Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
39/17.7EALSB.L1-9
Relator: FILIPA COSTA LOURENÇO
Descritores: DESCAMINHO OU DESTRUIÇÃO DE OBJECTOS COLOCADOS SOB O PODER PÚBLICO
ELEMENTOS OBJECTIVOS E SUBJECTIVOS DO TIPO LEGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I- O crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder publico, configura um crime de lesão do bem jurídico, consumando-se tão-só quando o agente frustra total ou parcialmente  a finalidade da custódia, através de uma ação direta sobre a coisa: inutilizando-a ou descaminhando-a. Neste caso, o dano coincide com o resultado material previsto no tipo: a modificação ou a deslocação definitiva da coisa para fora da custódia do Estado;
II- Com a alusão genérica a que o arguido resolveu dar destino não concretamente apurado aos bens apreendidos, o que temos de palpável é exactamente uma imprecisão, a qual em rigor, não se encontra matéria suscetível de preencher o conceito de subtracção ao poder público por qualquer um dos meios legais previstos;
III- Sem se conhecer em que consistiu o acto de subtracção praticado pelo arguido, não se pode concluir que aquele sabia que o praticou ou que quis esse resultado, pois esta é utilizada, apenas e só, na integração num dos elementos subjectivos do tipo. Acrescente-se que, faltando o preenchimento do tipo objectivo, é naturalmente evidente que não se pode afirmar que o arguido agiu com dolo, pelo que  se terá de concluir pela absolvição do arguido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular nº 39/17.7EALSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo local Criminal de Vila Franca de Xira-Juiz 3, o arguido AA devidamente identificado a folhas 280, foi alvo da seguinte decisão emanada de sentença proferida a folhas  280 até 291, tendo o mesmo sido condenado a final nos seguintes termos:
A)Absolver o arguido AA da pratica de um crime de quebra de selos, p. e p. pelo artigo 356° do c.P.;
B)Condenar o arguido AA pela prática de um crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355° do Código Penal, na pena de 13 (treze) meses de prisão;
C)Suspender a execução da pena de prisão mencionada em b), por igual período de tempo, sujeita à condição de, nesse período, efectuar o pagamento da quantia de € 1.000,00 (mil euros), aos Bombeiros Voluntários de Alhandra, devendo juntar aos autos documento comprovativo de tal pagamento;
Inconformado com esta decisão proferida pelo Tribunal “ a quo”, o arguido a folhas 295 e seguintes, a interpôs o presente recurso, que termina com as seguintes:
CONCLUSÕES:
A) Por sentença de fls. foi o Arguido condenado a uma pena de prisão de 13
meses, suspensa na sua execução por igual período, pela prática do CRIME
DE DESCAMINHO DE OBJECTOS COLOCADOS SOB O PODER PUBLICO,
p.p. pelo artigo 3550 do Código Penal tendo sido absolvido no que concerne ao
CRIME DE QUEBRA DE SELOS, p.p. pelo artigo 3560 do Código Penal;
B) O Tribunal “ A quo" considerou como provado que o Arguido subtraiu a
mercadoria apreendida ao poder público, tendo, em sentido oposto
considerado como não provado que o mesmo Arguido tenha procedido à
quebra dos selos apostos na mercadoria, pelo que o absolveu quanto a este
último crime.
C) O Arguido não se conforma com a condenação pela prática do crime de
descaminho porquanto não se comprovou que tenha sido o mesmo a subtrair a
mercadoria ao poder público;
D) De toda a prova carreada para os autos - Declarações dos Arguidos e Prova
testemunhal - resultou provado que o Arguido deu instruções expressas aos
funcionários da sociedade Afro - Gémeos para que a mercadoria apreendida
fosse separada da restante e não fosse retirada do local ou vendida.
