Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
31/13.0TVLSB.L1-8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
NEGLIGÊNCIA DA PARTE
ÓNUS PROCESSUAL
CONDUTA OMISSIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.Na apreciação dos requisitos da deserção da instância compete ao juiz averiguar se a conduta da parte é negligente, no sentido de lhe ser imputável, por o ato omissivo depender apenas da sua vontade. A montante deste juízo há que indagar se a conduta omissiva se traduz na falta de prática de ato que a lei imponha à parte (ónus processual) e se impede o prosseguimento da tramitação normal do processo ou se o ato omitido era absolutamente necessário para o seu prosseguimento.

2.Os ónus processuais estão previstos na lei, não assumindo tal natureza por mero efeito de advertência constante de despacho judicial, de que é exemplo a expressão “sem prejuízo do disposto no artº 281º do CPC”.

3.Perante a não observância de apresentação de projeto conjunto que havia sido solicitado às partes, com fixação de factos assentes e controvertidos, a fim de servir de base de trabalho para que o tribunal elaborasse os temas de prova, porque esse ato (omitido) não constitui qualquer ónus processual das partes, não é impeditivo do prosseguimento da tramitação normal do processo e o referido projeto não era absolutamente necessário para o seu prosseguimento, devia o juiz a quo promover o normal prosseguimento do processo, de harmonia com o dever de gestão processual que sobre si impende.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa



L., SA, intentou ação declarativa de condenação contra D., S.A.
Por decisão de 05/09/2013 foi admitida a intervenção acessória, como auxiliares na defesa da ré, dos chamados JR; AA.; SV; FL; PL; GS; DG; MV; e P.,SA. Foi, ainda, admitida a intervenção principal, como associadas da ré, das chamadas Companhia de Seguros W, S.A. e Companhia de Seguros Y, S.A..

Na audiência prévia realizada em 08/11/2019 foi proferido despacho saneador, julgada improcedente a exceção de ilegitimidade e fixado o objeto do litígio.

Relativamente aos temas da prova foi proferido despacho do seguinte teor:
“(…) Sucede que no caso dos autos as partes apresentaram articulados:
-Petição inicial com 202 artigos
-contestação com 611 artigos
-Réplica com 127 artigos
-12 contestações apresentadas por outros tantos chamados (intervenção acessória)
-tudo isto distribuído por 17 volumes de processo físico, composto por 3601 folhas.
Nos termos do art.º 7º do Código de Processo Civil estão as partes obrigadas a cooperar e concorrer para uma justa, breve e eficaz composição do litigio pelo que se afigura consentâneo convocar as partes para a actividade relativa à delimitação dos termos do litigio e á selecção dos factos relevantes/temas da prova, solicitando a sua colaboração nesta tarefa de seriação da matéria de facto e responsabilizando-as pela “condensação” do processo.
Assim, concedo às partes o prazo de 30 dias para os referidos efeitos findos os quais, deverá ser junto aos autos o “projecto” conjunto contendo os factos já assentes e os que, por se mostrarem controvertidos, constituirão temas da prova, que constituirá base de trabalhão a apreciar na continuação desta audiência prévia a realizar no dia 12 de Dezembro de 2019, pelas 14:00 horas.”

Por requerimento de 05/12/2019 e respetivas declarações de adesão, a A., a R. e os intervenientes PL, GS, MV, Companhia de Seguros Y, S.A., JR, FL, SV, Companhia de Seguros W, informaram que:
1.º- Imediatamente após a audiência prévia, foram encetadas diligências no sentido de dar cumprimento ao doutamente ordenado por V. Exa. – apresentação de projecto conjunto contendo os factos assentes e temas de prova.
2.º- No entanto, até à presente data, dado, designadamente, o número de intervenientes no processo, a dimensão das peças processuais e as questões aí suscitadas, não foi ainda possível dar por concluídos os trabalhos.
3.º- Não obstante a evolução dos trabalhos com vista à apresentação do projecto supra referido, será ainda necessário fazer ajustes aos projectos em discussão (projectos individuas já apresentados) e a unificação dos mesmos num documento final.
4.º- Pelo exposto, as partes, não obstante os esforços desenvolvidos, não estão ainda em condições de dar cumprimento ao ordenado em sede de audiência prévia, até ao dia 6/12/2019. Assim, requer-se a V. Exa. que se digne prorrogar, até ao dia 14/01/2020, o prazo para cumprimento do doutamente ordenado em sede de audiência prévia.
Mais se requer que seja dada sem efeito a data de 12/12/2019 designada para continuação da audiência prévia, procedendo-se ao seu reagendamento face à ora requerida prorrogação de prazo até 14/01/2020.”

