Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
770/12.3TBSXL.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
REENVIO PREJUDICIAL
OBRIGATORIEDADE DE CONTRATO DE SEGURO
VEÍCULO GUARDADO FORA DA VIA PÚBLICA
FALTA DE CONTRATO DE SEGURO
SUB-ROGAÇÃO DO FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
NATUREZA JURÍDICA DA SUB-ROGAÇÃO
RESPONSÁVEIS CIVIS PELO ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE PELO RISCO.
Doutrina:
- Arnaldo Oliveira, Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, p. 100.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 503.º, N.º 1.
SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL, APROVADO PELO DL N.º 522/85, DE 31-12: - ARTIGOS 1.º, 2.º E 25.º, N.º 3.
Referências Internacionais:
DIRETIVA 72/166/CEE DO CONSELHO, DE 24-4-1972: - ARTIGO 3.º, N.º 1.
DIRETIVA 2005/14/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 11-05-2005.
SEGUNDA DIRETIVA 84/5/CEE DO CONSELHO, DE 30-12-1983: - ARTIGO 1.º, N.º 4.
DIRETIVA 2005/14/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 11-5-2005.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 30-04-1996, IN DR, I SÉRIE, DE 24-04-1996;
- DE 21-01-2003, CJ, TOMO I, P. 39;
- DE 02-03-2004, PROCESSO N.º 03A3499, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 19-06-2012, PROCESSO N.º 82-C/2000, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-01-2018, PROCESSO N.º 126/10, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 19-03-2015, PROCESSO N.º 9036/11, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 25-05-2004, PROCESSO N.º 1474/04, SUMARIO IN WWW.STJ.PT.
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):


- DE 04-12-2003, EVANS, C-63/01, EU:C:2003:650, N.° 32;
- DE 11-07-2013, CSONKA E O. C-409/11, EU:C:2013:512, N° 24, 30 A 32;
- DE 04-09-2014, VNUK, C-162/13, EU:C:2014:2146, N° 38;
- DE 28-11-2017, RODRIGUES DE ANDRADE, C-514/16, EU:C:2017:908, N° 29, 32 E 33;
- DE 20-12-2017, NÚÑEZ TORREIRO (C-334/16, EU:C:2017:1007.
Sumário :
I. O Tribunal de Justiça da União Europeia, por acórdão de 4-9-2018, decidiu que:

“O art. 3°, n° 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24-4-72, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, alterada pela Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11-5-05, deve ser interpretado no sentido de que a celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil relativa à circulação de um veículo automóvel é obrigatória quando o veículo em causa continua matriculado num Estado‑Membro e está apto a circular, mas se encontra, unicamente por opção do seu proprietário que já não tenciona conduzi‑lo, estacionado num terreno particular”.

II. Em face do disposto no DL nº 522/85, aplicável ao caso (arts. 1º e 2º), o facto de a proprietária do veículo automóvel que interveio num acidente de viação (matriculado em Portugal) o ter sido deixado estacionado no quintal da residência não a dispensava do cumprimento da obrigação legal de celebração de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, uma vez que se encontrava apto a circular.

III. Decidiu ainda o Tribunal de Justiça da União Europeia, no mesmo acórdão, que:

“O art. 1°, n° 4, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30-12-83, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, alterada pela Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11-5-05, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que prevê que o organismo referido nesta disposição tem direito de regresso não só contra o responsável ou responsáveis pelo sinistro mas também contra a pessoa que estava sujeita à obrigação de contratar um seguro de responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo que causou os danos indemnizados por este organismo, mas não tinha celebrado um contrato para esse efeito, mesmo que essa pessoa não seja civilmente responsável pelo acidente no âmbito do qual esses danos ocorreram”.

IV. O regime do direito de reembolso por parte do Fundo de Garantia Automóvel relativo às indemnizações pagas a terceiros por danos decorrentes de acidente de viação causado por veículo não abarcado por contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil encontrava-se regulado no art. 25º, nº 3, do DL nº 522/85, segundo a qual “as pessoas que, estando sujeitas à obrigação de segurar, não tenham efetuado seguro poderão ser demandadas pelo FGA, nos termos do nº 1 …” ou seja, que, “satisfeita a indemnização, o FGA fica sub-rogado nos direitos do lesado …”.

V. Assim, agindo o FGA na qualidade de credor sub-rogado nos direitos do lesado que por essa entidade tenham sido satisfeitos, o reembolso apenas pode ser exigido daquele relativamente ao qual se constituiu na esfera do lesado o direito de indemnização que tenha sido satisfeito pelo FGA.

VI. A mera qualidade de proprietária do veículo que interveio no acidente de viação e que um terceiro colocou em circulação, sem a sua autorização ou conhecimento, não torna aquela “responsável civil” pelos danos causados aos passageiros que nesse veículo eram transportados, já que, para efeitos do art. 503º, nº 1, do CC, não detinha a sua direção efetiva.

VII. Embora a proprietária do veículo não tenha cumprido anteriormente a obrigação legal de celebração de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, não a torna responsável perante o FGA pelo reembolso da indemnização que este pagou aos terceiros lesados no acidente de viação, uma vez que na esfera jurídica destes não se constituiu contra tal proprietária qualquer direito de indemnização que, pela via da sub-rogação, se tenha transmitido para o FGA.

Decisão Texto Integral:
I - O FUNDO de GARANTIA AUTOMÓVEL intentou ação declarativa com processo comum contra AA e contra BB.

Pediu a condenação das RR. no pagamento da quantia de € 437.345,85, com juros de mora vencidos (no valor de € 5.272,11) e vincendos, e ainda o pagamento das despesas de liquidação e cobrança a liquidar.

Alegou que no dia 19-11-06 ocorreu um acidente de viação que foi causado pelo despiste de um veículo automóvel conduzido pelo filho da 1ª R. e pai da 2ª R., do qual resultou a morte do condutor e de um dos passageiros e lesões corporais graves noutro passageiro que posteriormente também veio a falecer.

Mais alegou que o veículo automóvel era propriedade da 1ª R., a qual não tinha celebrado contrato de seguro de responsabilidade civil para a sua circulação.

Alegou ainda que o condutor da mesma viatura não era titular de licença que o habilitasse ao exercício da condução automóvel e era portador de uma taxa de álcool no sangue de 1,77 gr/l e que, em observância da lei, pagou aos herdeiros dos lesados indemnizações que totalizam € 437.345,85.


A 1ª R. contestou alegando que não estava obrigada a efetuar o seguro do automóvel, uma vez que não pretendia colocá-lo em circulação, estando o mesmo, à data dos factos, recolhido no quintal da sua vivenda de onde foi retirado, sem o seu consentimento, pelo seu filho. Ainda em sede de exceção perentória arguiu a prescrição da obrigação de indemnizar por decurso do prazo legal de 3 anos sobre a data da verificação do acidente.


A 2ª R., filha do condutor do veículo, não apresentou contestação.


O Fundo de Garantia Automóvel requereu a ampliação do pedido, alegando que, para além da quantia de € 94.965,23 que pagou a título de indemnização de danos provocados no lesado CC, ainda procedeu ao pagamento de mais duas prestações mensais de € 2.500,00 pelo seu internamento até falecer. Assim, a indemnização global passou para € 447.617,00, ampliação que foi admitida por decisão de fls. 165 e 166.


No despacho saneador foi julgada improcedente a exceção de prescrição invocada pela R. AA.


Realizado o julgamento, foi proferida sentença que:

- Condenou solidariamente as RR. no pagamento da quantia de € 337.353,84, com juros de mora, vencidos, no valor de € 27.616,80, bem como juros de mora vincendos, à taxa legal de juros civis, até integral pagamento,

- Condenou solidariamente as RR. no pagamento ao A. das despesas de cobrança com a interposição da presente ação, a liquidar posteriormente,

- Condenou a R. AA no pagamento ao A. da quantia de € 30.426,60 de juros vencidos.


