Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
169/15.0T8VLS.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: COMPRA E VENDA
MÚTUO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Tendo a A., adquirente de uma viatura na qualidade de consumidora, denunciado atempadamente à 1.ª R., vendedora, a anomalia detetada no veículo, entregando-o, por três vezes, diretamente ou através da 1.ª R., a entidades por esta indicadas para a reparação da viatura, resolvendo o contrato só quando, finalmente, a 1.ª R. declinou qualquer responsabilidade pela desconformidade do veículo, que não restituiu à A. devidamente reparado, é irrelevante que a 1.ª R., após a resolução do contrato, o tenha reparado, por um custo (€ 3 039,57) muito inferior ao do preço da viatura (€ 20 000,00).
II. Ainda que o contrato de crédito seja, quanto à obrigação do consumidor, um contrato de execução duradoura, a causa da sua resolução, isto é, a extinção retroativa do contrato que deu origem ao contrato de crédito (o contrato de compra e venda), legitima a restituição de todas as prestações recebidas do consumidor pelo credor (art.º 434.º n.º 2, in fine, do CC).
III. Em regra e ressalvadas situações de patente desequilíbrio que urja corrigir, nomeadamente emergentes de anormal utilização do veículo pelo comprador, a ele imputável e não, por exemplo, à desconformidade em si, o efeito retroativo da resolução do contrato de aquisição de bem de consumo, causa extintiva do contrato normalmente imputável ao incumprimento do contrato pelo vendedor, não abarca a exigibilidade, ao consumidor, de qualquer valor pela utilização do bem.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 03.11.2015 Marlene e seu marido Fábio, residentes na ilha de São Jorge, Açores, intentaram ação declarativa de condenação contra Stand, Lda, com sede na ilha de São Jorge, e Banco Banif Mais, S.A., atualmente Banco Cofidis, S.A., com sede em Lisboa.
Os AA. alegaram, em síntese, que em 26.11.2014, na ilha de São Jorge, compraram à 1.ª R. um automóvel de marca Nissan Juke 1.5 cc, pelo preço de € 20 623,00. Por sugestão da 1.ª R., na mesma ocasião e para pagamento do veículo, a A. celebrou, nas instalações da 1.ª R., um contrato de mútuo com a 2.ª R., intervindo o A. como fiador, com o valor de € 20 000,00 para “financiamento relativo ao bem” e € 623,00 como “montante do financiamento relativo a outras despesas”. Mais ficou a A. obrigada a pagar à 2.ª R. o valor total de € 11 871,00 a título de juros. Sucede que, após terem recebido o aludido veículo, este denotou anomalias que consistiam em problemas no arranque, acompanhados de um ruído anormal. Após conversações com a 1.ª R. e com a concordância desta, o A. levou o veículo a uma oficina onde se constatou que a viatura apresentava os problemas indicados pelo A., mas não foi possível detetar a sua origem. A A., por não ter outro meio de deslocação, foi obrigada a continuar a utilizar o veículo naquele estado, o qual se foi agravando, deixando os AA. o carro estacionado em planos inclinados, por ele já só pegar de empurrão. Em 31.3.2015 o carro deixou de entrar em funcionamento, tendo, por indicação da 1.ª R., o carro sido levado a outra oficina. Foi substituída uma peça, mas o carro continuou sem funcionar. Então o veículo foi enviado pela 1.ª R., em 24.4.2015, para a ilha Terceira, a fim de ser examinado nas instalações da Nissan. Em 09.6.2015 a Nissan enviou ao A. um e-mail no qual afirmava entender que o caso não era abrangido pela garantia Nissan, não resultando de defeito de origem, mas de utilização de combustível de baixa qualidade e falta de verificação e substituição do filtro de combustível. Poucos dias depois a 1.ª R. acompanhou o declarado pela Nissan e, por conseguinte, informou o A. de que não repararia o automóvel. Em 18.6.2015 os AA. comunicaram à 1.ª R. a resolução do contrato de compra e venda em causa. Em 26.6.2015 a 1.ª R. reiterou que sobre ela não impendia qualquer dever de reparação do veículo em questão. Os AA. entendem que resolveram legitimamente o contrato, por se encontrarem preenchidos os requisitos previstos no art.º 2.º, n.º 2, al. d) do Dec.-Lei n.º 67/2003, de 08.4, devendo a 1.ª R. ser condenada a restituir o preço pago pelos AA., no valor de € 20 623,00. Mais deve a 1.ª R. indemnizar os AA. pelos danos não patrimoniais sofridos, no valor, mínimo, de € 3 350,00. Por outro lado, a resolução do contrato de compra e venda acarretará a resolução do contrato de mútuo com ele coligado, nos termos do art.º 18.º do Dec.-Lei n.º 133/2009, de 02.6. Deve ser restituída à 2.ª R. a quantia, que desembolsou, de € 20 623,00, mas deduzida do valor de € 2 733,90 que os AA. pagaram à 2.ª R., correspondente a 10 prestações do contrato de mútuo – a que corresponde, feita a compensação, o valor de € 17 889,10. Esse valor deve ser diretamente pago pela 1.ª R. à 2.ª R.. Mais deverá a 1.ª R. pagar aos AA. a quantia deduzida, de € 2 733,90, correspondente às quantias que estes pagaram à 2.ª R., em cumprimento do contrato de mútuo ora resolvido.
Os AA. terminaram formulando o seguinte petitório:
Nestes termos e nos mais de direito, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, consequentemente, deve:
i) A 1.ª R., sob aceitação da 2.ª R., ser condenada a restituir a esta a quantia de € 17.889,10 (dezassete mil oitocentos e oitenta e nove euros e dez cêntimos), fruto da resolução do contrato de compra e venda promovida pelos AA., e ainda a restituir aos AA. a quantia de € 2.733,90 (dois mil setecentos e trinta e três euros e noventa cêntimos), correspondente às 10 (dez) prestações pagas pelos AA. durante a execução do contrato de mútuo com fiança com o n.º 1059101;
ii) Ser judicialmente declarado resolvido o contrato de mútuo com fiança com o n.º 1059101 celebrado entre a A. e a 2.ª R.;
iii) A 1.ª R. ser condenada no pagamento da importância de, no mínimo, 3.350,00 € (três mil trezentos e cinquenta euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos AA. em resultado do incumprimento definitivo da 1.ª R.;
iv) Deve ainda a 1.ª R ser condenada a pagar aos AA. os juros de mora legais a contar da citação até à integral restituição do preço e pagamento da indemnização.
Ou, em alternativa,
v) A 1.ª R. ser condenada a restituir aos AA. a quantia de € 20.623,00 (vinte mil seiscentos e vinte e três euros), fruto da resolução do contrato de compra e venda promovida pelos AA. e correspondente ao preço do veículo;
vi) Ser judicialmente declarado resolvido o contrato de mútuo com fiança com o n.º 1059101 celebrado entre a A. e a 2.ª R.;
vii) A 1.ª R. ser condenada no pagamento da importância de, no mínimo, 3.350,00 € (três mil trezentos e cinquenta euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos AA. em resultado do incumprimento definitivo da 1.ª R.;
viii) Deve ainda a 1.ª R ser condenada a pagar aos AA. os juros de mora legais a contar da citação até à integral restituição do preço e pagamento da indemnização.”
O 2.º R. contestou a ação (em 21.12.2015), impugnando, por desconhecimento, o alegado quanto às anomalias da viatura em causa e vicissitudes decorrentes, e negando que a A. tivesse celebrado o contrato de mútuo na qualidade de consumidora e que entre os dois contratos referidos existisse coligação. Mais afirmou que os AA. apenas pagaram as 10 primeiras prestações do contrato de mútuo, apesar das interpelações por si efetuadas - pelo que deduziu reconvenção emergente desse incumprimento. Concluiu pela improcedência da ação e pediu, em reconvenção, que os AA. fossem condenados a pagarem, solidariamente, ao R. reconvinte, a importância de € 30 369,01, bem como os juros que à taxa de 12,033% se vencessem desde 22.12.2015 até integral pagamento.
Também a 1.ª R. contestou, arguindo a caducidade do direito de ação dos AA., afirmando que o preço da viatura fora de € 17 500,00 e que nesse valor fora abatido o valor comercial de uma viatura Renault que os AA. haviam entregue para retoma (€ 4 077,00), servindo ainda a quantia financiada para pagar o que os AA. ainda deviam a terceiro pelo Renault. Assim, dos € 20 000,00 que recebeu do 2.º R., a 1.ª R. entregou aos AA. € 6 577,00. Mais imputou aos AA. a responsabilidade pelas anomalias de funcionamento apontadas à viatura adquirida e rejeitou os danos por aqueles invocados. Considerou que, quando muito, a R. deveria ser responsabilizada pelo custo da reparação do veículo, que foi de € 3 236,00.
A R. concluiu pela improcedência da ação, por não provada, absolvendo-se a R. do pedido; subsidiariamente, concluiu pela sua condenação no pagamento de € 3 236,00.
A 1.ª R. deduziu incidente de intervenção principal provocada de Nissan Ibéria S.A. – Sucursal em Portugal e incidente de intervenção acessória provocada de Auto Industrial S.A., anterior proprietária do Nissan em causa.
Ambos os chamamentos foram admitidos.
A chamada Nissan Ibéria contestou, rejeitando qualquer responsabilidade pelas anomalias imputadas à viatura e concluindo pela sua absolvição do pedido.
Também a chamada Auto Industrial contestou, negando a responsabilização pretendida pela 1.ª R..
