Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
739/21.7T8MTA.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: INDEMNIZAÇÃO POR PRIVAÇÃO DO USO
MERA IMPOSSIBILIDADE DE USO
EQUIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I- Não obstante as divergências existentes na jurisprudência e na doutrina sobre esta questão, seguimos o entendimento de que a mera impossibilidade do uso e fruição de um bem, constitui em si mesma um dano indemnizável.
II-Ainda que o tribunal não disponha de elementos suficientes para calcular a diferença patrimonial entre a situação actual e a que o lesado teria se não tivesse ocorrido o evento, deverá recorrer-se à equidade para fixar uma indemnização, nos termos previstos no artigo 566.º, n.º 3 do C.Civil,
III-A indemnização pela privação do uso de veículo automóvel tem por finalidade ressarcir o lesado dos prejuízos que, na realidade, sofreu, não podendo conduzir a um gritante desequilíbrio da prestação relativamente ao dano, designadamente não podendo servir para um enriquecimento injusto do lesado à custa do lesante.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO

S, NIF …, residente na Praceta …, Lote 49, 1.º Dt.º, … Vale da Amoreira, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra:
N, NIF …, residente na Rua …, nº 4, 2º B, … Almada:
ZURICH INSURANCE PLC – SUCURSAL EM PORTUGAL, NIPC …, com sede na Rua …, nº 41, … Lisboa:
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, NIPC …, com sede na Avenida …, nº 59, … Lisboa.
Formula os seguintes pedidos:
1-Os RR. N e Fundo de Garantia Automóvel serem solidariamente condenados a:
a)Reparar o veículo da A. ou, em alternativa, pagar o custo da respectiva reparação no montante orçamentado de €2.150,00 (dois mil cento e cinquenta euros);
b) Pagar à A. todos os restantes prejuízos patrimoniais causados pela privação do uso do veículo, no montante global de €20.430,38 (vinte mil quatrocentos e trinta euros e trinta e oito cêntimos);
c) Pagar à A. todos os montantes que se vierem a apurar futuramente a título de danos até integral reparação do veículo, a liquidar em execução de sentença;
d) Pagar à A. juros à taxa legal sobre o montante a indemnizar desde a citação até integral pagamento;
e) Ao pagamento de custas na proporção da sua responsabilidade.

2- Quanto à R. Zurich, deve a mesma ser condenada a:
a) Pagar à A. uma indemnização no valor de €24.500,00 (vinte e quatro mil e quinhentos euros) nos termos do disposto nas alíneas e) do nº 1 e b) do nº6 do art.º 36º do DL 291/2007, de 21 de Agosto.
b) Pagar à A. de juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial nos termos do art.º 40º, nºs 1 e 2 com remissão para o art.º 38º nº 1 do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

Alegou, para tanto, em síntese, o seguinte:
Em virtude de um acidente de viação que ocorreu em 22/12/2019, por culpa e responsabilidade do 1.º Réu (condutor e proprietário do veículo de marca Volkswagen Passat, com a matrícula …-UJ), sofreu danos no seu veículo e danos de privação de uso do veículo, marca Lancia, com a matrícula …-MU.
Mais alega que o 1.º Réu fez constar da declaração amigável que possuía contrato de seguro válido com a 2.ª Ré, razão pela qual participou o acidente a esta e foi apresentada proposta de regularização de sinistro (baseada na perda total do veículo) por parte da Seguradora Tranquilidade, da qual a Autora era segurada, ao abrigo Convenção IDS. Não tendo sido aceite essa proposta pela Autora, e após várias diligências, em 09/09/2020, a 2.ª Ré veio declinar a responsabilidade, alegando a inexistência de seguro válido. Nessa sequência foi accionado o 3.º Réu, o qual aceitou a responsabilidade e fez nova proposta indemnizatória, igualmente sustentada na perda total do veículo, não aceite pela Autora.
Não tendo sido possível a citação pessoal do 1.º Réu, por se encontrar em paradeiro incerto, procedeu-se à sua citação edital e, após, à citação do Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 21.º do Código de Processo Civil, o qual não apresentou contestação.
Regularmente citada, a 2.ª Ré apresentou contestação, em que alega que à data do sinistro não existia seguro válido para o veículo e que, de qualquer forma, a regularização incumbia à seguradora da Autora, ao abrigo do protocolo relativo à Indemnização Directa ao Segurado (“Convenção IDS”), não lhe sendo imputável qualquer incumprimento dos prazos.
Regularmente citado, o 3.º Réu apresentou contestação, em que impugna a grande maioria dos factos alegados por desconhecimento, e alega ser o valor peticionado a título de privação de uso manifestamente excessivo.

*
Foi proferido despacho saneador, com dispensa de fixação do objecto do processo e temas de prova, e fixado o valor da causa.
Procedeu-se a audiência de julgamento com observância de todas as formalidades legais.
Seguidamente foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando:
a) O 1.º e 3.º Réus, solidariamente, no pagamento à Autora do valor de €2.150,00 (dois mil cento e cinquenta euros), a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contabilizados desde a data da citação até integral pagamento;
b) O 1.º e 3.º Réus, solidariamente, no pagamento à Autora do valor de €4.435,00 (quatro mil quatrocentos e trinta e cinco euros), a título de indemnização por privação de uso de veículo, acrescida de juros de mora contabilizados desde a presente data até integral pagamento;
c) O 1.º e 3.º Réus, solidariamente, no pagamento à Autora do valor diário de €5,00 (cinco euros), a título de indemnização por privação de uso de veículo desde a presente data, acrescida de juros de mora contabilizados desde cada dia em que seja devido aquele valor diário até integral pagamento;
d) A 2.ª Ré no pagamento à Autora da quantia de €1.576,56 (mil quinhentos e setenta e seis euros e cinquenta e seis cêntimos), a título de indemnização por privação de uso de veículo, acrescida de juros de mora contabilizados desde a presente data até integral pagamento;
e) Absolvendo os Réus do demais peticionado pela Autora;
f) Condenando o Autor e os Réus nas custas processuais, na proporção dos respectivos decaimentos, fixando-se o decaimento da Autora em 83%, do 1.º e 3.º Réus em 14% e da 2.ª Ré em 3%.

