Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | PEDRO MARTINS | ||
| Descritores: | FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL REEMBOLSO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 07/06/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | RECURSO IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | Assim como o Fundo de Garantia Automóvel ao exercer o seu direito de sub-rogação nos direitos do lesado de um acidente de viação tem de provar os pressupostos da responsabilidade civil do condutor do veículo não seguro (por culpa ou pelo risco), assim o Gabinete Português de Carta Verde ao exercer contra o Fundo o seu direito ao reembolso do que pagou no lugar deste ao Serviço Nacional de Seguros do país do acidente tem de provar esses pressupostos (artigo 55/1-2 do regime do DL 291/2007), já que este é prejudicial daquele. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados: Gabinete Português de Carta Verde instaurou uma acção declarativa comum contra o Fundo de Garantia Automóvel requerendo a condenação deste a pagar-lhe 11.634,96€, acrescida de juros legais de mora, vencidos e vincendos, contados desde 24/03/2016 até integral pagamento. Alega em suma que: no dia 19/02/2012, ocorreu um acidente de viação em França, em que foram intervenientes dois veículos com matrículas francesas e um veículo de matrícula portuguesa; o acidente de viação foi causado por força do embate do veículo português num motociclo com matrícula francesa que se encontrava parado ao sinal semafórico vermelho, pondo-se de seguida em fuga; em consequência da reclamação apresentada junto da congénere francesa (Bureau Central Français), esta solicitou ao autor a verificação da seguradora e confirmação do estacionamento habitual do veículo com matrícula portuguesa; o autor, desencadeadas as diligências habituais, confirmou a inexistência de seguro válido e o estacionamento habitual do veículo, tendo o autor informado o réu, por carta de 28/01/2016, da abertura do processo de sinistro; por carta de 13/01/2016, o autor recebeu do congénere francês, o pedido de reembolso relativo aos custos incorridos na regularização do sinistro; em 02/03/2016, o autor reembolsou o congénere francês; e emitiu uma factura com data de 04/03/2016, em nome do réu, solicitando o reembolso da quantia paga ao congénere francês, a qual, vencida a 24/03/2016, ainda não se encontra paga [esta factura está dirigida para o ASSFP ao cuidado do FGA, na Av. Da República 59-59ªA, 1050-189 Lisboa]; em 20/02/2019, o autor requereu a notificação judicial avulsa do réu [na morada já referida] que veio a ser distribuída sob o n° 3797/19.0T8LSB, com vista a interromper a prescrição do exercício do seu direito a ser reembolsado. O autor juntou 18 documentos para prova de tudo o que foi alegado. Quanto ao direito diz (transcreve-se com simplificações): Os serviços nacionais de seguros de cada um dos Estados membros da União Europeia (UE) asseguram a regularização dos sinistros ocorridos no seu território e causados por veículos com estacionamento habitual no território de outro Estado membro, estejam ou não seguros. Não existindo — independentemente da razão — seguro válido para um veículo com estacionamento habitual num Estado membro da UE, a regularização do sinistro causado por esse veículo noutro Estado membro é assegurada pelo serviço nacional de seguros do país do acidente, que tem a garantia de reembolso por parte do serviço nacional de seguros do Estado do estacionamento habitual do veículo (cf. artigos 6 e 10 do Regulamento Geral anexo à Decisão da Comissão 2003/564/CE de 28/07/2003). O Gabinete/autor é o serviço nacional de seguros em Portugal a quem compete a satisfação das indemnizações devidas, nos termos legais e regulamentares do seguro de responsabilidade civil automóvel, aos lesados por acidentes causados por veículos matriculados noutros Estados Membros da UE. Não existindo seguro válido para um veículo com estacionamento habitual num Estado membro, deve haver um organismo de indemnização do Estado do estacionamento habitual responsável pela indemnização dos danos causados por tal veículo em caso de acidente ocorrido noutro Estado membro da UE, segundo o regime instituído pela 2.ª Directiva automóvel (art.º 1º, nº 4, da Directiva 84/5/CEE) e pela 1.ª Directiva automóvel (art.2°, n° 2, da Directiva 72/166/CEE). Em Portugal esse organismo é o Fundo/réu A lei nacional do seguro obrigatório prevê nesse caso — e em conformidade com o regime instituído pelas Directivas automóvel — a obrigação de reembolso pelo Fundo ao Gabinete (vide o art.