E) Face à inexistência de factos que permitam sustentar a acusação de que as
mercadorias foram descaminhadas diretamente pelo Arguido ou por sua
ordem, impunha-se ao Tribunal absolver o Arguido da prática do CRIME DE
DESCAMINHO, previsto no artigo 355º do Código Penal;
F) Ao condenar o Arguido pela prática daquele crime a sentença viola o princípio
basilar de Direito Penal" lN DUBlO PRO REO': contemplado no artigo 32° da
CRP e efetua uma errónea apreciação da prova.
G) O facto de o Arguido ter ficado nomeado como Fiel Depositário da mercadoria
apreendida não implica que este tenha que se responsabilizar por todos e
quaisquer eventos/danos que ocorram e que se revelem estranhos à sua
vontade;
H) Dos autos não resultou provado que o Arguido tenha destruído ou retirado as
mercadorias das instalações ou ordenado a terceiros que o fizessem, pelo que
não era possível concluir-se que o Arguido tenha praticado quaisquer factos
suscetíveis de configurarem o CRIME DE DESCAMINHO.
 I) Ao condenar o Arguido pela prática do supra citado crime de Descaminho a
sentença viola o disposto no artigo 13° do Código Penal, porquanto" só é
punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na
lei, com negligência"
J) Não resultou provado nos autos que o Arguido tenha descaminhado a
mercadoria e muito menos que tenha actuado com intenção de a furtar ao
poder público, logo impunha-se à sentença excluir o dolo do comportamento do
Arguido.
K) Tendo resultado provado nos autos que:
• O Arguido deu ordens a todos os funcionários para que a mercadoria fosse
separada da demais;
• não fosse introduzida no circuito comercial, como não foi;
• A mercadoria existente em stock era regularmente verificada e
contabilizada, sendo que no dia 30 de Dezembro de 2016, data da última
verificação antes da inspeção da ASAE, a mesma encontrava-se nas
instalações da empresa, tudo conforme inventários que se juntaram aos
autos;
Impunha-se à sentença concluir igualmente que o Arguido agiu de forma diligente
não lhe sendo exigível comportamento distinto daquele que adoptou.
L) A sentença recorrida deveria ter concluído que o Arguido agiu sem culpa e
consequentemente absolvê-lo do CRIME DE DESCAMINHO.
M) Ao condenar o Arguido nos termos anteriormente descritos a sentença violou o
princípio basilar de Direito" Nulla poena sine culpa"
N) Toda a prova carreada para os autos impunha ao Tribunal a quo decidir no
sentido de absolver o Arguido da prática do CRIME DE DESCAMINHO, pelo
que deverá a sentença ser revogada na parte em que o condenou.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER ADMITIDO E CONSEQUENTEMENTE SER REVOGADA A SENTENÇA PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO NA PARTE EM QUE CONDENOU O ARGUIDO PELA PRÁTICA DO CRIME DE DESCAMINHO P.P. PELO ARTIGO 3550 DO CÓDIGO
ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTiÇA!
Este recurso foi admitido, através de despacho judicial proferido a folhas 316.
O MºPº junto da primeira instância apresentou resposta nos termos legais, a qual se encontra junta aos autos a folhas 318.
A digna Procuradora Geral Adjunta, junto deste Tribunal proferiu douto parecer a fls. 328, pugnado pela improcedência do recurso.
Foi cumprido o artigo 417º nº 2 do CPP.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
 Cumpre agora apreciar e decidir.
Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo do conhecimento oficioso de nulidades ou vícios expressamente previstos por lei.
As questões a apreciar pelo recorrente no presente recurso são as seguintes (para além das questões que devem ser oficiosamente conhecidas pelo Tribunal de recurso):
-Violação do princípio in dúbio pro reo, artº127º do CPP, 32º nº 2 da CRP, e erro na apreciação da prova;
-Violação do artº 13º do CP do principio “ nulla poena sine culpa”, pelo que deve ser o arguido absolvido da pratica do crime pelo qual foi condenado, p.p. pelo artº 355º do C.P..