Inconformada com a sentença a Autora S interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
i)A Recorrente limita o recurso quanto à matéria de facto, a ser dado como provado o facto i) B. “o custo de aluguer de um veículo equivalente ao da A. é de €35,73”e quanto à matéria de direito, ao valor diário atribuído à privação de uso do veículo, propriedade da A., pela sentença da 1º instância.
ii)Assim, deve o facto “O custo de aluguer de um veículo equivalente ao da A. é de €35,73”, ser tido como provado, atendendo à prova feita- Doc. 22, junto com a PI.
iii) Os critérios de equidade do Julgador não são de acolher porquanto, atendendo a que as regras de experiência comum, os factos dados como provados e a uma maior acuidade na aplicação de Justiça ao caso concreto, nunca permitiriam alcançar o valor de €5,00 diários pela privação de uso do veículo sinistrado.
iv) Ainda mais quando a Recorrente provou que alugou um veículo de características idênticas, com um custo diário de € 35,73.
v) Nenhum dos RR. colocou à disposição da A. um veículo de substituição,
vi) Nem o montante necessário à reparação da viatura sinistrada,
vii) Tendo ficado provado que a viatura ficou imobilizada desde a data do acidente até à data da sentença.
viii) Os critérios escolhidos pelo Julgador para a atribuição do valor diário de €5,00, designadamente, o da compensação das deslocações das testemunhas(0,20€/km) e o valor das ajudas de custo para o sector público pelo transporte em veículo próprio (0,36€/km), não são critérios válidos a ter em conta para a privação de uso de veículo decorrente de acidente de viação.
ix)  Mais próximo se encontra o valor diário de aluguer de viatura, que seria o que a A. teria optado se tivesse meios económicos para o fazer. E aí, com toda a certeza, seria equacionado como despesa tida na sequência da privação de uso…
x)  E, em consequência ser revogada parcialmente a decisão recorrida na fixação de €5,00 diários pela privação de uso do veículo e os RR. condenados a pagar à A. na seguinte proporção:
a) Os 1.º e 3.º Réus, solidariamente, no pagamento à Autora do valor de €31.692,51 (trinta e um mil seiscentos e noventa e dois euros e cinquenta e um cêntimos) /887 dias à razão diária de € 35,73), acrescida de juros de mora contabilizados desde a presente data até integral pagamento;
b) Os 1.º e 3.º Réus, solidariamente, no pagamento à Autora do valor diário de €35,73 (trinta e cinco euros e setenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora contabilizados desde cada dia em que seja devido aquele valor diário até integral pagamento;
c)A 2.ª Ré no pagamento à Autora da quantia de €8.968,23 (oito mil e novecentos e sessenta e oito euros e vinte e três cêntimos/251 dias à razão diária de € 35,73), bem como do custo do aluguer do veículo de substituição no valor de € 321,56, acrescida de juros de mora contabilizados desde a presente data até integral pagamento;
d) Os A. e RR nas custas processuais na proporção dos respetivos decaimentos.
xi)A douta sentença proferida, ao decidir como decidiu, violou os art.ºs 342º, nº 1, 344, nº 1, 350º, nºs 1 e 2, 512º, 516º, 350º, nºs 1 e 2 todos do C.C.
Nestes termos E nos mais de Direito deve o presente recurso ter provimento e, em consequência, ser a douta decisão parcialmente revogada, só assim se fazendo
JUSTIÇA.

O FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL também inconformado com a decisão, veio interpor recurso, formulando, no essencial as seguintes conclusões:
O Mm.ºJuiz “adquo”, condenou solidariamente o Fundo de Garantia Automóvel e o réu N a pagarem à Autora, entre outras quantias, o valor de €4.435,00 a título de indemnização por privação de uso de veículo, acrescida de juros de mora contabilizados desde a presente data até integral pagamento e no valor diário de €5,00 a título de indemnização por privação de uso de veículo desde a presente data, acrescidos de juros de mora contabilizados desde cada dia em que seja devido aquele valor diário até integral pagamento.
 Salientando-se os seguintes factos provados:
“17. Após vários contactos da autora com ambas as Seguradoras, em 09-09-2020, a comunicou à autora que declinava a assunção da responsabilidade pelo sinistro, pelo facto de a apólice n.º9, relativamente ao veículo com matrícula-UJ, apenas ter sido emitida no dia seguinte ao do acidente.
18.A autora encetou então contacto com o Réu.
19. Por carta datada de 02-11-2020, o Reú (FGA) declarou à Autora que, concluída a instrução do processo, considerava-se demonstrada a sua responsabilidade indemnizatória e que iria emitir um recibo de indemnização no valor de 1.200,00, referente à decisão de considerar o veículo em situação de perda total.
20. Por carta datada de 15-04-2021, a Autora informou o Réu que não aceitava a proposta de indemnização no valor de 1.200,00, uma vez que o veículo era passível de reparação pelo valor de 2.150,00.”
C) Perante isto, o Mm.º Juiz “ ad quo” entendeu, e muito bem, condenar a 2º Ré (Zurich) a pagar à Autora a privação de uso da viatura até ao dia 09-09-2020 e o FGA a partir dessa data até integral pagamento.
Acontece que foi a partir da data de 09-09-2020 que a Ré Zurich declinou a sua responsabilidade, no entanto, a Autora apenas efectuou a participação do sinistro ao FGA em 13-10-2020, (mais de um mês após aquela comunicação) data em que o FGA teve conhecimento do acidente, pelo que não lhe poderão ser imputados danos ou, neste caso, privação de uso de um veículo em data anterior ao momento em que toma conhecimento do acidente e a partir do qual lhe possam vir a ser assacadas responsabilidades.
E) Assim, a dever-se a privação de uso de veículo à Autora, por parte do FGA, tem de ser a partir do dia 13-10-2020, data em que a A. comunica o sinistro ao FGA e não da data da comunicação da Zurich à Autora.
F) Conforme comprovado pelos factos provados 19. e 20., o FGA em 02-11-2020, concluiu a instrução do processo e comunica à Autora que considerava demonstrada a sua responsabilidade indemnizatória e que iria emitir um recibo de indemnização no valor de €1.200,00, referente à decisão de considerar o veículo em situação de perda total.
G) E, como dispõe o n.º 2 do Art.º 42º do DL 291/2007 de 21.08, a obrigação de disponibilizar um veículo de substituição, no caso de perda total, cessa no momento em que a empresa de seguros coloque à disposição do lesado o pagamento da indemnização. Que, no caso em concreto ocorreu a 02-11-2020.
H) Assim, apenas poderá, o FGA, ser responsabilizado pelo pagamento de indemnização pela privação de uso do veículo, desde o dia 13-10-2020 até ao dia 02-11-2020, data em que o FGA colocou à disposição da Autora o pagamento da indemnização.
I)A perigosidade da não aplicabilidade deste normativo legal é um claro aproveitamento dos lesados de acidentes de viação em prolongar os processos, encaixando valores absolutamente exorbitantes e sem qualquer fundamento legal, levando a um claro enriquecimento sem causa! Que muitas vezes são superiores ao valor comercial de dois ou mais veículos iguais aos danificados.
J) Quando é certo que a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor. E, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal e a que teria nessa data não existissem danos (Cfr. n.ºs 1 e 2 do art.º 566.º do Código Civil).
K) Para tanto é notório um claro aproveitamento da Autora e intenção de prolongar a resolução do litígio que segundo ela lhe aproveitaria um valor de €35,78 por dia (conforme peticionado na p.i.) e que já à data da interposição a acção data da interposição da ação peticionava o valor de 20.0430,38 a título de privação de uso do veículo, quando valor comercial do seu veículo (o bem danificado) à data do acidente era de cerca de €1.500,00.
L) Pois, resulta dos factos assentes, que após a comunicação do FGA a disponibilizar-lhe o valor indemnizatório, datada de 02-11-2020, a Autora apenas em 15-04-2021, ou seja, mais de 5 meses decorridos desde a comunicação do FGA, informou não concordar com o valor indemnizatório proposto.
M) Salientando-se ainda que, com esta demora, a própria Autora contribuiu de forma voluntária para o agravamento dos danos, que nos termos do disposto no Art.º 570º do CC, a indemnização a fixar à Autora, deverá ser excluída, pois não poderá o FGA ser responsabilizado pela mora da Autora, na resposta à sua proposta, sob pena de esta beneficiar de um enriquecimento ilícito.
N) A douta sentença recorrida ao fixar os montantes indemnizatórios nos termos descritos, a título de privação de uso do veículo da A., violou, assim, o disposto nos n.ºs 1 e 2 do Art.º 566º e Art.º 570º, ambos do Código Civil e n.º 2 do Art.º 42º do DL 291/23007 de 21.08.
Termos em que,
Revogando-se a douta sentença recorrida, no âmbito delimitado pelo objeto do presente recurso, se fará, como sempre, JUSTIÇA.

ZURICH INSURANCE PLC apresentou contra-alegações pronunciando-se pela improcedência do recurso interposto pela Autora.
O MINISTÉRIO PÚBLICO, em representação do Réu ausente, N, vem nos termos do disposto nos artigos 21.º, n.º 1 e 638.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, e da alínea b) do n.º 1 do art.º 4.º, e da alínea c) do n.º 1 do art.º 9.º, ambos do Estatuto do Ministério Público, veio apresentar contra alegações pugnando também pela sua improcedência, devendo manter-se a sentença recorrida.

