Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4222/11.0TBCSC.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
ILEGITIMIDADE PASSIVA
DIREITO DE REGRESSO
ÓNUS DA PROVA
APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTO COM AS ALEGAÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A intervenção acessória provocada produz uma modificação subjectiva na relação processual, fazendo surgir na lide um sujeito passivo de uma relação conexa que a autora não demandou, mas não opera qualquer modificação objectiva, mantendo-se inalteradas as questões submetidas à apreciação do tribunal - o objecto da acção é apenas o que foi fixado na petição inicial - sendo o chamado admitido a discuti-las, na medida em que nisso possa ter interesse, não dando lugar à condenação ou absolvição do chamado.
2. O juízo de viabilidade da acção de regresso, e o da sua conexão com a causa principal, previstos no n.º 2 do artigo 331º do CPC (artº 322º, nº 2 NCPC), são formulados em abstracto, confrontando os fundamentos da acção com os do invocado direito de regresso.
3. O tribunal onde foi suscitado o incidente não vai pronunciar-se sobre a verificação de qualquer dos fundamentos do pretendido direito de regresso, visto que só na acção de regresso que, eventualmente, vier a ser proposta contra o chamado, haverá que averiguar e decidir se esse direito efectivamente existe ou não.
4. Nos termos do artigo 8º, nº 1 do Código Civil o tribunal, ainda que tenha dúvidas quanto à ocorrência ou não dos factos em causa, não pode deixar de dirimir o conflito suscitado entre as partes, sendo as regras de repartição do ónus da prova consagradas nos artigos 342º e ss do Código Civil e 516º do Código de Processo Civil (artigo 414º NCPC), que definem o critério que o juiz deve adoptar para proferir a decisão.
5. O artigo 342º do Código Civil contém a regra geral sobre a repartição do ónus da prova, estabelecendo os artigos 343º e 344º, desvios a esta regra.
Nas acções para efectivação de direitos com base em declaração negocial, contratual ou unilateral, compete ao autor que visa fazer valer o direito que se arroga contra o réu, demonstrar que é titular desse direito, invocando os factos que determinada norma legal lhe reconhece tal direito e fazendo prova dos mesmos, competindo ao réu alegar e provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele invocado direito.
Decisão Texto Parcial:ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I.    RELATÓRIO

A. intentou, em 25.05.2011,  contra  B, LDA., com sede na Avenida do Brasil, …, acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, através da qual pede a condenação da ré no pagamento da quantia de € 40.208,00, acrescida de juros de mora desde 30.08.2010.
Fundamentou a autora, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de ter celebrado com a ré um Protocolo, no ano de 2008, segundo o qual a ré se obrigou a produzir e vender um CD com várias vozes femininas, com pagamento à autora de € 4,00 por cada unidade efectivamente vendida, o que deveria ter lugar semestralmente.
Mais alegou que a ré, no final do primeiro semestre de 2010, havia vendido 10.052 unidades do aludido CD, a que correspondia o pagamento à autora de € 40.208,00, o que a mesma não fez.
Citada, a ré apresentou contestação, em 29.06.2011, impugnando o número de vendas indicado pela autora, alegando que esta não tomou em consideração os CD que as lojas não vendem e devolvem.
Defendeu, assim, que o número de vendas efectivo, até Janeiro de 2009, foi de 4.407 unidades, que corresponde ao montante de € 17.628,00 a pagar à autora. E, até 30 de Maio de 2011, foram vendidas mais 157 unidades, a que correspondem mais € 628,00 a receber pela autora.
Mais invocou que a sociedade ré pertencia, na data dos  actos, à C, a qual apenas em Fevereiro de 2011, fez reflectir aquele primeiro valor na conta da empresa, pelo que só nessa data a ré se encontrou em condições de proceder ao seu pagamento.
Requereu a ré a intervenção acessória provocada da C, alegando que a  mesma  se  obrigou  ao pagamento de quaisquer valores que a B fosse condenada a pagar nos 3 anos seguintes à cessão, por factos anteriores a este negócio.
Foi admitida a intervenção acessória de C, SA, com sede …, Carnaxide, a qual apresentou contestação, em 31.01.2012, impugnando, por desconhecimento, muitos dos factos alegados pela autora.
Alegou igualmente que a autora não tomou em consideração as unidades do CD que são devolvidas pelas lojas, pelo que o número de vendas efectivo foi da ordem dos 2459, conforme estudo que mandou efectuar a empresa especializada e credível.
Foi proferido o despacho saneador, e elaborada a condensação, com a fixação dos factos assentes e a organização da base instrutória.
Depois de designada data para a audiência, a Chamada “C” apresentou articulado superveniente, em 19.10.2012, que foi admitido, a defender que ocorreu, entretanto, a caducidade do eventual direito de regresso por parte da ré, devendo a Chamada ser considerada parte ilegítima na presente acção, ficando sem efeito o seu chamamento.
A ré respondeu no sentido da improcedência destas posições, cujo conhecimento foi relegado para momento posterior.
Foi levada a efeito a audiência de discussão e julgamento, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, constando do Dispositivo da sentença o seguinte:
Nestes termos e com os fundamentos mencionados, julga-se a acção procedente por provada e condena-se a ré B no pagamento à autora da quantia de € 40.208,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia 30 de Agosto de 2010 até pagamento.
Inconformadas com o assim decidido, a ré, B Lda. e a interveniente C, S.A., interpuseram, cada uma, recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.
         São as seguintes as CONCLUSÕES da Ré/recorrente: (…)