Realizou-se audiência prévia, na qual os AA. responderam às exceções arguidas pelos RR., foi proferido saneador tabelar, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizou-se audiência final e em 31.01.2018 foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e a reconvenção improcedente, tendo sido emitido o seguinte dispositivo:
Face ao exposto, julgo parcialmente procedente a presente acção declarativa e totalmente improcedente a reconvenção e, em consequência:
a) declaro resolvido o contrato de compra e venda do Nissan Juke celebrado entre a Autora e a Ré Stand, Lda.,
b) declaro extinto, por força daquela resolução referida em a), o contrato de mútuo com fiança, com o n.º 1059101, celebrado entre os Autores e a Ré Banco, S.A.;
c) condeno a Ré Stand …. a pagar à Autora a quantia de 2.733,90 €, correspondente às 10 prestações pagas durante a execução do contrato de mútuo com fiança com o n.º 1059101, acrescida dos juros contados, à taxa supletiva legal em vigor, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
d) condeno a Ré Stand a reembolsar à Ré Banco Cofidis, S.A., a diferença da quantia por si recebida, depois de descontado o valor pago aos Autores por conta do capital a estes reembolsado, acrescido dos juros civis, devidos pelo possuidor de má fé, contados desde a data da citação da Ré Stand e até integral e efectivo pagamento, a liquidar em incidente prévio à execução de sentença;
e) absolvo a Ré Stand do pedido de pagamento da indemnização de 3.350,00 € aos Autores;
f) não considero a Ré Stand como litigante de má fé, pelo que não a condeno em multa e/ou indemnização em benefício dos Autores;
g) absolvo a chamada Auto Industrial do pedido deduzido pelos Autores;
h) absolvo a chamada Nissan Ibéria do pedido deduzido pelos Autores;
i) absolvo os Autores reconvindos do pedido reconvencional contra estes deduzido pela Ré Reconvinte.
*
Custas da acção a cargo de Autores e Rés I e II, na proporção do respectivo decaimento, quanto à parte já liquidada, e, provisoriamente, na percentagem de 50% para Autores e Ré Stand ... quanto à parte a liquidar.
A 1.ª R. (Stand (…), Lda), apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
A. A sentença a quo omitiu, de forma grosseira: i) qualquer pronúncia sobre o valor atribuído ao veículo de retoma, marca Renault, concretamente o valor de € 5.581,48 que ainda se encontrava em dívida à Cetelem, bem como ii) o nexo funcional e interdependência deste contrato (retoma) com o contrato de compra pelos Recorridos do veículo Nissan Juke;
B. O Tribunal a quo omitiu ainda qualquer valoração à factualidade dada como provada pelo manifesto mau uso – e os inerentes danos - do veículo Nissan Juke pelos Recorridos entre 08/12/2014 e 31/03/2015;
C. A sentença recorrida considerou como matéria provada que em 30/01/2015 o mecânico concluiu que o veículo não apresentava os problemas denunciados pelo Recorrido, e que os Recorridos continuaram a utilizar diariamente durante dois meses o veículo mesmo após o mesmo só pegar de empurrão, até que o mesmo deixou de funcionar, o que consubstancia venire contra factum proprium, o que não foi tido em consideração na sentença proferida, o que afastaria a presunção de culpa da Recorrente;
D. É manifesto o abuso de direito por parte dos Recorridos na resolução do contrato de compra e venda objecto dos presentes autos;
E. O Tribunal a quo apesar de ter considerado provado no ponto R. dos factos provados, considerou em clara contradição com este facto os factos provados nos pontos N., O., S., T., U. e V, estes últimos deveriam ter sido dado como provados, uma vez que o Tribunal a quo, apenas considerou as declarações dos AA., ora Recorridos – sendo certo que foi dado como provado que em 30/01/2015 o veículo em causa não apresentava qualquer defeito (cfr. ponto Q. e R. dos factos provados);
F. O tribunal a quo só poderia concluir que a ação dos Recorridos é que causou os alegados defeitos;
G. Acresce ainda que, os factos dados como provados nos pontos N., O., S., T., U. e V., por um lado e o ponto R. por outro, bem como a declaração de resolução do contrato por venda de coisa defeituosa, estão em clara contradição entre si, uma vez que foi considerado provado que o veículo não apresentava qualquer defeito;
H. Ao decidir como decidiu a sentença a quo faz uma errada interpretação dos factos e do direito, violando o art. 334.º do Código Civil e o art. 4.º, n.º 5 do DL 67/2003, de 21/05, bem como é nula nos termos e para os efeitos do art. 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil;
I. A sentença a quo teria que considerar a resolução do contrato de compra e venda em crise como um gritante abuso de direito;
J. Com a factualidade dada como provada, ter-se-ia necessariamente que considerar que os Recorridos aceitaram a reparação do veículo, em detrimento da resolução;
K. A sentença deveria ter tido em conta o principio geral da boa fé (art. 762º, nº 2 do Código Civil) que rege toda a construção legal do nosso direito privado e, em especial, do direito civil;
L. Dos factos provados resulta evidente que os Recorridos aceitaram expressamente a reparação do veículo, tendo inclusivamente tido um carro de substituição;
M. Terá de se concluir que, o exercício pelos Recorridos do direito de resolução do contrato de compra e venda perante o alegado defeito - criado, ou pelo menos potenciado, por estes diga-se! - da coisa objecto daquele, é abusivo, nos termos do art. 4º, n.º 5 do Decreto-Lei nº 67/2003.
N. Os Recorridos, perante o veículo “defeituoso”, optaram pelo meio mais gravoso para a Recorrida - e essa natureza gravosa não se justificava perante o caso concreto – o que consubstancia um manifesto abuso de direito (art. 334º do Código Civil);
O. O Tribunal a quo deveria ter considerado que a utilização do meio legal resolução do contrato pelos Recorridos envolve a violação da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito em causa,
P. sendo a solução mais equitativa para a questão em apreço os Recorridos terem direito a que os defeitos fossem repostos sem encargos, por meio da reparação que estava a ser realizada (cfr.: SSS. da matéria dada como provada).
Q. Pelo que, também por aqui, ao decidir como decidiu a sentença a quo faz uma errada interpretação dos factos e do direito, violando o art. 334.º do C.C. e o art. 4.º, n.º 5 do DL 67/2003, de 21/05;
R. Tendo em conta os factos dados como provados nos pontos RRR. e SSS., sempre ter-se-ia que considerar um abuso de direito a resolução preconizada, por manifesta má-fé, tendo em consideração a desproporcionalidade entre o prejuízo da Recorrente e o beneficio dos Recorridos.
S. O prejuízo da Recorrente - considerado pela Sentença recorrida - ascende a €20.000,00, quando, na verdade, a opção, em ordem ao princípio da boa-fé, deveria ser a reparação no valor de € 3.039,57 (cfr.: ponto RRR. da matéria dada como provada);
T. Ao decidir como decidiu a sentença a quo fez uma errada interpretação e aplicação do direito violando o art. 4.º, n.º 5, do DL 63/2003, e os artigos 334.º do C.C.;
U. A decisão proferida pelo Tribunal a quo omitiu que no âmbito do negócio sub judice foram pagos € 5.581,48 no âmbito do crédito existente entre os Recorridos e o Banco Cetelem o que era um pressuposto necessário para a concretização do mencionado negócio;
V. Decorre expressamente da mencionada motivação matéria de facto que o valor atribuído ao veículo Renault Mégane de € 8.000,00, pressupunha o pagamento dos referidos € 5.581,48, como parte dos € 20.000,00, bem como a entrega da diferença dos € 2.201,00 aos Recorridos, tendo sido afectados às despesas contratuais de liquidação do aludido crédito € 258,81;
W. A Recorrente, conforme resulta da motivação da matéria de facto, dos € 20.000,00 do mútuo celebrado pelos Recorridos, apenas ficou com € 11.958,71 e o veículo de retoma com o valor atribuído pelas partes de € 8.000,00;
X. Verificou-se um erro grosseiro na motivação da matéria de facto pela Sentença recorrida, ao considerar a existência de dois contratos totalmente autónomos (compra e venda do Nissan Juke e a compra e venda do veículo Renault Mégane), em vez de considerar a existência de uma coligação e dependência funcional, onde as vicissitudes de um acabam por se repercutir sobre o outro ou outros;
Y. Existe naturalmente uma ligação e um nexo funcional entre os dois contratos, uma vez que o crédito obtido junto da Cofidis no valor de € 20.000,00 serviu para: i) financiar o pagamento pelos Recorridos à Recorrente do Nissan Juke, ii) o pagamento do crédito existente relativo ao Renault Mégane pelos Recorridos à Cetelem (o que permitiu a entrega do mesmo pelos Requeridos como retoma e lhe ter sido atribuído um valor de €8.000,00), iii) bem como todas as despesas necessárias a estes dois processos.
Z. Sendo evidente que cálculo aritmético supra descrito jamais poderá ser compaginável com a sentença proferida pelo tribunal a quo, concretamente com a condenação da alíena d);
AA. A Recorrente apesar de só ter ficado com € 11.958,71 pela venda do Nissan Juke foi condenada a pagar um valor global de € 20.000,00 à Cofidis e aos Recorridos;
BB. Já os Recorridos, para além de terem recebido da Recorrente € 2.201,00, viram o seu crédito na Cetelem, sobre o Renault Mégane, totalmente pago no valor de € 5.581,48 e ainda € 258,81 afectados a despesas referentes a esse crédito, bem como viram ainda o valor correspondente abatido na retoma da compra do Nissan Juke.
CC. O que consubstancia um flagrante e inaceitável enriquecimento sem causa dos Recorridos em detrimento do empobrecimento da Recorrente no valor de cerca de € 8.000,00.
DD. A Recorrente, ao ser condenada, nunca o poderá ser condenada a reembolsar o valor dos € 20.000,00 descontado o valor de 10 prestações pagas, mas sim e apenas no montante que efetivamente recebeu, ou seja, € 11.958,71, devendo por este motivo a sentença proferida ser substituída por outra que colmate este evidente e grosseiro erro de cálculo;
EE. Dúvidas não restam quanto à nulidade da sentença pelo vício de omissão de pronúncia, ínsito no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, pois a condenação da Recorrida a devolver os €20.000,00 à Cofidis reduzida a quantia recebida pelos Recorridos, impunha ao Tribunal ‘a quo’ julgar esta questão relativa ao valor atribuído ao veículo Renault Mégane (objecto de retoma) e a forma como esta retoma teve influência directa nos valores do empréstimo com a Cofidis e nos valores recebidos pela Recorrente e entregues aos Recorridos;
FF. O Tribunal recorrido ao não apreciar esta questão – uma vez que estamos perante contratos com uma interdependência bilateral ou unilateral, em que um funciona como condição e base negocial do outro - cometeu a apontada nulidade, devendo por esse motivo ser revogada a douta sentença proferida;
GG. Mal andou a sentença recorrida, quando condenou a Recorrente a reembolsar à Recorrida a quantia de € 2.733,90 referente às primeiras 10 prestações pagas por esta à Cofidis;
HH. A resolução do contrato, na falta de disposição especial, tem como efeito legal, nos termos do art. 433.º do CC, a aplicação do regime da nulidade e anulabilidade, salvo o disposto nos artigos seguintes;
II. A sentença recorrida faz uma errada interpretação do direito e viola o art. 434.º, n.º 2 do CC, ao condenar a Recorrente no pagamento do montante de € 2.733,90 à Recorrida referente às primeiras 10 prestações pagas por esta à Cofidis;
JJ. Resulta dos factos provados que desde o dia de aquisição do veículo pelos Autores em 26/11/2014 até ao dia 31/03/2015, ou seja, mais de 4 meses, os Autores utilizaram, em seu próprio proveito, o veículo em causa;
KK. Para além dos Autores terem usufruído do veículo em causa durante aquele período de tempo, o que provocou um uso e um desgaste e a inerente impossibilidade de devolver o veículo nas exatas condições em que o receberem;
LL. A sentença a quo ao condenar a Recorrente na devolução do valor correspondentes às 10 prestações pagas pelos Recorridos atribuiu a estes um enriquecimento sem causa desse montante, em detrimento do prejuízo da Recorrente que se vê a braços com um veículo que não se encontra nas mesmas condições em que estava quando foi vendido, com o valor da reparação, violando o artigo 473.º do CC (enriquecimento sem causa) em detrimento do empobrecimento direito da Recorrente.