º 55 do Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel aprovado pelo DL 291/2007, de 21/08, e, anteriormente, o art.º 26 do DL 522/85, de 31/12). O Acordo de 30/05/2002 (aplicável a partir de 01/08/2003 – também anexo àquela Decisão da Comissão) prevê no seu artigo 1.º, em conformidade com o sistema instituído pelas Directivas automóvel, que os Serviços Nacionais de Seguros dos Estados membros da EEE e outros Estados associados aplicam entre si, nas suas relações recíprocas, em primeiro lugar, as Disposições Facultativas da Secção III do Regulamento Geral — Regras específicas relativas às relações contratuais entre serviços nacionais de seguros baseadas na presunção de seguro (artigos 10 a 15 do Regulamento Geral). Não existindo, efectivamente, no caso em apreço, seguro válido para o veículo com estacionamento habitual em Portugal que causou o acidente ocorrido em França, aplicam-se as regras comunitárias e nacionais baseadas na presunção de seguro e no estacionamento habitual do veículo. Tendo o serviço nacional de seguros do Estado membro do acidente (Bureau Central Français) suportado a indemnização do lesado ao abrigo do Regulamento Geral adoptado pelo Acordo de 30/05/2002, e tendo o Gabinete cumprido a sua função de garante de reembolso, o responsável último pela indemnização, nos termos do Direito Comunitário e nacional vigente, é o Fundo. Pelo que o FGA tem obrigação, decorrente do Direito Comunitário e do Direito nacional vigente que o transpôs, de reembolsar o GPCV, sob pena, designadamente, de incumprimento do Direito Comunitário. A obrigação de garantia do Gabinete, por força do Regulamento adoptado pelo Acordo de 30/5/2002 tem lugar com base do critério do estacionamento habitual/presunção de seguro, pelo que, confirmando-se que o veículo causador do acidente tem estacionamento habitual em Portugal, sempre o serviço nacional de seguro do país do sinistro (no caso Bureau Central Français) seria responsável pela indemnização das vítimas/lesados, com direito de reembolso por parte do GPCV e este, por seu turno, por parte do FGA. Neste sentido, o acórdão do STJ de 12/05/2016, proc. 658/13.0TVLSB.L1.S1, que incidiu sobre caso equivalente ao dos presentes autos: I - O DL 522/85, de 31/10 (aplicável ao caso) visou harmonizar o regime jurídico nacional com os objectivos traçados pela 1.ª e 2.ª Directivas Automóvel (Directiva n.º 72/166/CE, de 24/04/1972 e Directiva n.º 84/5/CEE, de 30/12/1983), tendo estabelecido um esquema de reembolso pelo FGA ao Gabinete Português de Carta Verde em consequência das indemnizações devidas por acidente causados no estrangeiro por veículos matriculados em Portugal e cujo responsável não fosse titular de seguro (art.º 26). II - O Gabinete é uma associação sem fins lucrativos que desempenha em Portugal as funções de Gabinete Nacional de Seguros, actuando como Gabinete Emissor (responsabilizando-se pelo pagamento de indemnizações por acidentes causados por veículos estrangeiros em território nacional) e como Gabinete Gestor, no âmbito do qual lhe compete assegurar o pagamento das indemnizações mencionadas em I. III - A responsabilidade por acidentes ocorridos no estrangeiro com veículos de matrícula portuguesa desdobra-se em três graus: o primeiro é entre o Gabinete Gestor [por lapso escreveu-se emissor - TRL] do Estado da UE onde ocorreu o acidente e o Gabinete Português, o segundo é entre este e o FGA e o terceiro é entre o FGA e o responsável civil que não segurou o veículo como legalmente lhe era imposto. IV - Nos termos conjugados da al. d) do art.º 3.° e da al. i) e corpo do art.º 5.° do Acordo Multilateral de Garantia (ajustado entre os Gabinetes Nacionais, entre os quais Gabinete Português de Carta Verde, que está em vigor desde 01/08/2003 e que substituiu a Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais, aludida no n.º 1 do art.º 26 do DL 522/85, de 31/10), o Gabinete Gestor actua no interesse do Gabinete Emissor mas não é um mero representante deste, detendo poderes de gestão do sinistro, não dependendo o exercício do direito ao reembolso do que pagou da demonstração dos factos atinentes à ocorrência do acidente mas apenas da apresentação dos comprovativos do pagamento destinados à regularização do sinistro. V - Seria contraditório com o exposto em IV interpretar o n.º 2 do art.