II- OS FACTOS

Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 22/12/2019, pelas 19h00, o veículo ligeiro de passageiros de marca Lancia, modelo 1.1 Elegant, com a matrícula …-MU, de 1998 (doravante, veículo MU), propriedade e conduzido pela Autora, circulava na Rua da Liberdade, freguesia de Baixa da Banheira, concelho de Moita, distrito de Setúbal, no sentido Norte-Sul.
2. No mesmo dia e hora, o veículo ligeiro de passageiros com matrícula …-UJ (doravante, veículo UJ), propriedade e conduzido pelo 1.º Réu, circulava na Rua Sacramento Monteiro, no sentido Este-Oeste.
3. No entroncamento entre a estrada em que seguia o veículo UJ com a Rua da Liberdade, existe um sinal vertical B2 – STOP, para o sentido de marcha seguido por este veículo.
4. O 1.º Réu não parou o seu veículo no sinal STOP existente na via e, apresentando-se do lado esquerdo da Rua da Liberdade, atravessou o seu veículo à frente do veículo MU.
5. Nessa sequência, deu-se o embate entre a frente do veículo MU e a frente lateral direita do veículo UJ, tendo o ponto de colisão ocorrido no meio da estrada da Rua da Liberdade.
6. Em consequência directa e necessária do acidente, o veículo MU ficou com a frente danificada.
7. Logo após o acidente, a Autora e o 1.º Réu preencheram e assinaram a Declaração Amigável de Acidente Automóvel (“DAAA”), tendo o 1.º Réu feito constar da mesma que o veículo UJ estava segurado junto da 2.ª Ré, através da apólice n.º …3.
8. A apólice n.º …3 foi emitida em 18/07/2019 e anulada em 18/10/2019, a pedido do 1.º Réu.
9. No dia 23/12/2020, pelas 10h02, a pedido do 1.º Réu e para o veículo UJ, foi emitida pela 2.ª Ré a apólice n.º …9.
10. À data do acidente a Autora havia transferido a responsabilidade civil relativamente ao veículo MU para a Companhia de Seguros Tranquilidade S.A..
11. No dia 23/12/2019, o sinistro foi comunicado a ambas as seguradoras, acompanhado das correspondentes versões da declaração amigável.
12. A 2.ª Ré deu autorização à seguradora da Autora para regularizar por sua conta o sinistro, ao abrigo da Convenção IDS.
13. Em 22/01/2020 e em 29/01/2020, a seguradora da Autora apresentou-lhe uma proposta de regularização do sinistro, no valor de €1.200,00, por considerar o veículo em situação de perda total.
14. Tal proposta teve como fundamento uma peritagem que avaliou fixou o valor de mercado do veículo em €1.300,00, o custo da reparação do veículo em €4.206,82 e o valor do salvado em €100,00.
15. Juntamente com a proposta, a seguradora da Autora comunicou-lhe que, uma vez que a proposta foi realizada por conta da sua congénere, no âmbito da Convenção IDS, em caso de discordância, a Autora poderia reclamar directamente junto da 2.ª Ré.
16. A Autora comunicou à sua Seguradora que não aceitava a proposta apresentada e encetou contactos com a 2.ª Ré.
17. Após vários contactos da Autora com ambas as Seguradoras, em 09/09/2020, a 2.ª Ré comunicou à Autora que declinava a assunção da responsabilidade pelo sinistro, pelo facto de a apólice n.º …9, relativa ao veículo com matrícula …-UJ, apenas ter sido emitida no dia seguinte ao do acidente.
18. A Autora encetou então contactos com o 3.º Réu.
19. Por carta datada de 02/11/2020, o 3.º Réu declarou à Autora que, concluída a instrução do processo, considerava-se demonstrada a sua responsabilidade indemnizatória e que iria emitir um recibo de indemnização no valor de €1.200,00, referente à decisão de considerar o veículo em situação de perda total.
20. Por carta datada de 15/04/2021, a Autora informou o 3.º Réu que não aceitava a proposta de indemnização no valor de €1.200,00, uma vez que o veículo era passível de reparação pelo valor de €2.150,00.
21. Por mensagem de correio electrónico de 06/05/2021, o 3.º Réu informou a Autora que, após análise do relatório de peritagem, tinha concluído como sendo correcta a decisão de considerar o veículo em situação de perda total, mas, divergindo no valor venal atribuído ao mesmo, fixado em €1.521,00, disponibilizaria uma indemnização no valor de €1.421,00.
22. O veículo da Autora encontra-se imobilizado desde a data do acidente, sem condições para circular.
23. A reparação do veículo da Autora é no montante de €2.150,00, acrescido do IVA.
24. Em consequência do acidente, entre o dia 24/12/2019 e o dia 02/01/2020, a Autora alugou um veículo automóvel.
25. Pelo aluguer do veículo automóvel, a Autora pagou €321,56.
26. A Autora reside no Vale da Amoreira, concelho da Moita, e trabalha no concelho do Barreiro.
27. A Autora utilizava o veículo automóvel para as deslocações diárias casa-trabalho-casa, compras e necessidades quotidianas.
28. Após 02/01/2020, a Autora passou a deslocar-se em transportes públicos ou de boleia com amigos.

Foi dado como “não provado” o seguinte:
O custo de aluguer de um veículo equivalente ao da Autora é de €35,78/dia.

III- O DIREITO

Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, as questões a decidir são as seguintes:

1- RECURSO DA AUTORA
a) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
b) Valor da indemnização a título de privação do uso do veículo
2- RECURSO DO FGA
Período de tempo no qual é devido o pagamento da indemnização pela privação do uso do veículo e valor dessa indemnização