A apelante terminou pedindo que a decisão recorrida fosse revogada por acórdão que:
a. determinasse a nulidade da sentença, por enfermar do vício de omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil;
subsidiariamente,
b. declarasse nula a sentença por violação do preceituado no artigo 334.º do Código Civil e artigo 4.º, n.º 5 do DL 67/2003, de 21/05, condenando a Recorrente à reparação do veículo e, caso assim não se entendesse, à devolução à Ré Cofidis apenas do montante de €11.958,71, absolvendo a Recorrente ainda no pagamento da quantia €2.733,90 referente às 10 prestações pagas.
Os AA. contra-alegaram, tendo rematado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O presente Recurso vem interposto da douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto;
2. A motivação de recurso compreende dois ónus: o de alegar e o de concluir:
3. É a partir das conclusões extraídas pelo impugnante que o Tribunal determina o âmbito da sua intervenção, tanto de facto como de direito;
4. A sindicância da matéria de facto impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, como preceituado no art. 640.º do CPC;
5. A indicação dos concretos pontos de facto só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão;
6. É inapta ao preenchimento do ónus a não indicação dos factos relativos a uma determinada ocorrência;
7. A indicação das concretas provas a atender determina que o recorrente identifique qual o meio de prova em causa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e por que razão se impõe;
8. O cumprimento do ónus de especificação fáctica e probatória é imprescindível à delimitação do objecto do recurso, à sua inteligibilidade e à possibilidade de intervenção do Tribunal ”ad quem”;
9. A garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento mas constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento realizado em 1.ª Instância;
10. A Recorrente não especifica na motivação do Recurso quais os concretos pontos da matéria de facto provada e/ou não provada que pretende ver reapreciados;
11. A Recorrente limita-se tão só transcrever, no seu ponto I, alguns factos julgados provados pelo douto Tribunal a quo, sem nunca mais se debruçar sobre eles;
12. No seu ponto III, a Recorrente não individualiza quaisquer factos dados como provados e dados como não provados na douta Decisão a quo;
13. Da motivação do recurso não constam quaisquer referências aos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
14. A Recorrente omite em absoluto das conclusões qualquer referência às concretas provas a atender para efeitos de reapreciação;
15. A Recorrente omitiu frontalmente o cumprimento do ónus de especificação estatuído no art. 640.º, n.ºs 1 e 2, do CPC;
16. Tal incumprimento impõe a rejeição liminar do Recurso, sem que haja lugar a convite ao aperfeiçoamento das conclusões, nos termos do art. 640.º do CPC, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite;
17. O princípio constitucional do direito ao recurso não implica que ao recorrente seja facultada a oportunidade de aperfeiçoar em termos substanciais a motivação do recurso quanto à matéria de facto.
18. Por fim, o Tribunal da Relação apenas altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova existente impuser uma decisão diferente, não bastando que a permita;
19. A modificação da matéria de facto só se justifica quando haja um evidente erro na sua apreciação;
20. O Meritíssimo Juiz a quo indicou expressamente na douta Sentença recorrida ter formado a sua convicção quanto aos factos provados e não provados com base nos documentos e nos depoimentos das partes e das testemunhas que aí melhor discriminou;
21. O reexame das provas produzidas não conduz a nenhum outro resultado que não o apurado nos autos, nada justificando a alteração do sentido com que foi apreciada a matéria de facto sindicada, devendo, por isso, manter-se a inalterada no seu conjunto, atento o princípio da livre apreciação da prova;
22. A Recorrente serve-se do recurso unicamente para manifestar a sua discordância com o sentido da decisão proferida pelo Tribunal recorrido;
23. A Recorrente não questionou a matéria de facto através do mecanismo adequado e deve o recurso ser rejeitado liminarmente;
24. A Recorrente elabora um Recurso de matéria de facto e, no final, peticiona a nulidade da douta Sentença por violação do dever de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d);
25. A Recorrente transcreve a motivação da matéria de facto da douta Decisão em crise sobre o preço dos veículos, interpreta-a, conclui que ela consubstancia um erro aritmético e de interpretação dos factos, e conclui que naquela Decisão não houve pronúncia quanto à questão atinente ao valor dos veículos;
26. A Recorrente interpreta vários parágrafos da douta Sentença que se debruçam sobre uma questão (valor dos carros) e depois conclui: o tribunal errou quando se pronunciou sobre uma questão sobre a qual não se pronunciou... por isso a Sentença, segundo a Recorrente, é nula;
27. A Recorrente, no seu pedido subsidiário, peticiona que se declare a nulidade de uma sentença por violação do art. 334.º do CC e de normas relativas à lei de defesa do consumidor (Decreto-lei n.º 67/2003);
28. Ao contrário do que acredita a Recorrente, as causas de nulidade de uma sentença estão previstas apenas no art. 615.º do CPC;
29. Em momento algum, muito pelo contrário (já que o que acabou por fazer foi demonstrar que não existia nulidade), a Recorrente demonstrou que a douta Decisão em crise era nula;
30. A Recorrente elaborou um Recurso de matéria de facto, sem cumprir com os requisitos do art. 640.º do CPC, e peticiona a nulidade da sentença, não tendo absolutamente nenhuma correspondência a sua causa de pedir com o pedido;
31. A Recorrente chegou ao ponto de, no seu pedido subsidiário, defender a nulidade da douta Sentença e em simultâneo peticionar a sua substituição por um Acórdão (que não assentaria sobre uma sentença, já que esta tinha sido considerada nula) que andasse no sentido que ali propôs;
32. Estamos perante um Recurso que atropela, por variadíssimos motivos, as mais elementares regras do direito civil português e do direito processual civil português;
33. Estamos, por isso, perante um Recurso inepto, que em momento algum poderá chegar à lupa do Tribunal ad quem.
O tribunal a quo pronunciou-se pela inexistência de nulidades na sentença.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões suscitadas no presente recurso são as seguintes: impugnação da matéria de facto; nulidades da sentença; fundamento para a resolução do contrato de compra e venda e consequente resolução do contrato de mútuo; abuso de direito; enriquecimento sem causa.
Primeira questão (impugnação da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
A. A 1.ª R. é proprietária do Stand (…), estabelecimento comercial sito na Estrada (….) Velas.
B. A atividade da 1.ª R. consubstancia-se na compra e venda de veículos a motor, mais concretamente de veículos automóveis ligeiros.
C. Em Novembro de 2014, os AA. deslocaram-se ao estabelecimento da 1.ª R. com a intenção de comprarem um automóvel ligeiro de passageiros.
D. Na sequência, os AA. tomaram a decisão de comprar, em segunda mão, o automóvel Nissan Juke 1.5cc, matrícula (…).
E. O veículo em questão foi comprado pela A. para proveito comum do casal, na medida em que serviria para cumprir necessidades desse agregado familiar.
F. Em 26/11/2014, foi entre a A. e a 1.ª R. celebrado um contrato de compra e venda do veículo supramencionado.
G. Nesse contrato ficou estipulado que o preço a pagar pelos A. à 1.ª R. corresponderia ao montante de 20.000,00 €.
H. Para tal, a Autora, a sugestão da 1.ª R., e nas suas instalações, procedeu em conjunto com esta à celebração de um contrato de mútuo com fiança com a 2.ª R. – onde o Autor figura como fiador - (contrato n.º 1059101) para pagamento do veículo.
I. O contrato de mútuo foi celebrado pelo montante global de 20.623,00 €, correspondendo a quantia de 20.000,00 € ao “financiamento relativo ao bem”, enquanto 623,00 € correspondiam ao “montante de financiamento relativo a outras despesas”, 300,00 € correspondiam à comissão de gestão, 200,00 € correspondiam à transferência de propriedade e, finalmente, 123,00 €, correspondiam ao imposto de selo pela utilização do veículo.
J. A Autora obrigou-se a pagar à 2.ª R. 11.871,00 €, a título de juros.
L. Na sequência, a Autora procedeu ao registo de propriedade do veículo em seu nome.
M. Em 25/11/2014, no estabelecimento da 1.ª R., procedeu-se à entrega do veículo aos AA.
N. Em 08/12/2014, junto à casa de Paulo, amigo dos AA., enquanto estes davam a conhecer a sua nova compra àquele, o veículo só entrou em funcionamento à terceira tentativa, sendo certo que, até essa data, demorava algum tempo até pegar, quando se se girava a chave na ignição.
O. Razão pela qual o Autor entrou em contacto via telefónica com a 1.ª R. com vista à resolução dos problemas de arranque que o veículo apresentava.
P. Após conversa mantida entre o Autor e o legal representante da 1.ª R., em data não concretamente apurada, mas anterior a 25/12/2014, decidiu-se que o veículo deveria ser inspeccionado e reparado por técnicos especializados da área, de oficina que seria indicado pelo este último.
Q. Em 30/01/2015, após indicação da 1.ª R., o veículo em causa foi inspeccionado na oficina Auto J..., lda., em Santo Amaro, que para tanto o foi buscar junto da Autora, para depois aí o entregar.
