a formulação de um juízo de mérito sobre a pretensão deduzida.
A Reconvinte alegou na contestação do processo n.º 1983/15.1T8LSB que «Independentemente da R. ter transferido ou não quantia monetária para uma conta solidária, também o A. subtraiu a totalidade de valores de conta em que ele era o primeiro titular, no valor de Eur 22.809,06» - (artigo 19.º da contestação - bold e subl. nossos).
Mais alegou que tal valor se encontra na posse do Reconvindo (artigo 29.º da contestação - bold e subl. nossos).
Ora, subtrair e estar na posse de são conceitos com densidade normativa específica.
Assim, a circunstância de a Reconvinte não ter indicado qualquer instituto ou norma jurídica na reconvenção não significa que esta seja desprovida de razões de direito (cf. artigos 552.º, n.º 1, alínea d), e 572.º, alínea b), do CPC).
Ainda que assim não se entenda, na verdade o juiz pode qualificar juridicamente, de forma livre, os factos carreados pelas partes.
Foi o que sucedeu na sentença proferida, tendo sido os factos supra assinalados qualificados como integrantes do instituto da responsabilidade civil previsto no artigo 1681.º, n.º 1, do Código Civil.
Senão, vejamos.
Estipula o citado artigo 1681.º, n.º 1, que «o cônjuge que administrar os bens comuns ou próprios do outro cônjuge não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge».
Assim, em regra, o cônjuge administrador de bens comuns não tem de prestar contas da sua administração, sendo irresponsável pelas consequências de uma administração negligente, relapsa ou desastrosa ainda que isso redunde em prejuízo do casal e do outro cônjuge. Não obstante, segundo o preceito em análise, ele é responsável pelas consequências dos atos praticados intencionalmente em prejuízo do casal ou do outro cônjuge.
Este normativo eleva à categoria de facto ilícito a actuação com intenção de causar dano, exigindo no entanto que se trate de uma actuação no âmbito da administração dos bens comuns.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 22.2.2011, proferido no processo n.º 1561/07. 9TBLRA.C.1.S.1., in www.dgsi.pt, «A regra da irresponsabilidade do cônjuge administrador é excepcionada com a actuação culposa, na modalidade de dolo.
Mas, e como acentuam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, IV vol., 3.ª ed., p. 296) «só nos casos mais nítidos e descabelados de actuação prejudicial do cônjuge administrador, se deve conceder ao lesado o direito a indemnização (…) que não quanto às puras abstenções ou omissões».
Volvendo à situação em apreço, parece-nos claro que o ato de subtrair tem latente a invocação do dolo a que se reporta o citado n.º 1 do artigo 1681.º do Código Civil, pelo que, ainda que a Reconvinte não tenha expressamente enunciado os normativos legais aplicáveis, circunstanciou normativamente os factos no sentido da responsabilidade civil por facto ilícito.
Na presente ação, a factualidade invocada pela Autora, no que concerne ao pedido formulado sob a alínea a) do petitório, é a seguinte:
«O R. levantou ou transferiu, para conta bancária que a A. desconhece, o saldo das mencionadas contas e procedeu ao encerramento, em 12-07-2011 da conta (…)» - artigo 12.º da petição inicial.
«O levantamento, transferência e encerramento destas contas bancárias foram efetuados sem conhecimento, autorização ou acordo da A.» – artigo 13.º da petição inicial (bold e subl. nossos).
«O R., com os procedimentos atrás mencionados, impediu a A. de ter acesso, de movimentar e de utilizar o saldo das referidas contas bancárias (…) E, desse modo, o R. apoderou-se das quantias dos mencionados saldos» - artigos 17.º e 18.º da petição inicial (bold e subl. nossos).
«Com o referido apoderamento, o R. subtraiu o valor dos saldos ao património comum» - artigo 20.º da petição inicial (bold e subl. nossos).
Da análise das expressões empregues, ressalta que a factualidade invocada na reconvenção e que culminou em decisão transitada em julgado parece configurar-se como idêntica à alegada nesta segunda ação.
Na verdade, a substância do litígio assenta precisa e integralmente nos mesmos factos concretos: “subtrair” (retirar com intenção de o fazer) determinada quantia e “apoderar-se” dela, com um prejuízo para o cônjuge não administrador no valor de 50% do valor retirado.
Ora, sendo idêntico o substrato factual da reconvenção e da ação, não estamos perante uma dualidade de causas de pedir suscetível de legitimar a reiteração da pretensão referente ao mesmo efeito prático-jurídico pretendido pela Autora.
No processo n.º 1983/15.1T8LSB, o Autor/Reconvindo (ora Réu) foi absolvido do pedido reconvencional deduzido pela Ré/Reconvinte (ora Autora) por não ter logrado demonstrar os factos por si alegados.
Tudo ponderado, resulta à saciedade que a decisão recorrida que teve por verificada a exceção dilatória do caso julgado não desrespeitou qualquer regra processual ou princípio estruturante do processo civil.
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Em face dos fundamentos de facto e de Direito supraexplanados, a apelação da Recorrente deve improceder.
Vencida a Recorrente neste recurso, será condenada no pagamento das custas processuais, que, no caso, correspondem às custas de parte do Recorrido – artigos 527.º, n.º 1, 529.º e 533.º do CPC.
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IV - Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes desta 2.ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, confirmando, em consequência, o despacho saneador, no segmento em que determinou a absolvição do Réu AF... da instância quanto ao pedido formulado pela Autora HM... sob a alínea a) do petitório, por verificação da exceção do caso julgado.
Mais se decide condenar a Recorrente no pagamento das custas do recurso.
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Lisboa, 25 de outubro de 2018

Gabriela Cunha Rodrigues

Arlindo Crua

Luciano Farinha Alves