Pede, por isso, a apelante, que seja revogada a Sentença recorrida nos termos expostos.
*

São, por seu turno, as seguintes as CONCLUSÕES da interveniente/recorrente: (…)
*

A autora apresentou contra-alegações ao recurso interposto pela Ré, formulando as seguintes CONCLUSÕES: (…)
*
           
A autora apresentou também contra-alegações ao recurso interposto pela chamada, propugnando pela manutenção da decisão recorrida e formulou as seguintes CONCLUSÕES: (…)


 Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

***

II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO


Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Novo Código de Processo Civil, é pelas conclusões das alegações das recorrentes que se define o objecto e se delimita o âmbito dos recursos aqui em apreciação, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.


A . QUESTÃO PRÉVIA / A JUNÇÃO DE DOCUMENTOS

A ré/apelante, com a sua alegação de recurso, veio juntar dois documentos:

1º. DECLARAÇÃO, datada de 18 de Setembro de 2013, constando o seguinte: “Eu, D, administradora de insolvência de uma sociedade denominada E, S.A., autorizo o Sr. F, a entregar ao G, na qualidade de gerente de empresa H, Lda., os CDs que se encontram no interior das instalações sitas em …, na Rua …”.

2º. AUTO DE ENTREGA-RECEBIMENTO, datado de 24 de Setembro, assinado por F e G, do qual consta:
“Insolvência de E, S.A. F representante legal da firma I., fiel depositário de cento e trinta e nove paletes com cd’s e dvd’s diversos, que se encoram nas nossas instalações na rua das forças armadas, complexo …, armazém fracção 3 …., vem nesta data entregar por ordem da digníssima administradora da insolvência nomeada nos autos, Dra. D, ao sr. G, na qualidade de jerente da empresa B, lda. os respectivos cd´s.
Descrição bens: Cento e trinta e nove paletes com cd´s e dvd´s diversos”.

Invocou a ré/apelante que à data da realização do julgamento não tinha acesso às informações sobre as devoluções, uma vez que o seu stock de mercadorias se encontrava retido num armazém, em …, e, virtude da empresa E (empresa que armazenava e geria o stock) se encontrar insolvente e que apenas a 24 de Setembro a ré tomou finalmente posse das obras em apreço nos autos, pretendendo com a junção desses documentos fazer prova de nova factualidade não alegada: - que nas paletes referidas nesses documentos se encontravam em stock 3490 unidades do CD em causa, correspondentes às devoluções das lojas.


Vejamos se pode ser admitida a pretendida junção dos documentos.  
                       
Na 1ª instância, a possibilidade de junção de documentos que se destinem a servir de meios de prova dos factos alegados, como fundamento da acção ou da defesa, estava até à entrada em vigor da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, cronologicamente delimitada entre o momento da apresentação do articulado em que se alegam os factos correspondentes e o do encerramento da discussão.