Tem o seguinte teor a sentença recorrida, proferida na primeira instância (sublinhados nossos), nos segmentos que importam:
FACTOS PROVADOS:
1 - No 23 de Maio de 2016, pelas 12hOO, no estabelecimento comercial" BB, Exportação de Produtos Alimentares, Lda'', sito no Complexo Industrial da Granja, Armazém 6-A, Casarias, em Vialonga, de que o arguido é sócio-gerente, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (A.S.A.E.), apreendeu os produtos abaixo elencados, que se encontravam prontos para expedição para venda, rotulados onde constava informação falsa sobre a origem geográfica desses produtos (Angola e Guiné), e onde constava o símbolo marca registada, sem que tais marcas tenham sido objecto de registo, e ainda pelo facto de não haver documentação de suporte da rastreabilidade dos produtos:
- 296 (duzentas e noventa e seis) latas de "Chebeu" 400gr.;
- 49 (quarenta e nove) latas de "Chebeu" SOOgr.;
- 6 (seis) latas de "Moamba" 400gr.;
- 31 (trinta e uma) "Moamba" SOOgr.;
Totalizavam o valor de 775,00€ (setecentos e setenta e cinco euros).
2 - Com a apreensão, procedeu-se à colocação dos produtos em caixas de cartão, as quais foram colocadas numa palete, a qual foi fotofilmada e selada com os selos privativos da ASAE n.079410 e 079411.
3 – AA  foi instituído fiel depositário dos produtos apreendidos, com esclarecimento da responsabilidade em que incorria em caso de quebra dos selos ou do descaminho do objecto da apreensão.
4 - Tais factos originaram o Processo de Contra-Ordenação n° 3SjI6.6EALSB, no âmbito do qual foi levantado o competente auto de notícia.
5 - Porém, a 9 de Março de 2017, foi constatado pelos Inspectores da ASAE, que nas instalações da referida sociedade, onde tinha ficado armazenada a mercadoria apreendida, nada ali se encontrava.
6 - Com efeito, apesar de saber as obrigações em que se encontrava investido, o arguido resolveu dar destino, não concretamente apurado, aos bens apreendidos.
7 - O arguido AA tinha sido notificado da apreensão da referida mercadoria, cujo auto assinou, naquele dia 23 de Maio de 2016, tendo sido nesse acto nomeado fiel depositário do bem.
8 - O arguido AA bem sabia que a mercadoria se encontrava apreendida e que por essa forma não podia, além do mais, ser comercializada ou movimentada para fora das instalações.
9 - Malgrado conhecer o teor desta obrigação e compreender o seu alcance o arguido AA deu destino diferente à mercadoria apreendida, relativamente à qual estava obrigado a conservar à sua guarda, e logrou conseguir subtraí-la ao poder público, inviabilizando a sua entrega quando tal lhe fosse exigido, e frustrando o objectivo da apreensão.
10 - Agiu, o arguido, deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.
Mais se provou que:
11 - O arguido não possui antecedentes criminais.
*
FACTOS NÃO PROVADOS:
1 - Que o arguido não obstante saber as obrigações em que se encontrava investido, procedeu à venda dos bens apreendidos, no período compreendido entre 23.05.2016 e o dia 09.03.2017, com prévio rebentamento dos respectivos selos.
2 - Que o arguido sabia que abrindo, rompendo ou inutilizando os selos que garantiam a inviolabilidade da mercadoria, actuava em desconformidade com uma apreensão legítima cujos selos foram apostos por competente funcionário, inspectores da ASAE no exercício das suas funções, e que, desta forma, ficaria sujeito a responsabilidade criminal.
