Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4401/15.1T8LSB.L1-2
Relator: MAGDA GERALDES
Descritores: SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CAUSA PREJUDICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO PROVIDA
Sumário: I–Uma causa é prejudicial em relação a outra quando o julgamento ou decisão da questão a apreciar na primeira possa influir ou afectar o julgamento ou decisão da segunda, nomeadamente modificando ou inutilizando os seus efeitos ou mesmo tirando razão de ser à mesma.
II–Estando-se perante uma acção de reivindicação de propriedade de um imóvel, que se enquadra no âmbito das acções de condenação onde esta pressupõe a prévia declaração do direito violado, caracterizada “pela cumulação aparente de dois pedidos, o primeiro, tão só formal, de declaração ou reconhecimento do direito arguido e substancial, o segundo, de condenação na entrega do reivindicado”, impõe-se a suspensão da instância em tal acção até que se mostre decidido o processo referente à atribuição de tal imóvel como casa de morada de família iniciado por um dos ex-cônjuges ainda no âmbito da acção de divórcio.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


Elisa ...., identificada nos autos, interpôs recurso de apelação do despacho que determinou a suspensão da instância nos autos de acção de condenação sob a forma de processo ordinário que intentou contra Ricardo ...., também identificado nos autos, e onde pretende ver reconhecido o seu direito de propriedade e consequente restituição da fracção autónoma do imóvel descrito nos autos.

Em sede de alegações apresentou as seguintes conclusões:

“1º-A Apelante é dona e legítima proprietária da fração “O”, correspondente ao 7º andar Direito, do prédio urbano sito no n.º …. da Rua ……, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº ……. da freguesia do Lumiar e inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Lumiar sob o artigo …….

2º-Intentou em 13/02/2015 a presente ação de condenação com processo ordinário com vista a:   
a)ver reconhecido o seu direito enquanto legitima proprietária da fração “O” correspondente ao 7º andar Dtº do nº …… da Rua ………, em Lisboa,
b)ser-lhe restituído, de imediato, o supra identificado imóvel livre e devoluto de pessoas e bens,
c)ser-lhe paga, uma indemnização pelos prejuízos causados pela ocupação ilegítima do imóvel pelo R..

3º-O R., desprovido de qualquer título que o legitime para o efeito, sem o consentimento da Apelante, enquanto única e exclusiva proprietária do referido imóvel, e sem pagar qualquer contrapartida pela utilização que dele tem feito, tem vindo, desde fevereiro de 2002, a ocupar supracitado imóvel obrigando a Apelante, que não possui qualquer outra habitação própria, a recorrer, desde essa data, à boa vontade de familiares e amigos para se albergar em casa destes.

4º-De facto a Apelante, na aludida data, foi forçada a sair de sua casa na sequência do comportamento do R. que deu origem ao divórcio que correu termos com o nº de processo …….. no 2º Juízo de Família e Menores do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Seixal, com decisão transitada em julgado em 31/10/2011, e no qual não foi estabelecido qualquer acordo ou formulado qualquer pedido, no tocante à casa de morada de família.

5º-Acresce que o R. foi por diversas vezes instado quer pela Apelante, quer pela filha do casal, a restituir do imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens.

6º-Sobrevém que o R. nunca, até maio de 2015, na sequência da interposição da presente ação por banda da Apelante, tentou regularizar a sua permanência no imóvel, altura em que interpôs procedimento não judicial para atribuição da casa de morada de família junto da Conservatória do Registo Civil de Lisboa, cuja decisão se encontra pendente.

7º-Na sequência deste processo entendeu o Meritíssimo Juiz a quo suspender a presente instância, até trânsito em julgado do procedimento instaurado pelo R, por considerar existir uma relação de prejudicialidade entre as questões em apreço.

8º-Ora, não pode a Apelante, salvo melhor opinião, aceitar a teoria preconizada pelo Mmo. Juiz a quo, ao considerar a ação interposta pelo R. como ação prejudicial em relação à ação interposta pela Apelante, uma vez que considera que o que se pretende em via principal é o reconhecimento da propriedade à Apelante, o que em nada pode afetar ou prejudicar a pretensão do R. que não detém qualquer legitimidade em habitar o imóvel.