1-a) A Autora impugna a decisão sobre a matéria de facto no respeitante ao facto dado como “não provado”, com o seguinte teor “O custo de aluguer de um veículo equivalente ao da Autora é de €35,78/dia”.
Alega a Apelante que “na sequência do acidente, entre o dia 24/12/2019 e o dia 02/01/2020, a A. alugou um veículo automóvel e pelo aluguer pagou a quantia de € 321,56 (Factos provados 24. e 25.) Para prova destes factos a A. juntou factura relativa ao aluguer de um Renault Clio durante 9 dias (doc. 22 junto com a petição inicial) na qual resulta o valor do aluguer dia como €35,73 (valor total: 9 dias). Ora, de acordo com as regras da experiência comum facilmente se alcança que o veículo alugado, Renault Clio, é um veículo com características semelhantes ao veículo sinistrado, um Lancia Y10, pouco importando se ambas têm a mesma matrícula ou antiguidade para considerar o custo dia de um veículo “equivalente” ao imobilizado.”
Da sentença recorrida consta a seguinte motivação com base na qual o facto foi considerado como “não provado”:
“O facto dado como não provado resultou da falta de prova quanto ao mesmo. Efectivamente, a única prova apresentada nessa matéria foi a factura relativa ao aluguer de um Renault Clio durante 9 dias (doc. 22 junto com a petição inicial) e, mesmo nessa, o valor de aluguer diário é de €32,66 (€26,55 + 23% IVA) sem contemplar valores extra, e de €35,73 (valor total de €321,56/9 dias) se se tiver em consideração os valores extra. A tal acresce que o veículo, por esta alugado, não poderá ser considerado como equivalente ao seu, pois, de acordo com a descrição do mesmo na factura (matrícula e quilometragem) e as características do veículo da Autora que resultam das suas declarações e dos documentos juntos aos autos, será necessariamente mais recente que este último.”
Importa então analisar se o único elemento de prova apresentado pela Autora – a referida factura relativa ao aluguer de um Renault Clio durante 9 dias (doc. 22 junto com a petição inicial) na qual resulta o valor do aluguer dia como €35,73 – se constitui prova suficiente de que o custo de aluguer de um veículo equivalente ao da Autora é de €35,78/dia.
Cremos que tal documento não constitui prova suficiente.
Desde logo, como foi referido pelo Tribunal a quo, é duvidoso que o veículo alugado seja equivalente ao veículo da Autora, dado que, tal como resulta dos elementos constantes nos autos, este é mais antigo e, por conseguinte, tal circunstância teria consequências ao nível do custo do respectivo aluguer.
Por outro lado, o simples facto de a Autora ter pago a referida quantia pelo aluguer de um veículo por 9 dias, tal não prova que o custo do aluguer de um veículo equivalente ao da Autora tivesse tal valor, pois não sabemos se a Autora teve a preocupação de procurar o melhor preço do mercado. Por outro lado, ainda, resulta da experiência comum que, certamente por um período maior, o custo diário seria menor. De resto, verificamos pela data em que decorreu o aluguer, que este se refere a um período festivo em que, habitualmente, os preços são superiores, face à maior procura. Por todas essas razões, afigura-se que bem julgou a primeira instância em dar como não provado o facto.
Improcede, pois, o recurso nesta parte, mantendo-se o decidido quanto à matéria de facto.

b) A Apelante não concorda ainda com o decidido, quanto ao valor diário atribuído pela sentença recorrida, a título de indemnização pelo dano da privação do uso do veículo.
A este propósito pode ler-se na sentença recorrida:
No que se refere à imobilização do veículo desde a data do acidente, em virtude da falta de reparação, afigura-se hoje maioritário o entendimento de que a privação do uso de um veículo em consequência de danos causados por acidente de viação importa para o seu proprietário a perda de uma utilidade, nomeadamente, a de nele se deslocar quando e para onde entender, e que, em si mesma considerada, tem valor pecuniário. Constituindo, assim, o uso uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, é meramente consequente a conclusão de que a sua privação constitui um dano patrimonial indemnizável.
Tendo em conta os factos provados quanto ao uso que a Autora dava ao seu veículo e que esse uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, mas considerando também que a Autora alugou um veículo durante os primeiros 9 dias que se seguiram ao acidente e que, depois, resolveu o seu problema de transporte (ainda que com grandes inconvenientes) passando a utilizar transportes públicos e ajuda de amigos, deve ser fixada uma indemnização recorrendo à equidade.
O montante global de €20.430,38 peticionado pela Autora, assente no valor de aluguer de um veículo equivalente que não logrou provar, mostra-se claramente desproporcional, ultrapassando em mais de nove vezes o valor da reparação do veículo e em mais de treze vezes o valor venal máximo que foi atribuído ao próprio veículo (pelo 3.º Réu) - €1.521,00.
O Regulamento das Custas Processuais fixa o valor de €0,20/km como valor de compensação por deslocações de testemunhas e de €0,40 como valor de compensação por deslocações profissionais de liquidatários, administradores e encarregados de venda. Por sua vez, o valor das ajudas de custo, para o sector público, corresponde a 0,36€/km pelo transporte em veículo próprio.
A Autora apenas alegou e logrou provar que faz como deslocações profissionais uma distância de cerca de 13km diários (distância entre o Vale da Amoreira e o Barreiro, multiplicado por dois – ida e volta), o que acontecerá apenas nos dias úteis, acrescidas necessariamente outras a título pessoal.
Pelo que, ponderados todos esses factos e valores, na ausência de melhor critério, o Tribunal considera que o valor de €5,00 diários é o valor adequado e proporcional para compensação da Autora relativamente ao dano de privação de uso do seu veículo automóvel, a ser contabilizado desde a data de 02/01/2020, já que desde a data do acidente até essa data a indemnização corresponde ao valor gasto com o aluguer do veículo de substituição - €321,56.(…)”.
Quid juris?
Não está em discussão, tese que foi aceite pela sentença recorrida, que a mera privação do uso do veículo gera sempre um dano que é susceptível de avaliação pecuniária.
Com efeito, não obstante as divergências existentes na jurisprudência e na doutrina sobre esta questão, seguimos o entendimento de que a mera impossibilidade do uso e fruição do bem constitui em si mesma um dano indemnizável, que será calculado "pelo recurso à equidade, com vista a encontrar aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa".[1]
Não estando em causa o direito à indemnização nem o recurso á equidade, o que a Apelante coloca em questão é o valor atribuído de € 5,00 diários, como base de cálculo da mesma indemnização.
Coloca-se, por isso, a questão de saber como fixar o respectivo montante indemnizatório.
Paulo Mota Pinto[2] propõe o seguinte critério: “Pensamos que o dano da privação do uso deverá ser quantificado num valor que pode ser obtido de uma de duas formas; ou (como de “cima para baixo”) a partir dos custos de um aluguer durante o lapso de tempo em causa, mas “depurados” – bereinigte Mietkosten que excluem o lucro do locador, e custos gerais como os gastos com a manutenção da frota, as provisões para períodos de paragem dos veículos, as amortizações, etc. (no direito alemão os valores constantes das referidas tabelas rondam cerca de um terço dos custos de aluguer normalmente praticados); ou (como que “de baixo para cima”), designadamente, para viaturas de profissionais e empresas, a partir dos custos de capital imobilizado necessário para obter a disponibilidade de um bem, como aquele durante o período de tempo necessário (por ex., os custos necessários para constituir uma reserva de um bem como o que está em causa)”.
Evidentemente que, para se usarem estes mecanismos, as partes têm de fornecer factos para que o tribunal possa chegar a alguma conclusão.
Todavia, ainda que o tribunal não disponha de elementos suficientes para calcular a diferença patrimonial entre a situação actual e a que o lesado teria se não tivesse ocorrido o evento, como ocorre no presente caso, sempre o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar uma indemnização, nos termos previstos no artigo 566.º, n.º 3 do CCivil, como ficou referido.
A equidade, nas prudentes palavras do Supremo Tribunal de Justiça “é a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei devendo o julgador ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida”.[3]
Ora, tendo em conta esses parâmetros, afigura-se-nos que o valor encontrado pelo Tribunal a quo, de €5.00, diários, é, razoável e equilibrado.
Improcede o recurso da Autora e este respeito  