Em 06/12/2019 foi proferido o seguinte despacho:
“Atento o requerido dou sem efeito a data designada para a realização da Audiência prévia, designando em sua substituição o dia 11/02/2020, pelas 14.00, e não antes por indisponibilidade de agenda. As partes devem juntar aos autos o projecto conjunto contendo factos assentes e temas da prova até ao dia 31 de Janeiro de 2020.
Desconvoque e notifique.”
E em 06/02/2020 foi proferido despacho do seguinte teor:
“Em sede de audiência prévia realizada a 08/11/2019 foram as partes convocadas, ao abrigo do princípio da colaboração a juntar aos autos um projecto conjunto contendo os factos assentes e aqueles que consideram controvertidos, que constituirá objecto de trabalho em nova sessão de audiência prévia que logo se agendou para 12/12/2019.
Em 5/12/2019 vieram as partes, por requerimento conjunto, solicitar a prorrogação do prazo para apresentação do projecto até 14/01/2020, porquanto não estavam reunidas as condições para dar cumprimento ao ordenado.
Por despacho de 06/12/2019 deferiu-se o requerido designando-se para a continuação da AP o dia 11/02/2020 com a expressa menção de que as partes deveriam juntar aos autos o projecto conjunto até ao dia 31/01/2020.
Decorrido tal prazo e até esta data, nada foi junto aos autos. A complexidade dos autos e a extensão dos articulados desaconselha a realização da AP, sem a análise criteriosa de projecto elaborado pelas partes nos termos anteriormente ordenados e aceite sem qualquer oposição.
Assim, dou sem efeito a diligência agendada para o dia 11/02/2020.
Os autos aguardarão o impulso processual das partes, sem prejuízo do disposto no art.º 281º do Código de Processo Civil.
Desconvoque e notifique.”

Por requerimentos de 19/11/2020 e de 20/11/2020 a interveniente W e a R. requereram a declaração de extinção da instância por deserção.

Em 20/11/2020 foi proferida a seguinte decisão:
“Por despacho de 06/02/2020 foram as partes notificadas de que os autos aguardariam o impulso processual, sem prejuízo do disposto no art.º 281º do Código de Processo Civil.
Dispõe o artigo 281º, nº1 do CPC que se considera deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontrar a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
No caso dos autos, atento o tempo já decorrido desde a notificação de tal despacho, sem que as partes tenham vindo juntar aos autos projecto conjunto contendo os factos assentes e aqueles que se consideram controvertidos e que constituiriam objecto de trabalho em audiência prévia a agendar (conforme despacho de 8/11/2019 e 06/12/2019) ou invocar qualquer causa justificativa de tal falta, há que concluir pela verificação da sua negligência.
Pelo exposto, julga-se extinta a instância, por deserção – art.º 277º, al. c) e 281º ambos do Código de processo Civil.
Custas pela A.
Notifique.”

A autora recorre da decisão proferida em 20/11/2020, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
I.“A sentença recorrida, na medida em que omite absolutamente a identificação dos factos concretizadores da pretensa negligência das partes, é nula, nos termos do art. 615.º/1-b) do CPC.
II.Não se verificam, de todo o modo, os pressupostos da norma do art. 281.º/1 do CPC – quer dizer, não há deserção da instância.
III.O facto de as partes não terem apresentado, ao contrário do que desejaria o tribunal recorrido (que assim se pouparia a tal tarefa), um documento conjunto com a identificação dos factos que considerassem assentes ou controvertidos não impede, de nenhum modo, o prosseguimento dos autos.
IV.Pelo contrário, em tal hipótese, mais intenso e exigente se torna o dever de gestão processual – insiste-se: o dever – estabelecido no art. 6.º/1 do CPC.
V.O tribunal recorrido violou as normas dos arts. 6.º/1, 281.º/1 e 615.º/1 do CPC.
Eis, pois, Senhores Juízes Desembargadores, expostas as razões pelas quais se pede a Vossas Excelências que julguem procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, e determine que o processo regresse à primeira instância, a fim de serem enunciados os temas da prova e agendada a audiência de julgamento.”