R. Após vistoria ao mesmo, o mecânico concluiu que o veículo não apresentava os problemas denunciados pelo Autor.
S. A Autora, por não possuir outro meio de deslocação, continuou a utilizar o naquele estado.
T. Nas semanas seguintes os problemas no arranque foram-se agravando, levando o veículo cada vez mais tempo a ligar.
U. A dada altura, o veículo apenas passou a entrar em funcionamento por “empurrão”.
V. Foi exactamente este o motivo pelo qual o A., para ligar o veículo, passou a imobilizá-lo em locais inclinados, de forma a que a energia cinética, resultado da força de gravidade, fosse suficiente para conseguir ligar o veículo, só assim se evitando o auxílio da força de terceiros.
X. A 31/03/2015, o veículo deixou de entrar em funcionamento, pelo que, por consequência da imobilização, os AA. viram-se obrigados a accionar a assistência em viagem da empresa Fidelidade.
Z. O Autor entrou, de novo, em contacto, via telefónica, com a 1.ª R., tendo esta determinado que o veículo devia ser sujeito a reparação na oficina “Lerry”.
AA. Em 31/03/2015, foi o veículo rebocado até à oficina acabada de referir.
BB. Passados sensivelmente dois dias, a 1.ª R. entrou em contacto, via telefónica, com o Autor, comunicando-lhe que a concessionária da Nissan na Ilha Terceira havia sugerido que a imobilização do veículo poderia estar associada a problemas numa peça.
CC. Por conseguinte, a 1.ª R. decidiu encomendar a mencionada peça, sem embargo, mesmo após a substituição da mesma, o veículo continuou sem ligar.
DD. Tudo isto levou a que a 1.ª R., em 24/04/2015, procedesse ao envio do veículo para as instalações da concessionária da Nissan, na Ilha Terceira.
EE. Sem obter qualquer informação sobre a reparação do veículo, o Autor entrou em contacto telefónico com a Nissan, na Ilha Terceira, no dia 08/06/2015.
FF. Imediatamente pós o envio do carro para a Ilha Terceira, o Autor deslocou-se com o seu irmão Ruben ao estabelecimento da 1.ª R. para que esta lhe emprestasse um veículo de substituição enquanto o veículo em crise se encontrava imobilizado nas instalações da concessionária da Nissan.
GG. A 1.ª R. cumpriu com o desiderato dos AA. na medida em que procedeu ao empréstimo do veículo Toyota Corola, de matrícula (…).
HH. A 05/06/2015 o veículo de substituição avariou.
II. Facto que deu origem a novo pedido de Assistência em viagem feito por parte do Autor, tendo sido, na sequência, o veículo rebocado até à oficina Auto J..., lda.
JJ. A Autora, a partir de 31/03/2015, para se deslocar e por não possuir veículo próprio, passou a ter de utilizar o veículo habitualmente conduzido pelo Autor, e este último pediu emprestado o carro do seu irmão Ruben, enquanto não era possuidor do carro de substituição emprestado pela 1.ª R.
LL. Em 09/06/2015, em resposta ao contacto telefónico supra mencionado ocorrido um dia antes daquela data, a concessionária da Nissan enviou um e-mail para o Autor, com o seguinte teor: “Relativamente à sua viatura que se encontra nas nossas Instalações Oficinais Imobilizada e depois de formalizados todos os procedimentos junto do departamento de garantias da Nissan por forma a obtermos o respectivo parecer da solução ou não, ao abrigo da “Garantia Nissan”, obtivemos nesta data a resposta que abaixo transcrevemos.
“09/06/15-JP- Rejeitado. além de tudo indicar que esta situação tem como origem a utilização de um combustível de baixa qualidade, na revisão dos 12 meses deve ser verificado o estado do filtro de combustível e das linhas de combustível e na dos 24 meses deve ser substituído o filtro de combustível. Não podemos relacionar esta situação com um defeito de origem.”
Assim e face ao exposto solicitamos que nos indiquem do procedimento a tomar,
Obrigado!
MM. Em 09/06/2015, o e-mail transcrito supra foi pelo Autor reencaminhado para a 1.ª R.
OO. Num dos dias seguintes, após ser contactado via telefónica pelo Autor, a 1.ª R. acompanhou o avançado pela Nissan e, por conseguinte, informou o Autor de que não repararia o carro.
PP. Em 18/06/2015, o Ilustre Mandatário dos AA. endereçou à 1.ª R. a com o assunto “Resolução do contrato de compra e venda do veículo Nissan Juke 1.5 (…), recebida por esta a 22/05/2015, com o seguinte teor:
Incumbiu-me a M/Cliente (…) na sequência da excessiva demora na reparação do veículo Nissan Juke que V/Exas. têm em sua posse para efectuar reparação desde o dia 1/04/2015, que interpelasse V/Exas. Com o intuito de resolver o contrato de compra e venda do aparelho Nissan Juke, uma vez que a duração da reparação do mesmo já ultrapassou todos os limites legais. Nos termos do artigo 4º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, dispunham V/Exas. de 30 dias para proceder à reparação do bem defeituoso. Sucede, porém, que volvidos cerca de 75 dias, a M/Cliente não só não recebeu o bem reparado como nenhum esclarecimento lhe foi prestado, mesmo após ter desenvolvido várias tentativas de entrar em contacto com V/exas.. Deu-se, por esses motivos, a total perda de interesse da M/Cliente.
Por conseguinte, dado o incumprimento do dever de reparação, vem-se, nos termos do artigo 4º, n.º 4, do Decreto-lei n.º 67/2003, exercer o direito de resolução do contrato de compra e venda do bem defeituoso em questão. Na sequência, no prazo de 15 (quinze) dias a contar da recepção da presente missiva, devem V.Exas. proceder à transferência da quantia equivalente ao preço pago pela M/Cliente- s.c. € 20.000,00 (…).”
QQ. Em 26/06/2015, a 1.ª R. reiterou à Autora que, sobre esta, não impendia qualquer dever de reparação do veículo em questão.
RR. A A. Marlene (…) é empresária em nome individual.
SS. A R. Cofidis não teve qualquer intervenção na escolha do veículo automóvel adquirido pela Autora.
TT. A Ré Cofidis é uma instituição de crédito.
UU. No âmbito das actividades que exerce, além doutras, a R. Cofidis dedica-se ao financiamento de aquisições a crédito.
VV. Foi precisamente no desempenho de tal exercício e funções que o ora contestante então com a denominação Banco Banif Mais, S.A. tomou contacto com os AA. Marlene (…) e Fábio (…).
XX. Para o efeito, a 1ª R., Stand ..., Lda., comunicou ao ora contestante, pela mesma via, o montante do empréstimo pretendido pela A. Marlene (…) – € 20.000,00 – o número de prestações em que a dita Marlene se propunha reembolsá-lo, o valor mensal da prestação e as datas em que pretendia fossem efectuados tais débitos, tendo para o efeito enviado à Ré Cofidis, com vista à análise da referida proposta, os documentos pessoais dela assim como os respectivos comprovativos de rendimentos e de residência.
ZZ. Analisada a dita proposta, a R. Cofidis entendeu que a A. Marlene (…) por si só não oferecia garantias suficientes para a concessão do pretendido empréstimo e, por isso, solicitou que fosse prestada fiança solidária, como garantia em caso de incumprimento do contrato, no que tanto a dita Marlene como seu marido, o A. Fábio (…), acederam como tudo a 1ª R. transmitiu ao Banco Banif Mais, S.A..
AAA. Atenta a garantia prestada, a R. Cofidis aprovou a concessão do crédito e em 26 de Novembro de 2014 celebrou com os AA., ela na qualidade de mutuária e ele na qualidade de fiador o contrato de mútuo n.º 1059101.
BBB. A R. Cofidis procedeu ao pagamento da importância de € 20.000,00 directamente à 1ª. R.
CCC. Das 120 prestações acordadas, a A. Marlene pagou as 10 primeiras, cujos vencimentos ocorreram entre 25.12.2014 e 25.09.2015.
DDD. Nos termos expressamente acordados na Clausula 8ª das Condições Gerais do contrato de mútuo referido nos autos:
1 – O(s) Mutuário(s) ficará(ão) constituídos em mora no caso de não efectuar(em), aquando do respectivo vencimento o pagamento de qualquer prestação.
2 – Em caso de não pagamento, o Banif Mais poderá considerar vencidas todas as restantes prestações, incluindo nelas os juros remuneratórios e demais encargos incorporados no montante de cada prestação mencionada nas Condições Especificas, como expressamente fica acordado, desde que por escrito em simples carta dirigida ao(s) Mutuário(s) para a(s) morada(s) constante(s) do contrato lhes conceda um prazo suplementar de oito dias de calendário para proceder(em) ao pagamento das prestações em atraso acrescidas da indemnização devida pela mora, com expressa advertência de que tal falta de pagamento neste novo prazo suplementar implica o dito vencimento por perda do beneficio do prazo.
3 – Em caso de mora incidirá sobre o montante em débito, e durante o tempo da mora, uma taxa de juro de mora correspondente à taxa de juro contratual acrescida de três pontos percentuais.
4 – Ao montante referido no número anterior, antes do envio da comunicação escrita mencionada no n.º 2, para fazer face às despesas decorrentes do incumprimento, nomeadamente diligências para a respectiva gestão, acresce uma comissão mensal de recuperação por cada prestação em mora cujo valor será de 4%do valor da prestação vencida e não paga, sendo no mínimo 12,00€ e no máximo 150,00€, acrescido de imposto.
Quando a prestação vencida e não paga exceder 50.000,00€, a comissão de recuperação por cada prestação em mora será de 0,5% do valor da prestação vencida e não paga, acrescida de imposto.
5 – Sem prejuízo do referido no n.º 2 o Banif Mais poderá exigir o pagamento de quaisquer prestações em mora acrescidas da indemnização referida no anterior n.º 3 e 4 desde a data do vencimento da prestação ou prestações em causa.
EEE. Atenta a falta de pagamento da 11ª prestação e seguintes, vencida a primeira em 25.10.2015, o R. Cofidis, em 7 de Dezembro de 2015, enviou à A. Marlene (…), a carta, que foi recebida, instando-a a regularizar a situação de incumprimento do contrato referido.
FFF. Na mesma data – 07.12.2015 –, a R. Cofidis enviou também ao A. Fábio (…), marido da A. e garante dela no dito contrato, carta, que foi também recebida, com a qual lhe remeteu cópia da carta a que se alude no artigo anterior.