2- Importa agora apreciar a questão suscitada no recurso do FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Esta circunscreve-se à questão de saber qual o período temporal dentro do qual é devido o pagamento da indemnização pela privação do uso do veículo.
Importa recordar aquilo que a sentença recorrida discorreu, a este propósito:
No caso, o efeito jurídico pretendido pela Autora (cfr. artigo 581.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) é ser indemnizada pela 2.ª Ré por todo o tempo decorrido entre ter assumido a responsabilidade e, afinal, não a assumir, consequência da sua conduta negligente. E é isso a que tem direito, embora com fundamentação jurídica diversa daquela que utilizou, mas que estava na disponibilidade do Tribunal (cfr. artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). (…)
Os danos que para si decorreram dessa conduta da 2.ª Ré foi a privação de uso do seu veículo até à data de comunicação da inexistência de seguro válido - 09/09/2020 - já que, reitera-se, se a 2.ª Ré tivesse diligenciado de imediato pela confirmação da (in)existência de seguro válido e eficaz, a Autora poderia também de imediato accionar o 3.º Réu e, mesmo não havendo entendimento com este, instaurar a presente acção e ter o seu veículo reparado com muito maior antecedência.
Assim, é a 2.ª Ré, e não o 1.º nem o 3.º Réus, a responsável pela indemnização à Autora pela privação do uso de veículo durante o referido período porque foi a sua actuação negligente e ilícita a causal desse dano.
E assim veio a condenar o FGA, pela indemnização pela privação do uso do veículo “num valor de €4.435,00 (887 dias (calculados entre 09/09/2020 até à data de hoje)*€5,00)”, ou seja, até  13 de Fevereiro de 2023, data da sentença.
Perante esta decisão, conclui o Réu FGA:
“(…)foi a partir da data de 09-09-2020 que a Ré Zurich declinou a sua responsabilidade, no entanto, a Autora apenas efectuou a participação do sinistro ao FGA em 13-10-2020, (mais de um mês após aquela comunicação) data em que o FGA teve conhecimento do acidente, pelo que não lhe poderão ser imputados danos ou, neste caso, privação de uso de um veículo em data anterior ao momento em que toma conhecimento do acidente e a partir do qual lhe possam vir a ser assacadas responsabilidades. Assim, a dever-se a privação de uso de veículo à Autora, por parte do FGA, tem de ser a partir do dia 13-10-2020, data em que a A. comunica o sinistro ao FGA e não da data da comunicação da Zurich à Autora.
Por outro lado, conforme comprovado pelos factos provados 19. e 20., o FGA em 02-11-2020, concluiu a instrução do processo e comunica à Autora que considerava demonstrada a sua responsabilidade indemnizatória e que iria emitir um recibo de indemnização no valor de €1.200,00, referente à decisão de considerar o veículo em situação de perda total.
 E, como dispõe o n.º 2 do Art.º 42º do DL 291/2007 de 21.08, a obrigação de disponibilizar um veículo de substituição, no caso de perda total, cessa no momento em que a empresa de seguros coloque à disposição do lesado o pagamento da indemnização. Que, no caso em concreto ocorreu a 02-11-2020. Assim, apenas poderá, o FGA, ser responsabilizado pelo pagamento de indemnização pela privação de uso do veículo, desde o dia13-10-2020, até ao dia 02-11-2020, data em que o FGA colocou à disposição da Autora o pagamento da indemnização.”
Quid juris?
Comecemos por analisar a data em que deve considerar-se o início da obrigação de indemnizar por parte do FGA.
Deverá contar-se desde a data considerada na sentença - 09-09-2020 – data em que a Ré ZURICH comunicou à Autora que declinava a sua responsabilidade indemnizatória, ou a partir do dia 13-10-2020, data em que a A., alegadamente, comunica o sinistro ao FGA. Cremos que o dever de indemnizar os danos, uma vez comprovado, abrange os danos sofridos pelo lesado, desde a data em que se produziram não dependendo essa obrigação da data da comunicação do sinistro, a menos que se demonstre negligência ou má- fé do lesado que contribua para o agravamento desses anos que fundamente a aplicabilidade do disposto no art.º 570.º do Código Civil. Não foi manifestamente o caso. Decorreu apenas cerca de um mês, desde a data em que a Ré ZURICH comunicou à Autora que declinava a sua responsabilidade indemnizatória e o dia 13-10-2020, data em que o FGA refere ter recebido a comunicação do sinistro, por parte da Autora. Não há qualquer fundamento legal para subtrair ao dever de indemnizar os danos sofridos pela Autora, aqueles que foram produzidos durante este período de um mês.
Já quanto à data até à qual deverá ser suportado o pagamento da indemnização cremos que já não poderá manter-se a decisão.
Como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-02-2023[4]:
“Com efeito, não é exigível ao lesado que disponha de liquidez para efetuar a reparação à sua custa e fique à espera de ser ressarcido monetariamente pelo responsável pela indemnização.
Não tendo dinheiro suficiente para proceder à reparação de imediato, ficando sem a disponibilidade do veículo enquanto espera pela resolução do litígio, não lhe resta outra alternativa senão aguardar pela decisão com o veículo por reparar.
Não obstante não obrigada a reparar o veículo, impunha-se, no mínimo, à Autora que atuasse com a diligência adequada a ver decidida a questão litigiosa que mantinha com a seguradora, de forma a conseguir que, no mais curto espaço de tempo, se definisse se esta estaria ou não legalmente obrigada a indemnizá-lo, em especial através da reparação do veículo sinistrado.
Ora, emerge dos autos que, entre a data em que a Ré comunicou à Autora que não assumia a responsabilidade pelo sinistro, em 25 de janeiro de 2018, e a data da propositura da ação, no dia 20 de março de 2019, decorreu mais de um ano.
Em tal contexto não pode deixar de se ter em conta que a Autora contribuiu, também, em certa medida, para o agravamento dos danos que da paralisação advieram.”