*
Motivação da decisão de facto
O Tribunal firmou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, da análise crítica e conjugada do conjunto da prova produzida, nos termos do disposto no artigo 127.° do Código de Processo Penal. A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da mesma, pois que tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e de lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Sendo que a convicção do tribunal é formada, através dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas e, também, pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes e risos, como "linguagem silenciosa e do comportamento", a coerência de raciocínio e de atitude, a serenidade e seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, e as coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, de tais declarações e depoimentos.
Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores, sendo apreciadas no contexto da mensagem em que se integram.
Trata-se de um acervo de informação não verbal e dificilmente documentável face aos meios disponíveis, mas imprescindível e incidível para a valoração da prova produzida e apreciada, segundo as regras de experiência comum.
Para a formação da convicção, o Tribunal atendeu à prova testemunhal produzida em sede de julgamento, a saber o depoimento da testemunha Pedro Antunes, Inspector da ASAE, em conjugação e entrecruzados com a prova documental constante dos autos, a saber de fls. 4/13, 14/18, 42/44, e CRC constante dos autos.
Para a resposta positiva à factualidade dada como provada, assumiu particular importância o depoimento da testemunha acima referida, pois que logrou explicar as circunstâncias em que se deslocou às mencionadas instalações, tendo a este propósito confirmado na íntegra toda a factualidade descrita em 1. a 5 .. Por esta testemunha foi referido que aquando da apreensão de tal mercadoria, o ora arguido foi constituído como fiel depositário de tais bens, tendo ficado ciente das obrigações investidas.
O arguido confrontado com os factos que lhe são imputados, e não obstante ter admitido a factualidade dada como provada em 1. a 3., negou a demais factualidade. A este propósito referiu que após a apreensão efectuada, ficou ciente da responsabilidade que lhe incumbia, tendo informado os respectivos funcionários da referida apreensão.
Contudo, referiu desconhecer o que aconteceu à mercadoria, não sabendo explicar ao Tribunal a razão da mesma ter desaparecido das instalações do referido armazém.
O mesmo foi referido pelas testemunhas CC, mãe do arguido, DD, fiel de armazém e FF, administrativa na sociedade mencionada. Estas testemunhas não obstante ter tido conhecido da apreensão efectuada, não souberam explicar quanto ao desaparecimento de tal mercadoria.
Em sede de julgamento, foi ainda inquirida a testemunha GG, há data dos factos Inspectora da A5AE, e cujo depoimento não assumiu relevância junto do Tribunal pois que referiu apenas recordar-se de ter efectuado diligências de inquirição da esquadra.
Ora, da prova produzida, resultou à saciedade que a referida mercadoria foi apreendida, que o ora arguido foi constituído fiel depositário da mesma, e que tal mercadoria desapareceu.
É certo que não se apurou o destino da mesma, contudo tal mostra-se irrelevante, pois que impendia sobre o ora arguido a obrigação de conservá-los, e não subtraí-los ao domínio público.
No que tange aos demais factos dados como não provados, a sua resposta negativa ficou a dever-se à falta de prova dos mesmos.
Assim, sendo certo que em processo penal, no que se reporta a factos desfavoráveis ao arguido, importar consignar que, na dúvida, temos de ter sempre presente o princípio do in dubio pro reu.
Trata-se de um princípio que pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como o dolo e negligência do seu autor. Isto é, à insuficiência da prova - que equivale à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência de determinado facto - deve dar-se como não provado o facto desfavorável ao arguido. Ou seja, é indicado ao juiz que valore a favor do acusado a prova dúbia (neste sentido, Cristina Líbano Monteiro, em Perigosidade de Inimputáveis e ln Dubio Pro Reo, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, Stvdia Iuridica 24, pág. 11).
Este princípio traduz, assim, a convicção de que o Estado, através dos Tribunais, não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente, conforme esclarecedoramente defende Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., pág. 166, e isto porque, são mais gravosas as consequências que podem decorrer de uma incorrecta fixação de factos em processo penal.
Foi em consequência do exposto que foram dados como não provados os factos supra expostos.