º 26 do DL 522/85, no sentido de se exigir ao Gabinete Português da Carta Verde, enquanto Gabinete Emissor, a demonstração da culpa do condutor do veículo de matrícula nacional na produção de acidente de viação noutro Estado da UE, tanto mais que o FGA também responde (sempre como garante da indemnização) perante aquele em casos de responsabilidade objectiva ou pelo risco. VI - Dado que o Acordo Multilateral referido em IV faz também referência a "acidente provocado por veiculo" e estabelece um regime simplificado de reembolso, não se pode extrair da expressão "acidentes causados por veículos" constante do n.º 1 do art.º 26 do DL 522/85, qualquer relevância interpretativa, sendo que a transmissão aludida no n.º 2 desse preceito se refere aos elementos necessários à cabal identificação do acidente (e não à sua dinâmica). VII - A procedência da acção de reembolso intentada pelo Gabinete contra o Fundo depende apenas da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: i) a ocorrência de acidente automóvel num Estado-membro da UE; (ii) a sua causação por veículo matriculado em Portugal e sujeito a seguro obrigatório previsto na legislação portuguesa; (iii) a inexistência, relativamente ao mesmo, de contrato de seguro válido e eficaz: (iv) o pagamento, enquanto Gabinete Emissor, da indemnização satisfeita ao lesado pelo Gabinete Gestor daquele Estado Membro. O réu contestou, excepcionando a prescrição: a lei aplicável ao acidente em discussão é a lei francesa, que prevê um prazo de prescrição para o pedido de ressarcimento dos danos de dois anos; nessa medida, tendo o autor satisfeito a indemnização ao congénere francês em 02/03/2016, só podia fazer valer o seu direito até 02/03/2018; o autor só requereu a notificação judicial avulsa do réu em 20/02/2019, pelo que o direito do autor está prescrito; e a sua ilegitimidade, uma vez que o autor não instaurou a acção igualmente contra o responsável civil do acidente, nos termos do artigo 62/1 do DL 291/07, de 21/08; e impugnou parte dos factos alegados [mas não o facto do art.º 6 da PI, isto é que o autor informou o réu, por carta de 28/01/2016, da abertura do processo de sinistro; nem o facto do art.º 9 da PI isto é, que o autor emitiu uma factura com data de 04/03/2016, em nome do réu, solicitando o reembolso da quantia paga ao congénere francês], porque não são factos pessoais seus ou que deles deva ter conhecimento (art.º 574/3 do CPC); assim como impugna os documentos por desconhecer se a letra, teor e assinatura são verdadeiros. E impugna de direito dizendo que: O Regulamento Geral tem por objectivo governar as relações recíprocas entre os Gabinetes Nacionais de Seguros, não sendo aplicável e consequentemente não é vinculativo nem oponível aos organismos emergentes das Directivas Automóveis, designadamente ao réu, que não o subscreveu; acrescenta que nesse sentido se tem pronunciado o Tribunal de Justiça da União Europeia, designadamente no acórdão de 15/06/2017, proc. C-587/15; no que respeita às relações entre o Gabinete e o Fundo, em particular no que toca ao mecanismo de reembolso, rege o disposto no art.º 55 do DL 291/2007; por força deste art.º 55/2 o Gabinete deve transmitir ao Fundo todas as indicações relativas à identificação e circunstâncias do acidente, do responsável, do veículo e das vítimas, para além de dever justificar o pagamento efectuado ao serviço nacional de seguros do país onde ocorreu o acidente; em obediência ao princípio geral do ónus probatório, ao Gabinete não chega alegar, tem que provar não só a ocorrência do acidente, mas também que ele se ficou a dever a culpa do seu condutor ou ao risco próprio do veículo, ou seja, que o acidente foi causado pelo veículo automóvel de matrícula portuguesa; assim como terá o Gabinete que provar que os danos foram liquidados e indemnizados segundo os critérios fixados na lei aplicável; é fundamental perceber-se que o Fundo, enquanto mero garante da indemnização eventualmente devida pelos responsáveis civis incumpridores da obrigação de segurar, fica sub-rogado nos direitos dos lesados; donde, se e quando vier a exercer esse direito contra os responsáveis civis incumpridores da obrigação de segurar, ver-se-á confrontado com todos os meios de defesa que àqueles assistem, designadamente a exigência de que o FGA cumpra o ónus de prova de todos os pressupostos da sua obrigação, nomeadamente da responsabilidade civil e da conformidade das indemnizações pagas com os danos verificados no acidente; sendo apodíctico que, se tais pressupostos não forem observados