9º-Efetivamente, segundo o Prof. Manuel de Andrade, só existe verdadeira prejudicialidade e dependência quando na primeira causa se discute, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental.

10º-Acresce que o R. nada fez para regularizar a sua situação durante a pendência do divórcio – pois não reclamou a atribuição da casa de morada de família, nem tão pouco o fez após o trânsito e julgado do divórcio, tendo apenas intentado o procedimento administrativo com vista à atribuição da casa de morada de família após a propositura da ação principal pela Apelante, aí alegando nos mesmos termos dos constantes da contestação à ação principal, recorrendo a estes meios como forma meramente dilatória.

11º-Sobrevém que a decisão a ser proferida nos presentes autos no sentido do pretendido pela ora Apelante, sendo-lhe reconhecida a propriedade e, em consequência, conferindo-lhe o direito à restituição imediata do imóvel e a uma eventual indemnização pelo período de ocupação indevida do imóvel, causará claramente um grave prejuízo ao R. com o agravamento de pagamento de juros até à data da entrega do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens, bem como à ora Apelante que, com os seus parcos recursos, terá de continuar a ter o prejuízo de contribuir para as despesas inerentes à propriedade do imóvel do qual é proprietária e do qual não pode usufruir, bem como para as despesas dos amigos e familiares que lhe dão abrigo.

Pelo supra exposto pede-se provimento do presente recurso considerando a Apelante que deve ser revogado o despacho recorrido e determinado que os autos prossigam os seus termos normais fazendo assim Vexas JUSTIÇA”

Não foram apresentadas contra-alegações.

Questão a apreciar: suspensão da instância.

FUNDAMENTAÇÃO.

OS FACTOS.

O despacho recorrido é do seguinte teor:

ELISA .... instaurou a presente ação de reivindicação de propriedade contra RICARDO ...., alegando, em suma, que é dona e legítima proprietária da fração autónoma identificada pela letra “O”, correspondente ao 7º andar direito do prédio urbano sito no nº ….. da Rua …….., em Lisboa.
Tal fração vem sendo ocupada pelo réu sem que este disponha de título válido que legitime.
Conclui pedindo que o réu seja condenado a restituir-lhe a fração, livre e devoluta de pessoas e bens, e ainda a pagar-lhe uma indemnização decorrente dessa ocupação ilegítima.
Na contestação o réu alegou, além do mais, que tem direito a que a fração lhe seja atribuída a título de casa de família e que, para o efeito, deu entrada na competente conservatória do registo civil, de um procedimento no qual pede que lhe seja atribuída a casa de morada de família, sita na morada acima indicada.
Resulta da certidão junta a fls. 226-239 que:
-o aqui réu instaurou na Conservatória do Registo Civil de Lisboa o adequado procedimento tendente a que lhe seja atribuída a casa de morada de família, sita na fração autónoma nestes autos reivindicada pela autora;
-tal procedimento ainda se encontra pendente.
Dispõe o art. 269º, nº 1, al. c), do C.P.C., que «a instância suspende-se (...) quando o tribunal ordenar a suspensão ou houver acordo das partes».
Nos termos do art. 272º, nº 1, do C.P.C., «o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado».
Segundo a comunis opinio, uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda (cfr. ALBERTO DOS REIS, Comentário, 3º Vol., p. 268, B.M.J. 75º, 515, 244º, 239 e 299º, 280). Enquanto causa de suspensão da instância, a relação de dependência entre uma ação e outra já proposta assenta no facto de nesta se discutir em via principal uma questão essencial para a decisão da primeira (B.M.J. 378º, 703), de tal modo que a decisão dessa ação – depende – é atacada ou afetada pelo julgamento emitido na outra - prejudicial (B.M.J. 314º, 267, C.J. XIV, 5º, 123, § 5.1), pois que nesta se aprecia questão cuja resolução pode influir na, ou modificar a, situação jurídica que tem de ser considerada para a resolução do outro litígio (RODRIGUES BASTOS, Notas ao Cód. Proc. Civil, vol. II, pág. 42).
Tal sucede sempre que nela se ataque o ato ou facto jurídico que é pressuposto necessário desse pleito (C.J., VII, 4º, 210 e X, 2º, 65).
A ratio do art. 272º do C.P.C. é a economia e coerência de julgados (cfr. ALBERTO DOS REIS, ob. cit., p. 272 e B.M.J. 299º, 282).
Tendo o poder vinculado (B.M.J. 275º, 270) que faculta, de sobrestar na decisão, o fim de prevenir ou evitar que a mesma questão possa vir a ser objeto de decisões desencontradas, incoerentes ou antagónicas, ou seja, a contradição de julgados (B.M.J. 227º, 221 e 258º, 212), é esse o critério pelo qual se deve orientar o uso dessa faculdade (C.J. XIV, 5º, 123, cit.).
Daí que, irrelevante, conforme orientação constante da jurisprudência, a prioridade da propositura (B.M.J. 289º, 233 e 335º, 351), haja lugar à suspensão da instância com fundamento na pendência de outra questão quando da decisão desta realmente dependa a resolução do conflito configurado naquela.
Postos estes considerandos, afigura-se-nos que a situação ora em apreço é, efetivamente, uma daquelas em que se verifica, nitidamente, a tal relação de prejudicialidade e em que está em causa a possibilidade de ocorrer, flagrantemente, uma contradição de julgados.
Na verdade, caso o aqui réu obtenha ganho de causa no procedimento que instaurou na Conservatória do Registo Civil de Lisboa e veja ser-lhe atribuído o direito à casa de morada de família sita na fração reivindicada, afetará necessariamente o julgamento a proferir nesta ação, a qual, nessa eventualidade, perderá a sua razão de ser, pois, então, disporá de título legítimo para a ocupação da fração.
Face ao exposto, determino a suspensão da presente instância até que se mostre decidido, com trânsito em julgado, o procedimento instaurado pelo réu na Conservatória do Registo Civil de Lisboa, no qual pede que lhe seja atribuído o direito à casa de morada de família sita na fração reivindicada.
Notifique.” – cfr. fls 242 a 243 dos autos.