Quanto aos antecedentes criminais teve o Tribunal em consideração o CRC do arguido juntos aos autos.
A verdade objecto do processo não é uma verdade ontológica ou científica, é uma convicção prática firmada em dados objectivos que, directa ou indirectamente, permitem a formulação de um juízo de facto.
DECIDINDO diremos então:
Da verificação dos elementos objetivos e subjetivos do tipo:
O recorrente foi condenado pela prática de um crime de descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público p. e p. no artº 355º do Cód. Penal.
Descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público
“Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objeto móvel, bem como coisa ou animal que tiverem sido arrestados, apreendidos ou objeto de providência cautelar, é punido com pena de prisão até 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
(versão actual- Lei 8/2017, de 03/03 a qual não se encontrava ainda em vigor à data dos factos, sendo que, no entanto a alteração efectuada não colide na aplicação em concreto com a anterior redacção, uma vez que esta alteração constituiu no aditamento ao corpo do artigo : aos animais)
O delito em apreço “configura um crime de lesão do bem jurídico (…), consumando-se tão-só quando o agente frustra  total ou parcialmente  a finalidade da custódia, através de uma ação direta sobre a coisa: inutilizando-a ou descaminhando-a. Neste caso, o “dano” coincide com o resultado material previsto no tipo: a “modificação” ou a deslocação definitiva da coisa para fora da custódia.
 Afinal, o tornar a coisa imprestável para o fim em causa; desviá-la do destino que lhe fora oficialmente traçado (…)”/ vide Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 419.
Por isso, o crime pode ser cometido por quem não seja depositário dos bens, consumando-se quando o agente, exercendo ação direta sobre a coisa, inutilizando-a ou desencaminhando-a, obtém, movido por qualquer modalidade de dolo, a frustração definitiva da custódia da coisa, vide aqui o Ac. do TRP de 07.02.2007, Proc. n.º 0615753, Relator Des. Guerra Banha.
A ação típica consiste em destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, subtrair.
As três primeiras modalidades de ação configuram-se em termos semelhantes à descrição típica do crime de dano. A destruição determina a perda total da utilidade da coisa e implica, normalmente, o sacrifício da sua substância. Neste sentido “destruir” consiste em deitar abaixo, demolir, devastar, derrubar, arrasar, fazer desaparecer, arruinar, ou seja, traduz o ato que acarreta a completa imprestabilidade da coisa.
Quanto à danificação, abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição, podendo concretizar-se pela produção de uma lesão nova ou pelo agravamento de uma lesão preexistente. Configura, deste modo, um ato que causa uma “destruição parcial” da coisa, vide aqui, Manual de Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 222.
Por seu lado, “inutilizar” abarca as ações que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função.
O que se exige sempre é a referência à corporeidade da coisa. Esta conduta típica pode consubstanciar uma lesão da substância ou da integridade física (neste caso, confunde-se com a ação “danificar”), ou em retirar uma parte ou peça da coisa ou acrescentar uma coisa ou substância perturbadora.
Em síntese conclusiva, a destruição, a danificação ou a inutilização, total ou parcial, abrangem todos os atentados à substância ou à integridade física da coisa (como no dano) que a tornam inútil do ponto de vista que justificava a sua custódia oficial.
Por isso, como salienta Cristina Líbano Monteiro, deve considerar-se a inutilização como o conceito chave dos outros tipos de ação sobre a coisa ( In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 423).
Por sua vez, no conceito “subtração ao poder público”, cabem tão só as condutas que sonegam a coisa ao poder público, sem que, no entanto, seja exigida uma intenção de apropriação. É um dos casos excecionais em que a subtração da coisa sem intenção de apropriação é punida, no âmbito do conceito «por qualquer forma subtrair ao poder público a que está sujeito» vide aqio o AC do TRP de 09.11.2005, in CJ, tomo V, pág. 219.