Tanto o A. como a R. AA interpuseram recursos de apelação da sentença, tendo sido julgado improcedente o recurso de apelação do A. e procedente o recurso de apelação da R. AA, a qual foi absolvida do pedido.


O A. interpôs recurso de revista e alegou, no essencial, que existem riscos próprios dos veículos que implicam a obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil mesmo quando não se encontrem em circulação, podendo exigir da 1ª R. o reembolso das quantias despendidas com o pagamento das indemnizações decorrentes do acidente de viação que vitimou os passageiros transportados no veículo.

A R. AA contra-alegou e defendeu a tese inversa, no sentido de que não estava obrigada a contratar o seguro de responsabilidade civil, não respondendo, pois, perante o Fundo de Garantia Automóvel.


Em face da divergência expressa nos autos e das dúvidas interpretativas acerca do alcance da obrigação de contratar o seguro de responsabilidade civil automóvel suscitadas quer pela legislação nacional, quer pelas Diretivas Europeias, foi suscitado o reenvio prejudicial perante o TJUE nos seguintes termos:

1) Deve o art. 3º da Diretiva do Conselho 72/166/CEE, de 24 de Abril de 1972 (em vigor na data do acidente) ser interpretado no sentido de que a obrigatoriedade de contratação de seguro de responsabilidade civil automóvel abarca mesmo as situações em que o veículo, por opção do proprietário, se encontra imobilizado num quintal particular, fora da via pública?

ou,

Independentemente da responsabilidade que venha a ser assumida pelo Fundo de Garantia Automóvel perante os terceiros lesados, designadamente em casos de furto de uso do veículo, naquelas circunstâncias não recai sobre o proprietário do veículo a obrigação de segurar?


2) Deve o art. 1º, nº 4, da Diretiva do Conselho 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (em vigor na data do acidente) ser interpretado no sentido de que o Fundo de Garantia Automóvel que, por falta de contrato de seguro de responsabilidade civil, efetuou o pagamento da indemnização aos terceiros lesados por acidente de viação causado por veículo automóvel que, sem conhecimento e autorização do proprietário, foi retirado do terreno particular onde se encontrava imobilizado, tem o direito de sub-rogação contra o proprietário do veículo, independentemente da responsabilidade deste pelo acidente?

ou,

A sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel relativamente ao proprietário depende da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, designadamente do facto de, na ocasião em que ocorreu o acidente, o proprietário ter a direção efetiva do veículo?


Recebida a resposta foi proporcionada às partes a possibilidade de apresentarem alegações complementares.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II – Factos provados:

1. No dia 19-11-06, cerca das 5h 10m, na EN nº 378, no Seixal, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros, de marca Rover, modelo 200, com a matrícula ...-...-MS;

2. Na data e hora do sinistro acima mencionado, o veículo MS circulava no sentido Sul/Norte (Sesimbra-Fogueteiro) da EN nº 378, sendo conduzido por DD (1º);

3. Após o viaduto de acesso à A-2 o referido veículo entrou em despiste, saiu fora da faixa de rodagem e passou a circular fora da via numa área de terra batida (2º);

4. Seguidamente, o mesmo foi embater com a sua parte dianteira numa caixa pertencente à EDP e na parede lateral de uma residência existente na Quinta … (3º);

5. O sinistro ocorreu numa reta de boa visibilidade, sendo a estrada constituída por duas faixas de rodagem no sentido do MS, com uma largura de 6 metros de piso betuminoso (4º);

6. À data desse sinistro o referido veículo era propriedade da R. AA, não dispondo, na mesma data, de seguro de responsabilidade civil automóvel;

7. Em virtude da insuficiência renal de que padecia e da hemodiálise que então tinha que realizar, a R. AA, antes da data do acidente, havia deixado de conduzir o veículo automóvel MS, tendo-o recolhido no seu quintal de onde nunca mais o retirou (30º);

8. No dia 18 ou 19-11-06 DD, sem o conhecimento e a autorização da R. AA, retirou as chaves da viatura de uma gaveta do quarto desta e retirou o referido veículo do quintal da mesma, colocando-o em circulação (31º);

9. DD não detinha habilitação legal para conduzir veículos automóveis e era portador, no momento do sinistro, de álcool no sangue na permilagem de 1,77 gr (5º);

10. Em consequência do sinistro faleceu o referido DD, filho da R. AA e pai da R. BB, e ainda EE, solteira e nascida no dia 10-8-85;

11. EE e CC seguiam no interior do veículo MS como passageiros (6º);

12. Este último foi imediatamente transportado de ambulância para o Hospital …, em …, onde foi submetido a vários exames e aos primeiros tratamentos (7º);

13. CC sofreu, em consequência do sinistro, feridas por todo o corpo, politraumatismo grave, traumatismo crânio-encefálico grave com edema cerebral difuso, tendo necessitado de ventilação mecânica e sedação para controlo da pressão intracraniana, tendo sofrido também higroma subdural e sido submetido a intervenção cirúrgica (8º);

14. Devido ao seu estado de saúde foi transferido para o Hospital de …, em …, onde foi sujeito a diversas intervenções cirúrgicas, designadamente, no dia 6-12-06 (9º);

15. No dia 24-11-06, CC foi submetido a encavilhamento estático do fémur esquerdo tendo sofrido embolia gorda (10º);

16. Durante o internamento no Hospital de … o mesmo esteve entubado endotraquealmente e ventilado, tendo sido realizada, posteriormente, traqueostomia temporária (11º);

17. No internamento o mesmo desenvolveu uma bacteriemia (12º);

18. No dia 18-12-06 CC foi transferido para o Hospital …, em …, encontrando-se totalmente dependente para as atividades da vida diária e carecendo de aspiração frequente de secreções brônquicas (13º);

19. Com a assistência a CC o Hospital de …/Centro Hospitalar de Lisboa (Zona Central) suportou a quantia de € 30.186,02, que o A. lhe pagou (14º);

20. Durante o internamento no Hospital …, CC manteve estabilidade neurológica com estado vegetativo persistente, sem interação com o meio envolvente, com várias intercorrências infeciosas e dependendo totalmente de terceiros para a atividade diária (15º);

21. CC foi sujeito a uma intervenção cirúrgica de “shunt ventricular para órgãos e cavidades abdominais", no dia 7-3-07, no Hospital Garcia …, em … (16º);

22. O mesmo teve alta no dia 3-5-07, permanecendo totalmente dependente nas atividades da vida diária (17º);

23. Em consequência direta do acidente, CC teve morte cerebral e ficou em estado vegetativo, com uma incapacidade permanente global de 100% (18º);

24. Com a assistência hospitalar prestada ao mesmo, o Hospital …, EPE, em …, suportou, pelo menos, o montante € 12.360,03, que o autor lhe pagou (19º);

25. No dia 3-5-07 CC foi internado na Casa de Repouso FF, em … (20º);

26. Com o internamento e assistência ao lesado CC na Casa de Repouso FF o A. suportou, pelo menos, € 19.057,38 (21º);

27. A data do acidente CC exercia as funções correspondentes à categoria profissional de servente, sob autoridade e direção da GG - Construções, S.A., auferindo mensalmente a quantia ilíquida de € 800,00, nela incluindo alimentação completa (22º);

28. A título de dano biológico, tendo em consideração a idade de CC, o seu rendimento mensal, o grau de incapacidade de que ficou a padecer, o tipo de trabalho que tinha e a esperança média de vida, o A. pagou àquele a quantia de € 198.750,00 de indemnização (24º);

29. Os pais da falecida EE sofreram profundamente com a morte da sua filha, tendo-se sentido desesperados, infelizes e sem ânimo de viver (25º);

30. Pelos danos morais por eles sofridos e pela perda do direito à vida de EE a o A. pagou-lhes a quantia total de € € 75.000,00 (26º);

31. Com as despesas de funeral de EE suportou o ISS, IP-CNP, o montante de € 1.800,00, que lhe foi reembolsado pelo A. (27º);

32. Em despesas com a elaboração de relatórios médicos o A. despendeu o montante global de € 200,41 (29º);

33. A R. BB é a única herdeira de DD.

34. O A. enviou à R. AA, que as recebeu, as cartas datadas de 22-6-11 e 23-8-11, juntas a fls. 110 e 111, nas quais, solicitou o reembolso da quantia de € 422.345,85 (1ª carta) e de € 429.845,85 (2ª carta).