GGG. Não obstante, os AA. ou quem quer que fosse por eles nada pagaram à R. Cofidis.
HHH. A garantia do jipe Nissan Juke 1.5cc teve o seu início a 06/06/2013.
III. A Ré Stand (…), a 09/4/2015, entrou em contacto com a Nissan Portugal.
JJJ. A Nissan Portugal informou a Ré de que o veículo em causa deveria seguir para o concessionário da Marca Nissan no grupo Central dos Açores – Raul Paim & Filhos, Lda. – na ilha Terceira, com vista a dar seguimento à garantia.
LLL. A Nissan diligenciou no sentido do carro ser transportada para a oficina de Raul Paim & Filhos, Lda., na ilha Terceira, com vista a que a sua equipa técnica – especializada na marca – averiguasse exactamente o que se estava a passar e as respectivas causas.
MMM. Por sua vez, chegado o veículo à Raul Paim & Filhos, Lda., esta começou a fazer uma auditoria ao veículo com vista a detectar o problema.
NNN. Numa dessas diligências, e detectando que a bomba injectora estava avariada, contactou a Nissan Portugal, para saber o que poderia ter ocasionado tal situação.
OOO. A avaria deu-se no sistema de combustível e injecção.
PPP. A matrícula do veículo em causa nos presentes autos data de 29/05/2013.
QQQ. A Ré Stand (…) adquiriu o veículo à empresa Auto Industrial, S.A. em 20/10/2014.
RRR. O arranjo do carro é no valor de 3.039,57 €.
SSS. O veículo encontra-se a funcionar em perfeitas condições sem qualquer erro ou avaria, tendo já sido integralmente reparado.
TTT. A Auto Industrial, S.A., além do mais, dedica-se ao comércio, manutenção e reparação de veículos automóveis, sendo, em determinadas zonas do país, distribuidora e reparadora autorizada da Opel Portugal, Lda..
UUU. No âmbito da sua actividade comercial, no dia 18 de Outubro de 2014, a Auto Industrial, S.A. adquiriu à Nissan Ibéria, S.A, Sucursal em Portugal, ora também chamada a intervir, no estado de usado, o veículo automóvel a que referência é feita nos autos ou seja, o veículo da marca Nissan, modelo Juke 1.5dCi, com a matrícula (…).
VVV. O referido veículo foi facturado pela Nissan Ibéria, S.A., Sucursal em Portugal, à Auto Industrial, S.A., em 27 de Outubro de 2014, data em que a ora contestante lho pagou.
XXX. A verificação de todos os defeitos e a consequente reparação provocaram nos AA. grandes arrelias e incómodos.
Na sentença enumeraram-se os seguintes
Factos Não Provados
1. O veículo Nissan, modelo Juke 1.5dCi, com a matrícula (…), foi comprado pelos Autores.
2. No momento em que a Autora ligava o carro, de súbito, ao rodar a chave, foi notado um ruído estranho pelos AA., contudo, tendo em conta que não conheciam ainda os sons do veículo, desconsideraram-no, não alertando, por consequência, a 1.ª R.
3. Ainda nesse próprio dia, junto à casa dos pais da Autora, o veículo continuou a apresentar o mesmo incomum ruído.
4. Após vistoria ao mesmo, realizada na oficina Auto J..., concluiu-se que, na verdade, o veículo apresentava os problemas denunciados pelo Autor, não sendo possível, contudo, determinar a sua origem e, por consequência, não puderam os mesmos ser reparados.
5. O Autor pediu o veículo de substituição a 05/06/2015.
6. Volvida cerca de uma semana, foi o veículo de novo emprestado aos AA.
7. Foi na qualidade de empresária em nome individual que Marlene (…) se “apresentou” perante o R. Cofidis, então com a denominação Banco Banif Mais, S.A., e foi nessa qualidade que com ele celebrou o contrato de mútuo com fiança n.º 1059101.
8. Ora, acontece que, só no dia 30/01/2015, 2 meses e 4 dias depois dos AA. detectarem o problema, os AA. contactaram o sócio-gerente da 1.ª Ré, informando este de que suspeitavam que algo estava mal.
9. Razão pela qual, sócio-gerente da Ré indicou que fossem – de imediato - à oficina Autoj..., Lda., que dista cerca de 30 metros da sede da Ré, para averiguar o que se passava.
10. Na sequência, a Nissan Portugal pediu à concessionária Raul Paim & Filhos, Lda. que enviasse uma amostra do combustível que se encontrava no tanque do veículo para ser analisado nos laboratórios da Marca Nissan.
11. Assim foi.
12. A Raul Paim & Filhos, Lda., enviou o combustível para os laboratórios da Nissan.
13. Saliente-se que a esta altura já os AA. estavam a tratar da garantia directamente com a Nissan.
14. A avaria no sistema de combustível e injecção deveu-se à falta de verificação de níveis e utilização de combustível de má qualidade.
15. Efectivamente, em data que a Ré não sabe precisar, em conversa com o A., este comunicou ao sócio-gerente da Ré, Sr. Fernando Soares, que tinha utilizado no veículo gasóleo que tinha armazenado na sua empresa.
16. Assim, atento o relatório da Nissan, e na sequência da conversa supra entre A. e o sócio gerente da Ré, em que este informou que havia utilizado combustível da fábrica no carro, a Ré acompanhou o parecer da Nissan, e não se responsabilizou pela avaria do carro, que em seu entendimento não era – como não é – da sua responsabilidade.
17. O carro que a Ré cedeu encontrava-se na reserva, tendo o sócio-gerente da Ré comunicado ao A. que este deveria deslocar-se imediatamente a uma bomba de combustível.
18. Foi a empresa Auto-Industrial, S.A. que realizou a revisão dos 12 meses ao veículo ora em causa.
19. O arranjo do carro é no valor de 3.236,00 €.
20. Durante a reparação, a viatura ficou imobilizada durante cerca de 8 semanas, obrigando os AA. a circularem em viaturas emprestadas por familiares, facto causador de grande transtorno.
O Direito
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (n.º 2 alínea a) do art.º 640.º do CPC).
A apelante defende que o tribunal a quo não deveria ter dado como provados os factos indicados sob as alíneas N), O), S), T), U) e V), que têm a seguinte redação:
N. Em 08/12/2014, junto à casa de Paulo (…), amigo dos AA., enquanto estes davam a conhecer a sua nova compra àquele, o veículo só entrou em funcionamento à terceira tentativa, sendo certo que, até essa data, demorava algum tempo até pegar, quando se se girava a chave na ignição.
O. Razão pela qual o Autor entrou em contacto via telefónica com a 1.ª R. com vista à resolução dos problemas de arranque que o veículo apresentava.
S. A Autora, por não possuir outro meio de deslocação, continuou a utilizar o naquele estado.
T. Nas semanas seguintes os problemas no arranque foram-se agravando, levando o veículo cada vez mais tempo a ligar.
U. A dada altura, o veículo apenas passou a entrar em funcionamento por “empurrão”.
V. Foi exactamente este o motivo pelo qual o A., para ligar o veículo, passou a imobilizá-lo em locais inclinados, de forma a que a energia cinética, resultado da força de gravidade, fosse suficiente para conseguir ligar o veículo, só assim se evitando o auxílio da força de terceiros.
Note-se que a conclusão E) do recurso, supra transcrita, enferma de evidente lapso material, ao não incluir a palavra “não” na frase “estes últimos deveriam ter sido dados como provados”.
Afirma a R., para sustentar a impugnação, que o tribunal a quo apenas baseou a sua convicção no depoimento dos AA. e, por outro lado, tais factos estão em contradição com o facto dado como provado sob a alínea R.), da qual resulta que a viatura não tinha qualquer problema.
A referida alínea R) e a alínea que a antecede têm a seguinte redação:
Q. Em 30/01/2015, após indicação da 1.ª R., o veículo em causa foi inspeccionado na oficina Auto J..., lda., em Santo Amaro, que para tanto o foi buscar junto da Autora, para depois aí o entregar.
R. Após vistoria ao mesmo, o mecânico concluiu que o veículo não apresentava os problemas denunciados pelo Autor.
Parece-nos evidente que a invocada contradição é tão só aparente. Ou seja, o facto de o mecânico escolhido pela R. ter concluído que o veículo não apresentava os problemas denunciados pelo A. não determina, necessariamente, que os problemas não existissem.
Aliás, sobre essa aparente contradição se pronunciou o tribunal a quo, na seguinte passagem da sentença:
Ora, no caso em análise, desde a primeira hora (o próprio dia da entrega do veículo) o veículo automóvel veio apresentando aquela falta de conformidade. Ainda que assim não fosse, sempre a mesma se presumiria existente nessa data, atenta a não prova do contrário pelas Rés (nomeadamente, pela Ré Stand (…)).
A Ré Stand não só não procedeu à reparação do mesmo, quando tal lhe foi solicitado, como o entregou de volta à Autora para que ela o utilizasse, por não ter encontrado qualquer vício.
Certo é que o vício existia (e não foi detectado pelo mecânico, por incompetência ou por falta de meios técnicos para esse efeito, sabendo nós que agora tudo é feito pelo computador da marca), levando, com o passar do tempo e subsequente utilização do veículo (por falta de alternativa a que a Ré estava obrigada a apresentar), à sua imobilização: por colapso do sistema de injecção do combustível, mas também por queima da junta da cabeça, por força de problemas no sistema de refrigeração do veículo (este último problema só veio a ser detectado na Ilha Terceira quando o veículo foi intervencionado pelo concessionário da Nissan).” (páginas 97 e 98 da sentença, negrito nosso).
Quanto ao facto de, alegadamente, o tribunal a quo ter fundamentado a sua convicção no depoimento dos AA., a tal não obsta a lei. Cabia à R. aditar algo mais para arredar essa convicção, maxime apontar elementos de prova contrapostos – o que não fez, para além da indicação da suposta contradição entre factos. Acresce que, nesta matéria, o tribunal também se apoiou em outros depoimentos (Ruben e Renato).
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto.
Segunda questão (nulidades da sentença)
A apelante entende que a sentença enferma de falta de pronúncia sobre questões que o tribunal deveria apreciar - o que constitui a nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC - e também enferma de contradição entre os fundamentos e a decisão – o que constitui a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 615.º.