por parte do gabinete gestor no processo de regularização do sinistro, de acordo com a lex loci e o gabinete emissor, ora autor, aceitar reembolsar nessas condições o primeiro, não sendo o devedor final, ficará o FGA impossibilitado, caso seja forçado a reembolsar o autor, de exercer o seu direito de sub-rogação legal; aliás, esta questão nem é exclusiva das relações entre o Fundo e o Gabinete; o Sr. Advogado-Geral, Mr. MB, no supracitado Processo C-587/15, concluiu que “o mero facto de um serviço nacional ter informado outro serviço nacional noutro Estado-Membro de que tinha sido paga uma indemnização ao abrigo do Regulamento Geral não pode ser considerado prova suficiente de responsabilidade e, consequentemente, do montante dos danos reclamado. Os factos subjacentes a um pedido de indemnização deduzido por um serviço nacional de seguros no âmbito de uma acção de regresso contra a pessoa considerada responsável por um acidente de viação no Estado-Membro onde o veículo estava registado devem ser plenamente provados ao abrigo das regras nacionais desse Estado-Membro em matéria de responsabilidade civil. […] O Regulamento Geral […], não pode ser interpretado no sentido de impor a execução automática de um acordo de transacção celebrado sem a participação da pessoa considerada responsável no Estado-Membro onde ocorreu o acidente contra essa pessoa no Estado-Membro onde o veículo estava registado. Os elementos subjacentes ao pedido de indemnização deduzido pelo serviço nacional de seguros do Estado-Membro onde o veículo estava registado no âmbito de uma acção de regresso contra a pessoa considerada responsável por um acidente de viação devem ser integralmente provados ao abrigo das regras nacionais desse Estado-Membro em matéria de responsabilidade civil […].”. E continua o Fundo: não será despropositado sublinhar que o TJUE naquele mesmo processo, concluiu que as Directivas Automóvel e o artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE [devem ser interpretadas no sentido de que] não se opõem [no caso vertente] à interpretação [o acórdão diz: às consequências que decorrem da jurisprudência do órgão jurisdicional de reenvio] segundo a qual incumbe ao Gabinete Emissor (gabinete nacional do território do estacionamento habitual do veículo causador), para efeitos de acção sub-rogatória, o ónus da prova relativamente ao conjunto dos pressupostos da responsabilidade civil dos demandados no processo principal; o ac. do STJ trazido à colação pelo autor não deverá constituir orientação jurisprudencial futura em relação a esta matéria, não só porque não apreciou as questões aqui suscitadas, como não acompanha a linha de orientação explanada pelo TJUE [entre parenteses, a partir do art. 47, este TRL colocou expressões que constavam da declaração do acórdão do TJUE e que o Fundo não tinha transcrito.] O autor respondeu às excepções. No despacho saneador foram apreciadas as excepções de ilegitimidade e prescrição e julgadas improcedentes. Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada e, em consequência, absolveu o réu do pedido. O autor/Gabinete recorreu, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: O reembolso ao Gabinete pelo Fundo depende apenas da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) Ocorrência de acidente automóvel num Estado-Membro da União Europeia; b) A sua causa por veículo matriculado em Portugal e sujeito a seguro obrigatório previsto na legislação portuguesa; c) A inexistência relativamente ao mesmo, de contrato de seguro válido e eficaz; d) O pagamento, enquanto Gabinete Emissor, da indemnização satisfeita ao lesado pelo Gabinete Gestor daquele Estado Membro (cfr. acórdão do STJ de 12/05/2016, proc. 658/13.0TVLSB.L1.S1). Nos termos do art.º 55 do DL 291/2007, o Fundo reembolsa o Gabinete pelo montante despendido por este, ao abrigo do Acordo entre serviços nacionais de seguros, em consequência das indemnizações devidas por acidentes causados por veículos matriculados em Portugal e sujeitos ao seguro obrigatório previsto no Diploma identificado. Não faz depender a obrigação de indemnização pelo Gabinete das circunstâncias do acidente e da culpa do condutor do veículo com estacionamento habitual em Portugal. O réu/Fundo não contra-alegou. * Questão que importa decidir: se o autor tem direito ao reembolso pelo réu da quantia peticionada, ao abrigo do disposto no artigo 55 do DL 291/2007. * Estão dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão da questão a decidir: 1\ No dia 19/02/2012 , em Av. X, Seine, Saint Denis, França, ocorreu um embate entre os veículos de matrícula francesa e o veículo de matrícula portuguesa. 