Após o encerramento da discussão em primeira instância, a apresentação dos documentos é condicionada à existência de recurso da decisão final, e à demonstração de não ter sido a apresentação possível até ao encerramento da discussão em primeira instância, que teria lugar, conforme se inferia da conjugação do disposto nos artigos 652º, nºs 2, alíneas e) e 5 e 653º, nº 1, 1ª parte, ambos do CPC (agora revogado) quando terminassem os debates sobre a matéria de facto, constituindo como esclarecem LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, CPC Anotado, vol. 2º, pág. 424, um importante momento preclusivo.

Na fase de recurso, a junção de documentos revestia, e continua a revestir no Novo Código de Processo Civil, natureza excepcional, agora com um diverso regime e um limite temporal ainda mais apertado.

Estabelece agora o nº 1 do artigo 651º do NCPC que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

E resulta agora do citado artigo 423º do NCPC que:
1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.

2 — Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3 — Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.

Assim, actualmente, tendo em consideração os normativos acima aludidos, as partes só podem juntar documentos, no caso de recurso, nas seguintes situações:

i) Se a apresentação não tiver sido possível até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final (superveniência objectiva ou subjectiva);
ii) Se os documentos se destinarem a provar factos posteriores àquele momento ou cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior;
iii) Se a junção só se tornar necessária devido ao julgamento proferido em 1ª instância.
                 
De resto, o novo regime do CPC sofreu uma relevante restrição ao que dispunha o artigo 693º-B do anterior Código de Processo Civil, na redacção decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24.08, que havia ampliado as situações de natureza excepcional, passando a admitir a possibilidade de instrução documental dos recursos também nas situações a que se reportavam as decisões interlocutórias constantes das alíneas a) a g) e i) a n) do nº 2 do artigo 691º do anterior CPC, o que actualmente já não sucede.
Ora, no caso vertente não ocorre nenhuma das supra referidas situações de natureza excepcional que permita a instrução documental com a alegação de recurso.
 
Com efeito, pretendendo a apelante apresentar tais documentos para prova da factualidade que agora alega, já o devia ter efectuado, atempadamente, pelo menos até ao encerramento da discussão em primeira instância, conforme dispunham os artigos 652º, nºs 2, alíneas e) e 5 e 653º, nº 1, 1ª parte, ambos do CPC então em vigor.

Os documentos em causa não comprovam a superveniência objectiva, nem tão pouco demonstrou a apelante a superveniência subjectiva, pois apenas decorre da documentação agora apresentada que paletes contendo cd´s e dvd´s foram entregues à apelante em 24.09.2013, não a data em que a apelante teve conhecimento da existência e do local onde os mesmos se encontravam.

Por outro lado, há que concluir que a eventual relevância dos documentos agora apresentados não surgiu com a decisão da 1ª instância, o que significa que a pretendida junção não era imprevisível antes dela, sendo certo que a decisão recorrida está fundamentalmente ancorada na prova testemunhal prestada na audiência de discussão e julgamento.

Finalmente, sempre se dirá que tão pouco a documentação apenas agora apresentada demonstra a factualidade que a apelante dela pretende retirar, desconhecendo-se, como se desconhece, quem era a sociedade  “E”,  que  nunca  foi  aludida  no  processo,  a  que  se reportam os cd´s e dvd´s que foram entregues ao representante legal da apelante e qual o seu conteúdo e, muito menos se desconhece se os cd´s (apenas cd’s são referidos nos autos) entregues ao representante legal da apelante  correspondem  ao  stock  de  3490  unidades  do CD que está em
causa nos autos e se tais unidades dizem respeito a eventuais devoluções efectuadas pelas lojas.

                        Assim sendo, e ao abrigo do disposto no artigo 651º, nº 1 do NCPC (artigos 706º, nº 1 e 524º, nºs 1 e 2 do CPC), não se admite a pretendida junção dos documentos.