Quanto à omissão de pronúncia, tal consistiria, segundo a apelante, no facto de o tribunal a quo não se ter pronunciado acerca do valor atribuído ao veículo de retoma (um veículo de marca Renault) e acerca do nexo funcional e interdependência do contrato de retoma com o contrato de compra pelos recorridos do veículo Nissan Juke.
Vejamos.
Embora em sede formalmente incorreta, o tribunal a quo pronunciou-se sobre essa questão, na parte referente à motivação da matéria de facto.
Aí se exarou o seguinte:
No que respeita ao preço de aquisição do veículo, uma vez mais, para além do contrato de mútuo apresentado, onde consta como valor os alegados 20.000,00 €, tivemos em consideração as declarações dos Autores.
Ao contrário do legal representante da Ré Stand (…), o Autor foi bastante claro em descrever a abordagem feita àquele, chegando ao ponto de referir o desconto de 900,00 €, que o mesmo lhe tinha feito no preço publicitado (20.900,00 €) e a felicidade que isso lhe trouxe quando associada ao valor de 8.000,00 € que lhe davam pela aquisição do seu veículo Renault (que venderia, por não precisar de dois carros).
Esclareceu os termos em que ficou confiado àquele o tratamento de todo o processo burocrático de levantamento da reserva de propriedade do referido veículo, por estar ainda a pagamento o crédito associado à sua aquisição, no valor de cinco mil e tal euros.
Os dois contratos, embora celebrados no mesmo período de tempo, eram autónomos. Por isso, tendo por referência o valor de 8.000,00 € (preço de aquisição do veículo Renault pela Ré Stand (…) ao Autor), uma vez pago o crédito, ficou o legal representante da Ré de entregar ao Autor a diferença. Daí a entrega confessada pela Ré, através do seu legal representante, dos 2.201,00 €, por afectação dos 258,81 € a “burocracias” com a liquidação do crédito, conforme justificou ao Autor.
O enquadramento/versão do Autora tem sustentação, não só nas declarações da Autora (que confirmou o preço de aquisição do veículo e o valor que ofereceram para ficar com o Renault), mas também:
- como já dissemos, no contrato de mútuo que refere como “preço a pronto” os alegados 20.000,00 € e o “montante de financiamento relativo ao bem” 20.000,00 €; - nas declarações de Roberto Bettencourt, funcionário da Ré, que referiu que o veículo estava à venda no stand pelo preço anunciado de 19.000,00 € ou 20.000,00 €.
Também aqui, importava à Ré Stand (…) fazer a prova do contrário, ou seja, que o veículo foi vendido pelos, por si alegados, 17.500,00 €, ou o abate do valor de 4.077,00 €, dados pela retoma do Renault.
Veja-se que, tirando as declarações do legal representante da Ré, nenhuma prova foi trazida aos autos que corrobore a versão por si apresentada.
A Ré não consegue explicar por que razão perante o valor a pagar de 13.423,00 € (17.500,00 € - 4.077,00 €), os Autores pediram um crédito de 20.000,00 €.
Também a testemunha João, funcionário da Cofidis, não conseguiu apresentar uma explicação convincente que fosse apta a causar a dúvida quanto à versão dos Autores.
De facto, se admitíssemos que os Autores celebraram aquele contrato de mútuo, não só para adquirir o veículo Nissan, como, também, para pagar, o crédito do Renault, seríamos forçados a concluir que, então, a Ré Stand (…), na verdade, não estava a dar aos Autores aquele valor pela retoma do veículo em causa. Efectivamente, pedindo os Autores mais 6.577,00 €, do que o necessário para pagar o preço à Ré; e sobejando 995,52 €, depois de liquidado o crédito do Renault (6.577,00 € - 5.581,48 €) – quantias estas que foram entregues directamente pela financeira à Ré Stand (que diligenciou pela liquidação daquele empréstimo), não nos esqueçamos – sempre aquele valor seria pago pelos Autores, com juros, em cumprimento do contrato de mútuo agora firmado pela Cofidis, apesar de ficar na disponibilidade da Ré Stand. Ou seja, ficando a Ré Stand com aqueles 995,52 €, o valor de retoma do Renault acabaria por ser de 3.081,48 € (4.077,00 € - 995,52 €).
Ora, este valor nunca foi referido pela Ré.
Pondo em causa a versão por si apresentada, note-se que a Ré Stand (…) não fez a prova da alegada entrega dos referidos 6.577,00 € (valor pedido em excesso à Cofidis) aos Autores (para que eles o destinassem às despesas que pretendiam fazer). De facto, o documento n.º 3, por si junto a fls. 165, para além de ter sido impugnado, não tem a aptidão de comprovar a alegação. Trata-se de um “detalhe de um movimento de compensação” de um cheque junto do Montepio que não permite identificar o sacador, o sacado, o beneficiário, o titular da conta, etc.
De igual modo, e tendo ficado o legal representante da Ré de tratar da liquidação do empréstimo referente ao Renault (conforme por si confessado) – no valor em dívida de 5.581,48 € -, não se percebe porque razão iria entregar a totalidade dos 6.577,00 € aos Autores. Nesta versão, chegamos à conclusão (na sua perspectiva, absurda) de que, a ter-se por boa a sua alegação quanto ao preço e valor de retoma, na verdade a Ré acabaria por atribuir ao Renault um valor superior aos referidos 4.077,00 €. Pois tendo liquidado do seu próprio bolso aquele crédito – facto que beneficiava os Autores -, aos referidos 4.077,00 € importaria somar a vantagem que estes tiveram de 5.581,48 €.
Não nos esqueçamos que o legal representante da Ré Stand (…) confessou os factos constantes dos artigos 128º, 129º e parte do artigo 130º, do articulado de fls. 323 e ss., descredibilizando a versão por si apresentada em sede de contestação.
Finalmente, tenha-se em consideração que a lista de preços junta pela Ré Stand (…) a fls. 164, contra si joga, pois o veículo adquirido pela Autora é um Nissan Juke a gasóleo e não a gasolina, sendo os preços ali referidos quanto a veículos a gasóleo mais conformes com a versão dos Autores do que com a versão da Ré” (negrito nosso).
Ou seja, o tribunal a quo pronunciou-se longamente acerca da questão da retoma, concluindo que o contrato de compra e venda do Nissan Juke e o do Renault eram contratos autónomos, tendo o Nissan sido comprado pelos AA. pelo preço de € 20 000,00 e o Renault sido adquirido pela R. pelo preço de € 8 000,00, cabendo à R. entregar à financiadora da aquisição do Renault o que os AA. ainda lhe deviam (€ 5.581,48), tendo a R. pago aos AA. o sobrante (€ 2.201,00 €, deduzida de quantia a título de despesas com a liquidação do crédito).
De resto, a apelante deu-se conta dessa pronúncia, dela discordando, como é bem patente na conclusão X) do recurso (X. “Verificou-se um erro grosseiro na motivação da matéria de facto pela Sentença recorrida, ao considerar a existência de dois contratos totalmente autónomos (compra e venda do Nissan Juke e a compra e venda do veículo Renault Mégane), em vez de considerar a existência de uma coligação e dependência funcional, onde as vicissitudes de um acabam por se repercutir sobre o outro ou outros”).
Inexiste, pois, a apontada omissão de pronúncia.
Quanto ao vício de contradição, alega a apelante que a mesma consiste no facto de o tribunal a quo ter dado como provados os factos das alíneas N), O), S), T), U) e V), apesar de ter dado como provado que o veículo não apresentava qualquer defeito (alínea R)), tendo ainda declarado a resolução do contrato.
Conforme já se explicitou supra, não existe contradição entre os factos das referidas alíneas, sendo certo que não se deu como provado que a viatura não padecia de defeito. De resto, não se descortina contradição lógica entre a fundamentação de facto e de direito apresentada pelo tribunal a quo para fundamentar a sua decisão e essa mesma decisão.
A apelação improcede, pois, quanto à arguição de nulidades da sentença.
Terceira, quarta e quinta questões (fundamento para a resolução do contrato de compra e venda e consequente resolução do contrato de mútuo; abuso de direito; enriquecimento sem causa)
Está provado que entre a A. e a 1.ª R., em 26.11.2014, foi celebrado um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, nos termos do qual a 1.ª R. transmitiu à A. a propriedade de um automóvel de marca Nissan Juke e em contrapartida a A. pagou à 1.ª R. o respetivo preço, no valor de € 20 000,00 (cfr. art.º 874.º do Código Civil e alíneas F) e G) da matéria de facto).
Sucede que o veículo denotou, logo após a entrega da viatura à 1.ª A., anomalia, que inicialmente consistia em alguma demora até pegar, quando se girava a chave de ignição e, em 08.12.2014, se traduziu em o carro só entrar em funcionamento à terceira tentativa (al. N) da matéria de facto). O A. entrou em contacto com a 1.ª R., dando nota do problema, ainda antes de 25.12.2014 (al. P) da matéria de facto). Em 30.01.2015 o veículo foi inspecionado numa oficina indicada pela 1.ª R. (al. Q)), mas o mecânico concluiu que o veículo não apresentava os problemas denunciados pelo A. (al. R) da matéria de facto). Ora, a verdade é que os problemas continuaram, tendo-se até agravado, vendo-se os AA., que precisavam da viatura para o seu dia-a-dia, obrigados a estacioná-lo em locais inclinados, a fim de o veículo poder pegar sem necessidade de ser empurrado (alíneas S) a V)). Em 31.3.2015 o veículo pura e simplesmente deixou de entrar em funcionamento, acabando por ser rebocado para uma oficina indicada pela 1.ª R. (alíneas X) a AA)). Por iniciativa da 1.ª R. substituiu-se uma peça, mas o automóvel continuou sem “ligar” (alíneas BB) e CC)). Em 24.4.2015 a 1.ª R. enviou o veículo para as instalações da concessionária da Nissan, na ilha Terceira (al. DD)). Em 09.6.2015 a Nissan informou o A. que rejeitava solucionar os problemas da viatura ao abrigo da garantia Nissan, uma vez que considerava que a situação tinha origem na utilização de um combustível de baixa qualidade (al. LL). Poucos dias depois a 1.ª R. disse ao A. que acompanhava o afirmado pela Nissan, pelo que não repararia o carro (al. OO).