2\ À data, o veículo de matrícula portuguesa tinha o seu estacionamento habitual em Portugal. 3\ Nem tinha seguro válido de responsabilidade civil automóvel. 4\ Por carta de 13/01/2016, o autor recebeu do seu congénere francês – Bureau Central Français – o pedido de reembolso de 11.634,96€, relativo aos custos da regularização do embate. 5\ No dia 02/03/2016, o autor procedeu, por transferência bancária, ao pagamento ao BCF da quantia referida em 4. 6\ No dia 04/03/2016, o autor emitiu em nome do réu a factura n.º 000071, no valor de 11.634,96€, com data de vencimento de 24/03/2016. 7\ A factura encontra-se por pagar até à presente data. 8\ No dia 20/02/2019, o autor requereu a notificação judicial avulsa do réu para o pagamento da factura, que foi distribuída ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Instância Local Cível, processo 3797/19.0T8LSB, J19, tendo sido objecto de deferimento por despacho datado de 21/02/2019. 9. O autor informou o réu, por carta de 28/01/2016, da abertura do processo de sinistro [este facto foi acrescentado por este TRL ao abrigo dos artigos 607/4 e 663/2, do CPC, tendo em conta a não impugnação pelo Fundo da respectiva afirmação feita pelo Gabinete]. Consideraram-se não provados os factos alegados pelo autor quanto à causalidade do acidente que estão sublinhados na síntese da petição inicial feita por este acórdão. * A sentença tem a seguinte fundamentação, na parte que importa: “[…] Nas relações entre o gabinete gestor e o gabinete emissor, apesar daquele actuar no interesse deste, a sua competência é exclusiva em todas as questões relativas à interpretação da legislação nacional e à regularização do sinistro. Daí que o reembolso do que pagou com a regularização do sinistro não depende da demonstração dos factos atinentes à ocorrência do sinistro. Contudo, na relação subsequente, que se estabelece entre o gabinete emissor e o Fundo, o ressarcimento só ocorre se “o responsável pela circulação do veículo não seja titular de um seguro de responsabilidade civil automóvel”. Ou seja, a lei exige a demonstração de que o responsável pelo sinistro é um veículo com matrícula portuguesa e sem seguro válido à data do sinistro. Ora, no caso concreto não resultou demonstrado que o embate ocorreu por força da conduta do condutor do veículo [de matrícula portuguesa], razão pela qual, sem necessidade de maiores considerações, se deve julgar improcedente o pedido do autor.” * Apreciação: O que a sentença está a dizer é que o artigo 55/1 do regime do DL 291/2007 exige a prova de que o veículo não seguro de matrícula portuguesa foi o responsável pelo acidente, sendo que, no caso, dos factos provados não resulta que o veículo de matrícula portuguesa fosse o responsável pelo acidente. Posto isto, Nos termos do artigo 55 do regime do DL 291/2007: 1 - O Fundo reembolsa o Gabinete pelo montante despendido por este, ao abrigo do Acordo entre os serviços nacionais de seguros, em consequência das indemnizações devidas por acidentes causados por veículos matriculados em Portugal e sujeitos ao seguro obrigatório previsto neste DL desde que: a) O acidente ocorra no território de outro país cujo serviço nacional de seguros tenha aderido àquele Acordo […]; b) O responsável pela circulação do veículo não seja titular de um seguro de responsabilidade civil automóvel; c) As indemnizações tenham sido atribuídas nas condições previstas para o seguro de responsabilidade civil automóvel na legislação nacional do país onde ocorreu o acidente […]. 2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, o Gabinete Português da Carta Verde deve transmitir ao Fundo todas as indicações relativas à identificação e circunstâncias do acidente, do responsável, do veículo e das vítimas, para além de dever justificar o pagamento efectuado ao serviço nacional de seguros do país onde ocorreu o acidente. […] 4 - Satisfeito o reembolso, o Fundo fica sub-rogado nos termos do artigo 54.º Nos termos do art.