III – Decidindo:

1. Na presente ação a R. AA foi demandada na qualidade de proprietária do veículo automóvel que interveio no acidente de viação e no qual seguiam, para além do falecido condutor (o seu filho DD), dois outros indivíduos que vieram a falecer em consequências das lesões sofridas, tendo as respetivas indemnizações sido satisfeitas pelo A. Fundo de Garantia Automóvel, uma vez que, relativamente ao veículo interveniente no acidente, não existia contrato de seguro de responsabilidade civil.

Já a R. BB foi demandada na sua qualidade de herdeira do seu falecido pai, o referido condutor DD, responsável civil pelo acidente.

Na data em que ocorreu o sinistro, a R. AA era proprietária do veículo automóvel mas, devido a doença renal que a impossibilitava de conduzir, optara por recolhê-lo no quintal da sua residência. Devido a essa opção, não mantinha em vigor contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que abarcasse os danos causados pela circulação de tal veículo. O sinistro automóvel ocorreu depois de o filho da R. AA e pai da R. BB (DD) se ter apoderado das chaves do veículo sem o seu conhecimento e autorização daquela.

Foi despoletado perante o TJUE o reenvio prejudicial relativamente a questões suscitadas pela aplicação de direito da União Europeia, tendo sido recebida a resposta que irá ser ponderada na resolução do caso concreto que é da exclusiva competência deste Supremo Tribunal de Justiça.


2. Os factos pertinentes são os seguintes:

- No dia 19-11-06, cerca das 5h 10m, na EN nº 378, no Seixal, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros, de marca Rover, modelo 200, com a matrícula ...-...-MS;

- À data desse sinistro o veículo matrícula ...-...-MS era propriedade da R. AA, não dispondo de seguro de responsabilidade civil automóvel;

- Em virtude da insuficiência renal de que padecia e da hemodiálise que então tinha que realizar, a R. AA, antes da data do acidente, havia deixado de conduzir o veículo automóvel, tendo-o recolhido no seu quintal, de onde nunca mais o retirou;

- Mas no dia 18 ou 19-11-06, o seu filho DD, sem o seu conhecimento ou autorização, apoderou-se das chaves da viatura e retirou o referido veículo do quintal, colocando-o em circulação;

- EE e CC seguiam no interior do veículo como passageiros;

- Em consequência do sinistro, faleceu o referido DD e ainda EE;

CC sofreu feridas por todo o corpo, politraumatismo grave, traumatismo crânio-encefálico grave com edema cerebral difuso, tendo necessitado de ventilação mecânica e sedação para controlo da pressão intracraniana, tendo sofrido também higroma subdural e sido submetido a intervenção cirúrgica; em consequência direta do acidente CC teve morte cerebral e ficou em estado vegetativo, com uma incapacidade permanente global de 100%, vindo a falecer mais tarde;

- O Fundo de Garantia Automóvel indemnizou os pais de EE, e atribuiu uma indemnização pelos danos sofridos pelo lesado CC.

- O Fundo de Garantia Automóvel enviou à R. AA, que as recebeu, cartas datadas de 22-6-11 e 23-8-11, nas quais, solicitou o reembolso da quantia de € 422.345,85 (1ª carta) e de € 429.845,85 (2ª carta).


3. A primeira questão a resolver consiste em saber se o facto de o veículo automóvel estar imobilizado no quintal da casa da R. AA, sua proprietária, a dispensava da obrigação de contratar um seguro de responsabilidade civil ou se, pelo contrário, essa obrigação se mantinha.


3.1. No precedente reenvio prejudicial foi o TJUE inquirido se:

“Em face do art. 3º da Diretiva do Conselho 72/166/CEE, de 24-4-72 (em vigor na data do acidente), a obrigatoriedade de contratação de seguro de responsabilidade civil automóvel abarcava mesmo as situações em que o veículo estava fora de circulação, designadamente quando, por opção do proprietário, se encontrava imobilizado num quintal particular, fora da via pública?”

Ou

“Independentemente da responsabilidade que viesse a ser assumida pelo Fundo de Garantia Automóvel, nessas circunstâncias não recaía sobre o proprietário do veículo a obrigação de segurar?”

A resposta que foi dada foi a seguinte:

“O art. 3°, n°1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24-4-72, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, conforme alterada pela Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11-5-05, deve ser interpretado no sentido de que a celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil relativa à circulação de um veículo automóvel é obrigatória quando o veículo em causa continua matriculado num Estado-Membro e está apto a circular, mas se encontra, unicamente por opção do seu proprietário que já não tenciona conduzi‑lo, estacionado num terreno particular”.

Na sustentação de tal solução o TJUE referiu que:

“35 … importa salientar que, em conformidade com o art. 3°, n° 1, da 1ª Diretiva, cada Estado-Membro, sem prejuízo da aplicação do art. 4° desta Diretiva, adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.

36. Por conseguinte, o art. 3°, n°1, da 1ª Diretiva, redigido em termos muito genéricos, impõe aos Estados-Membros que instituam, na sua ordem jurídica, uma obrigação geral de seguro dos veículos (v., neste sentido, Ac. de 11-7-13, Csonka e o. C-409/11, EU:C:2013:512, n° 24).

37. Assim, cada Estado-Membro deve assegurar que, sob reserva das derrogações previstas no art. 4° daquela diretiva, todos os veículos com estacionamento habitual no seu território estejam cobertos por um contrato celebrado com uma companhia de seguros, de modo a garantir, dentro dos limites definidos pelo direito da União, a responsabilidade civil resultante do referido veículo (v., neste sentido, Ac. de 11-7-13, Csonka e o., C-409/11, EU:C:2013:512, n°28).

38. O conceito de «veículo» está definido, no art. 1°, n°1, da 1ª Diretiva, como «qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo». Esta definição é independente da utilização que se faça, ou se possa fazer, do veículo em causa (Acs. de 4-9-14, Vnuk, C-162/13, EU:C:2014:2146, n° 38, e de 28-11-17, Rodrigues de Andrade, C-514/16, EU:C:2017:908, n° 29).

39. Como salientou o advogado-geral nos nos 63 a 65 das suas conclusões, essa definição milita a favor de uma interpretação objetiva do conceito de «veículo», que é independente da intenção do proprietário do veículo ou do facto de outra pessoa o utilizar efetivamente.

40. Por outro lado, importa sublinhar que, ao invés, designadamente, dos processos que deram origem aos Acs. de 4-9-14 Vnuk (C-162/13, EU:C:2014:2146), de 28-11-17, Rodrigues de Andrade (C-514/16, EU:C:2017:908), e de 20-12-17, Núñez Torreiro (C-334/16, EU:C:2017:1007), em que o Tribunal de Justiça, relativamente a veículos automóveis para os quais tinha sido contratado um seguro de responsabilidade civil resultante da sua circulação, foi chamado a precisar os casos de utilização do veículo segurado abrangidos pelo âmbito da cobertura de seguros contratada, o processo principal diz respeito à questão, distinta, do alcance da obrigação de contratar esse seguro, que deve, por motivos de segurança jurídica, ser determinado antecipadamente, ou seja, antes de uma eventual participação do veículo em causa num acidente.