Em 18.6.2015 os AA. comunicaram à 1.ª R. a resolução do contrato de compra e venda da viatura (al. PP), declaração essa com a qual a 1.ª R. discordou, reiterando à A., em 26.6.2015, que sobre ela não impendia nenhum dever de reparação do veículo em questão (al. QQ)).
Pese embora o veículo comprado pela A. não fosse novo (era um veículo “em segunda mão” – al. D) da matéria de facto), era suposto que funcionasse normalmente, pegando sem dificuldades. Note-se que a garantia da Nissan se iniciara em 06.6.2013 (al. HHH) dos factos provados) e que a matrícula do carro datava de 29.5.2013 (al. PPP), pelo que tendo o carro sido adquirido em novembro de 2014, oferecia perspetivas de bom funcionamento pelo menos a médio prazo. Nada foi alegado ou provado no sentido de que era previsível ou conhecido da A. que o carro tinha ou poderia sofrer de tal anomalia. Também nada se provou no sentido de que esta anomalia no funcionamento da viatura resultou de qualquer comportamento indevido dos AA..
De facto, contrariamente ao alegado pela apelante em sede de recurso (cfr. conclusões B), C), F) e M), não se provou que as dificuldades de ignição da viatura e a definitiva imobilização da mesma fossem causadas pelos AA. – sendo os comportamentos descritos nas alíneas U) e V) da matéria de facto simples indício e consequência da anomalia desde o início patenteada pelo carro.
É, pois, legítimo concluir que à data da venda a viatura padecia de vício que não era aparente, mas que se manifestou depois da mesma.
Está-se, pois, perante a venda de coisa defeituosa, como tal regulada nos artigos 913.º e seguintes do Código Civil.
Mas haverá que levar em consideração que a viatura foi adquirida pela A. para proveito comum do casal que formava e forma com o seu marido, para satisfazer as necessidades do seu agregado familiar (al. E) da matéria de facto).
Assim, a A. interveio no negócio como consumidora, sendo aplicável ao contrato o regime da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, previsto no Dec.-Lei n.º 67/2003, de 08.4 (com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 84/2008, de 21.5), diploma que procedeu à transposição para o direito interno da Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25.5, que impôs regras mínimas nessa matéria (vide a definição de “consumidor” e a de “bem de consumo”, constantes nas alíneas a) e b) do art.º 1.º-B do Dec.-Lei n.º 67/2003).
Nos termos do art.º 2.º n.º 1 do aludido regime, “o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”.
De acordo com o n.º 2 do aludido art.º 2.º, “presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar…”, além de outros factos indicados, “não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem…” (al. d)).
Nos termos do art.º 3.º, “o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue” (n.º 1). Estando em causa um bem móvel, as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois anos a contar da data da entrega da coisa presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade (n.º 2).
Decorre do regime jurídico exposto que os AA. gozam da presunção de que o veículo que a A. adquiriu à 1.ª R. enfermava de desconformidade à data da sua entrega, pelo que a 1.ª R. responderá por ela perante a consumidora, sua compradora.
A Diretiva n.º 1999/44/CE estipula que em caso de falta de conformidade, o consumidor tem direito a que a conformidade do bem seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, a uma redução adequada do preço ou à rescisão do contrato no que respeita a esse bem (n.º 2 do art.º 3.º).
Os n.ºs 3 e 5 do art.º 3.º apontam para uma ordem preferencial no exercício desses direitos: em primeiro lugar o consumidor pode exigir do vendedor a reparação ou a substituição do bem, a menos que isso seja impossível ou desproporcionado (n.º 3); só se estas soluções não forem viáveis ou o vendedor não tiver solucionado o problema num prazo razoável é que o consumidor poderá exigir uma redução adequada do preço ou a rescisão do contrato (n.º 5) (neste sentido, v.g., João Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 4.ª edição, 2010, Almedina, pp. 105-107).
No direito português não se enuncia nenhuma ordem particular para o exercício desses direitos: o art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 67/2003, sob a epígrafe “Direitos do consumidor”, tão só estipula que “em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato” (n.º 1). E no n.º 5 acrescenta-se que “o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.”
A Diretiva n.º 1999/44/CE é uma Diretiva de harmonização mínima (neste sentido, cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2017, 4.ª edição, Almedina, p. 281), como expressamente decorre do n.º 2 do seu art.º 8.º: “Os Estados-Membros podem adoptar ou manter, no domínio regido pela presente directiva, disposições mais estritas, compatíveis com o Tratado, com o objectivo de garantir um nível mais elevado de protecção do consumidor.”
Por conseguinte, o legislador português estará livre de formular uma solução isenta de hierarquização dos direitos exercitáveis pelo consumidor em caso de desconformidade do bem adquirido. Ainda assim, como resulta da parte final do transcrito n.º 5 do art.º 4.º, tal exercício não deverá, como de resto emergeria dos princípios gerais, afrontar as regras da boa-fé e os demais limites intrinsecamente impostos ao exercício dos direitos pela ordem jurídica (artigos 334.º e 762.º n.º 2 do CC) – cfr., v.g., Jorge Morais Carvalho, ob. cit., pp. 281 a 286; STJ, 30.9.2010, proc. n.º 822/06.9TBVCT.G1.S1, in www.dgsi.pt).
In casu, os AA. denunciaram atempadamente à vendedora a anomalia detetada na viatura, entregando-a, por três vezes, diretamente ou através da 1.ª R., a entidades por esta indicadas para a reparação da viatura. E foi só quando, finalmente, a R. declinou qualquer responsabilidade pela desconformidade do veículo, que não restituiu aos AA. devidamente reparado, os AA. resolveram o contrato.
Não se vislumbra aqui, contrariamente ao aventado pela apelante (cfr. conclusões C), D), I) a O)), qualquer exercício abusivo do direito de resolução do contrato. É certo que os AA. primeiramente manifestaram a vontade de que a 1.ª R. reparasse a viatura. Só que a 1.ª R. não procedeu a essa reparação, violando, aliás, o prazo de 30 dias que o legislador estipulou para a reparação ou substituição do bem móvel desconforme (n.º 2 do art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 67/2003). Assim, e tendo a 1.ª R. manifestado inequivocamente a vontade de não assumir a sua responsabilidade, aberto ficou o caminho tomado pelos AA., de porem termo ao contrato. Sendo evidente que, tendo os AA. exercido o seu direito, irrelevante é a circunstância de, posteriormente, a 1.ª R. ter reparado a viatura, com o custo de € 3 039,57 (alíneas RRR) e SSS) dos factos provados). Note-se que em parte alguma foi sequer alegado ou demonstrado que, antes da declaração de resolução os AA. foram informados sobre qual era, afinal, a causa da anomalia da viatura e qual o custo da sua reparação. Improcede, pois, o em contrário alegado pela apelante nas conclusões P) a S).
A resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (art.º 433.º do CC), tendo, em regra, efeito retroativo (n.º 1 do art.º 434.º do CC).
Assim, em princípio caberia à 1.ª R. restituir à A. o preço da viatura, sendo a viatura definitivamente restituída à 1.ª R. (que, de resto, in casu já tinha e tem a sua posse).
Porém, como já é incontroverso nos autos, a compra e venda do Nissan Juke foi financiada através de um contrato de mútuo celebrado entre a 1.ª A. e o 2.º R. (intervindo o 2.º A. como fiador), mediante o qual o 2.º R. emprestou à 1.ª A. a quantia de € 20 000,00 (acrescida de € 623,00, para financiamento de despesas e imposto de selo), destinada ao pagamento do preço da aludida viatura, ficando a 1.ª A. obrigada a restituir essa quantia ao 2.º R., em prestações, incluindo os respetivos juros remuneratórios (alíneas H) a J) da matéria de facto; art.º 1142.º do Código Civil). Tratou-se, pois, de um contrato de crédito ao consumo, como tal sujeito ao regime de crédito ao consumo, previsto pelo Dec.-Lei n.º 133/2009, de 02.6 (com as alterações publicitadas), que procedeu à transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23.4, relativa a contratos de crédito aos consumidores.
In casu, o veículo a cuja compra se destinava o financiamento foi expressamente identificado no contrato de mútuo (cfr. fls 56 dos autos) e a 1.ª R., vendedora, interveio na preparação do contrato de mútuo (alíneas XX) e ZZ) da matéria de facto). Assim, o contrato de crédito é, para os efeitos do regime de crédito ao consumo, um contrato coligado (cfr. al. o) do n.º 1 do art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 133/2009).
Tal nexo justifica que as vicissitudes do contrato de compra e venda se reflitam no contrato de crédito a ele coligado, pela seguinte forma, prevista no art.º 18.º do Dec.-Lei n.º 133/2009:
“(…)
2 - A invalidade ou a revogação do contrato de compra e venda repercute-se, na mesma medida, no contrato de crédito coligado.
3 - No caso de incumprimento ou de desconformidade no cumprimento de contrato de compra e venda ou de prestação de serviços coligado com contrato de crédito, o consumidor que, após interpelação do vendedor, não tenha obtido deste a satisfação do seu direito ao exacto cumprimento do contrato, pode interpelar o credor para exercer qualquer uma das seguintes pretensões:
a) A excepção de não cumprimento do contrato;
b) A redução do montante do crédito em montante igual ao da redução do preço;
c) A resolução do contrato de crédito.
4 - Nos casos previstos nas alíneas b) ou c) do número anterior, o consumidor não está obrigado a pagar ao credor o montante correspondente àquele que foi recebido pelo vendedor.
(…).”
Isto é, as vicissitudes do contrato de compra e venda, que constitui a base, a razão de ser da celebração do contrato de crédito, podem repercutir-se neste, “na mesma medida”. Assim, se o comprador resolver o contrato de compra e venda, também pode resolver o contrato de crédito. Mas, aliás em consonância com a situação, frequente, de o valor do montante financiado ser diretamente entregue pelo credor ao vendedor, será a este que o credor poderá exigir a restituição do montante mutuado (cfr., v.g., Fernando de Gravato Morais, Crédito aos Consumidores, 2009, Almedina, pp. 91 e 92).