Efetivamente, deve entender-se por subtrair o mesmo que no crime de dano, com a seguinte precisão: caso a “subtração” seja levada a cabo pela pessoa oficialmente encarregada da guarda da coisa, o verbo mais apropriado não será esse (subtrair), na medida em que não se verifica a quebra do domínio do facto de outrem para constituir um domínio próprio. Melhor se falaria nestes casos de “descaminho”.
De todo o modo, a ação terá de traduzir-se numa conduta de apropriação da coisa, com o reverso do poder público dela ficar desapossado, nomeadamente, através de atos em que o agente, por exemplo, extravia a coisa, a esconde ou a entrega a terceiro / Cfr. Ac. da Relação de Lisboa de 28.11.2007, in CJ, tomo V, pág. 131.
Sendo um tipo de crime doloso, é ainda exigível que qualquer das condutas supra referidas seja praticada com dolo, cobrindo todos os elementos objetivos do tipo, sob qualquer das formas previstas pelo artigo 14.º do Código Penal.
No caso dos autos, constava da acusação pública deduzida (vide folhas78 e seguintes) e não foi transposto para a sentença recorrida, que o arguido por não ter espaço no armazém onde se encontravam tais caixas resolveu dar destino aos bens apreendidos procedendo à sua venda (…)
Este facto não resultou provado, como se pode ver supra tendo-se provado o facto contido no nº 6, ou seja  - “Com efeito, apesar de saber as obrigações em que se encontrava investido, o arguido resolveu dar destino, não concretamente apurado, aos bens apreendidos”.
A acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo e dos poderes de cognição do tribunal, deve precisar a factualidade integradora da conduta típica, atrás enunciada, do crime de descaminho, e no caso em apreço fê-lo, só que após realizado o julgamento, tais factos na sua integralidade não resultaram provados como supra se pode constatar.
Aliás, mais se diz até que existe aqui uma nítida contradição/colisão, entre os factos dados como provados nos números 6 e 8, os quais são incompatíveis mutuamente, ou seja não se pode dar simultaneamente como provado que o arguido deu um destino não apurado aos bens apreendidos e um pouco mais à frente dar como provado que, o arguido bem sabia que a mercadoria se encontrava apreendida e que por essa forma não podia, além do mais, ser comercializada ou movimentada para fora das instalações
Existe aqui o vicio estatuído no artº 410º nº 2 al. b) do CPP, ou seja contradição insanável da fundamentação, a qual não é passível de ser suprida no Tribunal superior.
Então, “dar destino concretamente não apurado aos bens apreendidos” não equivale: primeiro, a afirmar que “houve destruição, danificação, inutilização ou subtração” dos referidos bens, sendo a prova de qualquer dessas modalidades da ação indispensável para se considerar preenchido o tipo objetivo do crime aqui em análise, quer os conceitos de destruição, danificação, inutilização, subtração, estes efetivamente incluídos na definição do referido tipo legal, são matéria de direito, porque conclusivos ou envolvendo sentido especificamente jurídico, e segundo, resulta manifesto que da descrição na sentença recorrida do elenco do factualismo provado não constam factos concretos que os integrem, nada resultando de concreto sobre o destino dado pelo arguido aos bens penhorados de que fora nomeado fiel depositário, que já se sabe, ter resultado esse destino, como não concretamente apurado dos bens apreendidos.
Por outro lado, da mera não entrega ou falta de apresentação dos bens também não se pode deduzir que tivesse havido descaminho ou venda (como resultou até não provado).
Também não se provou na sentença recorrida, que o arguido tivesse, por exemplo, feito desaparecer ou tivesse dissimulado, vendido ou cedido a outrem os referidos bens penhorados.
 E o certo é que a modalidade típica (subtração) pode ter-se por preenchida não só com o mero ocultar ou extraviar da coisa, mas também com a sua venda, troca, cedência, etc., todas elas podendo ser abrangidas no conceito amplo de “desfazer-se”.