41. Por conseguinte, o facto de, em substância, o Tribunal de Justiça ter declarado, nos acórdãos referidos no número anterior, que só os casos de utilização do veículo segurado que constituam uma utilização deste como meio de transporte e, em consequência, que se enquadrem no conceito de «circulação de veículos», na aceção do art. 3°, n°1, da 1ª Diretiva e do art. 3°, 1º § parágrafo, da Diretiva 2009/103, são suscetíveis de implicar a cobertura pela seguradora, ao abrigo do contrato de seguro de responsabilidade civil resultante da circulação deste veículo, do prejuízo causado por este último, não significa, de forma alguma, que a existência da obrigação de contratar tal seguro deve ser determinada em função da utilização efetiva do veículo em causa como meio de transporte num dado momento.

42. Atendendo às considerações precedentes, há que considerar que um veículo que está matriculado e não foi regularmente retirado da circulação, e que está apto a circular, se enquadra no conceito de «veículo», na aceção do art. 1°, ponto 1, da 1ª Diretiva, e, por conseguinte, não deixa de estar abrangido pela obrigação de seguro prevista no art. 3°, n° 1, da referida diretiva, apenas porque o seu proprietário já não tem a intenção de conduzi-lo e o imobiliza num terreno particular.

43. A interpretação que precede não é posta em causa pelo argumento do Governo alemão, da Irlanda, do Governo italiano e do Governo do Reino Unido, segundo o qual não é necessária uma conceção ampla do alcance da obrigação geral de seguro, na medida em que os danos que ocorrem em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal poderiam ser indemnizados pelo organismo referido no art. 1°, n°4, da 2ª Diretiva.

44. Com efeito, conforme resulta da letra desta disposição, esta obriga os Estados-Membros a criar um organismo que tenha por função reparar, pelo menos dentro dos limites da obrigação de seguro previstos pelo direito da União, os danos materiais ou pessoais causados designadamente por veículos relativamente aos quais não tenha sido satisfeita essa obrigação.

45. Como tal, a intervenção desse organismo foi concebida como uma medida de último recurso, prevista unicamente nos casos mencionados por essa disposição, e não se pode considerar que constitua a criação de um sistema de garantia de seguro de responsabilidade civil relativa à circulação de veículos fora dos casos referidos (v., neste sentido, Ac. de 11-7-13, Csonka e o., C-409/11, EU:C:2013:512, nos 30 a 32).

46. Como salientou o advogado-geral no n° 34 das suas conclusões, o âmbito da intervenção obrigatória do organismo de indemnização referido no art. 1°, n°4, da 2ª Diretiva coincide, portanto, no que se refere aos danos causados por um veículo identificado, com o alcance da obrigação geral de seguro prevista no art. 3°, n° 1, da 1ª Diretiva. A intervenção obrigatória deste organismo em tal situação não pode, portanto, alargar-se aos casos em que o veículo envolvido num acidente não estava abrangido pela obrigação de seguro.

47. De resto, a interpretação acolhida nos nos 38 a 42 do presente acórdão permite assegurar a realização do objetivo de proteção das vítimas de acidentes causados por veículos automóveis, visado pelas diretivas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação destes veículos, que foi constantemente prosseguido e reforçado pelo legislador da União (Ac. de 28-11-17, Rodrigues de Andrade, C-514/16, EU:C:2017:908, nos 32, 33 e jurisprudência referida). Com efeito, esta interpretação garante que estas vítimas sejam, em qualquer circunstância, ressarcidas, seja pela seguradora, nos termos de um contrato celebrado para esse efeito, seja pelo organismo referido no art. 1°, n°4, da 2ª Diretiva, no caso de não ter sido cumprida a obrigação de segurar o veículo envolvido no acidente ou quando esse veículo não tiver sido identificado.

48. No processo principal, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que o veículo de AA tinha estacionamento habitual no território de um Estado-Membro, ou seja, Portugal. Com efeito, esse veículo continuava, à data dos factos no processo principal, matriculado nesse Estado-Membro.

49. Além disso, o veículo estava em funcionamento, como comprovado pelo facto de o filho de AA o conduzir no momento em que o acidente ocorreu.

50. Nestas condições, estava abrangido pela obrigação de seguro prevista no art. 3°, n°1, da 1ª Diretiva.

51. Como resulta das considerações precedentes, o facto de AA o ter estacionado num terreno particular, isto é, no quintal da sua casa, antes de o seu filho dele tomar posse, e de não ter intenção de conduzi-lo, não é pertinente para este efeito.

52. Atendendo às considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o art. 3°, n°1, da 1ª Diretiva, deve ser interpretado no sentido de que a celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil relativa à circulação de um veículo automóvel é obrigatória quando o veículo em causa continua matriculado num Estado-Membro e está apto a circular, mas se encontra, unicamente por opção do seu proprietário que já não tenciona conduzi-lo, estacionado num terreno particular”.


3.2. A solução que, segundo o acórdão do TJUE, emanava das Diretivas que estavam em vigor na data em que ocorreu o acidente influem na resposta àquela primeira questão.

Vejamos:

Segundo o art. 3º da Diretiva do Conselho 72/166/CEE, de 24-4-72, cada Estado Membro deveria adotar “todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro”.

Em transposição de tal Diretiva foi publicado o DL nº 522/85, cujo art. 1º, nº 1, dispunha que “toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semirreboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade”.

Prescrevia o seu art. 2º que “a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, excetuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a referida obrigação recai, respetivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário”.

E nos termos do art. 8º, nº 1, do mesmo diploma, “o contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no art. 2.º e dos legítimos detentores e condutores do veículo”, assim como garante “a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte” (nº 2).


3.3. Tendo sido relegada para o direito nacional a identificação do obrigado ou obrigados à celebração do contrato de seguro de responsabilidade civil, do regime que estava em vigor na data em que ocorreu o acidente (DL nº 522/85) resulta que um veículo que, por opção do proprietário, estivesse estacionado num quintal particular, mas em condições de ser posto a circular, não estava dispensado desse contrato de seguro.

Sendo legítimas diversas opções em sede de transposição da referida Diretiva, o legislador nacional, depois de ter consagrado no art. 1º do DL 522/85 uma solução que parecia estabelecer uma interconexão entre a imputação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação e a obrigação de transferir para uma Seguradora essa responsabilidade, logo no art. 2º, nº 1, procedeu à identificação dos sujeitos submetidos a tal obrigação primária, com destaque para o proprietário (sem embargo de a obrigação poder ser suprida mediante a celebração de contrato por qualquer outro sujeito, nos termos dos nºs 2 e 3 do mesmo artigo).

Assim, independentemente das circunstâncias subjetivas que levaram a proprietária do veículo a guardá-lo no quintal da sua vivenda, não estava, apesar disso, dispensada do cumprimento da obrigação de celebrar ou de manter em vigor um contrato de seguro de responsabilidade civil, uma vez que tal veículo se encontrava em condições de ser posto a circular, como veio a ocorrer quando ocorreu o sinistro automóvel.

Conquanto o objetivo principal do seguro obrigatório seja o de garantir perante terceiros a responsabilidade conexa com os riscos inerentes à circulação de veículos automóveis que, em geral, recaem sobre os proprietários e/ou legítimos detentores ou condutores (art. 503º, nº 1, do CC), a responsabilidade transferida para as Seguradoras é extensiva aos danos causados por acidentes subsequentes a atos de apropriação indevida dos veículos, v.g. em casos de roubo, de furto ou, como ocorreu no caso, de furto de uso (art. 8º, nº 3), num a ideia, que acompanha as Diretivas Europeias, de colocar em primeiro plano a tutela dos terceiros lesados que naturalmente são alheios aos motivos da outorga ou não de contratos de seguro automóvel, ou para quem é indiferente o motivo pelo qual os veículos causadores dos sinistros foram postos em circulação.

Devendo a obrigatoriedade de celebração do contrato de seguro automóvel ser apreciada ex ante e não apenas depois de ocorrer o sinistro, a opção da proprietária do veículo de o guardar no quintal da sua vivenda não criou resistência suficiente para evitar os riscos inerentes à colocação do mesmo em circulação, como veio a ocorrer.