º 54 do regime do DL 291/2007: 1 - Satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso. Assim, reembolsando o Gabinete, o Fundo fica sub-rogado nos direitos do lesado. Para poder sub-rogar o Fundo nesses direitos, o Gabinete tem de os ter e só os terá se os tiver adquirido ao assumir o pagamento ao Serviço Nacional de Seguros do Estado do acidente (artigo 10 do Regulamento Geral). Assim, o direito que o Gabinete tem não é um direito do reembolso do que pagou independente da existência do acidente e da responsabilidade civil do veículo com estacionamento habitual em Portugal e sem seguro, mas sim um direito dependente da existência dessa responsabilidade. Ao exercer o seu direito, sub-rogado no lugar dos lesados, contra os responsáveis directos do acidente, o Fundo tem de provar os pressupostos da responsabilidade desses supostos responsáveis directos do acidente. É o que decorre, por exemplo, dos acórdãos do STJ de 18/01/2018, proc. 126/10.2TBVPV.L1.S1; e de 08/11/2018, proc. 770/12.3TBSXL.L1.S1; corresponde pois ao entendimento corrente aquilo que é defendido pelo Advogado Geral do TJUE, nas conclusões referidas pelo Fundo na contestação. E só os poderá provar se os dados necessários lhe tiverem sido transmitidos pelo Gabinete. O artigo 55/1-2 do DL estabelece os pressupostos do direito de reembolso do Gabinete perante o Fundo e só com a satisfação desses pressupostos é que o Gabinete está a transmitir os dados necessários ao exercício do direito de sub-rogação do Fundo contra os responsáveis directos do acidente (o condutor do veículo não seguro com estacionamento habitual em Portugal). Os pressupostos do art.º 55/1-2 têm de ser provados, como quaisquer outros pressupostos de qualquer outro direito (art.º 342/1 do CC). Não tem sentido estar a estabelecer essa lista de pressupostos se depois eles não tivessem que ser provados. Se esses pressupostos não forem provados, o Fundo, depois, não os poderá provar perante o condutor do veículo não seguro e o direito de sub-rogação que a lei lhe deu seria um direito sem condições para ser exercido. Aliás, foi tendo em conta tudo isto que o Gabinete intentou a acção contra o Fundo alegando os pressupostos da responsabilidade civil (pela culpa) do condutor do veículo não seguro. Só que não fez prova dos mesmos, pelo que, com base nos factos provados não é possível concluir pela responsabilidade do veículo não seguro (note-se que se trata de uma acção de responsabilidade civil com base na sub-rogação que o Gabinete diz ter por base a culpa do condutor do veículo não seguro, pelo que não é possível, ao contrário do que normalmente se faz, convolar a causa de pedir para uma responsabilidade pelo risco). E o Gabinete não impugnou a decisão da matéria de facto. Quanto aos argumentos contrários do acórdão do STJ: O artigo 6 do Regulamento Geral fala na obrigação de garantia da responsabilidade das seguradoras pelo Gabinete. É do artigo 10 do Regulamento que decorre a obrigação do Gabinete assumir o pagamento do reembolso mesmo que não haja seguro [e por isso no lugar do Fundo] e aí já não se fala em obrigação de garantia. Seja como for, a obrigação de assunção de pagamento (art.º 10) ou de garantia (art.º 6) não é uma obrigação independente da responsabilidade civil do condutor do veículo não segurado. Todas as normas do Regulamento Geral, e do Acordo que o adoptou, pressupõem a existência dessa responsabilidade civil do veículo com estacionamento habitual no estrangeiro. Assim, no considerando 4/a do preâmbulo do Regulamento Geral adoptado pelo Acordo entre os serviços nacionais de seguros de 30/05/2002, entrado em vigor no dia 01/07/2003, que constituiu um dos dois anexos da Decisão da Comissão citada acima (o outro é o próprio acordo), fala-se na “indemnização das pessoas lesadas de acordo com o direito e a regulamentação em vigor nesse país; no considerando 4/b no seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente da utilização do veículo automóvel que nela é descrito; no considerando 4/c fala-se no compromisso da seguradora membro de cobrir a responsabilidade civil decorrente da utilização do veículo implicado no acidente; na SECÇÃO I - REGRAS GERAIS (DISPOSIÇÕES OBRIGATÓRIAS), artigo 2, define-se (6) "Acidente": como uma ocorrência que tenha originado perdas ou danos e que, em conformidade com a lei do país em que se verifica, se inclui no âmbito de aplicação da obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil perante terceiros resultante da circulação de veículos; (7). "Pessoa lesada": uma pessoa que tenha direito a uma indemnização em virtude de perdas ou danos causados por um veículo; (10). "Segurado": uma pessoa cuja responsabilidade civil perante terceiros é coberta por uma apólice de seguros; no artigo 3, Gestão dos sinistros: 1. Quando um serviço nacional é informado da ocorrência