A R. e as intervenientes W, SA e Y, S.A. apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

***

A factualidade com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso é a que consta do relatório antecedente.
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).

Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1.Da nulidade
2.Da verificação dos pressupostos da deserção da instância.

***

1.Da nulidade

O apelante imputa o vício de nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto.

As nulidades da decisão encontram-se taxativamente enumeradas no artº 615º, nº 1 do C.P.C. que estabelece:
“É nula a sentença quando:
a)- Não contenha a assinatura do juiz;
b)- Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c)- Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.”
d)- O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
e)- O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”

A nulidade por falta de especificação de fundamentos de facto apenas ocorre perante falta absoluta e não meramente deficiente ou incompleta.

Esta é a posição defendida na generalidade da doutrina e jurisprudência, conforme citado no Ac. do STJ de 15-05-2019, www.dgsi.pt, de que se destaca:
“No que se refere à nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artº 615º “não basta que a justificação seja deficiente, incompleta, não convincente. É preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.”

Ensina-nos Alberto dos Reis que na falta de fundamentação a que alude a mencionada alínea b): “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.” (…)

A nível jurisprudencial, desde há muito que os tribunais superiores, pacificamente, têm considerado que a nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/4/1975-BMJ 246º, p.131; Acórdão da Relação de Lisboa de 10/3/1980-BMJ 300º, P.438; Acórdão da Relação do Porto de 8/7/1082-BMJ 319º, p. 343; e, mais recentemente, Acórdão da Relação de Coimbra de 6/11/2012, P. 983/11.5TBPBL.C1 e Acórdão da Relação de Évora, de 20/12/2012, P. 5313/11.3YYLSB-A.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.).”

Analisada a decisão recorrida impõe-se desde logo concluir que não se verifica falta absoluta de fundamentos de facto que sustentam a decisão.

Há que salientar que se trata de decisão que julgou a instância deserta e que na sua estrutura se reveste de simplicidade.

O Tribunal enunciou os factos a que atendeu, relevantes para a decisão, referentes à tramitação dos autos, parcialmente por remissão para os despachos proferidos em 8/11/2019 e 06/12/2019, bem como o proferido em 06/02/2020.  Expressamente consignou, ainda, a omissão das partes, ao não juntarem “aos autos projecto conjunto contendo os factos assentes e aqueles que se consideram controvertidos e que constituiriam objecto de trabalho em audiência prévia a agendar (conforme despacho de 8/11/2019 e 06/12/2019) ou invocar qualquer causa justificativa de tal falta, há que concluir pela verificação da sua negligência.”

Improcede, pois, a nulidade imputada.

2.Da verificação dos pressupostos da deserção da instância

Nos termos do disposto no artº 277º, al. c) do C.P.C. “a instância extingue-se com a deserção.”

E estabelece o artº 281º, nº 1 do C.P.C. que “considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”

São, assim, pressupostos cumulativos da deserção da instância a falta de impulso processual das partes, mormente do A., para o prosseguimento da instância (de natureza objetiva) e inércia imputável a negligência das partes (de natureza subjetiva).

Trata-se de modalidade de extinção da instância que tem claramente como objetivo principal promover a celeridade da justiça.

“Como resposta legal para o impasse processual, a extinção da instância só se justifica, no entanto, quando tal impasse não possa (não deva) ser superado oficiosamente pelo tribunal. Assim, determina a lei que a paragem do processo que empresta relevo ao decurso do tempo deve ser o efeito, isto é, o resultado (causalmente adequado) de uma conduta típica integrada por dois elementos: a omissão de um ato que só ao demandante cabe praticar; a negligência deste. (…)

Num processo cada vez mais marcado pelo impulso oficioso do juiz (art. 6.º, n.º 1), deverá ser (desejadamente) cada vez mais rara a efetiva ocorrência da deserção da instância, por mais raros serem os atos que que só a parte pode (deve) praticar e que importam a paragem do processo.” (“O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa - Breve Roteiro Jurisprudencial”, Paulo Ramos de Faria, Julgar on line 2015, pág. 4, 17) – sublinhado nosso.