Reunindo o veículo dos autos condições que o tornavam apto a circular, como veio a ocorrer, foi o incumprimento daquela obrigação que determinou a intervenção subsidiária do Fundo de Garantia Automóvel para satisfazer as indemnizações devidas aos terceiros lesados ou aos seus familiares, responsabilidade que, situação inversa, seria imputada diretamente à Seguradora com a qual tivesse sido outorgado o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.


4. Questão diversa (segunda questão) é a de apurar se o simples facto de a R. AA, proprietária do veículo automóvel, não ter celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil que abarcasse os danos inerentes à circulação do mesmo, implica que deva ser condenada a reembolsar o Fundo de Garantia Automóvel dos quantitativos despendidos com o pagamento das indemnizações aos terceiros lesados ou seus familiares.


4.1. Quanto a esta esta segunda questão, o TJUE foi inquirido da seguinte forma:

“Ao abrigo do art. 1º, nº 4, da Diretiva do Conselho 84/5/CEE, de 30-12-83 (em vigor na data do acidente), o Fundo de Garantia Automóvel que, por falta de contrato de seguro de responsabilidade civil, efetuou o pagamento da indemnização aos terceiros lesados por acidente de viação causado por veículo automóvel que, sem conhecimento e autorização do proprietário, foi retirado do terreno particular onde se encontrava imobilizado, tinha o direito de sub-rogação contra o proprietário do veículo, independentemente da responsabilidade deste pelo referido sinistro aferida nos termos do art. 503º, nº 3, do CC Português e independentemente da obrigação de segurar?”

ou

“Considerando que o objetivo fundamental das Diretivas Europeias é o da proteção dos terceiros lesados, a sub-rogação relativamente ao proprietário dependia da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, designadamente do facto de, na ocasião em que ocorreu o acidente, o proprietário ter a direção efetiva do veículo (nos termos previstos no art. 503º, nº 1, do CC Português) e do facto de sobre ele recair a obrigação de segurar?”

A resposta dada pelo TJUE foi a seguinte:

“O art. 1°, n° 4, da 2ª Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30-12-83, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, conforme alterada pela Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11-5-05, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que prevê que o organismo referido nesta disposição tem direito de regresso não só contra o responsável ou responsáveis pelo sinistro mas também contra a pessoa que estava sujeita à obrigação de contratar um seguro de responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo que causou os danos indemnizados por este organismo, mas não tinha celebrado um contrato para esse efeito, mesmo que essa pessoa não seja civilmente responsável pelo acidente no âmbito do qual esses danos ocorreram”.

Para o efeito argumentou o TJUE do seguinte modo:

“53. Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o art. 1°, n°4, da 2ª Diretiva, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê que o organismo referido nessa disposição tem direito de regresso contra a pessoa que estava sujeita à obrigação de contratar um seguro de responsabilidade civil resultante da circulação do veículo que causou os danos suportados por esse organismo, mas não celebrou um contrato para esse efeito, mesmo que essa pessoa não seja civilmente responsável pelo acidente no âmbito do qual estes danos ocorreram.

54. A este respeito, importa salientar que o art. 1°, n°4, da 2ª Diretiva deixa expressamente em aberto a possibilidade de os Estados-Membros darem à intervenção do referido organismo um caráter subsidiário e permite-lhes regulamentar os recursos entre esse mesmo organismo e os responsáveis do sinistro, bem como as relações com outros seguradores ou organismos da segurança social obrigados a indemnizar a vítima pelo mesmo sinistro (v., neste sentido, Ac. de 4-12-03, Evans, C-63/01, EU:C:2003:650, n.° 32).

55. Apesar de o legislador da União ter pretendido preservar o direito de os Estados-Membros regulamentarem os recursos do organismo de indemnização, referido no art. 1°, n°4, da 2ª Diretiva, designadamente, contra «o responsável ou responsáveis pelo sinistro», não harmonizou, todavia, os diferentes aspetos relativos aos recursos desse organismo, em especial a determinação das outras pessoas suscetíveis de serem objeto desse recurso, pelo que, como sublinhou a Comissão, estes elementos fazem parte do direito nacional de cada Estado-Membro.

56. Assim, a legislação nacional pode prever que, quando o proprietário do veículo envolvido no acidente não cumpriu a obrigação que lhe incumbia de segurar o veículo, como no presente caso, nos termos do direito nacional, o referido organismo de indemnização pode exercer o direito de regresso não só contra o responsável ou responsáveis pelo sinistro mas também contra esse proprietário, independentemente da responsabilidade civil deste último na ocorrência do acidente.

57. Atendendo às considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o art. 1°, n°4, da 2ª Diretiva deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que prevê que o organismo referido nesta disposição tem direito de regresso não só contra o responsável ou responsáveis pelo sinistro mas também contra a pessoa que estava sujeita à obrigação de contratar um seguro de responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo que causou os danos indemnizados por este organismo, mas não tinha celebrado um contrato para esse efeito, mesmo que essa pessoa não seja civilmente responsável pelo acidente no âmbito do qual esses danos ocorreram”.


4.2. Depois de no art. 3º da Diretiva 72/166/CEE, de 24-4-1972, ter sido imposto a cada Estado-Membro o dever de adotar “todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro”, o art. 1º, nº 4, da Diretiva 84/5/CEE, de 30-12-1983, criou o dever complementar de cada Estado-Membro legislar no sentido de “criar ou autorizar a criação de um organismo que tenha por missão reparar … os danos materiais ou corporais causados por veículos … relativamente aos quais não tenha sido satisfeita a obrigação de seguro referida no nº 1”.

Esclareceu o TJUE no precedente reenvio prejudicial que desta última Diretiva não resultava para os Estados-Membros a obrigatoriedade de adotarem uma solução uniforme, sendo dada a possibilidade de cada um regular o modo de satisfazer aquele objetivo final de proteger os terceiros lesados, mesmo nos casos em que os veículos intervenientes nos acidentes não estivessem abarcados por contrato de seguro de responsabilidade civil.

Nos termos que o TJUE também esclareceu, essa autonomia legislativa era extensiva ao regime do reembolso dos quantitativo adiantados pelo organismo de reparação criado para o efeito, considerando-se que não afrontaria o Direito Europeu uma solução interna que, porventura, permitisse que esse reembolso fosse exigido do proprietário do veículo só pelo facto de não ter celebrado contrato de seguro.

Aqui reside o nó górdio do presente recurso de revista, importando apurar se, em face do DL nº 522/85, a 1ª R., proprietária do veículo, que incumpriu a obrigação de contratar o seguro de responsabilidade civil responde perante o Fundo de Garantia Automóvel pelo reembolso das indemnizações que foram satisfeitas por este organismo, independentemente da sua qualidade de “responsável civil” pelo acidente que vitimou os lesados ou se, porventura, essa obrigação apenas lhe poderia ser imposta se acaso houvesse motivos para lhe imputar ainda a responsabilidade civil pelo concreto acidente de viação.


4.3. A responsabilidade civil extracontratual do proprietário do veículo pode emergir quer de uma atuação culposa (arts. 483º e ss. do CC), quer de normas que impliquem responsabilidade objetiva ou pelo risco, nos termos do art. 503º, nº 1.

Não havendo motivo para assacar ao proprietário de veículo automóvel a responsabilidade subjetiva ou culposa pelo acidente causador de danos em terceiros, o simples facto de alguém ser proprietário de um veículo automóvel não o coloca na posição inarredável de responsável pelos danos decorrentes da sua circulação. Tal responsabilidade depende da verificação de uma situação que traduza a direção efetiva do veículo, nos termos do art. 503º, nº 1, do CC, ainda que seja conduzido através de comissário (AUJ do STJ de 30-4-96, no D.R., I Série, de 24-4-96).