de um acidente no território do país relativamente ao qual é competente que envolva um veículo proveniente doutro país, deve proceder, sem aguardar qualquer pedido de indemnização formal, a um inquérito sobre as circunstâncias desse acidente. Deve comunicar logo que possível esse acidente à seguradora que emitiu a carta verde ou a apólice de seguro ou, se for caso disso, ao serviço nacional envolvido. O incumprimento desta obrigação não poderá, todavia, ser invocado contra ele. […]; 3. O serviço nacional está autorizado a resolver amigavelmente qualquer sinistro e a recorrer a quaisquer procedimentos de natureza extrajudicial ou judicial susceptíveis de implicar o pagamento de uma indemnização. 4. Os sinistros devem ser geridos pelo serviço nacional com plena autonomia e em conformidade com as disposições legais e regulamentares aplicáveis no país de ocorrência do acidente em matéria de responsabilidade, indemnização das pessoas lesadas e seguro automóvel obrigatório, no melhor interesse da seguradora que emitiu a carta verde ou a apólice de seguro ou, se for caso disso, do serviço nacional envolvido. O serviço nacional tem a competência exclusiva relativamente a todas as questões relacionadas com a interpretação da legislação aplicável no país do acidente (mesmo quando remete para as disposições legais de outro país) e à regularização do sinistro. Sob reserva desta última disposição, o serviço nacional notificará, se tal lhe for pedido expressamente, a seguradora ou o serviço nacional envolvido antes de tomar uma decisão definitiva. […] Artigo 5, Modalidades de reembolso: 1. Se um serviço nacional ou um mandatário por ele designado para esse efeito tiver procedido à regularização de todos os sinistros originados por um mesmo acidente, enviará um pedido de reembolso ao membro do serviço nacional que emitiu a carta verde ou a apólice de seguro ou, se for caso disso, ao serviço nacional envolvido, no prazo máximo de um ano a contar do último pagamento efectuado em benefício de uma pessoa lesada, por telecópia ou por correio electrónico, especificando nomeadamente o seguinte: 1.1. Os montantes pagos a título de indemnização às pessoas lesadas, quer em virtude de regularização amigável quer em execução de uma decisão judicial; […] 4. Se tal for solicitado, devem ser enviados sem demora, sem que tal possa atrasar o reembolso, os documentos justificativos, incluindo a prova objectiva de que as indemnizações devidas às pessoas lesadas foram pagas. […] 7. Não pode ser reclamado qualquer encargo de gestão se o acidente não ocasionou qualquer sinistro. Artigo 6, Obrigação de garantia: 1. Cada serviço nacional deve garantir o reembolso pelos seus membros de todos os montantes solicitados nos termos no disposto no artigo 5 pelo serviço nacional do país do acidente ou pelo mandatário que por ele tenha sido designado para esse efeito. Se um membro não efectuar o pagamento solicitado no prazo de dois meses especificado no artigo 5, o serviço nacional ao qual aderiu esse membro efectuará ele próprio o reembolso, de acordo com as condições adiante enunciadas, após ter recebido o pedido de accionamento da garantia por parte do serviço nacional do país do acidente ou por parte do mandatário que este designou para esse efeito. […] SECÇÃO III REGRAS ESPECÍFICAS RELATIVAS ÀS RELAÇÕES CONTRATUAIS ENTRE SERVIÇOS NACIONAIS BASEADAS NA PRESUNÇÃO DE SEGURO (DISPOSIÇÕES FACULTATIVAS) O disposto na presente secção aplica-se no caso de as relações entre serviços nacionais se basearem na presunção de seguro, salvo determinadas excepções. Artigo 10, Obrigações dos serviços nacionais: Os serviços nacionais aos quais se aplica o disposto na presente secção assegurarão, de forma totalmente recíproca, o reembolso de todos os montantes devidos nos termos do presente Regulamento Geral em resultado de um acidente que envolva um veículo normalmente estacionado no território do Estado relativamente ao qual cada um destes serviços nacionais é competente, independentemente desse veículo se encontrar seguro ou não. […] Por isso, não é dessas normas (das correspondentes aos artigos 6 e 10 do Regulamento Geral) que o acórdão do STJ faz decorrer a desnecessidade de prova dos pressupostos da responsabilidade civil. O acórdão do STJ faz decorrer essa desnecessidade das normas equivalentes ao art.