O ato omitido pela parte, apto a culminar na deserção da instância, tem de resultar de incumprimento de ónus processual, de que são exemplos paradigmáticos, a não promoção da habilitação de herdeiros de parte falecida na pendência da causa (artºs 269º, nº 1, al. a), 276º, nº 1, al. a) e 351º do C.P.C.) e a falta de constituição de mandatário do A. em ação em que seja obrigatória, após renúncia (artº 47º, nº 3, al. a) do C.P.C.).

Não é, pois, perante qualquer impasse que se justifica a extinção da instância por deserção.

Além de competir ao juiz averiguar se a conduta da parte é negligente, no sentido de lhe ser imputável, por o ato omissivo depender apenas da sua vontade, a montante deste juízo há que indagar se a conduta omissiva se traduz na falta de prática de ato que a lei imponha à parte (ónus processual) e se a sua omissão impede o prosseguimento da tramitação normal do processo ou se o ato omitido era absolutamente necessário para o seu prosseguimento (neste sentido v., entre outros, Ac. S.T.J. de 02/05/2019, in www.dgsi.pt).

Dispõe o artº 6º, nº 1 do CPC  que “cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”.

No despacho proferido em 08/11/2019, invocando o princípio da cooperação previsto no artº 7º do CPC, o tribunal convocou as partes para “a actividade relativa à delimitação dos termos do litigio e à selecção dos factos relevantes/temas da prova,” e solicitou “a sua colaboração nesta tarefa de seriação da matéria de facto e responsabilizando-as pela “condensação” do processo.”

Depois da informação prestada em 05/12/2019 pela A., R. e parte dos intervenientes, foi proferido despacho que determinou que os autos aguardassem a junção de projeto elaborado pelas partes, sem prejuízo do disposto no artº 281º do CPC, por se ter entendido que em face da complexidade dos autos e da extensão dos articulados ser desaconselhada a realização da AP, sem a análise daquele projeto.

É certo que as partes não juntaram o aludido projeto conjunto e não voltaram a efetuar qualquer comunicação sobre a sua apresentação, no período subsequente à notificação do despacho proferido em 06/02/2020 até 20/11/2020 (data da prolação da decisão recorrida).

Tal omissão, contudo, não consubstancia falta de prática de ato que a lei imponha à parte (ónus processual), não é impeditiva do prosseguimento da tramitação normal do processo e a junção do projeto não era absolutamente necessária para o seu prosseguimento. Embora se compreenda a eventual utilidade do projeto conjunto, atendendo ao número e extensão dos articulados, a falta de cooperação das partes não é obstativa da prolação de despacho com enunciação dos temas de prova. 

Acresce dizer que o despacho datado de 08/11/2019 não constitui sequer uma ordem dirigida às partes, mas sim uma solicitação, como resulta cristalinamente do seu teor. Salienta-se que a solicitação se dirige às partes – e não apenas à A. – sendo certo que sem a cooperação entre A., R. e intervenientes não seria possível apresentar projeto conjunto.

O silêncio/omissão das partes será suscetível de constituir incumprimento do dever de cooperação a ser eventualmente valorado noutra sede, mas não pode sustentar a extinção da instância por deserção.

O prosseguimento dos autos não estava dependente de qualquer impulso a promover pelas partes. Ainda que existisse impasse processual, a extinção da instância só se justificaria, se o mesmo não pudesse/devesse ser superado oficiosamente pelo tribunal.