**

B . O OBJECTO DOS RECURSOS


Considerando que o âmbito do recurso da ré se restringia à reformulação da prova produzida, tendo subjacente as conclusões que somente a apelante lograva retirar da documentação apresentada e, não tendo sido admitida a pretendida prova documental, o recurso apresentado perdeu o seu objecto, mantendo-se incólume a decisão sobre a matéria de facto, razão pela qual se julga improcedente o recurso interposto pela ré, nada havendo a abater, por via das invocadas, mas não demonstradas devoluções, ao montante em que a ré foi condenada, condenando-se igualmente a ré/recorrente nas respectivas custas.
*

Por outro lado, em face ao teor das conclusões formuladas no recurso de apelação da interveniente “C, a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:


i. DA EXECPÇÃO DE ILEGITIMIDADE PASSIVA INVOCADA PELA INTERVENIENTE;      



ii. DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS,   

o que pressupõe a apreciação:
 
DAS REGRAS SOBRE A REPARTIÇÃO DOS ÓNUS DA PROVA.

***


III . FUNDAMENTAÇÃO

A –
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


            Foi dado como provado na sentença recorrida o seguinte:


1. A A. é uma entidade de utilidade pública que tem como missão, designadamente, divulgar informação sobre o Cancro e promover a educação para a saúde, nomeadamente quanto à sua prevenção (A).

2. A R. é uma produtora fonográfica e videográfica que se dedica à fixação, edição, publicação, comercialização e divulgação de produtos fonográficos e videográficos ( B ).

3. Com o objectivo de angariar fundos para a prevenção do cancro do colo do útero, a A. e a R. celebraram um protocolo, no ano de 2008, nos  termos  do  qual  a  R.  se  obrigou  a  produzir,  fixar,  editar  e
vender um compact disc (CD), intitulado “…”, o qual reuniu interpretações de várias vozes femininas portuguesas ( C ).

4. A R. tinha ainda a obrigação de promover a venda do CD em questão, da qual resultariam para a A. a quantia de € 4,00 (quatro euros) por cada unidade efectivamente vendida ( D ).

5. Intervindo no âmbito da promoção do CD a agência de publicidade “J, Lda” ( E )

6. Nos termos da cláusula 3 do referido protocolo, a R. comprometeu-se a efectuar pagamentos semestrais dos valores angariados durante o período de vida útil do CD, não sendo este inferior a 1 (um) ano ( F )

7. Durante o mês de Março de 2008, a R. solicitou à entidade MPO Portugal, Lda., que fossem duplicadas um total de 15.065 (quinze mil e sessenta e cinco) unidades do CD “…”, sendo-lhe atribuído o prémio de “Disco de Ouro” ( G ).

8. A B foi, até Março de 2009, propriedade da C, SA., tendo sido totalmente adquirida pela L, Lda. e M, Lda. ( H ).

9. Nos termos do contrato de cessão de quotas celebrado com a C, esta compromete-se ao pagamento de quaisquer valores que a sociedade B seja condenada a pagar nos 3 anos seguintes à cessão, em resultado de quaisquer responsabilidades, desde que tais responsabilidades tenham origem em factos ou questões anteriores à cessão ( I ).


10. Foram vendidas, até ao final do primeiro semestre de 2010, 10.052 unidades do CD em causa, esclarecendo-se que se trata de vendas da ré às lojas ( ).

11. Até à presente data, nunca a R. efectuou qualquer pagamento à A. ao abrigo do presente protocolo, apesar de instada para o fazer (2º)

12. O pedido de atribuição de Disco de Ouro por parte de uma Editora é feito quando as vendas às lojas atingem as 10.000 unidades, podendo ocorrer posteriores devoluções de obras não vendidas ao público ( ).

13. A ré remeteu à autora a carta, junta a fls. 40 dos autos, com data de 30.05.2011, onde refere que, segundo informação entretanto prestada pela C, teriam sido vendidas 4.407 unidades do CD, até 1 de Janeiro de 2009, acrescendo mais 157 unidades na data posterior ( ).

14. Uma parte das vendas ocorreu antes da data mencionada na alínea H)  ( ).

15. Em regra, quando estão em causa discos para fins de beneficência, como acontece no caso dos autos, toma-se em consideração a venda ao público, ou seja, descontando as devoluções ( ).

16. O critério usado pela associação fonográfica portuguesa para a atribuição do disco de ouro ou de platina, corresponde às vendas das editoras para as lojas  ( ).