O DIREITO.

Tal como consta do despacho recorrido, a ora recorrente instaurou a presente acção de reivindicação de propriedade, na data de 13.02.2015 – cfr. fls. 6 dos autos – contra Ricardo ...., alegando, em síntese, que é dona e legítima proprietária da fracção autónoma identificada pela letra “O”, correspondente ao 7º andar direito do prédio urbano sito no nº …… da Rua …………., em Lisboa, fracção que vem sendo ocupada pelo réu Ricardo sem que este disponha de título válido que legitime.

Resulta da certidão junta a fls. 226 a 239 dos autos que réu Ricardo instaurou na Conservatória do Registo Civil de Lisboa o adequado procedimento tendente a que lhe seja atribuída a casa de morada de família, termos do disposto no artº 5º, nºs 1-b) e 2 do DL 272/01, de 13.10, sita na fracção autónoma nestes autos reivindicada pela autora, na sequência de ter sido decretado o divórcio entre si e a ora recorrente.
Tal procedimento ainda se encontra pendente.

Dispõe o n.º 1 do artº 272º do CPC (aprovado pela Lei 41/13, de 26.06):
“1.-O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.”

No caso dos autos estamos perante uma suspensão da instância fundada na pendência de uma causa prejudicial.

De acordo com a fundamentação constante do Ac. do STJ de 18.11.2008, in proc. nº 08B3160, disponível in www.dgsi.pt, cuja actualidade se mantém por as normas processuais em causa (anterior artº279º e actual artº 272º) não divergirem na sua estatuíção, “Alberto dos Reis ensinava que as causas da suspensão podem agrupar-se em duas classes ou categorias: 1ª - Causas de suspensão legal; 2ª - Causas de suspensão judicial. Umas vezes é a lei que impõe a suspensão (casos do nº 1 a),b),d) do art 276º do CPC); outras vezes é o Juiz que, perante certa ocorrência, ordena a suspensão (caso do nº 1 c) do art 276ºe 279º, do CPC). (2) Ou seja, no caso de suspensão legal o juiz tem o dever de determinar a suspensão, logo que julgue verificada a circunstância a que a lei atribui esse efeito suspensivo, enquanto que no caso de suspensão judicial o juiz tem a faculdade de ordenar a suspensão, mas com as condicionantes postas no nº2 e 3 do art. 279º do CPC, ou seja, essa faculdade ou poder atribuído ao juiz está subordinado no seu uso pela observância do condicionalismo que a lei, a esse propósito, estipula, sendo, pois, um poder legal limitado. Diz, ainda o ilustre Mestre que uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode destruir o fundamento ou a razão de ser desta. (3) (…) ”

Assim, poderemos dizer que uma causa é prejudicial em relação a outra quando o julgamento ou decisão da questão a apreciar na primeira possa influir ou afectar o julgamento ou decisão da segunda, nomeadamente modificando ou inutilizando os seus efeitos ou mesmo tirando razão de ser à mesma.