Quando o veículo seja posto a circular sem o conhecimento ou autorização do proprietário, como ocorre em todos os casos de roubo, de furto ou de furto de uso, o proprietário não tem (ou deixou de ter) a sua direção efetiva, não sendo, por isso, responsável pelas consequências do acidente que seja provocado, nem a título de culpa nem de risco.

Sendo certo que, existindo contrato de seguro obrigatório, em tais circunstâncias, a responsabilidade pelos danos causados a terceiros continua a ser suportada pela Seguradora com quem tenha sido celebrado contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil, a constituição da obrigação de reparar os danos decorria (e decorre) diretamente da lei (art. 8º, nº 3, do DL 522/85) e não por via da transferência da responsabilidade primária que se tenha constituído na esfera do tomador do seguro ou do proprietário do veículo.


4.4. Sendo este o regime emergente do instituto da responsabilidade civil extracontratual, vejamos qual o regime do reembolso de que beneficiava o Fundo de Garantia Automóvel referente às indemnizações suportadas perante  terceiros lesados.

Segundo o art. 21º do DL nº 522/85, competia ao FGA “satisfazer, nos termos do presente capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais”.

Já relativamente ao reembolso das quantias despendidas a título de indemnização aos terceiros lesados ditava o art. 25º, nº 3, que, “as pessoas que, estando sujeitas à obrigação de segurar, não tenham efetuado seguro poderão ser demandadas pelo Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do nº 1, beneficiando do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente, se os houver, relativamente às quantias que tiverem pago”. E nos termos do nº 1, “satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado …”.


4.5. Relativamente à questão em apreciação, a interpretação do regime legal por parte da jurisprudência nacional não conduzia a um resultado unívoco.

O primeiro confronto neste Supremo ocorreu com o Ac. de 2-3-04, 03A3499, em www.dgsi.pt, no qual, por maioria de 4 juízes, se concluiu que:

“I - Satisfeita pelo FGA, ao abrigo do art. 21º do DL nº 522/85, de 31-12, a indemnização exigida pelos lesados em acidente causado por viatura não segura, o Fundo fica sub-rogado nos direitos dos lesados, podendo, nos termos do art. 25º do mesmo diploma legal, exigir o reembolso dessa indemnização contra os responsáveis pelo acidente, isto é, contra qualquer das pessoas a quem possa ser imputada responsabilidade culposa ou pelo risco nos termos dos arts. 500º e 503º do CC.

II - O regime imposto pela lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não afasta a aplicação do art. 503º, nº 1, do CC, que não foi revogado.

III - O direito ao reembolso conferido ao FGA contra o dono da viatura - sujeito da obrigação de segurar fixada no art. 1º, nº 1, do DL nº 522/85, de 31-12 - não existe se o proprietário não puder ser responsabilizado civilmente pelos prejuízos que tal viatura cause.

IV - Não pode ser responsabilizado pelos danos emergentes da circulação da sua viatura o proprietário que, embora não beneficiando de seguro, não tinha, na altura do acidente, a direção efetiva dessa viatura, a qual foi posta a circular sem o seu conhecimento e contra a sua vontade por desconhecidos que a furtaram do interior da garagem onde estava recolhida”.

Tese semelhante foi adotada mais tarde pelo Ac. da Rel. de Lisboa, de 19-3-15, 9036/11, em www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere que:

“I - O direito ao reembolso do FGA contra o proprietário do veículo ou outrem a quem este tenha conferido a direção efetiva temporária do mesmo - como o garagista ou equiparado - ambos sujeitos à obrigação de segurar (arts. 1º, nº 1 e 3º, nºs 1 e 3, do DL nº 522/85), não se consubstancia se estes não puderem ser responsabilizados civilmente pelos prejuízos causados pelo veículo.

II - E estes não poderão ser responsabilizados se, embora sem seguro obrigatório automóvel, não tinham, aquando do acidente, a direção efetiva do veículo, por colocado em circulação mediante ato abusivo de outrem e assim abusivamente utilizado pelo condutor causador culposo do acidente”.

Já na pendência deste recurso, semelhante questão veio a ser apreciada no âmbito do Ac. do STJ de 18-1-18, 126/10, em www.dgsi.pt, que seguiu a mesma linha interpretativa, como o revela a seguinte síntese:

“…

III - Se a obrigação de segurar é imposta para permitir que a viatura circule e na justa medida em que o seu dono possa ser, civilmente, responsável pela reparação dos danos por ela causados, não se provando que o proprietário do veículo tinha a sua direção efetiva, na ocasião do acidente, mas antes o autor do «furtum usus» do mesmo, que sobre ele detinha o correspondente poder real, aquele não responde pelo risco, muito menos, a título de culpa, pelo que, não sendo responsável civil, o FGA, embora sub-rogado nos direitos dos lesados, a partir do momento em que lhes satisfez a indemnização, não pode exercer contra ele os direitos de crédito de que, em virtude deste pagamento, se tornou titular, inexistindo, assim, a obrigação de reembolso, com base na simples circunstância de não ter cumprido a obrigação de o segurar, se, designadamente, a viatura tiver sido posta a circular, sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, provocando, nessa situação, um acidente que causa danos a terceiros.

IV - Constituindo o pagamento do prémio do contrato de seguro um encargo do tomador que, razoavelmente, pode não querer assumir, se e enquanto o veículo não estiver em condições legais de circular, não deve ser imposto ao seu proprietário o reembolso da quantia paga ao lesado, pelo FGA, na consideração de que aquele goza do direito de regresso contra o responsável pelo acidente, nos termos do disposto pelo art. 54º, nºs 1, 3 e 5, do RSORCA, por não ter como função o de garante subsidiário do pagamento ao FGA”.

Solução diversa foi, no entanto, assumida no voto de vencido aposto àquele Ac. do STJ de 2-3-04:

“1. Para que o veículo possa circular o seguro é obrigatório quanto ao seu proprietário civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais - arts. 1º, nº 1 e 2º, nº 1.

2. O seguro garante a satisfação de indemnização devida pelos autores do furto do veículo - art. 8º, nº 2.

3. Neste caso, o responsável é o autor do furto que tem a direção efetiva do veículo e o conduz no seu próprio interesse (art. 503º, nº 1, do CC), garantindo a seguradora a reparação por danos de que não são responsáveis os sujeitos obrigados a segurar - arts. 2º e 8º, nº 1.

4. Tem consequentemente a seguradora direito de regresso contra o autor do furto causador do acidente, que não beneficia do seguro - arts. 8º, n.º 3 e 19º b).

5. O FGA substitui as seguradoras quando o obrigado a segurar não beneficia de seguro válido ou eficaz - art. 21º, nºs 1 e 2.

6. O autor do furto do veículo não beneficia da garantia do FGA - art. 24º, nº 2. Satisfeita a indemnização, o FGA fica sub-rogado nos direitos do lesado, podendo demandar em ação de reembolso o obrigado a segurar que não tenha efetuado seguro; este, por sua vez, tem direito de regresso contra o responsável pelo acidente - art. 23º e 25º, nºsº 1 e 3.

7. Resulta daqui que não aproveita ao proprietário do veículo que não efetuou o seguro a que estava obrigado, alegar que a circulação do veículo se fez contra sua vontade por lhe ter sido furtado”.

E foi também esta tese que foi seguida no Ac. da Rel. de Coimbra de 25-5-04, 1474/04, sumariado em www.dgsi.pt, nos termos do qual:

“Sempre que haja lugar a indemnizações decorrentes de lesões materiais provenientes de acidente de viação originados pelos veículos referenciados no art. 21º, nº 1, do DL nº 522/85, de 31-12, não beneficiando o responsável de seguro válido ou eficaz, é ao FGA que compete satisfazer essas indemnizações.

Não podendo o proprietário do veículo vir a ser responsabilizado civilmente pelos danos causados (quer a título de responsabilidade civil subjetiva, quer em sede de risco), mas competindo, ao FGA garantir o pagamento da indemnização devida ao terceiro lesado, este fica investido num direito de regresso contra esse proprietário que não cumpriu o dever de efetuar o seguro de responsabilidade civil, nos termos do nº 3 do art. 25º do mesmo diploma.

A responsabilidade do proprietário deve buscar-se aqui na omissão em efetuar o seguro obrigatório.

Compete ao proprietário do veículo para que este possa circular, efetuar o respetivo seguro automóvel. O mesmo sucederá quando o proprietário não pretender, no momento próximo, circular com o veículo. É que, nos termos do art. 8º, nº 2, ainda do mesmo diploma “o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso de veículo ou de acidente de viação dolosamente provocados ... “, donde resulta que se o seguro houvesse sido efetivamente celebrado, poderia sempre o lesado demandar a Seguradora, mesmo em caso de furto da viatura. Ou seja, o seguro tem um efeito útil independentemente da circulação ou não do veículo.

Acresce que, no caso, o R. não alegou (e provou) que o veículo estava incapacitado de circular pelos seus próprios meios. Evidentemente que ao deixar o automóvel na via pública com as chaves de ignição no respetivo lugar, propiciou ou pelo menos facilitou a circulação efetiva da viatura, donde se conclui que nessa medida também ele contribuiu para essa movimentação. Daí que também por este prisma deveria ter procedido à realização do seguro obrigatório”.


4.6. Aparentemente a tese que fez vencimento nos arestos deste Supremo anteriormente mencionados (e também no Ac. da Relação de Lisboa) parece infirmar o que emerge do art. 25º, nº 3, do DL 522/85. Uma leitura descontextualizada dos preceitos, à margem da posição jurídica atribuída ao Fundo de Garantia Automóvel chamado a satisfazer as indemnizações a terceiros lesados por acidentes de viação, pareceria determinar o seguinte:

- O nº 1 do art. 2º do DL nº 522/85 fazia recair sobre o proprietário do veículo a obrigação primária de celebrar contrato de seguro cujo cumprimento não fosse assumido por qualquer outro responsável civil;

- O art. 25º, nº 1, prescrevia que, uma vez satisfeita a indemnização, o FGA ficaria sub-rogado nos direitos do lesado;

- O art. 25º, nº 3, colocava na posição de demandadas pelo FGA as pessoas sujeitas à obrigação de segurar que não houvessem cumprido tal obrigação.

Todavia, nem a interpretação das leis, nem a sua concreta aplicação se bastam com a enunciação do rol de normativos relevantes, não devendo ser dispensado o recurso a outros instrumentos, ganhando relevo, no caso concreto, a figura da sub-rogação legal.

Os casos que foram tratados em cada um dos arestos anteriormente mencionados revelam bem a insuficiência de meros juízos formais para integrar litígios como o que emerge dos presentes autos, a par da necessidade de assegurar uma completa apreciação de todas as circunstâncias normativas e factuais.

Note-se que em cada uma das situações focadas nos mencionados arestos estavam em causa veículos automóveis que, conquanto não estivessem cobertos por contrato de seguro de responsabilidade civil (que, apesar das circunstâncias em que se encontravam, eram obrigatórios), foram postos a circular à revelia dos seus proprietários ou detentores efetivos. Ou seja, o seguro era obrigatório e esta obrigação não fora cumprida por qualquer dos proprietários, mas os acidentes foram causados por terceiros sem que àqueles proprietários pudesse ser assacada qualquer responsabilidade perante os lesados:

a) Num caso (Ac. do STJ 2-3-04) o veículo estava guardado numa garagem de onde foi subtraído por desconhecidos antes de causarem o acidente;

b) Noutro caso (Ac. do STJ 18-1-18) o veículo estava numa Base Militar (!), aguardando reparação que era necessária para ser submetido a inspeção, sendo que a chave de ignição estava num quarto que o proprietário (militar em funções na referida Base) partilhava com outro indivíduo, também militar, que da mesma se apropriou, antes de pôr o veículo a circular dentro do perímetro dessa Base Militar onde veio a ocorrer o sinistro;

c) No terceiro caso (Ac. da Rel. de Lisboa 19-3-15) tratava-se de um motociclo exposto para venda num stand/oficina, de onde foi retirado por terceiro, sem conhecimento nem do proprietário do motociclo, nem do dono do stand/oficina, verificando-se ainda a circunstância particular de o FGA ter sido chamado a satisfazer a indemnização devida pela morte de um passageiro do motociclo.

A assunção para cada um destes casos da solução adotada no Ac. da Rel. de Coimbra de 25-5-04 (num caso em que o veículo que interveio no acidente fora furtado ao seu proprietário) daria como resultado que pelo simples facto de os proprietários ou detentores dos veículos acidentados não terem outorgado contrato de seguro de responsabilidade civil acabariam por responder perante o Fundo de Garantia Automóvel que suportou intercalar e subsidiariamente as indemnizações pagas a terceiros lesados, apesar de não se colher de qualquer das normas sobre a responsabilidade civil extracontratual um nexo de imputação subjetiva ou objetiva aos acidentes de viação.

Ou seja, segundo esta tese, embora os terceiros lesados não pudessem reclamar diretamente dos proprietários dos veículos o pagamento das indemnizações correspondentes aos danos causados, acabariam por responder perante o Fundo de Garantia Automóvel por via do exercício do direito de reembolso referente aos quantitativos dependidos com o pagamento das indemnizações aos terceiros lesados.


4.7. Existe unanimidade quanto à natureza da posição jurídica em que o FGA fica depois de satisfazer as indemnizações a terceiros lesados. A qualificação jurídica empregue pelo legislador (sub-rogação legal) corresponde à transmissão para o FGA do crédito que originariamente se constituiu na esfera jurídica do lesado, mas que, por determinação legal, foi satisfeito pelo FGA. Tal direito tem como contraponto a obrigação do responsável ou responsáveis civis pelo sinistro causador dos danos (Acs. do STJ de 18-1-18, de 2-3-04, já citados, e Ac. do STJ de 21-1-03, CJ, t. I, p. 39 e Ac. do STJ de 19-6-12, 82-C/2000, em www.dgsi.pt).

A sub-rogação constitui uma forma de transmissão da posição creditícia. Estando prevista no art. 592º do CC, o art. 25º, nº 1, do DL nº 522/85, dispensa o “interesse” que é exigido para a sub-rogação legal genérica. Nos casos em que o FGA é chamado a satisfazer indemnizações derivadas de acidentes de viação, o “interesse” relevante e que faz jus à legitimidade ativa para a ação que visa o exercício do direito de reembolso resulta diretamente dos normativos que presidiram à imposição a cada Estado-Membro da União Europeia de criação de um organismo que supletivamente se responsabilizasse pela satisfação dos direitos dos lesados em casos em que não existisse contrato de seguro ou em que fosse desconhecida a identidade do responsável por acidente de viação.

Afinal, a obrigatoriedade do seguro obrigatório automóvel que, no caso, não foi acatada, motivando a intervenção subsidiária do FGA, tinha (e continua a ter) como objetivo prioritário garantir a terceiros lesados a reparação de danos imputados a quem fosse “civilmente responsável”, nos termos consignados no nº 1 do art. 1º do DL nº 522/85.

É precisamente este aspeto que, no confronto com o art. 25º do DL 522/85, nos indica o caminho que deve ser trilhado. Sem negar ao Fundo de Garantia Automóvel o direito de exigir o reembolso do que tenha pago do responsável ou responsáveis civis pelo acidente de viação, o respetivo exercício deve conter-se nos limites do direito que, por via da aludida sub-rogação legal, lhe foi transmitido a partir da esfera jurídica dos lesados cujos danos ressarciu. É esta harmonização que permite estabelecer a delimitação dos casos em que o proprietário do veículo (que incumpriu a obrigação de contratar o seguro de  responsabilidade civil) deve ou não deve ser responsabilizado pelo reembolso dos quantitativos despendidos pelo FGA.