***


B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


i.       DA ILEGITIMIDADE PASSIVA DA APELANTE/INTERVENIENTE ACESSÓRIA


                   O requisito da legitimidade é entre nós, um pressuposto processual e exprime a posição pessoal do sujeito em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que aquele sujeito possa ocupar-se em juízo desse objecto do processo – v. neste sentido CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, II, 153.

          Também MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, 82, explica que a legitimidade não é uma qualidade pessoal das partes, «mas uma certa posição delas face à relação material que se traduz no poder legal de dispor dessa relação, por via processual»

                     Com o requisito da legitimidade tem‑se em vista que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, apresentando-se, por isso, como refere CASTRO MENDES, como um reflexo do princípio da autonomia da vontade, já que é o titular do interesse o único que pode prossegui-lo, em juízo ou fora dele, salvo quando a lei disponha diversamente – v. ob. cit., II, 157.

                      Para que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, necessário se torna que estejam em juízo, como autor e réu, as pessoas que são titulares da relação jurídica em causa.

            Nos termos do artigo 26º, nº 1 do C.P.C., anterior à reforma operada pela Lei 41/2013, de 26 de Junho (artigo 30º do NCPC), autor e réu são  partes  legítimas  quando  têm  interesse directo, respectivamente, em
demandar e em contradizer, interesse esse que se afere, de acordo com o nº 2 daquele mesmo preceito legal, pela utilidade derivada da procedência da acção ou pelo prejuízo que daí advém.

   Mas, como o critério assente no interesse directo em demandar e em contradizer presta-se a dificuldades no âmbito da sua aplicação prática, a lei fixou no n.º 3 do artigo 26.º do CPC (artigo 30, nº 3 NCPC) uma regra supletiva na determinação da legitimidade, aí se estatuindo que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade, os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo Autor”.

           Têm, pois, legitimidade para a acção os sujeitos da pretensa relação jurídica controvertida.
             
                  No caso vertente, a ré, por entender que até Março de 2009, foi propriedade da C, S.A., tendo sido totalmente adquirida pelas sociedades L, Lda. e M, Lda. e que, nos termos do contrato de cessão de quotas celebrado com a C esta se havia comprometido a pagar nos três anos seguintes à cessão quaisquer valores que a ré seja condenada em resultado de quaisquer responsabilidades desde que tais responsabilidade tenham origem em factos ou questões anteriores à cessão, suscitou o chamamento à intervenção acessória da C, visto que, em caso de decaimento, existiria direito de regresso.

                       A interveniente/apelante apresentou contestação, em 31.01.2012, não colocou em causa os factos alegados pela ré para suscitar o seu chamamento, admitiu a celebração do contrato de cessão de quotas e os termos constantes do mesmo, apenas tendo impugnado a matéria de facto alegada pela autora.



                    Estabelecia o artigo 330º do C.P.C. em vigor à data em que foi suscitado o incidente que:
1. O réu que tenha acção de regresso contra terceiro, para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda, pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal.
2. A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento.

               O incidente suscitado pela ré traduz-se numa intervenção acessória ou subordinada, que visa colocar o terceiro em condições de o auxiliar na defesa, relativamente à discussão das questões que possam ter repercussão na acção de regresso ou indemnização invocada como fundamento do chamamento.

                     A admissão da intervenção acessória provocada da
C, com fundamento na invocação de direito de regresso da ré, em face da alegação de que a ré foi propriedade da chamada e do teor do contrato de cessão de quotas, produziu uma modificação subjectiva na relação processual, fazendo surgir na lide um sujeito passivo de uma relação conexa que a autora não demandou, mas não opera qualquer modificação objectiva, mantendo-se inalteradas as questões submetidas à apreciação do tribunal - o objecto da acção é apenas o que foi fixado na petição inicial - sendo a chamada admitida a discuti-las, na medida em que nisso possa ter interesse, não dando lugar à condenação ou absolvição da chamada.

            O efeito do chamamento é apenas fazer com que a sentença proferida constitua caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no artigo 341º, relativamente às questões de que depende o direito de regresso do autor do chamamento - art. 332º, nº4 do C.P.C. (artigo 323º, nº 4 NCPC).