Por sua vez, deverá o credor restituir ao consumidor as prestações que este lhe tiver entregado em execução do contrato de crédito, incluindo o correspondente aos juros remuneratórios. Ainda que o contrato de crédito seja, quanto à obrigação do consumidor, um contrato de execução duradoura, a causa da resolução, isto é, a extinção retroativa do contrato que deu origem ao contrato de crédito (contrato de compra e venda), legitima a restituição de todas as prestações (art.º 434.º n.º 2, in fine, do CC; Fernando Gravato de Morais, União de contratos de crédito e de venda para o consumo, 2004, Almedina, pp. 197, 204 a 207; 208 a 210; STJ, 05.12.2006, processo 06A2879, consultável in www.dgsi.pt). Ficando reservada ao credor a possibilidade de reclamar do vendedor uma indemnização pela perda do valor dos juros que deveria ter recebido do consumidor (cfr. Gravato de Morais, União de contratos…, ob. cit., p. 210).
Em suma, numa situação como a descrita nos autos, a vendedora poderia ser chamada a pagar ao credor € 20 000,00, correspondentes ao financiamento do preço do bem de consumo vendido, e bem assim poderia o credor demandá-la tendo em vista ser indemnizado pelo valor correspondente aos juros perdidos pelo credor. Por outro lado, teria o credor de reembolsar a consumidora pelo valor das 10 prestações que esta lhe tinha entregado em execução do contrato (al. CCC) da matéria de facto).
Sucede que os AA. peticionaram que a 1.ª R. fosse condenada no pagamento, ao 2.º R., da quantia mutuada (que contabilizaram em € 20 623,00, por aos € 20 000,00 de financiamento correspondentes ao preço do veículo terem acrescido € 623,00 relativos a despesas e imposto de selo), descontada do valor das aludidas 10 prestações pagas pela 1.ª A. ao 2.º R., valor esse (das prestações) no montante de € 2 733,90, que a 1.ª R. deveria pagar aos AA.. Ou seja, a 1.ª R. deveria pagar ao 2.º R. € 17 889,10 e aos AA. € 2 733,90, tudo acrescido de juros de mora.
O tribunal a quo acedeu quase na íntegra a tal pedido, tendo condenado a 1.ª R. a pagar aos AA. a aludida quantia de € 2 733,90 e a pagar ao 2.º R. a diferença entre o que, dessa quantia, correspondia a capital, e aquilo que a 1.ª R. havia recebido do 2.º R. (€ 20 000,00, segundo a al. BBB) da matéria de facto).
Tanto os AA. como o 2.º R. aceitaram o assim decidido.
Quanto à 1.ª R., a sua oposição assenta:
a) Na rejeição de fundamento para a resolução do contrato de compra e venda:
1.º - Por entender que o veículo em causa não foi vendido com defeitos, tendo estes surgido em consequência do seu uso pelos AA. (conclusões B) a H).
Já acima se afastou tal fundamento de defesa, antes se tendo concluído que o veículo, pelo menos por presunção legal, foi vendido com desconformidade.
2.º Por entender que a resolução do contrato consubstancia abuso de direito, na medida em que existia solução menos gravosa, que aliás os AA. já haviam aceitado, que era a reparação do bem (conclusões I) a T)).
Também acima se afastou este argumento, uma vez que a 1.ª R. acabou por não proceder à pretendida reparação, recusando assumir responsabilidade pela anomalia de que a viatura padecia, sendo irrelevante que a 1.ª R. tivesse, após a resolução do contrato pelos AA., procedido à reparação da viatura, com o custo de € 3 039,57.
b) Na invocação de erro de cálculo e omissão de pronúncia, causadores de enriquecimento sem causa dos AA., à custa da 1.ª R., na medida em que a 1.ª R. é condenada a pagar um valor global de cerca de € 20 000,00, quando apenas teria recebido € 11 958,71 (conclusões U) a FF).
Nesta parte a 1.ª R. invoca alegada dependência entre a compra e venda do Nissan Juke, que vendeu à 1.ª A., e a compra e venda do Renault, que comprou ao A.. Segundo a 1.ª R., dos € 20 000,00 recebidos do 2.º R., € 5 581,48 foram utilizados pela 1.ª R. para pagar ao Banco Cetelem o que os AA. ainda deviam pelo financiamento da aquisição do Renault, e € 258,81 foram afetados às despesas contratuais de liquidação desse crédito. E, tendo o Renault sido avaliado em € 8 000,00, os AA. receberam, da 1.ª R., a diferença, que foi computada em € 2 201,00. Daí a conclusão, a que a 1.ª R. chega, de que apenas recebeu € 11 958,71, e não os cerca de € 20 000,00 em que foi globalmente condenada. A apelante entende, ainda, que o tribunal a quo omitiu pronúncia sobre esta matéria.
Este raciocínio não procede.
Conforme se aduziu acima no âmbito da impugnação da matéria de facto, o tribunal a quo pronunciou-se sobre esta matéria, não tendo dado como provada a alegada dependência entre a transação das duas viaturas. De todo o modo, nada foi alegado ou demonstrado no sentido de que o Renault foi avaliado em excesso. Ou seja, tendo a 1.ª R. recebido dos AA. uma viatura no valor de € 8 000,00, as prestações que em contrapartida efetuou ao Banco Cetelem (€ 5 581,48) e a que fez aos AA. (€ 2 201,00) não excederam o preço acordado, pelo que não se vislumbra onde estão o erro de cálculo e o empobrecimento apontados pela 1.ª R.. Esta recebeu do 2.º R. € 20 000,00, para pagamento do Nissan Juke que a 1.ª A. comprou à 1.ª R.. Se a 1.ª R. utilizou parte desse dinheiro (e não outro) para pagar o que era devido em relação ao Renault, é assunto do seu foro interno, irrelevante para o negócio que nos ocupa.
c) Na alegação de que o regime dos contratos de execução continuada, previsto no n.º 2 do art.º 434.º do CC, obsta à restituição das prestações já efetuadas (alíneas GG) a II).
Também aqui a apelação claudica. Como se exarou supra, ainda que o contrato de crédito seja, quanto à obrigação do consumidor, um contrato de execução duradoura, a causa da resolução, isto é, a extinção retroativa do contrato que deu origem ao contrato de crédito (o contrato de compra e venda), legitima a restituição de todas as prestações recebidas do consumidor pelo credor (art.º 434.º n.º 2, in fine, do CC).
d) Na alegação de que os AA. usaram em seu proveito, e desgastaram, o veículo que compraram à 1.ª R., pelo que o valor do automóvel à data da sua restituição era inferior ao que tinha à data da sua aquisição pela 1.ª A. Assim, a condenação da 1.ª R. no pagamento aos AA. do valor das dez prestações que haviam pago ao 2.º R., sem se ter em consideração tal utilização e desgaste, atribui aos AA. um enriquecimento sem causa, em detrimento da 1.ª R. (conclusões JJ) a LL).
É certo que, conforme a apelante cita nas alegações (pontos 70 e 71 da apelação) há quem defenda que “no reembolso ao consumidor do preço por força da resolução potestativa do contrato ou da actio quanti minoris, a eventual utilização do produto pelo consumidor pode justificar uma redução do valor a restituir (cfr. o espírito do art. 434., n.º 2, do Código Civil”)“ (Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 4.ª edição, 2010, Almedina, p. 109). Assim como, na jurisprudência, se fez notar que “a regra de que a resolução tem eficácia retroactiva (nº 1 do artigo 434º), sendo equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade (artigo 433º), tem de ser conjugada com diversos preceitos que se destinam justamente a evitar que, por essa via, uma das partes enriqueça, injustificadamente, à custa da outra”, acrescentando-se que “não sendo possível ao autor restituir o automóvel tal como lhe foi entregue (nº 1 do artigo 289º do Código Civil), a recorrente só pode ser condenada a restituir o valor que o veículo tiver à data do trânsito em julgado desta decisão” (STJ, 30.9.2010, processo 822/06.9TBVCT.G1.S1).
Terá de se analisar cada caso em concreto. Por exemplo, na situação analisada no supracitado acórdão do STJ de 30.9.2010, o veículo em questão teria sido utilizado pelo comprador durante seis anos consecutivos.
No caso destes autos o veículo esteve na posse da compradora durante um período curto, quatro meses, e desde o início que demonstrou anomalia, que a compradora denunciou atempadamente e que a vendedora não solucionou. A utilização do veículo efetuada pelos AA. foi permanentemente afetada por essa desconformidade. Quanto ao eventual desgaste sofrido pela viatura durante a utilização pelos AA., nada foi alegado ou se demonstrou quanto à sua verificação ou quantificação e, bem assim, imputação aos AA. Mais, na contestação a 1.ª R., confrontada com o pedido dos AA., não suscitou a questão do ora alegado enriquecimento sem causa. De todo o modo, afigura-se-nos, como se ajuizou no acórdão desta Relação, de 06.12.2011 (processo 850/10.0YXLSB.L1-7, consultável in www.dgsi.pt), que num caso como o dos autos nem se poderia falar num verdadeiro enriquecimento, nem que o mesmo é à custa da vendedora, nem que falta a causa justificativa (cfr. art.º 473.º n.º 1 do CC). Por um lado não se pode entender que o facto de a compradora ter usado a viatura, enquanto sua proprietária, constitua um enriquecimento sem causa. A 1.ª A. comprou a viatura e pagou a totalidade do respetivo preço, cumprindo a sua prestação, mesmo existindo desconformidade com o contrato (que denunciou à vendedora), sendo que quem compra um bem o faz para usar regularmente e não para o ter parado. Por outro lado, só aparentemente se pode falar em enriquecimento dos AA., uma vez que se deve ter em conta, para além do mais, a desvalorização da moeda, para a A., que se viu obrigada a reembolsar, embora parcial e parceladamente, o 2.º R., e a “capitalização” do preço recebido pela 1.ª R. em 2014.
Assim, em regra e ressalvadas situações de patente desequilíbrio que urja corrigir, nomeadamente emergentes de anormal utilização do veículo pelo comprador, a ele imputável e não, por exemplo, à desconformidade em si, o efeito retroativo da resolução do contrato de aquisição de bem de consumo, causa extintiva do contrato normalmente imputável ao incumprimento do contrato pelo vendedor, não abarca a exigibilidade, ao consumidor, de qualquer valor pela utilização do bem (neste sentido, cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, cit., p. 292).
Nesta parte, pois, também improcede a apelação.
Sendo estas as questões suscitadas pela apelante, não havendo outras de conhecimento oficioso, e tendo a apelante em todas decaído, conclui-se pela improcedência da apelação.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da apelante, que nela decaiu (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 18.10.2018

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Pedro Martins