1.A extinção da instância por deserção, ao abrigo do art. 281º, nº 1, do CPC, depende de dois pressupostos, um de natureza objetiva (demora superior a 6 meses no impulso processual legalmente necessário) e outro de natureza subjetiva (inércia imputável a negligência das partes).
2.Para que se verifique o primeiro requisito é necessário que o prosseguimento da instância dependa de impulso da parte decorrente de algum preceito legal, o que não se verifica quando, depois de ter findo o prazo de suspensão da instância fixado pelo juiz, com fundamento no propósito de as partes efetuarem transação nos autos, estas não comunicam a efetivação de qualquer transação.
3.O facto de, após o decurso do prazo fixado para a suspensão da instância, ter sido proferido despacho segundo o qual os autos ficariam a aguardar o que as partes “tivessem por conveniente, dando conta das negociações encetadas ou pedindo a marcação do julgamento, sem prejuízo do disposto no art. 281º do CPC”, não faz recair sobre as partes qualquer ónus cujo incumprimento determine a extinção da instância, por deserção.” – cfr. citado Ac. STJ de 05/07/2018, Relator Abrantes Geraldes, www.dgsi.pt.
Assim, perante a falta de apresentação do projeto nada impedia - antes se impunha - que o Tribunal retomasse a tramitação normal do processo, com marcação da realização de audiência prévia, designadamente com o objetivo de proferir o despacho a que alude o artº 596º, nº 1 ex vi do artº 591º, nº 1, al. f) do CPC, como lhe compete.

No sentido exposto v., ainda, Ac. STJ de 02/05/2019, Ac. RE de 26/09/2019, Ac. RL  de 27/04/2017, Ac. RC de 06/03/2018, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Os ónus processuais estão previstos na lei, não assumindo tal natureza por mero efeito de advertência constante de despacho judicial, de que é exemplo a expressão “sem prejuízo do disposto no artº 281º do CPC”. Esta advertência não tem a virtualidade de constituir a solicitada cooperação das partes em ónus processual.

Como se refere no citado Ac. do STJ de 05/07/2018 “a alusão que naquele despacho foi feita ao previsto no art. 281º do CPC revelou-se sem conteúdo. (…) As normas de direito adjetivo devem potenciar uma interpretação uniforme que confira segurança a todos os intervenientes, o que conflitua com a previsão, por via de decisões avulsas, de efeitos que não são projetados por tais normas.”

E não se diga, como os apelados, que o despacho que determinou a junção pelas partes do referido projeto conjunto foi proferido ao abrigo dos artºs 6º e 547º do CPC e, por essa via, se encontra sustentado o aludido ónus processual.

Sempre se dirá que nesse despacho se invocou o disposto no artº 7º do CPC – e não os artºs 6º e 547º. 

O artº 6º rege sobre o dever de gestão processual (cfr. respetiva epígrafe), dever que impende sobre o juiz, cumprindo-lhe, além do mais, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação. Constitui ressalva a este dever o ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes (cfr. nº 1 do artº 6º).

“Do dever de gestão processual decorre que ao juiz cabe, em geral, a direção formal do processo, nos seus aspetos técnicos e de estrutura interna.

Essa direção implica a concessão de poderes tendentes a assegurar a regularidade da instância e o normal andamento do processo, só excecionalmente cabendo às partes o ónus de impulso processual subsequente, ligado ao princípio do dispositivo.” – citado Ac. RL de 27/04/2017.

Ora, o que ocorre no caso sub judice é que, perante a não observância do solicitado às partes e, repete-se, porque esse ato (omitido) não constitui qualquer ónus processual das partes – ou seja, não está abrangido pela ressalva do artº 6º, nº 1 –, devia o juiz a quo promover o normal prosseguimento do processo, de harmonia com o dever de gestão processual que sobre si impende.
 “(…) ao juiz cabe, em geral, a direção formal do processo, nos seus aspetos técnicos e de estrutura interna. Esta direção implica a concessão de poderes tendentes a assegurar a regularidade da instância e o normal andamento do processo, só excecionalmente cabendo às partes o ónus de impulso processual subsequente, ligado ao princípio do dispositivo(Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil anotado”, Vol. 1º., 3ª. edição, Coimbra Editora, pág. 22).

Não resultando a paragem do processo do incumprimento de um ónus processual que impendesse sobre as partes, mas de opção errada do tribunal, não podia ser-lhes a mesma imputada, pelo que a decisão recorrida incorre em errada interpretação e aplicação da norma do artº 281º do C.P.C., impondo-se a sua revogação, devendo o processo seguir a sua normal tramitação.

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos.
Custas a cargo dos apelados. 


Lisboa, 4 de novembro de 2021


Teresa Sandiães
Octávio Diogo
Cristina Lourenço