Como também se discorreu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-01-2013[5], ”a posição da responsável não legitima a inércia e total passividade do lesada perante os danos, sobretudo nos casos de estes estarem sujeitos a evolução expansiva, como é o do dano da privação de uso de veículo danificado ou inutilizado, que vai aumentando com o tempo até à entrega do veículo reparado ou de veículo de substituição ou de disponibilidades monetárias adequadas para a aquisição de outro equivalente. Temos dificuldade em enquadrar este comportamento da Autora no âmbito do artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil, fundamento esgrimido na sentença recorrida para a redução da quantia da indemnização que considera dever ser atribuída, e que encontra eco nalguma jurisprudência. No sentido da decisão recorrida, podem consultar-se os acórdãos do STJ de 29.11.2005, p. 3122/05, in CJ, 187, Tomo III/2005, e de 22.6.2004, p. 2133/2004, citado no primeiro aresto, e o acórdão do STJ de 16.4.2013, p. 7002/08.7TBVNG.P1.S1, in www.dgsi.pt).
Parece-nos que o facto objetivo de o lesado pedir indemnização pela privação do uso de veículo sinistrado algum tempo depois do sinistro não é suficiente para se considerar que tal atuação constitui um facto culposo que concorre para o agravamento dos danos traduzidos nos custos decorrentes da privação do uso (artigo 570.º do Código Civil).
Mas saindo da órbitra da culpa, não se pode perder de vista que a indemnização tem por finalidade ressarcir o lesado dos prejuízos que, na realidade, sofreu, não podendo conduzir a um gritante desequilíbrio da prestação relativamente ao dano, designadamente não podendo servir para um enriquecimento injusto do lesado à custa do lesante, com a indemnização a funcionar como um mero «taxímetro».
Há, assim, pelos princípios que enformam o julgamento equitativo e bem assim atendendo à cláusula geral da boa-fé que impera no nosso sistema jurídico, que encontrar um ponto intermédio situado entre o período de paralisação que se verificaria se o veículo fosse de imediato reparado e o largo período em que o automóvel esteve, também com a contribuição do lesado, imobilizado até hoje.
E o Tribunal a quo encontrou-o, e bem, no recurso à equidade nos termos estabelecidos no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, quando desconsiderou o período de tempo decorrido entre 25.3.2018 (60 dias após o conhecimento pela Autora da posição da Ré) e 20.3.2019 (data da propositura da ação).
Para equacionar os 60 dias, o Tribunal recorrido conclui ainda que não seria razoável pretender que a Autora intentasse a presente ação no dia seguinte ao do conhecimento da posição da seguradora, considerando razoável ponderar o prazo de 30 dias para a preparação da mesma, acrescido de 30 dias, correspondentes ao prazo para decisão da entidade administrativa sobre o seu requerimento de apoio judiciário.
Ora aplicando este raciocínio elaborado pelo Supremo Tribunal de Justiça, ao caso que ora nos ocupa, estamos perante uma situação semelhante à ali relatada. Ou seja, tendo o FGA declarado à Autora, em 2 de novembro de 2020, que finda a instrução do processo, iria emitir um recibo no valor de €1200,00, referente à decisão de considerar o veículo em situação de perda total (cfr. ponto 19.º dos factos provados), a Autora, só em 15 de abril de 2021, informa o FGA que não aceita a proposta de indemnização e só em 12 de agosto de 2021 dá entrada em juízo a petição inicial.
Assim, aplicando aqueles princípios que enformam um julgamento equitativo e bem assim, atendendo à cláusula geral de boa-fé que impera no nosso sistema jurídico, tal como bem lembra o STJ, ao período a considerar para efeitos de cálculo da indemnização deverá ser descontado o período que vai de 2 de Janeiro de 2021 (tendo por razoável o prazo de 60 dias também considerado pelo STJ, para efeitos de preparação da acção) até 12 de Agosto de 2021.
Assim, ao período que serve de base ao cálculo da indenização elaborado pela primeira instância deverá descontar-se 223 dias ao total de 887 dias, referidos na sentença recorrida.
Obtém-se, pois, como base de cálculo 664 dias – desde 09-09-2020 até à data da sentença em 13-02-2023, deduzidos os referidos 223 dias- o que multiplicado por €5,00, diários, resultaria numa indemnização por privação do uso do veículo de € 3.320,00. A este valor acresceria o montante apurado, até 6 de março de 2023, data em que o Fundo de Garantia Automóvel disponibilizou a quantia indemnizatória para reparação do veículo. Este valor encontra-se depositado nos autos, visto que conforme alegado pelo FGA, oferecido o valor à Autora esta não o quis receber.
Note-se que a título de indemnização pela privação do uso do veículo, a Autora já tem direito a receber, por parte da Zurich Insurance PLC, o valor de € 1.576,56. Somando este valor àquele, obtém-se um valor de € 4.896,56. Trata-se de um valor desajustado que a ser aplicado de forma cega, ultrapassaria em muito a finalidade e o objectivo das normas legais relativas à obrigação da indemnização por danos causados. Socorrendo-nos mais uma vez das sábias palavras do Supremo Tribunal de Justiça,” a indemnização tem por finalidade ressarcir o lesado dos prejuízos que, na realidade, sofreu, não podendo conduzir a um gritante desequilíbrio da prestação relativamente ao dano, designadamente não podendo servir para um enriquecimento injusto do lesado à custa do lesante, com a indemnização a funcionar como um mero «taxímetro».
Com efeito, a ser fixado o valor que resultaria do cálculo supra mencionado ainda que descontando o período nos termos supra exposto, ainda assim tal valor resultaria num chocante desequilíbrio entre a indemnização e o dano, pois resultaria num valor que seria suficiente para adquirir várias vezes um veículo equivalente ao da Autora (cerca de € 1500,00, conforme ponto 21 dos factos assentes).
Este desequilíbrio não passou despercebido à sentença recorrida onde se pode ler que “O montante global de €20.430,38 peticionado pela Autora, assente no valor de aluguer de um veículo equivalente que não logrou provar, mostra-se claramente desproporcional, ultrapassando em mais de nove vezes o valor da reparação do veículo e em mais de treze vezes o valor venal máximo que foi atribuído ao próprio veículo (pelo 3.º Réu) - €1.521,00.”
Por isso, com recurso ao disposto no art.º 566.º n.º 3 do Código Civil, haverá que fixar o valor da indemnização a pagar pelo FGA pelos danos resultantes da privação do uso do veículo, em montante que, de acordo com os mencionados princípios da equidade e da boa – fé, não poderá ultrapassar o valor fixado à Ré ZURICH, ou seja, o valor de €1.576,56.Ainda assim, a Autora ficará beneficiada pois como indemnização pela privação do uso do veículo, a Autora recebe duas vezes o valor desse mesmo veículo.
Fixa-se assim, em €1.576,57, o valor total a pagar pelo FGA a título de indemnização pela privação do uso do veículo sendo um valor superior àquele que resultaria da pretensão do Apelante (de 13-10-2020 até ao dia 02-11-2020)[6] que seria de apenas €200,00 (20 dias x €10,00/dia)
Procede, pois, parcialmente, o recurso do FGA.