º 3/4 do Regulamento Geral. Mas quando estas normas dizem que o Serviço Nacional de Seguros do país em que ocorreu o acidente tem a competência exclusiva e decide em definitivo, não quer dizer que o Serviço Nacional de Seguros estrangeiro tenha que responder independentemente da responsabilidade civil do condutor não segurado. Querem dizer apenas que, no litígio entre aquele Serviço e o lesado, quem tem competência para decidir é aquele Serviço e não o Serviço estrangeiro. As normas não dizem que o Serviço estrangeiro não concordando com a existência da responsabilidade tenha que satisfazer o que lhe for pedido pelo Serviço do Estado do acidente. Ou que o tenha de fazer mesmo que não haja responsabilidade civil do veículo com estacionamento estrangeiro. Todo o regime está construído no pressuposto de que o Serviço Nacional de Seguros do país do acidente só pague ao lesado se o veículo com estacionamento no estrangeiro for responsável pelo acidente (naturalmente com base na culpa ou no risco). E, portanto, obriga-se os outros Serviços Nacionais de Seguro a reembolsar o do país do acidente nesse pressuposto. Mas se não se verificar esse pressuposto não tem sentido fazer esse pagamento. Quer isto dizer que acidente causado pelo veículo é um acidente da responsabilidade do condutor desse veículo, seja por culpa, seja pelo risco. Não se trata, pois, de uma expressão sem um significado jurídico preciso, isto é, que possa ser considerada irrelevante e afastada sem mais. De qualquer modo, as normas do Regulamento Geral são normas acordadas pelos Serviços Nacionais de Seguros, isto é, pelas seguradoras/ /membros do Conselho dos Serviços Nacionais e só regulam as relações entre os Serviços Nacionais de Seguros. As relações destes com os organismos de indemnização criados por força das Directivas europeias são reguladas por legislação nacional emitida ao abrigo dessas Directivas (agora consolidadas na Directiva 2009/103/CE, de 16/09/2009 – tendo o artigo 10 aquelas que dizem respeito ao Fundo), no caso o artigo 55 do regime do DL 291/2007 e é esse artigo que, sem deixar de vincular o Fundo ao reembolso do Gabinete pelo montante despendido por este ao abrigo do Acordo entre os serviços nacionais de seguros, estabelece os pressupostos desse direito de regresso. Por fim, não se diga, como o faz o acórdão do STJ, que o Fundo poderá utilizar a faculdade prevista no artigo 56/1 do regime do DL 291/2007 [aliás bastante mais limitada ao tempo do acórdão, nos termos do art.º 55 - e não do 25 citado pelo acórdão - do DL 522/85] de exigir de “todas as entidades públicas ou privadas de cuja colaboração o Fundo careça para efectuar, nos termos da presente secção, a cobrança dos reembolsos, […que] prest[em], de forma célere e eficaz, as informações e o demais solicitado […]”, porque, primeiro, é uma faculdade que se dirige às entidades nacionais e nestes casos o acidente deu-se necessariamente no estrangeiro; segundo, porque esse direito de exigir a colaboração para ter o sentido sugerido de poder solicitar ao Gabinete os elementos que demonstrem a culpa do condutor do veículo não segurado, entraria em contradição com a tese de que o Gabinete não tem de provar os pressupostos da responsabilidade civil do condutor do veículo não seguro perante o Fundo; terceiro, porque se o Gabinete não teve o cuidado de obter os elementos necessários quando fez o pagamento, não se vê como é que, depois disso, os iria obter. Já a declaração do acórdão do TJUE – que também está certa – não tem nenhum interesse para o caso (ao contrário do entendimento do Fundo), pois que se limita a constatar, sem mais, apenas porque a Carta não se aplica ao caso, que esta e o direito comunitário obviamente – porque não se aplicam – não se opõem ao que uma jurisprudência nacional diz sobre o seu próprio direito nacional interno (para além disso, o acórdão do TJUE não disse, ao contrário do que o Fundo sugere, que o Regulamento Geral […] não [é] aplicável e consequentemente não é vinculativo nem oponível aos organismos emergentes das Directivas Automóveis, designadamente ao réu, que não o subscreveu” Nas partes citadas pelo Fundo, o acórdão do TJUE estava a dizer porque é que o Regulamento Geral não era direito comunitário, razão pela qual, o TJUE não era “competente para decidir, a título prejudicial, sobre as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, que visam a interpretação do Regulamento Geral.” * Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente. O Gabinete perde as suas custas de parte (não há outras, pois que o Fundo não contra-alegou). Lisboa, 06/07/2023 Pedro Martins Inês Moura Higina Castelo |