Com o regime constante do DL nº 522/85, o legislador não foi ao ponto de reconhecer ao FGA um direito de crédito autónomo oponível ao proprietário do veículo automóvel, ainda que, como resulta do acórdão do TJUE, o legislador nacional estivesse legitimado a dotar uma tal solução quando regulou os pressupostos do direito de reembolso e identificou os sujeitos contra os quais poderia ser exigido.

Segundo o regime instituído através de diploma, o direito a obter o reembolso dos quantitativos despendidos com o pagamento de indemnizações a terceiros lesados respeitou a natureza e o conteúdo do direito de indemnização que se constituiu na esfera desses lesados e que para o FGA se transmitiu por via sub-rogatória. Pressupondo a figura da sub-rogação legal o cumprimento de uma obrigação alheia no interesse de terceiro, o FGA adquiriu por essa via o direito de obter o reembolso das quantias despendidas com os precisos contornos que o direito de indemnização tinha na esfera dos lesados, como o prescreve o art. 593º do CC.

Nisso se distingue a sub-rogação da figura do direito de regresso que, embora com diversas nuances, tem como pressuposto o prévio cumprimento de uma obrigação própria, ainda que não exclusiva (como sucede nos casos de solidariedade stricto sensu). Para não nos afastarmos do círculo da responsabilidade civil por acidente de viação, é o que sucede, por exemplo, quando a Seguradora, depois de indemnizar os terceiros lesados, reclama o reembolso do que tenha despendido do condutor que causou o sinistro sob efeito de alcoolemia (nos termos que estavam previstos no art. 19º, al, c), do DL nº 522/85 e que agora constam do art. 27º, nº 1, al. c), do DL 291/07).

Ora, insistindo no que já se afirmou, a lei colocava o FGA na posição jurídica de credor sub-rogado, com os efeitos previstos no art. 593º do CC, e não como titular do direito de regresso, o que tem relevantes implicações na resolução do caso concreto.


4.8. A interpretação que se faça do art. 25º, nº 3, do DL nº 522/85, não deve ser feita apenas a partir da conexão com a norma do art. 2º que identifica os sujeitos que, ex ante, estavam obrigados à celebração de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, devendo ponderar-se ainda as normas que regulam a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros e das quais resulte a identificação dos sujeitos a quem os danos podem ser imputados.

Como se disse anteriormente, em casos de apropriação ilegítima do veículo não é possível assacar ao proprietário (ainda que incumpridor da obrigação de seguro) qualquer responsabilidade pelo ressarcimento dos danos causados a terceiros, considerando que, por aquela via, deixou de ter a direção efetiva do veículo, nos termos e para efeitos do art. 503º, nº 1, do CC.[1]

Quando, em tais circunstâncias, o FGA tenha procedido ao pagamento da indemnização aos terceiros lesados por determinação de lei específica, a posição em que fica tem os precisos limites dos direitos que foram satisfeitos (art. 593º do CC), de modo que o pedido de reembolso apenas pode ser dirigido contra quem tenha a qualidade de responsável civil pelos danos ao abrigo da multiplicidade de regras da responsabilidade civil extracontratual.

No que ao proprietário do veículo respeita, atento o que se dispunha no art. 25º, nº 3, do DL nº 522/85, respondia perante o Fundo de Garantia Automóvel apenas quando se conjugassem as seguintes circunstâncias: falta de cumprimento da obrigação de seguro e imputação subjetiva ou objetiva da responsabilidade civil pelo sinistro que o FGA garantiu e ressarciu.

É neste contexto que deve ser interpretado o segmento de tal normativo que, embora prevendo que o FGA pudesse demandar as “pessoas … sujeitas à obrigação de segurar” que não tivessem cumprido tal obrigação, condicionava o exercício do direito de reembolso aos “termos do nº 1”, ou seja, circunscrito aos casos em que se identificasse um “responsável civil” contra o qual se tivesse constituído na esfera do lesado o direito de indemnização que, por via da sub-rogação legal foi transferido para o Fundo de Garantia Automóvel.[2]


4.9. Não se trata de fazer do preceito em análise uma interpretação restritiva, solicitando a necessidade de encontrar para qualquer interpretação legal o lastro da justeza ou da razoabilidade dos resultados que seriam contrariados por uma interpretação meramente literal do preceito em causa.

A clara opção que se assume no caso presente passa por extrair dos normativos convergentes o sentido que, sem perder de vista o objetivo de permitir o direito de sub-rogação por parte do FGA (tendo como destinatário, em regra, o proprietário e detentor efetivo do veículo, por ser ele simultaneamente incumpridor da obrigação de seguro e responsável civil pelos danos), não descura a génese ou a natureza desse direito, nem a posição em que tal entidade se coloca.

Tratando-se de um direito que decorre de sub-rogação legal, em que o Fundo de Garantia Automóvel assume a posição jurídica dos lesados ou dos seus familiares, com os respetivos contornos objetivos e subjetivos, o reembolso dos quantitativos despendidos com as indemnizações apenas poderá ser exigido, como o prescreve o nº 3 do art. 25º DL nº 522/85, “nos termos do nº 1”, ou seja, do responsável ou responsáveis civis. pelo acidente de viação em causa.

No caso concreto, a qualidade de “responsável civil” pelos danos causados aos terceiros lesados era de atribuir exclusivamente ao condutor falecido, tendo-se transmitido por sucessão para a sua filha, a ora 2ª R. BB.

Ora, nessa categoria (de “responsável civil”) não se inclui a R. AA, proprietária do veículo que, à sua revelia, foi posto a circular, e que, nas circunstâncias em que ocorreu o acidente, não tinha a sua direção efetiva.

Por isso, ainda que a referida proprietária do veículo não tenha cumprido a obrigação de celebrar o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, improcede, quanto à mesma, a pretensão de reembolso que foi formulada pelo Fundo de Garantia Automóvel.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista, confirmando-se o acórdão recorrido que absolveu do pedido a 1ª R. AA.

Sem custas, por delas estar isento o FGA (art. 1º, nº 1, al. p), do RCP).

Transitado em julgado este acórdão, remeta certidão ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

Notifique.

Lisboa, 8-11-18


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo

______________

[1] Sinal disso é que na eventualidade de, faltando o seguro obrigatório, o FGA não assumir espontaneamente a sua responsabilidade perante os terceiros lesados, nos termos do art. 29º, nº 6, do DL nº 522/85, a ação de indemnização deveria ser dirigida contra essa entidade e contra o “responsável civil”, em regime de litisconsórcio necessário, não prevendo a lei a demanda do proprietário que não tivesse a direção efetiva do veículo.

[2] Não temos que tomar posição neste acórdão relativamente ao regime que agora decorre do DL nº 291/07, de 21-8. Limitamo-nos a constatar que, tendo sido mantidas, no geral, as normas sobre a finalidade do seguro obrigatório e sobre as pessoas que ao mesmo estão obrigadas (arts. 4º e 6º), o art. 54º, nº 3, especifica que respondem perante o FGA, em regime de solidariedade, o detentor, o proprietário e o condutor do veículo, independentemente de se apurar a quem, de entre eles, caberia a concreta obrigação de contratar o seguro de responsabilidade civil. Embora tenha sido mantida a qualificação da posição jurídica que o FGA assume quando efetua o pagamento de indemnizações a terceiros lesados (em termos de se considerar que fica “sub-rogado nos direitos do lesado”, segundo o nº 1), a verdade é que a partir do nº 3 do mesmo preceito Arnaldo Oliveira acaba por defender que, “por argumento de preservação da utilidade da expressa menção da solidariedade no nº 3 do art. 54º, temos de concluir no sentido de que os direitos do lesado a que se refere o nº 1 do mesmo são os direitos contra o responsável civil e o obrigado ao seguro” (Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, p. 100).