A sentença não conseguiu provar e concretizar a conduta do arguido através da qual eventualmente ele se tenha desfeito (subtraído do poder público) dos bens penhorados, nem dos elementos subjectivos a ele atinentes, pois isso não resultou provado, nem na fundamentação de facto se mostra compreensível tal iter cognitivo, pois em rigor nem a análise critica da prova é feita, fazendo uma simplista assentada das declarações do arguido e das testemunhas, e delas não retirando, cognoscitivamente falando, naturalmente, qualquer conclusão no sentido de dar como provados ou não provados os factos que fez constar da sentença recorrida ( anotando-se até que o arguido foi absolvido do outro crime/ quebra de selos….)
Com a alusão genérica a que o arguido resolveu dar destino não concretamente apurado aos bens apreendidos, fica-se sem saber se o arguido os destruiu, vendeu, escondeu, trocou ou, simplesmente, subtraiu os bens, ou até se os guardou noutro local, ou até hipoteticamente falando se ali estão porventura escondidos, ou se os cedeu a titulo gratuito a terceiros , se os consumiu etc, etc, etc….
O que temos de palpável é exactamente uma imprecisão, um destino concretamente não apurado, que se resume a uma mão cheia de nada, neste caso “ sub judice”.
Assim nos factos provados constantes da sentença recorrida em rigor, não se encontra matéria suscetível de preencher o conceito de “subtracção ao poder público”.
Por outro lado, dos factos dados como provados nos pontos 6, 9 e 10 da sentença recorrida, onde se refere que o arguido resolveu dar destino concretamente não apurado, não se pode deduzir que este tivesse frustrado definitivamente a finalidade da custódia dos bens penhorados, ou mais ainda que tivesse agido com essa intenção.
Aliás, da matéria de facto provada constante dos pontos 6 e seguintes, resultado da prova produzida em audiência de julgamento, o que se pode concluir é precisamente o contrário.
Ou seja ficando por apurar objectivamente o destino dos bens que estavam apreendidos, este facto cinzento, em nada acrescenta, nem perfectibiliza os elementos do tipo contidos no artº 355º do C.P.
É que o crime de descaminho, p. e p. pelo artigo 355.º do Código Penal não visa punir as infidelidades do depositário dos bens quanto aos deveres de guarda e conservação, não sendo, por isso, um crime específico dos depositários dos bens.
Visa, antes, punir os atos praticados por qualquer pessoa que se destinem a impedir ou descaminhar a coisa do fim que justificou a sua colocação sob a custódia da autoridade pública, exercida através do depositário.
No caso dos bens penhorados, visa-se punir todas as condutas que, dolosamente, impeçam ou frustrem a venda desses bens, seja por via da sua inutilização ou destruição, seja por via do seu descaminho.
O crime consuma-se «quando o agente frustra, total ou parcialmente, a finalidade da custódia, através de uma acção directa e dolosa sobre a coisa, inutilizando-a ou descaminhando-a, e tal ficou por provar.
Acresce que em nenhum dos outros pontos de facto é feita referência a que concreto acto material possa ter o recorrente praticado e que seja susceptível de integrar o conceito de subtracção; ou seja, neste particular, inexiste factualidade de onde se possa retirar/apreender qual foi a conduta que consubstancia a subtracção que o arguido realizou.
O mesmo é dizer que não demonstram, objectivamente, os autos a premissa fáctica, donde se extrai a ilação da primeira parte do ponto de facto nº 6: sem se conhecer em que consistiu o acto de subtracção praticado pelo arguido, não se pode concluir que aquele sabia que o praticou ou que quis esse resultado.
A expressão “subtracção dos objectos ao poder público” é, assim, utilizada, apenas e só, na integração num dos elementos subjectivos do tipo.
É que ao proceder-se desse modo não ficou frustrado, total ou parcialmente e de forma definitiva, a finalidade da custódia pública do Estado, que é o que se pretende tutelar com o crime de descaminho da previsão do art. 355.º”.
Do exposto se conclui que os factos provados não preenchem o tipo objetivo do artº 355º do Cód. Penal, impondo-se, por isso, a absolvição do recorrente.
Acrescente-se que, faltando o preenchimento do tipo objectivo, é naturalmente evidente que não se pode afirmar que o arguido agiu com dolo.
Por isso é indiferente, que, “na caracterização do tipo subjetivo”, o tribunal tivesse considerado provada uma intenção: que : “9 - Malgrado conhecer o teor desta obrigação e compreender o seu alcance o arguido AA deu destino diferente à mercadoria apreendida, relativamente à qual estava obrigado a conservar à sua guarda, e logrou conseguir subtraí-la ao poder público, inviabilizando a sua entrega quando tal lhe fosse exigido, e frustrando o objectivo da apreensão( facto que já se viu está em contradição com o facto contido no nº 6).
10 - Agiu, o arguido, deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei. “
Isto não se pode afirmar relativamente ao arguido, pois não se sabe o destino, que não se apurou, aos bens apreendidos, pois tal intenção não decorre dos factos objetivos provados.
Aliás, verifica-se também erro de julgamento da matéria de facto ao nível da, dada por provada, intenção com que o recorrente atuou.
Trata-se, com efeito, de um facto íntimo, subjetivo, sobre o qual não foi, como é normal, produzida prova e que não se pode inferir da materialidade objetiva dada por provada.
 Neste caso, o tribunal supriu uma lacuna de conhecimento através de uma presunção judicial, mas sem que tivesse factos que, pelas regras da lógica e da experiência, permitissem com razoável segurança a afirmação dessa intenção, vide aqui o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.06.2006, Proc. nº 0641179, relatora Des. Isabel Pais Martins, disponível em www.dgsi.pt., e ficando também “in casu” por fundamentar a opção do Tribunal “ a quo” como supra já se referiu.
Em suma, entendemos que da materialidade objectiva exarada na sentença não constam factos nem se encontra matéria susceptível de preencher o conceito de “subtracção ao poder público”.
Por outras palavras da factualidade apurada não constam actos integradores da dimensão objectiva do crime de descaminho p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal, pelo qual o recorrente tinha sido acusado.
Poderia haver um crime de desobediência se o arguido tivesse sido notificado com tal cominação, mas também haveria nesse caso uma alteração substancial dos factos caso, entretanto, de enveredasse pelo aditamento dessa cominação.
Nessa decorrência, face à ausência de materialidade objectiva indispensável ao preenchimento do crime de descaminho, torna-se inócuo que na caracterização do tipo subjectivo do ilícito tenha sido considerada provada uma intenção “quis esse resultado” da subtracção.
Concluindo-se assim, que os apurados factos não são susceptíveis de integrar os elementos típicos ( e anotando-se até que recorrendo ao principio in dúbio pro reo, que o Tribunal “ a quo “ lançou mão para absolver o arguido do outro crime de quebra de selos), desde logo a nível objectivo do imputado crime de descaminho (ou de qualquer outro tipo legal de crime), inevitavelmente se impõe a absolvição do arguido/recorrente, ficando, por conseguinte, prejudicada a apreciação das demais questões que haviam sido suscitada pelo recorrente (vide no mesmo sentido o AC TRC de 4/02/2015, in www.dgsi.pt)
Assim outra solução não resta senão a de se absolver o arguido da prática do crime, p.p. pelo artº 355º do Código Penal.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam a sentença recorrida e absolvem o arguido, AA, do crime de descaminho p. e p. no artº 355º do Cód. Penal, pelo qual foi condenado.
Não é devida tributação.
Notifique- se e D.N.

Lisboa, 11 de Dezembro de 2019
Filipa Costa Lourenço
Cristina Santana