                   O chamado é admitido a intervir como mero auxiliar na defesa, consistindo o único efeito útil do chamamento impedir que na futura acção de regresso volte a ser discutida a decisão proferida na acção anterior, que lhe serve de base.

                 Com efeito, o tribunal onde foi suscitado o incidente não vai pronunciar-se sobre a verificação de qualquer dos fundamentos do pretendido direito de regresso, visto que só na acção de regresso que, eventualmente, vier a ser proposta contra o chamado, haverá que averiguar e decidir se esse direito efectivamente existe ou não.

                Na verdade, e como se referiu no Ac. STJ de 10.01.2000 (Pº 9951381), acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt, a decisão sobre a efectiva titularidade do direito de regresso não cabe no âmbito da relação jurídica controvertida na causa e antes diz respeito a outra relação jurídica conexa com ela, cuja apreciação exige a instauração de uma ulterior acção de regresso contra o terceiro chamado, onde se decidirá sobre a existência ou inexistência desse direito.

                     O juízo de viabilidade da acção de regresso, e o da sua conexão com a causa principal, previstos no n.º 2 do artigo 331º do CPC, são formulados em abstracto, confrontando os fundamentos da acção com os do invocado direito de regresso.


           No caso em apreço a decisão sob o incidente de intervenção acessória da apelante limitou-se, como não poderia deixar de ser, a apreciar a sua admissibilidade ou rejeição, tendo o incidente sido admitido visto o julgador se ter convencido, face às razões alegadas pela ré, da viabilidade da acção de regresso e da sua conexão com a causa principal.


Ora, sabendo, como se sabe, que a legitimidade ad causam,como  pressuposto  processual  que  é,  não  se  prende  com o mérito  do pedido formulado na acção com base em determinada causa de pedir, pois quando se decide da questão da legitimidade, não tem o julgador – nem deve fazer - um julgamento antecipado da questão substancial que lhe é submetida e se, nesta acção, nenhuma apreciação pode ou deve ser efectuada quanto à efectiva existência ou inexistência do direito de regresso, é manifesto que a apelante é parte legítima na acção, sendo irrelevantes, para o que aqui se discute, as razões invocadas pela interveniente com relação à interpretação que esta pretende dar às cláusulas do contrato de cessão de quotas para justificar, ao cabo e ao resto, a inexistência do direito de regresso, mediante a invocação da caducidade do direito de regresso invocado pela ré.

Soçobra, portanto, nessa parte, a apelação da interveniente/apelante.
*

ii.          DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS   


                        Invoca a interveniente/apelante que foram violadas, na sentença recorrida, as regras sobre o ónus das prova, visto a autora, no entender da apelante, não ter logrado provar os factos constitutivos do direito que alegou, consistente na existência de um crédito contra a ré.

Vejamos,

                Determina o artigo 8º, nº 1 do Código Civil que o tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acera dos factos em litígio.


      É que, o juiz ainda que tenha dúvidas quanto à ocorrência ou não dos factos em causa, não pode deixar de proferir uma decisão de fundo sobre a questão suscitada. Tem, portanto, de dirimir o conflito suscitado entre as partes.

São, por isso, as regras do ónus da prova que definem o critério que o juiz deve adoptar para proferir a decisão.

                Como esclarece MANUEL DE ANDRADE, ob. cit, 196, O onus probandi respeita aos factos da causa, distribuindo-se entre as partes segundo certos critérios. Traduz-se para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto, trazida ou não pela mesma parte.

                      A parte sobre a qual impende o ónus da prova tem de alegar o facto e de trazer ao processo os respectivos elementos de prova, que sejam suficientes para formar a convicção do juiz. Se não alcançar tal objectivo, o juiz decidirá contra ela.

                     Sucede que não é indispensável que a prova seja feita pela parte sobre a qual recai o ónus, já que tendo em consideração o princípio da aquisição processual e o princípio do inquisitório do Tribunal, o que importa é que a prova seja efectuada.

                      Mas, se o juiz ficar com dúvidas sobre a realidade do facto, decidirá contra a parte a quem incumbia o ónus da prova desse facto.

        O regime jurídico da repartição do ónus da prova encontra-se consagrado nos artigos 341º e seguintes do Código Civil e 516º do Código de Processo Civil (artigo a 414º NCPC).


                O artigo 342º do Código Civil contém a regra geral sobre a repartição do ónus da prova, estabelecendo os artigos 343º e 344º,  desvios a esta regra.

                        Segundo o nº 1 do citado artigo 342º do Código Civil “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. À parte contrária cabe a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito (nº 2)

                     Nas acções para efectivação de direitos com base em declaração negocial, contratual ou unilateral, compete ao autor que visa fazer valer o direito que se arroga contra o réu, demonstrar que é titular desse direito, necessitando, para tanto, de invocar os factos que determinada norma legal lhe reconhece tal direito e fazendo prova dos mesmos.

                 O autor, ao propor a acção para fazer valer certo direito que se arroga contra o réu, cumpre-lhe demonstrar que é titular desse direito.

                        Tratando-se de uma acção em que o autor pede que o réu seja condenado a pagar-lhe determinado crédito, tem aquele o ónus de alegar e provar os factos constitutivos do crédito que invoca, enquanto a este compete alegar e provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele crédito.

                        E, nos termos do artigo 516º do Código de Processo Civil (artigo 414º NCPC), a dúvida sobre a realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus de prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

             No caso vertente, invocou a autora, e provou, a assinatura de um protocolo, em 2008, com o objectivo de angariar fundos para a prevenção do cancro do colo do útero, no qual a ré se obrigou a produzir, fixar, editar e promover a venda de um compact disc, resultando para a autora a quantia de € 4,00 por cada unidade efectivamente vendida, comprometendo-se ainda a ré a efectuar pagamentos semestrais à autora dos valores angariados durante o período de vida útil do CD, não sendo este inferior a um ano - v. Nºs 1 a 6 da Fundamentação de Facto.

                        Alegou, e provou, ainda a autora que, durante o mês de Março de 2008, a ré solicitou à entidade N, Lda. que fossem duplicados um total de 15.0645 unidades do CD em causa, tendo-lhe atribuído o prémio de “Disco de Ouro”, tendo todavia ficado demonstrado que o pedido de Disco de Ouro, por parte de uma editora, é feito quando as vendas às lojas atingem as 10.000 unidades, podendo ocorrer posteriores devoluções de obras não vendidas ao público - v. Nºs 7 e 12 da Fundamentação de Facto.

                        Mais resultou da prova produzida que até ao final do primeiro semestre de 2010, foram vendidas, pela ré às lojas, 10.052 unidades do CD em causa e que, até à presente data, nunca a ré efectuou qualquer pagamento à autora, ao abrigo do aludido protocolo, apesar de instada para o fazer - v. Nºs 10 e 12 da Fundamentação de Facto.

                        Ora, muito embora a ré haja contestado o valor das vendas invocado pela autora, aludindo à existência de devoluções as quais se reflectiam no valor final das vendas efectivamente realizadas, contrapondo um valor de unidades de CD manifestamente inferior ao alegado pela autora, a verdade é que não logrou provar essa alegação, como se infere da resposta negativa dada aos artigos 4º e 7º da Base Instrutória.

                       Dúvidas não restam, portanto, que a autora fez prova dos factos constitutivos do direito de que se arrogou na acção e a ré não provou os factos impeditivos desse direito da autora, consistentes nas devoluções de unidades de CD que alegou que não teriam sido vendidos,
devoluções essas que, segundo a ré, deveriam ser deduzidas ao valor mencionado pela autora, mas cuja prova a ré não logrou, efectivamente, efectuar.

         Soçobra, por conseguinte a apelação da ré, confirmando-se a sentença recorrida.
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         As apelantes serão responsável pelas custas respectivas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Novo Código de Processo.
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IV. DECISÃO


               Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedentes os recursos interpostos pela ré e pela interveniente, mantendo-se a decisão recorrida.
Condenam-se cada uma das apelantes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 27 de Março de 2014

                                                                                                    Ondina Carmo Alves - Relatora

Eduardo José Oliveira Azevedo

Olindo dos Santos Geraldes
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