III- DECISÃO

Face ao exposto, acordamos nesta 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar:
1- improcedente o recurso da Autora;
2- Parcialmente procedente o recurso do Fundo de Garantia Automóvel, fixando a indemnização a pagar por este à Autora, a título de indemnização pela privação do uso do veículo, em € 1.576,57, nesta medida se alterando a alínea b) do dispositivo da sentença recorrida.
3- Fica ainda suprimida a alínea c) da sentença recorrida.
Custas do recurso da Autora por esta e custas do recurso do Réu, em partes iguais, por Autora e Réu.

Lisboa, 23 de Novembro de 2023
Maria de Deus Correia
Teresa Pardal
António Santos
_______________________________________________________
[1] Vide, apenas a título exemplificativo o recente acórdão do STJ de 20-01-2022, Processo 6816/18.4T8GMR.G1-S1, disponível em ww.dgsi.pt
[2] Interesse Contratual Positivo e Interesse Contratual negativo, Vol. I, Coimbra Editora, 2008, p.594-596
[3] Acórdão do STJ de 10-02-1998, CJ, Ano VI, Tomo I, p.65.
[4] Processo 2419/20.1T8LRA.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[5] Processo n.º 2395/06.3TJVNF.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[6] Vide conclusão H) do recurso do FGA.