No caso dos autos, estamos perante uma acção de reivindicação que se enquadra no âmbito das acções de condenação onde esta pressupõe a prévia declaração do direito violado.

Tal como se considerou no Ac. da RL datado de18.03.2010, in proc. 3541/06-2, disponível in www.dgsi.pt, e em caso semelhante ao dos autos:
“ (…) Esta acção caracteriza-se, precisamente, pela cumulação aparente de dois pedidos; o primeiro, tão só formal, de declaração ou reconhecimento do direito arguido; e substancial, o segundo, de condenação na entrega do reivindicado [2].
Esses dois pedidos estão, entre si, numa relação de meio para fim: o primeiro não passa, em boa verdade, de fundamento da acção, e em rigor, assim, de parte da respectiva causa de pedir - cfr. arts. 498.º, n.º 4.º, 342.º, n.º 1, e 1311.º, n.º 1, do Cód. Civ.[3].
E, a ser assim, como para nós o é, de que na acção de reivindicação devem formular-se dois pedidos (nos moldes expostos de dependência um do outro) - o de reconhecimento do direito do autor e o de entrega do reivindicado – daí deriva também que o primeiro pode considerar-se implícito no segundo [4]

Certo é que tendo sido intentada esta acção em que o A. pretende para além do reconhecimento do seu direito de propriedade (…) a restituição do imóvel livre e devoluto, há a registar uma situação excepcionada pela 1ª Ré, qual seja o seu direito a continuar a habitar a casa por entretanto ter intentado processo onde pede que lhe seja atribuída a casa de morada de família, por dela carecer, o que poderá integrar a excepção prevista no n.º 2, do apontado art.º 1311.º do Código Civil. (…) ”.

No caso dos autos, o tribunal a quo entendeu que a existência do processo para atribuição da  casa de morada de família, intentado pelo ora recorrido, poderia revelar-se como prejudicial à acção aqui intentada e assim determinou a suspensão da instância nestes autos, à luz do art.º 272º, nº 1 do CPC.

Ora, tal decisão não merece reparo.

A referida prejudicialidade tem de ser aferida em função da acção no seu conjunto, tanto na perspectiva do autor, como da defesa do réu, o que sucede neste caso.

Por outro lado, não é exigível que a acção prejudicial tenha de ser intentada antes da acção de que é dependente.

Como se refere no Ac. do STJ de 04.11.1997, in www.dgsi.pt, “é entendimento corrente que a acção prejudicial já deva estar intentada quando se determina a suspensão, mas não importa que o não estivesse ainda na data em que se intentou a causa dependente.”

Acresce que no caso em apreço, inexistem quaisquer indícios de que o processo de atribuição da casa de morada de família tenha sido intentado com o mero objectivo de retardar o andamento da acção de reivindicação, pois que desde há muito que o aqui recorrido tem vindo a pretender que lhe seja atribuída a casa de morada de família, o que se iniciou ainda no âmbito da acção de divórcio, como se constata pela leitura do requerimento apresentado na acção de divórcio e cópia do despacho que recaiu sobre tal requerimento – cfr. fls. 77 a 82 e 90 vº e 91 destes autos.

Assim sendo, não se mostra violado o disposto no art.º 272º, nº 1 do CPC, havendo lugar à suspensão da instância até que se mostre decidido o processo referente à atribuição da casa de morada de família, tal como decidido no despacho recorrido.

Improcedem assim, as conclusões das alegações de recurso, não merecendo o mesmo provimento, devendo manter-se a decisão recorrida.

DECISÃO:

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, ...ª Secção Cível, em:
a)–negar provimento ao recurso de apelação, confirmando o despacho recorrido;
b)–com custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.



LISBOA, 09.02.2017



Magda Geraldes
Farinha Alves
Tibério Silva

Decisão Texto Integral: