Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1562/19.4T8CSC.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
ANULABILIDADE
CÔNJUGE
ACOMPANHANTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O artigo 901.º do CPC, confere legitimidade ao acompanhante, para efeitos de recurso de decisão relativa a medida de acompanhamento, na qualidade de assistente, reconhecendo-lhe, assim, o direito de intervir no recurso como auxiliar de qualquer das partes principais (requerente ou acompanhado), se tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a essa parte (artigos 326.º e 328.º do CPC).
II - Os actos praticados pelo acompanhado, quando posteriores ao registo da decisão final de acompanhamento no registo civil ou quando praticados depois de anunciado o início do processo, são anuláveis, mas apenas depois da decisão final que o decrete e caso se mostrem prejudiciais para o acompanhado (artigo 154.º do Código Civil).
III - Além da (i) primado pela autonomia do beneficiário, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até aos limites do possível, são vectores essenciais do regime do maior acompanhado (ii) a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à capacidade do visado pela medida de protecção, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de protecção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar, designadamente através dos deveres de cooperação e assistência que impendem sobre o cônjuge; (iii) a flexibilização da medida de acompanhamento, dentro da ideia de que cada caso é um caso; (iv) a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; (v) e o primado dos interesses pessoais e patrimoniais do beneficiário.
(Sumário elaborado pelo relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
           
I – Relatório
1.1. AA… intentou, em 15-05-2019, a presente acção especial de acompanhamento de maior, com suprimento do consentimento, pedindo que se declare sujeito a acompanhamento o Requerido BB…..
Alegou, para o efeito, em substância, que é filha única do beneficiário, que este nasceu em 24 de Maio de 1924, encontra-se impossibilitado, por razões de saúde - psíquica e física - e pelo seu comportamento, de reger a sua pessoa e bens de forma plena, pessoal e consciente, sem o apoio ou intervenção de terceiros, e que a assistência e cooperação que, na actualidade, lhe são conferidas pela sua mulher não são suficientes para garantir de forma efectiva e eficaz o bem estar e protecção do beneficiário, bem como a sua recuperação e o pleno exercício dos seus direitos e observância dos seus deveres.
1.2. Afixaram-se editais e publicaram-se anúncios dando-se publicidade à acção.
1.3. O Requerido, citado através de contacto pessoal com o oficial de justiça (cf. certidão a fls. 27), constituiu mandatário e respondeu ao requerimento inicial, alegando que apresenta apenas alguns sinais de demência relacionados com a idade, bem como algumas limitações biológicas, mas que o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres mostra-se garantido através do acompanhamento permanente de que beneficia no âmbito do seu agregado familiar, designadamente, pela sua esposa, motivo pelo qual não deverá ser decretado o acompanhamento requerido, até por existir um antagonismo entre a sua actual mulher e a sua filha, ora Requerente.
1.4. O Ministério Público, citado para contestar a título de representação acessória, remeteu-se ao silêncio.
1.5. Procedeu-se à audição da Requerente e do Requerido, bem como da esposa do Requerido (cfr. acta de fls. 74 a 75).
1.6. Em 22/02/2021, o Requerido e Beneficiário foi sujeito, no INMLCF, a exame pericial psiquiátrico. Das respectivas conclusões, elaboradas em 05/04/2021, consta o seguinte:
«(…) 5. DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
De acordo com a avaliação clínico-forense realizada, somos da opinião que a Examinanda apresenta um quadro compatível com o diagnóstico de Demência, provavelmente Demência de Alzheimer (CID-10[1]: F 00, OMS[2], 1992).
A natureza da patologia de que padece será neurodegenerativa atendendo à informação processual existente. Com efeito, a demência é uma síndrome associada a várias etiologias, que se apresenta através de uma deterioração cognitiva adquirida, frequentemente de carácter permanente, progressivo e irreversível. A Demência de Alzheimer é a principal causa de demência, sendo um quadro arrastado, crónico e de instalação progressiva, clinicamente caracterizada por compromisso da memória recente com agravamento e globalização progressivos.
Ainda que na ausência de exames complementares actuais, a documentação junta aos autos, bem como a descrição da entrevista e observação são suficientemente eloquentes permitindo afirmar que as consequências da patologia de que sofre são significativas e que, em termos pragmáticos, o funcionamento social e autonomia se encontram bastante prejudicados. Com efeito, o Examinando está dependente da ajuda de terceira pessoa para as actividades diárias básicas, não sendo plausível que alguma vez consiga voltar a ser totalmente autónoma. Assim, as dificuldades que o Examinando apresenta, são de tal forma importantes e permanentes que importarão a necessidade de ser nomeado um Acompanhante, nos termos da redacção conferida pela lei 49/2018 de 14/08, tendo em conta os vários actos ou categorias de actos, previstos nos artigos 145º e 147º, ambos do Código Civil.
Do ponto de vista patrimonial, ficou patente pela gravidade do quadro de que a sua situação de saúde não lhe permite ver mantido o direito a administrar o património ou sequer a celebrar negócios da vida corrente. Face às dificuldades condicionadas pela sua situação de saúde, concordamos com as medidas de representação propostas pela Requerente. A responsabilidade em aceitar ou recusar tratamentos, e em agendar consultas ou gerir tratamentos prescritos também não lhe deve estar confiada, em virtude das suas dificuldades cognitivas.
Relativamente a data de início da situação de saúde, não temos claras referências temporais para poder arbitrar com rigor uma data de início da mesma, pese embora resulte evidente que o processo demencial seja habitualmente progressivo e que existisse previamente, face mesmo à referência em Janeiro de 2019 de que estaria seriamente comprometida a sua capacidade para se gerir de forma autónoma, carecendo de cuidados de terceiros para gestão das suas actividades de vida diária. Sem prejuízo do atrás afirmado, e de acordo com o relatório de 14/01/2019, pode ser dito sem margem de dúvidas que estava já instalada incapacidade total aquando da observação mencionada nesse relatório, motivo porque se arbitra como data de início da incapacidade permanente e irreversível mês de Novembro de 2018.
Como medidas de apoio e tratamento, deve o examinando manter seguimento médico regular em consultas de medicina e da especialidade de neurologia e/ou psiquiatria com apoio e estimulação socio-reabilitativa. Ainda que preferencialmente e em abstrato, a inserção familiar deva ser privilegiada em termos humanos e de acompanhamento e suporte, no caso concreto a permanência no domicílio, só é possível se for garantida a presença permanente de 3ª pessoa para prestar os cuidados permanentes de que necessita. Assim, face à importante incapacitação, e na eventualidade de não serem possíveis tais cuidados a nível domiciliar, consideramos justificada a colocação institucional em local adequado como será uma unidade residencial/Lar.
Importa, porém, esclarecer, que a colocação em Lar ou Unidade Cuidados Continuados, não se constitui enquanto um internamento médico, já que, no âmbito do disposto no art.º 148º do CC, do ponto de vista pericial um internamento deverá ter sempre uma indicação médica, sob risco de agravamento do estado de saúde.
Face ao exposto somos do parecer que o Examinando beneficia da nomeação de um Acompanhante com poderes de representação geral e substituição da vontade, abrangendo, pois, a maior parte dos actos da vida em sociedade, importando que possa garantir o exercício de direitos, cumprimento de deveres, assegurar o seu bem-estar e - dentro de certos limites -, a sua eventual recuperação, nos precisos termos dos desejos da própria que porventura tenham sido conhecidos.
Por fim, é clara a existência de quezília entre as partes (filha e companheira do beneficiário) e eventual interesse pelos bens patrimoniais do requerente sendo impossível aferir, do ponto de vista médico-legal, quem terá em mente o melhor interesse do beneficiário. Tal resposta, a ser dada, seria apenas uma mera especulação sem qualquer fundamento técnico-científico.
Poderá ser directamente questionado o examinando quem ele prefere ao longo da vida “o ajudar” em tarefas de decisão ou aspectos, que ele tenha reconhecidas “dificuldades”, envolvendo-o no processo da presente acção, sendo certo que uma das características do seu quadro clinico é a ausência de reconhecimento das suas próprias perdas de capacidade.
Estamos em crer que, na eventualidade de ser procedente a acção de Regime de Maior Acompanhado ao beneficiário da acção, seja esta no regime geral ou especial, na verdade, a adequação relativamente à sua representação será essencialmente dependente da avaliação social ora já solicitada pelo tribunal.[3]
O quadro clínico supra é progressivo e irreversível, pelo que do ponto de vista médico-legal não entendemos previsível a necessidade de revisão inferior a 5 anos. (…)». Cfr. Relatório junto ao processo electrónico em 004/04/2021.
1.7. A Requerente AA… e a mulher do Beneficiário, CC…, foram igualmente sujeitas a exame pericial psiquiátrico, no INMLCF, no qual se que concluiu pela inexistência de qualquer alteração psicopatológica actual ou pregressa, que possa configurar ou sequer levantar a suspeita de psicopatologia relevante, que o “busílis da questão reside essencialmente na quezília existente entre ambas (filha e companheira do beneficiário) e eventual interesse pelos bens patrimoniais do [requerido] sendo impossível aferir, do ponto de vista médico-legal, quem terá em mente o melhor interesse do beneficiário”. E que, “na eventualidade de ser procedente a acção de Regime de Maior Acompanhado ao beneficiário da acçao, seja esta no regime geral ou especial, na verdade, a adequação relativamente à sua representação será essencialmente dependente da avaliação social (…)”.
1.8. Por Despacho de 25/06/2021, com a ref.ª 131591342, (cfr. fls. 76), o Senhor Juiz a quo, pronunciando-se sobre requerimentos apresentados pela Requerente em que a mesma pugna pela imprescindibilidade da elaboração de relatório social para avaliação das condições de habitabilidade do Beneficiário, considerou que os autos já continham todos os elementos para a decisão da causa e que, por isso, a pretendida avaliação assumia um carácter secundário, não sendo impeditivo da prolação de sentença.
Não obstante, decidiu “mantenho a solicitação do relatório social, devendo ser efectuada uma insistência junto da Segurança Social (…)”.
1.9. Foi, então, na mesma data de 25/06/2021, proferida sentença (ref.ª 131591342) cujo dispositivo aqui se reproduz:
Pelo exposto e decidindo, o Tribunal julga a presente acção procedente, e em consequência:
A) DECLARA suprido o consentimento do Requerido para a propositura da acção.
B) FIXA o dia 01.11.2018, como data de começo da incapacidade de exercício do Requerido (art.º 899.º, n.º 1 CPC).
C) DECLARA o acompanhamento do maior BB….
D) ESTABELECE o conteúdo do acompanhamento, como REPRESENTAÇÃO GERAL, incluindo administração total de bens (art.º 145.º, n.º 2, alínea b) e c) Cód.Civil), ficando vedado ao maior acompanhado o exercício de direitos pessoais e celebração de todos negócios da vida corrente (art.147.º Cód. Civil).
E) NOMEIA como Acompanhantes para:
i.) Gestão de assuntos de natureza corrente (art.º 147.º Cód. Civil), como seja a saúde, aceitação de tratamentos médicos, alimentação e vestuário do beneficiário, a esposa, CC…;
ii.) Gestão de assuntos de natureza patrimonial do beneficiário (art. 145.º, n.º 2, alínea b) e c) Cód. Civil), a filha, AA…, desde já se consignando que se deverá articular com a outra acompanhante, com vista à satisfação das necessidades financeiras pessoais do beneficiário.
F) FIXO O DOMICÍLIO do beneficiário no domicílio do acompanhante cônjuge.
G) DISPENSA A CONSTITUIÇÃO DE CONSELHO DE FAMÍLIA, atento a indicação de dois acompanhantes, que são familiares próximos do Requerido.
D) INEXISTE procuração de cuidados de saúde.
Sem custas, atento a isenção do maior acompanhado (art. 4.º, n.º 2, alínea h) RCP).
Registe e Notifique.
Comunique à Conservatória do Registo Civil.
Tome-se o compromisso de honra das acompanhantes nomeadas, no imediato.
*
Notifique, sendo as acompanhantes nomeadas, para juntar aos autos, após trânsito em julgado, no prazo de 30 dias, a relação de bens do acompanhado, se os houver ou declarar que não existem (art.º 902.º, n.º 1, CPC).”
1.10. Inconformados, o Beneficiário BB… e a sua esposa, CC…, apelaram da sentença, finalizando as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
«I. A sentença que decreta ou não o acompanhamento do maior é algo mais do que um mero ato decisório, é antes uma cuidada e individualizada resposta jurídica que o sistema se propõe a aplicar àquela pessoa (em concreto), sujeito de direitos e deveres.
II. As decisões judiciais não podem contribuir para a instabilidade e incerteza no que respeita ao Acompanhamento do Maior como a sentença do tribunal a quo determina.
III. Ora, verifica-se no caso sub iudice o Acompanhado (vencido) e a Assistente, que assume uma posição de parte acessória no recurso, auxiliando o Acompanhado Recorrente não se conformam com a sentença proferida porquanto, ao contrário do que
considerou o tribunal de 1.ª instância, a decisão de acompanhamento pura e simplesmente não deveria ter sido decretada, por não se verificarem os seus pressupostos e, por outro lado, admitindo, por cautela de patrocínio, verificados os pressupostos da decisão em causa, a concreta medida de acompanhamento sub iudice não devia ter sido decretada.
IV. Nos termos do artigo 140º do CC, o acompanhamento do maior é destinado a assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, existindo situações que afastam o acompanhamento quando o objetivo deste já se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam (como os dos cônjuges, por exemplo), tratando-se, pois, de uma medida supletiva.
V. Acresce ainda que Acompanhado e Assistente consideram que a medida de acompanhamento decretada pelo tribunal a quo não é a mais adequada perante os factos provados.
VI. Como reconhece expressamente o Tribunal a quo na decisão em causa, a Requerente mantém uma “relação marcada pelo antagonismo” com a Assistente, mulher do Beneficiário.
VII. A concreta medida decretada – nomeação da Requerente e Assistente como Acompanhantes, face ao que é a experiência comum, potenciará e agravará o antagonismo existente no relacionamento e reconhecido pelo Tribunal a quo, caraterizando-se pela tensão e conflitualidade.
VIII. Importa submeter à apreciação do Tribunal ad quem importantes factos provados que não foram valorados e que, salvo melhor opinião, revelam, inequivocamente, que a medida de acompanhamento não deve ser decretada e/ou que determinam a sua inadequação.
IX. A sentença não se pronuncia sobre factos essenciais, relevantes e que deveriam constar do elenco dos factos provados, e, subsequentemente, a decisão a proferir deve considerar tais factos:
a. O Requerido e a Assistente são casados há 34 anos,
b. O Requerido e a Assistente contraíram casamento no dia 11 de maio de 1987 sob o regime imperativo de separação de bens,
c. O casamento entre o Requerido e a Assistente ocorreu após 6 anos de vida em
comum ou união de facto,
d. A relação entre o Requerido e a Assistente subsiste há mais de 40 anos,
e. A instauração de um processo crime, traduzido numa queixa crime apresentada em 09 de março de 2020, pela Assistente contra a aqui Requerente e a neta do Requerido …. e ainda contra o ex cônjuge da Requerente …., pela prática de diversos crimes de ofensa à integridade física, violência doméstica, ameaças e injúrias,
f. O Tribunal a quo, no momento em que proferiu a decisão sub iudice tinha conhecimento do processo-crime,
g. Em momento anterior a instauração do processo, já o Requerido e a Assistente receavam a Requerente e demais familiares pelo respetivo comportamento agressivo e intimidatório exercido contra o Requerido e a Assistente,
h. O comportamento agressivo e intimidatório, concretizaram-se na prática dos factos denunciados na queixa-crime,
i. Em 25 de março de 2020 (data da citação do Requerido), Requerido e Assistente tomaram conhecimento do processo de maior acompanhado, ou seja em data posterior à apresentação da queixa crime,
j. A Requerente raramente visita o Requerido bem como não se disponibiliza para colaborar em qualquer tarefa ou necessidade de assistência ao Requerido e não contestado pela Requerente,
k. É a Assistente que acompanha o Requerido 24 horas por dia, sete dias da semana e 365 dias por ano, ou seja, permanentemente, provendo à satisfação das necessidades do Requerido;
X. O tribunal a quo para formular a sua convicção sobre a “incapacidade proveniente de uma anomalia psíquica” socorre-se de expressões do velho regime de interdição, designadamente do artigo 138º, o qual preceituava então que poderiam ser interditos do exercício dos seus direitos todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostravam totalmente incapazes de governar a sua pessoa e bens.
XI. Contudo, importa sublinhar que no Regime do Maior Acompanhado deixaram de existir quaisquer referências a anomalias psíquicas, surdez-mudez e cegueira, pontuando, ao invés, razões de saúde, deficiências ou de comportamento como
motivadoras da necessidade de determinação do benefício de proteção previsto nos artigos 138 e ss do CC carecendo, em qualquer caso e/ou circunstância de serem concretizadas caso a caso.
XII. A doutrina vem aceitando que nas razões de saúde se integram quer as patologias de ordem física, quer as patologias de ordem psíquica e mental não se ficando preso a uma ideia estrita de anomalia psíquica, a que não se deve reduzir a demência do Requerido.
XIII. A diminuição ou perda de algumas faculdades cognitivas do Requerido não decorrem direta e necessariamente da identificada anomalia psíquica, mas, antes, decorrem do processo natural de envelhecimento, com progressiva diminuição das aptidões psíquicas do Requerido.
XIV. Por outro lado, ouvido na audiência de julgamento, o Requerido, com total lucidez, manifestou expressamente desejar, caso viesse a ser decretada uma ou mais medidas de acompanhamento, que então fosse designada acompanhante a sua mulher, como consta dos factos provados – escolheu a sua mulher de há 40 anos para viver (coabitar e conviver).
XV. Como é comummente reconhecido a medida ou as medidas de acompanhamento de maior só devem ser decretadas se estiverem preenchidas duas condições: i) Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade) que implica existir uma justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no artigo 145.º, n.º 2, do CC; ii) e uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade) que estipula que a medida de acompanhamento é subsidiária perante os deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (artigo 140.º, n.º 2 do CC), pelo que o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.
XVI. A medida de acompanhamento não deve ter lugar sempre que o seu objetivo tal como previsto no artigo 140, nº1 do CC se mostrar previamente garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam, como é o caso dos deveres conjugais, em obediência ao princípio da subsidiariedade.
XVII. Neste sentido, o n.º 2 do artigo 140º do CC consagra a regra da supletividade da medida de acompanhamento, face à primazia dada aos deveres gerais de cooperação e de assistência remetendo para os artigos 1674.º e 1675.º do CC, relativos aos deveres dos cônjuges.
XVIII. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção), adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, foi aprovada por Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30 de julho, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de julho, admite expressamente a existência de medidas informais de acompanhamento, as quais não são decretadas pelo tribunal, à semelhança de medidas informais no n.º 2 do artigo 140.º do CC, o que, não obstante, constituem verdadeiras medidas de apoio e, como tal, também neste caso a vontade e as preferências da pessoa devem ser respeitadas, em obediência à lei.
XIX. Neste sentido, assume particular relevância que no revogado processo especial de interdição, o legislador considerava o exame pericial indispensável e o interrogatório do Beneficiário dispensável, sendo que no atual regime de acompanhamento de maior, passa-se exatamente o contrário, sendo imprescindível a audição pessoal e direta do Beneficiário, devendo o exame pericial ser determinado pelo juiz apenas quando o considere conveniente.
XX. Reportando aos factos dados como provados, as medidas decretadas pela intervenção judicial não terão qualquer significado no que respeita ao bem-estar, ao exercício dos direitos e cumprimento dos deveres do Requerido, porquanto este objetivo já está garantido, através dos concretos direitos e deveres de cooperação e assistência , ou seja, a medida decretada nada acrescenta à realidade existente, como expressamente decorre da decisão de que se recorre, designadamente dos factos julgados por provados, elencados em 8 e 9 dos Factos Provados - “E não se encontra em condições de aceitar os tratamentos propostos, dependendo da mulher CC..., de 90 anos, com quem reside” e “declarou que quem o acompanha no dia-a-dia é sua mulher CC..., manifestando vontade que fosse designada acompanhante”.
XXI. Atendendo ao exposto não faz qualquer sentido a sentença declarar o acompanhamento de maior, estabelecer o conteúdo do acompanhamento e nomear a Assistente para a gestão de assuntos de natureza corrente (artigo 147.º do CC), como seja a saúde, a aceitação de tratamentos médicos, a alimentação e o vestuário do Requerido, uma vez que esta é a realidade que existe desde há muitos anos.
XXII. A gestão de assuntos de natureza corrente – a saúde, a aceitação de tratamentos médicos, a alimentação e o vestuário do Requerido - está subjacente aos direitos e deveres de cooperação e assistência no âmbito dos deveres conjugais do casal
decorrentes do casamento que remonta a 11 de maio de 1987.
XXIII. Ao interporem o recurso, o Requerido e a Assistente pretendem reforçar que a medida de acompanhamento só tem lugar quando as finalidades que com ela se prosseguem não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação e assistência – o que manifestamente não é a situação objeto da sentença, pois estão há muito asseguradas.
XXIV. Assim, sendo, com devido respeito, que é muito, a sentença sub iudice não deve ser proferida, por não ter qualquer relevância para o que se discute na presente ação, em homenagem ao princípio previsto no artigo 130º do CPC, ou seja, por força da
proibição da prática de atos inúteis no processo
XXV. O Tribunal “a quo”, estribando-se no parecer dos peritos médicos, em particular, o relatório médico pericial elaborado pelo Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP (IMLCF), considera que, “atentos os factos dados como provados, não lhe restam dúvidas que o Requerido, maior de idade, sofre de demência de Alzheimer, desde 01.11.2018, o que não lhe permite gerir a sua pessoa e bens, e que essa anomalia é atual, permanente, incurável e grave”.
XXVI. Com base na prova que considerou relevante a na sua convicção o Meritíssimo Juiz a quo julgou a ação procedente, e em consequência declarou suprido o consentimento do Requerido para a propositura da ação; fixou o dia 01.11.2018, como data de começo da incapacidade de exercício do Requerido; declarou o acompanhamento do maior BB…; ficou o domicílio do beneficiário no domicílio do Acompanhante cônjuge; estabeleceu o conteúdo do acompanhamento, como representação geral, incluindo administração total de bens, ficando vedado ao maior acompanhado o exercício de direitos pessoais e celebração de todos negócios da vida corrente; nomeou como Acompanhantes para a gestão de assuntos de natureza corrente, como seja a saúde, a aceitação de tratamentos médicos, a alimentação e o vestuário do beneficiário, a esposa, CC…e para a gestão de assuntos de natureza patrimonial do beneficiário a filha, AA… e dispensou a constituição de Conselho de Família atento a indicação das duas Acompanhantes, que são familiares próximos do Requerido.
XXVII. A decisão de nomear as duas Acompanhantes – a Assistente e a Requerente – é incompreensível, incoerente, desadequada, contraditória e, portanto, inaceitável.
XXVIII. Cumpre refletir sobre a sentença, particularmente, na nomeação das duas Acompanhantes e no estabelecimento de “um modelo formal de gestão partilhada, em que ambas as Acompanhantes consigam ultrapassar as divergências que as separam e unir-se no interesse objetivo do beneficiário”.
XXIX. O relacionamento entre a Requerente e a Assistente é inexistente; o relacionamento entre a Requerente e a Assistente é conflituoso; os conflitos entre a Requerente e a Assistente têm-se agravado nos últimos anos, não ocorrendo qualquer
comunicação.
XXX. Nas visitas raras e pontuais que a Requerente faz ao Requerido, não existe qualquer formalidade e afinidade com a Assistente, logo, não existe qualquer relação entre as duas pessoas que o Tribunal a quo nomeou como Acompanhantes.
XXXI. A Assistente tem sido vítima de humilhações, desestabilizações persecutórias, afrontas e ameaças, diretas e veladas, por parte da Requerente, que, como já foi referido, conduziu à apresentação da queixa crime contra a Requerente.
XXXII. A afirmação usada na sentença “relação marcada pelo antagonismo” limita-se a um retrato muito superficial sem qualquer ligação com a realidade no que respeita à relação entre a Requerente e a Assistente porque, na verdade, a relação é marcada pela hostilidade arrogância, intimidação e desprezo por parte da Requerente para com a Assistente, tornando impossível a operacionalização ou concretização das medidas de acompanhamento.
XXXIII. De assinalar, que no processo foram impetrados mais de 20 requerimentos, que revelam a fortíssima litigância e agressividade no que respeita ao relacionamento entre a Requerente, por um lado, e o Requerido e a Assistente, por outro lado.
XXXIV. As medidas decretadas pelo tribunal a quo designando a Requerente como Acompanhante para a gestão de assuntos de natureza patrimonial do Beneficiário, ainda que acautele as necessidades de articulação com a Assistente quanto à satisfação das necessidades financeiras pessoais do beneficiário, não contribui para o equilíbrio necessário a um bom e saudável acompanhamento do Requerido, para além de desrespeitar a vontade lúcida e expressa manifestada pelo Requerido, vai contribuir para uma maior instabilidade da relação existente, pois que, o dissenso em causa relaciona-se diretamente com o património do casal, a que a Requerente quer “deitar a mão”.
XXXV. A Requerente concretiza o seu desiderato de acesso ao património do Requerido e de gestão da respetiva conta bancária, titulada pelo Requerido e pela Assistente, ficando esta dependente daquela em tudo o que respeitar a questões financeiras.
XXXVI. As medidas decretadas em nada beneficiam a vida e o bem-estar do Requerido, antes irão contribuir para o mal-estar da vida do casal e consequentemente do Acompanhado, sem prejuízo do supra exposto quanto à inutilidade das medidas de acompanhamento em causa, porquanto o relacionamento antagónico e hostil entre a Requerente e a Assistente, não autoriza que se vislumbre um acompanhamento pacifico e estável.
XXXVII. Importa ainda questionar o conteúdo da sentença, concretamente, na justificação quanto à nomeação das duas Acompanhantes e no estabelecimento de “um modelo formal de gestão partilhada” em que, para justificar a decisão invoca-se por três vezes a idade da Assistente – i) “mas atento a elevada idade”, ii) “a idade avançada da mulher do Requerido” e iii) “face à idade da mulher do Beneficiário”
XXXVIII. Na verdade, nenhum dos factos provados permite retirar as conclusões em que o Tribunal a quo se estriba para decretar as medidas de acompanhamento aqui em causa.
XXXIX. A Assistente é uma mulher saudável, com uma vida ativa, física e cognitiva, com total capacidade para prover as suas necessidades e as necessidades do Requerido básicas e instrumentais da vida diária como sejam as atividades relacionadas com a responsabilidade pela gestão doméstica, uso de dinheiro, pagamento de contas, ida ao banco.
XL. O relatório da perícia médico legal-psiquiatria a que foi sujeita não revela qualquer patologia tendo o tribunal a quo dispensado, e bem, a Assistente da perícia médico legal de âmbito psicológico.
XLI. Assim sendo, não se vislumbra em que sentido a idade da Assistente constitua motivo para a excluir de Acompanhante da gestão de assuntos de natureza patrimonial do Beneficiário que, por força do casamento, também se refletem na esfera jurídica e patrimonial da Assistente.
XLII. De sublinhar a incoerência ou mesmo o raciocínio temeroso do Tribunal a quo quando considera que a idade da Assistente não releva para a gestão de assuntos de natureza corrente, mas já releva para a gestão de assuntos de natureza patrimonial do Requerido, ou seja, a Assistente não é “velha” para cuidar do marido, mas já o é para tratar das questões patrimoniais que a si e ao marido - Requerido - dizem exclusivamente respeito!
XLIII. A simples referência à idade da Assistente não é suficiente para a excluir da gestão das questões patrimoniais. Reconhecendo a vantagem da proximidade da mulher, deve ser esta a quem deve também ser deferido o acompanhamento de todas as questões, nomeadamente, as de natureza patrimonial e financeira do Requerido.
XLIV. Sendo de concluir que, a sentença padece de um vicio de fundamentação, quando considera que a Assistente, pela sua idade não dispõe de condições para gerir o
património do beneficiário.
XLV. Com o devido respeito, cumpre evocar Pilatos “Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo” demitindo-se de uma sentença justa como é a que se assiste no caso sub judice.
Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, com os fundamentos expostos, deve ser julgado procedente, por provado o presente recurso, e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida.
Requer que, atendendo à relação matrimonial e de grande proximidade existente entre os Apelantes seja deferido o acompanhamento e gestão das questões de natureza patrimonial do Beneficiário à sua mulher CC… à semelhança da gestão de assuntos de natureza corrente (já nomeada)»
1.11. A Requerente apresentou contra-alegações, que rematou com as seguintes conclusões:
«I- Verifica-se que, no presente recurso, e que a ora se responde, figura como Recorrente a Senhora CC…, que nos presentes Autos não tem qualquer Mandato forense outorgado à Exma. Senhora Mandatária subscritora do presente recurso, nem protestou juntar.
II- Questiona-se, pois, a legitimidade da mesma figurar como recorrente quando o Mandato, ainda que nulo, somente está outorgado pelo aqui Beneficiário.
III- É referido nas Alegações de Recurso que a aqui Recorrente assumiu a posição de Assistente, não tendo apresentado nenhum requerimento especial para efeitos de assistência, nem nas Alegações de Recurso peticionou tal Assistência, conforme resulta do artigo 327.º, n.º 2 do CPC, assumindo desde logo essa posição, sem sequer, ter legitimidade para o efeito.
IV- Uma vez que, somente, somente, pode ser assistente quem tiver um interesse jurídico igual ao do Assistido, o que, in casu, não se verifica, face ao interesse da CC… em gerir o património do aqui beneficiário e recorrente, sem necessidade e controlo de terceiros.
V- Ademais, a mesma não tem legitimidade para ser Assistente nos presentes Autos, somente nesta face processual, porquanto, nunca interviu nos mesmos, nem foi chamada pelo beneficiário para intervir.
VI- Pelo que, não pode a mesma ser Assistente do Sr. BB… quando, somente agora em sede de Recurso, e quando viu a filha do mesmo ser designada Acompanhante do seu pai para as questões de natureza patrimonial, que como é lógico, não foi do seu agrado.
VII- Para além do supra exposto, o presente recurso consubstancia, pois, um abuso de direito por parte dos aqui Recorrentes, previsto no artigo 334.º do Código Civil, na modalidade de Venire contra factum proprium, uma vez que, os aqui Recorrentes tanto defendem que o beneficiário não deve ser acompanhado, mas aceitaram e conformaram-se com a incapacidade do mesmo, como no momento a seguir já estão a referir que deve a esposa do beneficiário, ser designada como sua acompanhante, como facilmente se verifica das suas Alegações.
VIII- Ora, se o beneficiário manifestou a sua vontade em ser acompanhado, como é lógico, tem que ser decretado o acompanhamento! Acompanhamento esse que deve ser adequado à sua condição física e mental, uma vez que padece da doença de Alzheimer.
IX- A verdade é que, tais alegações, completamente contraditórias, não passam de manobras dilatórias dos aqui Recorrentes, em manifesta má-fé, que têm única e exclusivamente como objectivo adiar a implantação de um regime necessário à vida do Sr. BB…
X- Tal é o desnorte do presente recurso, que não se consegue alcançar, o que é que os próprios recorrentes pretendem, o que não se estranha, face à sua idade avançada.
XI- Sendo que, os mesmos alegam que, “A diminuição ou perda de algumas faculdades cognitivas do Requerido não decorrem direta e necessariamente da identificada anomalia psíquica, mas, antes, decorrem do processo natural de envelhecimento, com progressiva diminuição das aptidões psíquicas do Requerido”.
XII- Pelo que, podemos concluir que, se a diminuição das faculdades do aqui Requerido apenas de devem à sua idade avançada e ao processo natural de envelhecimento, as faculdades da CC…, aqui Recorrente, também, devido à sua idade avançada de 91 anos já se encontram reduzidas, e com alguma limitação cognitiva, o que nãos e pode deixar de alegar para os devidos e legais efeitos.
XIII- Pelo que, mais uma vez se questiona, como é que uma pessoa com 91 anos de idade pode ser designada acompanhante de outra de 97 anos, que contra todas as indicações médicas, contra todos os relatórios, e contra todas as evidencias, continua a negar o estado em que o aqui Recorrente se encontra, negando assim a sua demência de Alzheimer.
XIV- Querendo justificar o seu estado débil, somente, no “processo natural de envelhecimento”, o que por si só, é bem revelador da postura da alegada Recorrente que não lhe proporciona, nem deixa a aqui Recorrida proporcionar um fim de vida digno ao aqui beneficiário.
XV- Ademais, os aqui Recorrentes também referem que a gestão de assuntos de natureza corrente, como a saúde, a aceitação de medicação, a alimentação, o vestuário, é subjacente “aos direitos e deveres de cooperação e assistência no âmbito dos deveres conjugais do casal decorrentes do casamento que remonta a 11 de maio de 1987”.
XVI- Pelo que, mais uma vez se questiona, que conceito de cooperação e assistência têm os aqui Recorrentes, quando, até agora têm sido constantemente, negados tratamentos, consultas e exames ao aqui beneficiário e recorrente pela sua esposa.
XVII- Para além de que, o mesmo não tem uma higiene adequada, em dia, nem tanto um aspecto saudável e apresentável, pois, anda com roupas velhas, com a barba por fazer, com o cabelo sujo e a cheirar mal.
XVIII- Ademais, e ao contrário do que é referido pelos Recorrentes, não se está, de forma alguma, a “desrespeitar a vontade lucida e expressa manifestada pelo Requerido”, sendo que, a única coisa que está em causa nos presentes Autos é a saúde e o bem-estar do Sr. BB…, que até aqui tem sido completamente negligenciada pela sua esposa.
XIX- A verdade é que, o aqui beneficiário, que para além de padecer de demência, está sujeito, a uma situação quase de abandono por parte da alegada Recorrente que, sendo sua cônjuge, tem o dever jurídico de lhe prestar os auxílios necessários à sua condição débil e frágil, e caso não tenha capacidade para tal, e dúvidas não existem que não tem deve delegar noutras pessoas capazes de o fazer, não podendo continuar a negar-lhe e a impedir tratamentos e cuidados.
XX- Pelo que, jamais poderá a mesma ser designada acompanhante do Sr. BB…, seja para questões e assuntos de natureza corrente, como sejam a saúde, a aceitação de tratamentos médicos, alimentação e vestuário, como para questões de natureza patrimonial do beneficiário.
XXI- A verdade é que, e ao contrário do que é alegado, os “direitos e deveres de
cooperação e assistência no âmbito dos deveres conjugais do casal decorrentes do casamento que remonta a 11 de Maio de 1987”, não estão, de forma alguma, a serem garantidos pela esposa do aqui beneficiário.
XXII- Uma vez que, caso estivessem, não estriamos aqui a discutir medidas de
acompanhamento, nem o Sr. BB… apresentava o aspecto que apresenta, um aspecto completamente descuidado e desleixado, sem higiene, que, ao fim de vários dias sem ser efectuada, causa assaduras e feridas no corpo, devido à sujidade e urina que se acumulam, para além de odores nauseabundos.
XXIII- As aludidas lesões jamais podem ser consideradas como normais para a sua idade, mas sim, devidas à falta de higiene e de cuidados a que o mesmo se encontra sujeito, e que jamais podem ser desconsideradas por este douto Tribunal.
XXIV- Ora, o aqui beneficiário, jamais, poderá continuar a ter falta de higiene, a ter um aspecto completamente descuidado, que jamais poderá ser justificado pela idade avançada do mesmo e da sua esposa – que alegadamente, tem discernimento para outras coisas, menos para tratar e cuidar do seu marido, o que também não se estranha devido à sua idade avançada de 91 anos.
XXV- A verdade é que, se a própria Recorrente sabe que não tem capacidade de
efectuar certas lides domésticas, assistir, cuidar e fazer a higiene do seu marido, Sr. BB…, enquanto esposa do mesmo, tem a obrigação de diligenciar no sentido de que tal assistência seja prestada, não negligenciando assim, a saúde e bem-estar do seu marido, colocando em risco a sua própria vida.
XXVI- Devendo, pois, permitir que lhe sejam administrados tratamentos Alzheimer, e que lhe seja prestada a assistência diária necessária, como a higiene, a alimentação e medicação.
XXVII- Por outro lado, os aqui Recorrentes referem que “A Requerente limita-se a visitar o pai pontualmente”, o que não referem é o motivo de tal situação, pois não lhe convém.
XXVIII- A verdade é só uma, a Recorrida e sua família, é constantemente, impedida de ver o seu próprio pai pela aqui recorrente, CC… e suas filhas, que trocaram os códigos do comando por portão da entrada sem o conhecimento da aqui Recorrida, tendo esta, tido acesso à residência do seu pai na presença de elementos da GNR, o que é de lamentar.
XXIX- Pelo que, não pode a aqui Recorrente CC… vir alegar que a aqui Recorrida não está com o seu pai, quando é a própria que a impede, sem qualquer tipo de motivo ou justificação.
XXX- Para além de que, quando, nas raras vezes que a aqui Recorrente permite  - como se ela pudesse permitir ou deixar de permitir de uma filha ver o pai e vice versa - a aqui Recorrida de ver e de estar com o seu pai, não possibilita que a mesma esteja a sós com o seu próprio pai.
XXXI- Pelo que, jamais poderá vir dizer que, “Nas visitas que a Requerente faz ao Requerido, não existe qualquer formalidade e afinidade, logo, não existe qualquer relação entre duas pessoas que o Tribunal a quo nomeou como Acompanhantes”, quando é a própria Recorrente que não possibilita uma maior afinidade, pois não os deixa estar “à vontade”, nem sequer, terem conversas a sós, não vá o Sr. BB… dizer alguma coisa à própria filha que não seja do agrado da esposa.
XXXII- O que só é demonstrativo, e está à vista de todos, uma evidente coação e manipulação do aqui beneficiário pela aqui Recorrente, que faz questão de controlar todos os passos e palavras do aqui beneficiário.
XXXIII- Para além da evidente manipulação, que no presente caso se torna facilitada, devido à total dependência do Sr. BB… aliada à sua demência e idade avançada.
XXXIV- Debilidades e demência do Sr. BB… que têm sido negadas e aproveitadas pela CC…, aqui Recorrente, ao ponto de ter levado o mesmo a assinar uma Procuração Forense a uma Advogada, que o próprio desconhece, e que nem sequer tinha a capacidade para tal, tendo em conta a sua demência que foi declarada em Novembro de 2018.
XXXV- Pelo que, mais uma vez se reitera e questiona, como é que pode existir um Mandato Forense outorgado pelo Sr. BB…, datado de 14 de Abril de 2020,
XXXVI- Quando, desde Novembro de 2018, é declarada, através de Relatório Pericial, a incapacidade permanente e irreversível do Sr. BB…, aqui beneficiário. Sendo que, e conforme resulta do actual regime do maior acompanhado, sempre que se verifica este estado de incapacidade, e que todos os actos de gestão da vida patrimonial são declarados nulos retroagindo a data efeito à data da verificação da incapacidade médico-legal consagrada e determinada por perícia.
XXXVII- Destarte, jamais os actos praticados nos Autos pelo beneficiário poderiam produzir quaisquer efeitos, uma vez que, a posição do acompanhado/interdito tem de ser garantida pelo Ministério Público.
XXXVIII- Sendo que, o papel do Ministério Público no âmbito no regime do maior acompanhado reveste uma especial importância, desde logo porque, de acordo com a lei, compete-lhe, mormente, defender e promover os interesses dos adultos com capacidade diminuída, bem como de outras pessoas especialmente vulneráveis.
XXXIX- Deste modo, deve o presente Recurso ser julgado improcedente por não provado, e a aqui Recorrente ser nomeada como única acompanhante do beneficiário tanto para as questões de natureza corrente, como seja a saúde, aceitação de tratamentos médicos, alimentação e vestuário do beneficiário, como para as questões de natureza patrimonial do seu pai, BB…, e bem assim ser declarado nulo o contrato de mandato forense celebrado pelo beneficiário, atenta a data em que lhe foi fixada a incapacidade, 1/11/2018, sendo declarados nulos todos os actos praticados ao abrigo desse contrato, fazendo-se assim, a costumada,
Justiça!»
1.12. A Requerente, também ela irresignada com a sentença proferida, apelou da mesma, extraindo das alegações de recurso    
«I- O beneficiário BB… tem como fixado a data de começo de início de incapacidade de exercício o dia 01/11/2018.
II- Todos os actos praticados desde essa data para cá, nomeadamente os actos de natureza patrimonial, onde se encontram incluídos os de natureza contratual são nulos e de nenhum efeito, retroagindo-se a nulidade à data do início da incapacidade fixada, por relatório pericial, que não mereceu qualquer impugnação.
III- Arguida a nulidade de todos os actos praticados pelo beneficiário, em sede dos presentes Autos de processo, a douta Sentença recorrida não se pronunciou sobre a mesma, o que constitui uma omissão de pronuncia, nos termos e para os efeitos do artigo … do CPC, o que gera a nulidade da douta Sentença, de que ora se recorre.
IV- A nomeação da actual mulher do beneficiário, CC…, para a gestão de assuntos de natureza corrente, como seja a saúde, aceitação de tratamentos médicos, alimentação e vestuário do beneficiário, não garante, em função da sua idade de 91 anos que consiga gerir de forma correcta e eficaz, as necessidades que o beneficiário padece dado que sofre da patologia de Alzheimer.
V- Acresce ao supra descrito, que omite, limita e veda os cuidados de saúde necessários ao bem-estar e condição débil do beneficiário;
VI- Desmarcando consultas e exames, sem qualquer fundamento ou aviso prévio, que a aqui Recorrente, filha do beneficiário marca;
VII- Decide, sem mais, mudar de médicos que assistem e acompanham o beneficiário há vários anos, cujo historial clínico conhecem perfeitamente;
VIII- Administra ao aqui beneficiário medicamentos sem prescrição médica e sem qualquer conhecimento de causa, porquanto a mesma não é médica, nem enfermeira.
IX- Pelo que, é, pois, manifesto à saciedade, que a CC… não tem condições, face à sua idade, também avançada, para poder ser nomeada acompanhante do beneficiário, ao contrário do que fez a douta sentença recorrida.
X- Não podendo o aqui beneficiário continuar a ser vedado pela sua actual mulher, a cuidados médicos especializados, que face ao grau avançado da sua demência se impõem.
XI- Isto porque, a aqui Recorrente AA…já obteve junto da Associação Alzheimer o acordo para que o seu pai pudesse receber o acompanhamento domiciliário, sob todas as formas, inclusive, de refeições e de terapia ocupacional, o que sempre desde o ano de 2018 pugnou para que acontecesse e que tem sido constantemente impedida pela CC…, aqui Recorrida, e que jamais poderá continuar a ser.
XII- Deste modo, deve a douta Sentença, ora recorrida, ser revogada e em consequência ser julgado procedente o presente recurso, por provado, devendo a aqui Recorrente ser nomeada única acompanhante do beneficiário tanto para as questões de natureza corrente como para as questões de natureza patrimonial do seu pai, BB…, e bem assim ser declarado nulo o contrato de mandato forense celebrado pelo beneficiário, atenta a data em que lhe foi fixada a incapacidade, 1/11/2018, sendo declarados nulos todos os actos praticados ao abrigo desse contrato, fazendo-se assim, a costumada, Justiça!»
1.13. O Beneficiário e a Acompanhante sua esposa responderam ao recurso, alegando e formulando as seguintes conclusões:
«I - A Requerente alega que os atos praticados em nome do Beneficiário, desde novembro de 2018, data indicada no Relatório Pericial como o início da incapacidade permanente e irreversível do Beneficiário são nulos, particular e exclusivamente, a outorga do mandato forense à sua advogada e ora signatária no processo de maior acompanhado.
II - O Beneficiário outorgou o mandato judicial, através da procuração forense assinada, a 14 de abril de 2020 na sequência da citação pessoal, ocorrida no dia 25 de março de 2020 e também assinada pelo Beneficiário na sua residência, na qual esteve presente o juiz a quo.
III - A fixação da data provável do começo da incapacidade tem importância quando se pretende anular, em ação judicial, os atos praticados pelo Beneficiário, realizados em data anterior ao anúncio do processo judicial.
IV - De sublinhar que o alcance da expressão data provável é de que a presunção pode ser ilidida por prova em contrário, pressupõe incerteza e dúvida.
V - Importa invocar Mota Pinto em “Teoria Geral do Direito”, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 239 a propósito do velho regime da interdição no que respeita ao valor dos atos praticados pelo interdito, não há que fazer distinção entre a hipótese de o incapaz vir a ser ulteriormente interdito e a hipótese de nunca chegar a ser decretada a interdição, pois, em qualquer das hipóteses, é necessário que se verifiquem os seguintes requisitos: 1) Que no momento do ato haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade, 2) Que a incapacidade natural seja notória ou conhecida do declaratário.
VI - Não basta a prova da incapacidade natural para se obter a anulabilidade destes atos, exigindo-se, para tutela da boa fé do declaratário e da segurança jurídica, a prova da cognoscibilidade da incapacidade.
VII - Estipula o artigo 154.º, n.º1 do CC que “os atos praticados pelo maior acompanhado que não observem as medidas de acompanhamento decretadas ou a decretar são anuláveis: a) Quando posteriores ao registo do acompanhamento; b) Quando praticados depois de anunciado o início do processo, mas apenas após a decisão final e caso se mostrem prejudiciais ao acompanhado.
VIII - Considerando, a sentença do tribunal a quo, a data de novembro de 2018 para fixação do começo da incapacidade do Beneficiário, não se vislumbra que a emissão de procuração pelo Beneficiário, para ser representado no processo do maior acompanhado, contrarie ou se revele prejudicial aos seus interesses legítimos (de pessoa acompanhada).
IX - O foco da nova lei deve ser sempre colocado na própria pessoa com incapacidade e no seu respeito enquanto ser humano, sujeito de direitos e obrigações, com dignidade própria, cabendo-lhe, sempre que possível, a última palavra e dando-se primazia à sua vontade.
X - Entende-se que não há lugar a qualquer anulabilidade muito menos nulidade (não prevista no regime do maior acompanhado) dos atos processuais decorrentes do mandato forense na medida em que não estão reunidos os requisitos argumentados pelo Professor Mota Pinto – independentemente da incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou da falta do livre exercício da vontade exige-se que a incapacidade natural seja notória ou conhecida do declaratário.
XI - No caso sub iudice, a incapacidade não era notória nem conhecida do declaratário na medida em que a perícia médico legal foi apenas realizada no domicílio do Beneficiário no dia 22 de fevereiro de 2021 (quase um ano depois da citação) de que resultou o relatório e a fixação da data de incapacidade.
XII - Acresce ainda que para obter a eventual anulabilidade dos atos jurídicos praticados no âmbito do processo do maior acompanhado, os mesmos teriam de se mostrar prejudiciais ao acompanhado – o que não aconteceu pelo conteúdo da sentença do tribunal a quo.
XIII - Não sendo o Ministério Público Requerente no processo sub iudice, foi citado para contestar a título de representação acessória, não tendo apresentado contestação; esteve presente na audição pessoal e direta realizada por videoconferência (em virtude da pandemia de covid 19); pronunciou-se sobre o benefício da nomeação de acompanhante e as medidas de acompanhamento.
XIV - O seu interesse na ação é a defesa e promoção dos direitos e interesses do Beneficiário e neste sentido, o Ministério Público, intervindo a título principal ou acessório, deve sindicar o cumprimento da lei, os limites do consentimento do beneficiário, a proporcionalidade, necessidade e conteúdo das medidas – ações devidamente acauteladas no processo sub iudice.
XV - Importa ainda sublinhar que a eventual consideração da nulidade dos atos praticados pelo Beneficiário, não se concedendo, por mera cautela de patrocínio, se reconduziria a uma nova ação judicial de maior acompanhado e nova litigância e sacrifício do princípio da economia processual.
XVI - A Requerente, no recurso que apresenta, refere a dispensa, por parte do juiz a quo, do relatório de habitabilidade do Beneficiário – diga-se, em bom rigor, que o tribunal, depois de consultar as Partes entendeu que a eventual necessidade do meio de prova, relatório social (a elaborar pela Segurança Social) e solicitado pela Requerente, com vista a aferir de eventuais necessidades de adaptação da habitação iria, pela demora que regista, pôr em causa o tempo útil da decisão. Entendeu que o material probatório constante dos autos já permitia uma decisão final.
XVII - Para além da “paragem” do processo na secretaria a aguardar um relatório de habitabilidade por tempo indeterminado também a sua elaboração e junção ao processo é dispensável e irrelevante porquanto as condições de habitabilidade da residência estão garantidas– situação que contribuiria seriamente para prolação da decisão.
XVIII - O Beneficiário e sua mulher – CC… - vivem numa quinta, cuja habitação reúne as condições adequadas e necessárias ao bem-estar do casal, tendo em conta a idade do Beneficiário (97 anos), a mobilidade (reduzida) e estado físico e psíquico.
Ambos vivem, em permanência, na quinta há mais de 26 anos beneficiando de uma casa e espaço envolvente de jardim que muito apreciam (todo o espaço é bem conhecido do Beneficiário).
XIX - O Beneficiário e a sua mulher são casados há 34 anos, tendo contraído casamento no dia 11 de maio de 1987, sob o regime imperativo de separação de bens, depois de 6 anos de união de facto pelo que a relação entre Beneficiário e sua mulher subsiste há mais de 40 anos.
XX - É a mulher do Beneficiário que acompanha o Beneficiário 24 horas por dia, sete dias da semana e 365 dias por ano, ou seja, permanentemente, provendo à satisfação das necessidades do seu marido.
XXI - A Requerente raramente visita o Beneficiário (apenas pontualmente) bem como não se disponibiliza para colaborar em qualquer tarefa ou necessidade de assistência ao Beneficiário - facto nunca contestado pela Requerente.
XXII - Na audição pessoal e direta do Beneficiário, por videoconferência (decorrente da pandemia de covid 19) foi afirmada expressamente a vontade e a escolha do Beneficiário – ser acompanhado pela sua mulher, companheira de vida, CC… que procura assegurar, em permanência e total disponibilidade, a saúde e bem-estar do Beneficiário.
XXIII - Aquando da pronúncia o MP escreveu “se é certo que a audição do beneficiário não ocorreu nas melhores condições em virtude da crise pandémica, as apreciações dos elementos probatórios na sua globalidade serão suficientes para proferir sentença”, tendo assim valorado a audição do Beneficiário.
XXIV - Considera, assim, o Beneficiário que não se aplica a alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC (nulidade da sentença), ou seja, o juiz a quo pronunciou-se sobre todas “as questões que devesse apreciar” designadamente as invocadas pela Requerente, como não apreciadas: a aceitação da procuração emitida a favor da sua mandatária no âmbito do regime do maior acompanhado, ao nível substantivo e processual – ato praticado não prejudicial ao acompanhado e o não conhecimento / nível da sua incapacidade (o Beneficiário assinou a procuração e a certidão da citação feita presencialmente)
XXV - Apreciada também pelo juiz a quo a questão relativa à dispensa do relatório social relativo às condições de habitabilidade da residência que protelaria “ad aeternum” a sentença.
XXVI - A mulher do Beneficiário é uma mulher saudável, com uma vida ativa, física e cognitiva, com total capacidade e discernimento para prover as suas necessidades e as necessidades do Beneficiário, básicas e instrumentais da vida diária como sejam as atividades relacionadas com a responsabilidade pela gestão doméstica, uso de dinheiro, pagamento de contas, ida ao banco.
XXVII - O relatório da perícia médico legal-psiquiatria a que foi sujeita não revela qualquer patologia tendo o tribunal a quo dispensado, e bem, a mulher do Beneficiário da perícia médico legal de âmbito psicológico.
XXVIII - Existe uma atitude persecutória por parte da Requerente para com a mulher do Beneficiário que se tem revelado ao longo dos 34 anos de casamento, têm-se agravado nos últimos anos, não ocorrendo qualquer comunicação.
XXIX - O relacionamento entre a Requerente e a mulher do Beneficiário é inexistente e conflituoso
XXX - A mulher do Beneficiário tem sido vítima de humilhações, desestabilizações persecutórias, afrontas e ameaças, diretas e veladas, por parte da Requerente, que conduziu à apresentação de uma queixa crime contra a Requerente, a sua filha e neta do Beneficiário e ao seu ex cônjuge XXXI - Decorre do relatório do exame médico legal realizado no domicílio do Beneficiário, a 22 de fevereiro de 2021 - “Como medidas de apoio e tratamento, deve o examinando manter seguimento médico regular em consultas de medicina e da especialidade de neurologia e/ou psiquiatria com apoio e estimulação socio-reabilitativa. Ainda que preferencialmente e em abstrato, a inserção familiar deva ser privilegiada em termos humanos e de acompanhamento e suporte, no caso concreto a permanência no domicílio, só é possível se for garantida a presença permanente de 3ª pessoa para prestar os cuidados permanentes de que necessita”.
XXXII - A mulher do Beneficiário é coadjuvada, na prestação de cuidados ao Beneficiário, no período diurno e noturno, por mais duas pessoas.
XXXIII – Do ponto de vista médico, o Beneficiário é acompanhado pelo médico cardiologista, pela médica neurologista e pelo médico de medicina interna que promovem os necessários exames e prescrição médica.
XXXIV - É a Requerente através de uma aplicação de telemóvel (informação prestada pelo hospital da Cuf) – que desmarca as consultas de neurologia e psiquiatria para o Beneficiário que foram agendadas por duas vezes no hospital da Cuf, pela mulher do Beneficiário, e a Requerente desmarcou-as intencionalmente para desestabilizar, importunar e provocar o casal.
XXXV - A Requerida nunca articulou/envolveu/conversou com a mulher do Beneficiário sobre os termos de apoio a prestar pela Associação Alzheimer.
XXXVI – Ao propor-se ser a única acompanhante e excluir da vida do Beneficiário a sua companheira de 40 anos de partilha de vida – mais não pretende do que colocar o Beneficiário num lar de idosos e usar e disfrutar do património do Beneficiário - a sua motivação não é a saúde do pai, pois nunca se preocupou com ele.
XXXVII - A Requerente concretiza o seu desiderato de acesso ao património do Beneficiário e de gestão da respetiva conta bancária, titulada pelo Beneficiário e sua mulher, ficando esta dependente daquela em tudo o que respeitar a questões financeiras, para a gestão de assuntos de natureza corrente, como seja a saúde, a aceitação de tratamentos médicos, a alimentação e o vestuário do Beneficiário.
XXXVIII - As medidas decretadas em nada beneficiam a vida e o bem-estar do Beneficiário, antes irão contribuir para o mal-estar da vida do casal e consequentemente do Acompanhado, sem prejuízo do supra exposto quanto à inutilidade das medidas de acompanhamento em causa, porquanto o relacionamento antagónico e hostil entre a Requerente e a mulher do Beneficiário não autoriza que se vislumbre um acompanhamento pacifico e estável.
Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, com os fundamentos expostos, deve o presente Recurso ser julgado improcedente por não provado, e valorada a resposta às alegações do recurso Ser indeferido o pedido de acompanhamento como única acompanhante da Requerente.
Ser deferido o acompanhamento e gestão das questões de natureza patrimonial do Beneficiário à sua mulher CC... à semelhança da gestão de assuntos de natureza corrente (já nomeada).
Ser mantido o mandato forense por regularmente constituída a sua mandatária judicial»
1.14. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Delimitação do objecto do recurso
Tendo em consideração que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso - cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil -, as questões submetidas à nossa apreciação e decisão são as seguintes:
i) Questão prévia:
- Da pretensa ilegitimidade da mulher do Beneficiário e co-Recorrente, CC....
ii) Do recurso interposto pelo Beneficiário e pela Acompanhante sua esposa:
1.ª) - Da falta de especificação de factos relevantes e que deveriam constar como provados, por se afigurarem essenciais à decisão a proferir (conclusões VIII e IX);
2.ª) - Saber se a decisão recorrida deve ser revogada e, outrossim, se deve ser deferido o acompanhamento e gestão das questões de natureza patrimonial do Beneficiário à sua mulher CC…, à semelhança da gestão de assuntos de natureza corrente, para que já foi nomeada.
iii) Do recurso interposto pela Requerente:
1.ª) - Da pretensa nulidade da sentença, por omissão de pronúncia sobre a arguida nulidade de todos os actos praticados pelo Beneficiário após 1 de Novembro de 2018, data em que se fixou o início da sua incapacidade de exercício (conclusões I a III)
2.ª) - Da pretensa nulidade do mandato forense outorgado pelo Beneficiário em 14-04-2020 (conclusão XII);
3.º) - Saber se a decisão recorrida deve ser revogada e, outrossim, se deve a Requerente ser nomeada única acompanhante do Beneficiário, tanto para as questões de natureza corrente como para as questões de natureza patrimonial do seu pai (conclusões III a XII).
III – Fundamentação
Motivação de Facto
A.1) Factos Provados:
Estão dados como provados os seguintes factos:
1. BB…, nasceu em 24.05.1924, com filiação estabelecida a favor de…e de …e tem 97 anos de idade.
2. E apresenta-se parcialmente localizado no tempo e no espaço, embora desconheça o nome dos seus pais.
3. E desconhece a gestão do dinheiro ou rendimentos de reforma, dependendo da mulher para essa gestão.
4. E não faz compras, nem participa em tarefas domésticas, dependendo da mulher para o efeito.
5. Não escolhe a sua roupa, vestindo-se com a ajuda de terceiros.
6. Deambula autonomamente pela casa, embora não se costume deslocar sozinho para fora da mesma.
7. E tem uma noção vaga de partido político e eleições.
8. E não se encontra em condições de aceitar os tratamentos propostos, dependendo da mulher CC…, de 90 anos, com quem reside.
9. E declarou que quem o acompanha no dia-a-dia é sua mulher CC…, manifestando vontade que fosse designada acompanhante.
10. E declarou que não costuma ver diariamente a sua filha AA…, de 66 anos.
11. A mulher do Requerido, CC… e a filha do Requerido  AA…. declararam estar disponíveis para o exercício do cargo de acompanhante.
12. A Requerente AA… é filha do Requerido e preocupa-se com o pai, bem como com os seus cuidados de saúde, embora mantenha uma relação marcada pelo antagonismo com a CC…, mulher do Requerido.
13. E viu-lhe ser diagnosticado um quadro compatível com o diagnóstico de demência, provavelmente demência de Alzheimer, a qual tem carácter permanente, progressivo e irreversível e se encontra presente, pelo menos, desde Novembro de 2018.
14. As consequências da patologia que sofre são significativas, encontrando-se o funcionamento social e a autonomia bastante prejudicados.
15. Em consequência do que a situa situação de saúde não lhe permite ver mantido o direito a administrar o património ou sequer exercer os seus direitos pessoais, mostrando-se prejudicada a capacidade de votar, escolher ou exercer profissão, fixar domicílio e casar, testar ou celebrar negócios da vida corrente, sendo que a responsabilidade em aceitar ou recusar tratamentos e em agendar consultas ou gerir tratamentos prescritos, também não lhe deve esta confiada.
16. Em consequência do que se torna indispensável nomear-lhe alguém que cuide da sua pessoa, dos seus bens e que legalmente o represente.
A.2) Factos não provados:
Não existem factos [não] provados com relevância para a causa.
B) Mérito do recurso
B.1) Questão prévia: da pretensa ilegitimidade da mulher do Beneficiário e co-Recorrente.
A Requerente, veio, a título de questão prévia e em sede contra-alegações, questionar a legitimidade da Recorrente BB…, uma vez que não se mostra junto aos autos qualquer mandato forense outorgado pela mesma à Exma. Senhora Mandatária subscritora do requerimento de recurso que interpôs conjuntamente com o Beneficiário.
Salvo o devido respeito, a Requerente confunde a (i)legitimidade da Recorrente para o recurso com irregularidade de patrocínio judiciário, por falta de mandato judicial.
A irregularidade da falta de mandato judicial é suprível a todo o tempo pela parte interessada e pode ser suscitada oficiosamente pelo tribunal, nos termos do disposto no artigo 48.º do CPC.
Por sua vez, a legitimidade do acompanhante é expressamente reconhecida pelo artigo 901.º do CPC, na redacção introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, na qualidade de assistente.
É a própria lei que reconhece ao acompanhante, para efeitos de recurso de decisão relativa a medida de acompanhamento, a qualidade de assistente, reconhecendo-lhe, assim, o direito de intervir no recurso como auxiliar de qualquer das partes principais, se - como sucede, manifestamente, no caso em apreço - tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a essa parte (artigos 326.º e 328.º do CPC).
Em suma, a Recorrente e acompanhante BB… tem legitimidade para o recurso e goza do estatuto de assistente, por força do disposto no art.º 901.º do CPC, assumindo essa qualidade sem necessidade de apresentar qualquer requerimento especial para efeitos de reconhecimento desse seu estatuto, pois ao caso não tem aplicação o n.º 2 do artigo 327.º do CPC, ao invés do que defende a Requerente.
E deve ser regularizada a irregularidade do patrocínio judiciário, promovendo-se a junção aos autos do mandato forense em falta, pois, no processo especial de acompanhamento de maiores, o patrocínio judiciário é obrigatório.
Como refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA [O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais, E-Book citado, CEJ, Fevereiro de 2019, págs. 45-46] “(…) o processo especial de acompanhamento de maiores é, em termos substanciais, um processo de jurisdição voluntária.
Formalmente, todavia, o processo de acompanhamento de maiores não pode ser considerado um processo de jurisdição voluntária[[4]], não só porque não se encontra inserido no Título XV do Livro V do Código de Processo Civil, mas também porque não há nenhuma disposição legal que o qualifique como tal. Este aspecto, embora formal, é muito relevante, porque implica, por exemplo, que a desnecessidade da constituição de advogado que consta do art.º 986.º, n.º 4, não é aplicável aos processos de acompanhamento de maiores[[5]]. Dito pela positiva: a obrigatoriedade do patrocínio judiciário determina-se nos termos gerais estabelecidos no art.º 40.º, n.º 1. 2. Além de algumas características dos processos de jurisdição voluntária, o processo especial de acompanhamento de maiores caracteriza-se ainda pela circunstância de o juiz não estar vinculado à medida de acompanhamento requerida pelo requerente que instaurou o processo (art.º 145.º, n.º 2, CC). Esta solução justifica-se porque, além do mais, só durante o processo é possível determinar, com rigor, a medida de acompanhamento adequada para o beneficiário. Recorde-se que a medida de acompanhamento se deve restringir ao estritamente necessário (art.º 145.º, n.º 1, CC), pelo que o juiz não deve decretar nem uma medida que seja excessiva atendendo às necessidades do beneficiário, nem uma medida que seja insuficiente considerando essas mesmas necessidades.”.
Por tudo o exposto, decide-se:
(i) declarar a Recorrente BB… parte legítima para o recurso de apelação por si interposto conjuntamente com o Beneficiário;
(ii) determinar que se notifique a Recorrente BB… para, em 10 (dez) dias, juntar aos autos procuração outorgada a favor da Exma. Mandatária subscritora do requerimento de interposição de recuso e ratificar o processado (artigo 48.º, n.º 2, do CPC).
B.2) Primeira e segundas questões suscitadas no recurso interposto pela Requerente: (i) pretensa nulidade da sentença, por omissão de pronúncia sobre a arguida nulidade de todos os actos praticados pelo Beneficiário após 1 de Novembro de 2018, data em que se fixou o início da sua incapacidade de exercício (conclusões I a III); (ii) e da pretensa nulidade do mandato forense outorgado pelo Beneficiário em 14-04-2020 (conclusão XII).
Defende a Requerente, aqui Recorrente, que tendo sido fixado o dia 01/11/2018 como a data de começo da incapacidade de exercício do Beneficiário, todos os actos por este praticados após esta data, nomeadamente os actos de natureza patrimonial, neles se incluindo os de natureza contratual, designadamente a outorga, em 14/04/2020, de mandado forense, são nulos e de nenhum efeito, retroagindo-se a nulidade à data do início da incapacidade de exercício.
Termos em que requer que seja declarado nulo o contrato de mandato forense celebrado pelo Beneficiário, atenta a data em que lhe foi fixada a incapacidade, sendo declarados nulos todos os actos praticados ao abrigo desse contrato.
Apreciando e decidindo.
O artigo 615º do CPC, sob a epígrafe «Causas de nulidade da sentença», dispõe:
«1. É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido».
As questões a que se reporta a alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
A nulidade, por falta de pronúncia, prevista na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC está directamente relacionada com o comando fixado na segunda parte do n.º 2 do artigo 608º do mesmo diploma legal, nos termos do qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes submetam à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”
Terão, por conseguinte, de ser apreciadas todas as pretensões processuais das partes - pedidos, excepções, etc. - e todos os factos em que assentam, bem como todos os pressupostos processuais desse conhecimento, sejam eles os gerais, sejam os específicos de qualquer acto processual, quando objecto de controvérsia, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Todavia, as questões a resolver para os efeitos do n.º 2 do artigo 608º e da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º, ambos do CPC, são apenas as que contendem directamente com a substanciação da causa de pedir ou do pedido, não se confundindo quer com a questão jurídica quer com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor aos quais o tribunal não tem de dar resposta especificada.
Sendo estes os parâmetros de resolução da questão sub judice importa aquilatar se o Tribunal a quo se deveria ter pronunciado, ainda que oficiosamente, sobre a pretensa invalidade do mandato forense outorgado pelo Beneficiário a favor da Ilustre Mandatária subscritora do requerimento de interposição de recurso.
A resposta a esta questão tem de ser negativa, pelos fundamentos que a seguir se expõem.
No que respeita as actos praticados pelo maior acompanhado que não observem as medidas de acompanhamento decretadas ou a decretar, dispõe o n.º 1 do artigo 154.º do Código Civil que eles são anuláveis, quando posteriores ao registo do acompanhamento (alínea a) ou quando praticados depois de anunciado o início do processo, mas apenas depois da decisão final que o decrete e caso se mostrem prejudiciais para o acompanhado (alínea b).
O prazo para arguir a anulabilidade só começa a contar a partir do registo da sentença (n.º 2 da citada disposição legal).
Como refere o Professor MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[[6]], «[a] decisão transitada em julgado é comunicada oficiosamente aos serviços do registo civil para registo da medida de acompanhamento que tenha sido decretada (art.º 153.º, n.º 2, CC; art.º 902.º, n.º 2, do CPC).
Depois do trânsito em julgado da decisão, o acompanhante pode requerer a anulação dos actos praticados pelo acompanhado após as comunicações que, nos termos do estabelecido no art.º 894.º do CPC, tenham sido realizadas pelo juiz a instituições e outras entidades (art.º 903.º do CPC). Trata-se de um regime específico para os actos praticados por estas instituições ou entidades que não prejudica o disposto no art.º 154.º, n.º 1, al. b), Cód. Civil quanto à anulabilidade de actos praticados pelo acompanhado depois do anúncio do processo, mas antes do decretamento da providência.»
Tudo visto, temos que a outorga, pelo Beneficiário, de mandato forense para se defender nos presentes autos não configura um acto nulo, sequer anulável. No que respeita aos actos praticados pelo acompanhado o artigo dispõe que eles são anuláveis (artigo 154.º do CC), quando posteriores ao registo do acompanhamento (n.º 1-a) ou (hipótese dos autos) quando praticados depois de anunciado o início do processo, mas apenas depois da decisão final que o decrete e caso se mostrem prejudiciais para o acompanhado (n.º 1-b).
A anulabilidade não é de conhecimento oficioso pelo tribunal, carecendo de ser invocada pelo interessado na sua declaração em acção de anulação, a intentar no prazo de um ano, a contar do registo da decisão final de acompanhamento (artigos 154.º, n.º 2 e 287.º, n.º 1, do CC).
Termos em que se indeferem as nulidades arguidas.
B.3) Das questões remanescentes suscitadas em ambos os recursos:
Subsistem, para apreciação, três questões: (*) da falta de especificação de factos relevantes e que deveriam constar como provados, por se afigurarem essenciais à decisão a proferir; (*) saber se a decisão recorrida deve ser revogada e, outrossim, se deve ser deferido o acompanhamento e gestão das questões de natureza patrimonial do Beneficiário à sua mulher BB…, à semelhança da gestão de assuntos de natureza corrente, para que já foi nomeada, ou ainda se, como impetra a Requerente (*) se a decisão recorrida deve ser revogada, nomeando-se a própria Requerente acompanhante do Beneficiário seu pai, tanto para as questões de natureza corrente como para as questões de natureza patrimonial do seu pai.
As duas primeiras questões elencadas foram suscitadas no recurso do Beneficiário e da Acompanhante mulher e a terceira no recurso da Requerente (Acompanhante filha).
Vejamos então.
O Beneficiário e a Assistente consideram que a medida de acompanhamento decretada pelo Tribunal a quo não é a mais adequada perante os factos provados, desde logo porque, como se reconhece na decisão em causa, a Requerente mantém uma “relação marcada pelo antagonismo” com a Acompanhante CC…, mulher do Beneficiário.
Na sua perspectiva, a concreta medida decretada - nomeação simultânea da Requerente e da mulher do Beneficiário como Acompanhantes -, face ao que é a experiência comum, potenciará e agravará o antagonismo existente no relacionamento e reconhecido pelo Tribunal a quo, caraterizando-se pela tensão e conflitualidade.
Consideram, ainda, que a sentença não se pronunciou sobre factos essenciais, relevantes, que deveriam constar dos factos provados e que, subsequentemente, a decisão a proferir deve considerar tais factos, a saber:
a. O Requerido e a Assistente são casados há 34 anos,
b. O Requerido e a Assistente contraíram casamento no dia 11 de maio de 1987 sob o regime imperativo de separação de bens,
c. O casamento entre o Requerido e a Assistente ocorreu após 6 anos de vida em comum ou união de facto,
d. A relação entre o Requerido e a Assistente subsiste há mais de 40 anos, e. A instauração de um processo crime, traduzido numa queixa crime apresentada em 09 de março de 2020, pela Assistente contra a aqui Requerente e a neta do Requerido (…) e ainda contra o ex-cônjuge da Requerente (…), pela prática de diversos crimes de ofensa à integridade física, violência doméstica, ameaças e injúrias,
f. O Tribunal a quo, no momento em que proferiu a decisão sub iudice tinha conhecimento do processo-crime,
g. Em momento anterior a instauração do processo, já o Requerido e a Assistente receavam a Requerente e demais familiares pelo respetivo comportamento agressivo e intimidatório exercido contra o Requerido e a Assistente,
h. O comportamento agressivo e intimidatório, concretizaram-se na prática dos factos denunciados na queixa-crime,
i. Em 25 de março de 2020 (data da citação do Requerido), Requerido e Assistente tomaram conhecimento do processo de maior acompanhado, ou seja em data posterior à apresentação da queixa crime,
j. A Requerente raramente visita o Requerido bem como não se disponibiliza para colaborar em qualquer tarefa ou necessidade de assistência ao Requerido e não contestado pela Requerente,
k. É a Assistente que acompanha o Requerido 24 horas por dia, sete dias da semana e 365 dias por ano, ou seja, permanentemente, provendo à satisfação das necessidades do Requerido.”
Defendem, igualmente, o Beneficiário e a Acompanhante mulher que, atendendo aos factos dados como provados, as medidas decretadas pelo Tribunal a quo não terão qualquer significado no que respeita ao bem-estar, ao exercício dos direitos e cumprimento dos deveres do Requerido, porquanto este objetivo já está garantido, através dos concretos direitos e deveres de cooperação e assistência , ou seja, a medida decretada nada acrescenta à realidade existente, como expressamente decorre da decisão de que se recorre, designadamente dos factos julgados por provados, elencados em 8 e 9 dos Factos Provados - “8. E não se encontra em condições de aceitar os tratamentos propostos, dependendo da mulher BB…, de 90 anos, com quem reside” e “9. declarou que quem o acompanha no dia-a-dia é sua mulher BB…, manifestando vontade que fosse designada acompanhante”.
Sustenta, por isso, que não faz qualquer sentido a sentença declarar o acompanhamento de maior, estabelecer o conteúdo do acompanhamento e nomear a mulher para a gestão de assuntos de natureza corrente (artigo 147.º do CC), como seja a saúde, a aceitação de tratamentos médicos, a alimentação e o vestuário do Beneficiário, uma vez que esta é a realidade que existe desde há muitos anos.
E que a medida de acompanhamento só tem lugar quando as finalidades que com ela se prosseguem não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação e assistência – o que manifestamente não é a situação objeto da sentença, pois estão há muito asseguradas.
Defendem, também, que as medidas decretadas pelo Tribunal a quo designando a Requerente como Acompanhante para a gestão de assuntos de natureza patrimonial do Beneficiário, ainda que acautele as necessidades de articulação com a Acompanhante mulher quanto à satisfação das necessidades financeiras pessoais do beneficiário, não contribui para o equilíbrio necessário a um bom e saudável acompanhamento do Beneficiário, para além de desrespeitar a vontade lúcida e expressa manifestada pelo mesmo, vai contribuir para uma maior instabilidade da relação existente, pois que, o dissenso em causa relaciona-se diretamente com o património do casal, a que a Requerente quer “deitar a mão”.
Por essa via, a Requerente concretiza o seu desiderato de acesso ao património do Requerido e de gestão da respetiva conta bancária, titulada pelo Requerido e pela Assistente, ficando esta dependente daquela em tudo o que respeitar a questões financeiras.
Em suma, as medidas decretadas em nada beneficiam a vida e o bem-estar do Beneficiário, antes irão contribuir para o mal-estar da vida do casal e consequentemente do Acompanhado, sem prejuízo do supra exposto quanto à inutilidade das medidas de acompanhamento em causa, porquanto o relacionamento antagónico e hostil entre a Requerente e a Acompanhante filha, não autoriza que se vislumbre um acompanhamento pacifico e estável.
*
Por sua vez, a Requerente alega, na apelação por si interposta, que a nomeação da actual mulher do beneficiário, CC… para a gestão de assuntos de natureza corrente, como seja a saúde, aceitação de tratamentos médicos, alimentação e vestuário do beneficiário, não garante, em função da sua idade de 91 anos que consiga gerir de forma correcta e eficaz, as necessidades que o Beneficiário padece dado que este sofre da patologia de Alzheimer.
E que a mulher do Beneficiário, CC…, omite, limita e veda os cuidados de saúde necessários ao bem-estar e condição débil do mesmo, desmarcando consultas e exames, sem qualquer fundamento ou aviso prévio, que a Requerente marca. Mais alega que a Acompanhante CC… decide, sem mais, mudar de médicos que assistem e acompanham o Beneficiário há vários anos, assim como lhe administra medicamentos sem prescrição médica.
Termos em que conclui, que a mulher do Beneficiário não tem condições, face à sua idade, também avançada, para poder ser nomeada acompanhante, ao contrario do que foi decidido.
Diga-se, desde já, que são imputações graves estas que a Requerente faz à mulher do Beneficiário, e que ora vão muito além do alegado na petição inicial, ora são contraditórias com o quadro factual ali descrito. Se é certo que no artigo 32.º da petição inicial se afirma, ainda que de forma algo conclusiva, que a mulher do Beneficiário desvaloriza a opinião dos profissionais de saúde, não tem em atenção e não acata as suas orientações e prescrições destes e recusa os tratamentos aconselhados, não é menos verdade que, em contradição com o asseverado nas alegações de recurso, que na mesma petição inicial a Requerente refere a presença do Beneficiário, acompanhado pela mulher, CC…., em consultas das especialidades de cardiologia, neurologia e psiquiatria, que terão sido agendadas por  iniciativa da própria Requerente (v.g. artigos 26.º, 28.º, 29.º e 35.º).
Por outro lado, não podemos deixar de notar que a Requerente desconsidera não apenas as reais capacidades da mulher do Beneficiário, CC…, mas também a sua condição de mulher do Beneficiário seu pai, com quem está casada desde 11 de Maio de 1987 (Doc. 3 da p.i.), pois que põe frequentemente a tónica na idade avançada da Requerente (91 anos) sugerindo ser factor incapacitante da prestação de adequada assistência ao Beneficiário e refere-se frequentemente à mesma como “a actual mulher” do seu pai ou a “companheira” do Beneficiário. Que a mulher do Beneficiário, apesar da idade vetusta, é uma pessoa saudável e não apresenta “qualquer alteração psicopatológica … nem de forma pregressa, que possa configurar ou sequer levantar a suspeita de psicopatologia relevante” ou “traços de personalidade desviante ao corte transversal” resulta patente das conclusões do exame de perícia médico-legal de psiquiatria constante de fls. 67 a 69 verso (págs. 4 e 5 do relatório), a que foi sujeita no INMLCF. À data da observação (31/07/2020), a mulher do Beneficiário apresentava um discurso espontâneo, fluente, lógico, coerente, e organizado, sem alterações qualitativas ou quantitativas, nem da linguagem ou da articulação da fala. Sem alterações da forma, curso nomeadamente na sua continuidade ou ritmo, conteúdo ou posse do pensamento. Sem alterações sensório-perceptivas ou da Vivência do Eu, tendo o perito de psiquiatria concluído que não parecem existir défices cognitivos (cfr. pág. 4 do relatório, a fls. 69)
Ora, é esta concreta pessoa, ainda que de idade avançada, que tem provido às necessidades básicas e instrumentais da vida diária do Beneficiário, como sejam as relacionadas com a responsabilidade pela gestão doméstica, uso de dinheiro, pagamento de contas, assuntos bancários, e em geral as relacionadas assuntos de natureza patrimonial, etc., fazendo-o, naturalmente, no âmbito dos deveres conjugais do casal - de cooperação e assistência - decorrentes do casamento que os une (artigos 1674.º e 1675.º do CC).
Ora, o cerne do litígio, tendo em conta o objecto de cada um dos recursos interpostos consiste em saber se, atendendo à relação matrimonial e de grande proximidade entre o casal, deve ser deferido à Acompanhante mulher, CC..., o acompanhamento e gestão das questões de natureza patrimonial do Beneficiário à semelhança da gestão de assuntos de natureza corrente para que já foi nomeada ou, pelo contrário, se deve a Requerente ser nomeada única acompanhante do Beneficiário, tanto para as questões de natureza corrente como para as questões de natureza patrimonial do seu pai, BB…..
A resposta a estas questões não prescinde de um breve excurso sobre os fins que o legislador teve em vista ao instituir o regime do maior acompanhado, o que pressupõe referência ao quadro normativo, com as suas múltiplas e distintas fontes.
Assim,
É consabido que a entrada em vigor do regime do maior acompanhado, aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, veio alterar o paradigma da protecção de uma pessoa maior afectada de incapacidade de exercício, substituindo os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação, assentes na incapacidade de exercício do requerido, pela figura maleável [maior acompanhado] com conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação, capacidades e possibilidades do concreto beneficiário da medida de acompanhamento.
Pretendeu-se, com o novo regime, consagrar medidas que pudessem auxiliar as pessoas com deficiência, mantendo estas a sua capacidade de exercício de direitos.
Tal mudança tem raízes na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e nas alterações legislativas operadas em vários sistemas jurídicos, como a Alemanha, França, Itália, Espanha e Brasil, entre outros [vide ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, no Congresso Comemorativo do Cinquentenário do Código Civil, que decorreu no Auditório da Faculdade de Direito de Coimbra, em 24 e 25 de Novembro de 2016, cujo texto foi publicado na RLJ, ano 146.°, n.° 4002, defendeu princípios e ideias que foram acolhidos na reforma operada pela Lei n.º 49/2018].
Refere o autor citado “transcrevendo expressamente o que então defendi, disse ser favorável a um sistema de maior flexibilidade, que promovesse, na medida do possível, a vontade das pessoas com deficiência e a sua autodeterminação, que respeitasse, sempre, a sua dignidade e facilitasse a revisão periódica das medidas restritivas decretadas por sentença judicial. Concretizando, disse concordar, em primeiro lugar, que, sempre que possível, devesse ser tomada em conta a vontade de quem vai ser sujeito a qualquer medida restritiva ou de apoio. Por maioria de razão, acrescentei concordar com o mandato em previsão do acompanhamento ou da incapacidade, isto é, com a possibilidade de qualquer pessoa prevenir uma eventual necessidade futura, indicando, desde logo, quem a acompanhará ou a representará, caso isso venha a verificar-se, e que poderes lhe atribui. Evidentemente, este mandato terá de ser devidamente disciplinado.
Houve também a consagração de uma medida semelhante àquela que o Brasil adoptou, relativa à “tomada de decisão apoiada”, permitindo à pessoa com deficiência, física ou mental, escolher alguém que pudesse apoiá-la nas decisões a tomar, fornecendo-lhe os elementos e informações necessários para esse efeito. É claro que também esta medida dependerá da aprovação do juiz competente.
Estas medidas pressupõem a manutenção da capacidade de exercício de direitos por parte da pessoa que a elas recorre. Trata-se de medidas de apoio a pessoa com deficiência assentes na sua autodeterminação.
“Proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela referida Convenção da ONU e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão. Há, assim, uma mudança de paradigma, deixando a pessoa deficiente de ser vista como mero alvo de políticas assistencialistas e paternalistas, para se reforçar a sua qualidade de sujeito de direitos. Em vez da pergunta: “aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica? ”, deve perguntar-se: “quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que exerça a sua capacidade jurídica?”.
A Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto é provavelmente a maior reforma operada no Código Civil após a revisão pelo Decreto-Lei n.º 496/77, que adaptou o Código Civil à Constituição de 1976, e certamente a maior reforma na Parte Geral do Código Civil após a sua publicação em 25 de Novembro de 1966.
O novo regime do maior acompanhado ocupa precisamente os mesmos artigos 138.º a 156.° do Código Civil, que disciplinavam os institutos da interdição e da inabilitação, institutos estes eliminados pela Lei em apreço.
Dito isto, a primeira pergunta é relativa à questão de saber quem pode beneficiar das medidas de acompanhamento. Responde o (novo) art.º 138.º, atribuindo esse benefício ao “maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”.  São, assim, de dois tipos, esses requisitos: por um lado, quanto à causa: razões de saúde, deficiência ou ligadas ao seu comportamento; e , por outro lado, quanto à consequência: a impossibilidade de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.
Optou o legislador, como se vê, por uma formulação ampla, afastando-se claramente da posição fechada relativa aos fundamentos da interdição e da inabilitação. Um ponto muito importante que neste contexto importa sublinhar é o de que na actual formulação ampla que permite o recurso às medidas de acompanhamento cabem as pessoas idosas e/ou doentes. [Neste sentido, ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Fevereiro de 2019 - 1. Das incapacidades ao maior acompanhado - Breve apresentação da Lei n.º 49/2018, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf].
Como refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA [O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais, E-Book citado, CEJ, Fevereiro de 2019, págs. 45-46] “Ao processo especial de acompanhamento de maiores aplicam-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de decisão e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (art.º 891.º, n.º 1). Esta regulamentação contém uma remissão para o regime dos processos de jurisdição voluntária nos seguintes aspectos:
- Poderes do juiz: o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; além disso, só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias para a boa decisão da causa (art.º 986.°, n.º 2);
- Critério de decisão: nas providências a tomar, o tribunal deve adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art.º 987.°); isto significa que, nos processos de acompanhamento de maiores, o critério de decretamento da respectiva medida é a discricionariedade;
- Alteração das decisões: as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; a superveniência pode ser objectiva ou resultar de ignorância da parte ou de outro motivo ponderoso que tenha conduzido à omissão da alegação (art.° 988.°, n.º 1).
Assim, das características gerais dos processos de jurisdição voluntária só não é aplicável aquela que determina que, nas resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade, não é admissível recurso para o STJ (art.º 988.º, n.º 2).
Em suma: o processo especial de acompanhamento de maiores é, em termos substanciais, um processo de jurisdição voluntária.
Formalmente, todavia, o processo de acompanhamento de maiores não pode ser considerado um processo de jurisdição voluntária, não só porque não se encontra inserido no Título XV do Livro V do Código de Processo Civil, mas também porque não há nenhuma disposição legal que o qualifique como tal. Este aspecto, embora formal, é muito relevante, porque implica, por exemplo, que a desnecessidade da constituição de advogado que consta do art.º 986.º, n.º 4, não é aplicável aos processos de acompanhamento de maiores. Dito pela positiva: a obrigatoriedade do patrocínio judiciário determina-se nos termos gerais estabelecidos no art.º 40.º, n.º 1. 2. Além de algumas características dos processos de jurisdição voluntária, o processo especial de acompanhamento de maiores caracteriza-se ainda pela circunstância de o juiz não estar vinculado à medida de acompanhamento requerida pelo requerente que instaurou o processo (art.º 145.º, n.º 2, CC). Esta solução justifica-se porque, além do mais, só durante o processo é possível determinar, com rigor, a medida de acompanhamento adequada para o beneficiário. Recorde-se que a medida de acompanhamento se deve restringir ao estritamente necessário (art.º 145.º, n.º 1, CC), pelo que o juiz não deve decretar nem uma medida que seja excessiva atendendo às necessidades do beneficiário, nem uma medida que seja insuficiente considerando essas mesmas necessidades.”.
Ora, dada a remissão constante do art.º 891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária, o juiz pode coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (art.º 986.°, n.º 2, 1.a parte).
Em suma, cabe sempre ao tribunal, no âmbito dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal, sem os formalismos próprios dos processos de jurisdição contenciosa, mas sempre com respeito pelo contraditório, controlar se se justifica suprir a falta de autorização do eventual beneficiário, assim como lhe cabe controlar a concessão de autorização pelo mesmo, usando de cuidada ponderação, dado que não é justificável presumir nem que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização.
O que acima se disse sobre o controlo da autorização ou da recusa de autorização tanto se aplica aos pedidos de aplicação de medida de acompanhamento requeridos pelo eventual beneficiário ou pelas pessoas legitimadas para tanto pelo n.º 1 do art.º 141.º do Cód. Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, como às situações de adequação formal dos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da entrada em vigor do referido diploma legal [art.ºs 25.º, n.º 1 e 26.º, n.ºs 1 e 2].
Nessa tarefa de controlo, o juiz não está limitado, pelo “espartilho” do art.º 1000.º do CPC, ou seja, não tem de seguir os formalismos próprios do processo de suprimento do consentimento no caso de recuso, antes os próprios do processo especial de acompanhamento de maior, regulado nos artigos 891.º a 905.º do CPC, na redacção actualmente vigente, cuja tramitação não prevê a realização de audiência de discussão e julgamento.
Como se refere com propriedade no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-09-2019, proc. n.º 13569/17.1T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt., “a existência de uma discapacidade mental ou de uma doença neurológica só por si não é fundamento de acompanhamento legal. Mas o tribunal também deve ter presente o actual paradigma dos direitos humanos da personalidade e capacidade jurídica, mormente o seu reconhecimento em qualquer lugar e em igualdade com as demais pessoas, concedendo-se ainda primazia às medidas de apoio em detrimento das medidas de substituição (12.º CDPD).
Tal implica que o decretamento de uma medida de acompanhamento decorra de uma impossibilidade suficientemente forte e não meramente indiciária de uma pessoa maior encontrar-se de modo pleno, pessoal e consciente impedida de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres no âmbito da sua capacidade jurídica e relativamente aos seus interesses pessoais (130.º; 138.º Código Civil). Para o efeito, o tribunal deve partir da presunção de que toda a pessoa adulta está habilitada a governar a sua pessoa e os seus bens, tendo as medidas de acompanhamento um carácter excepcional, de acordo com o princípio da intervenção mínima no âmbito da restrição dos direitos fundamentais (18.º, n.º 2 Constituição).
Deste modo, uma medida de acompanhamento de uma pessoa maior só se justifica quando esta revelar uma inaptidão básica para autogovernar e autodeterminar a sua vida, tanto pessoal, como patrimonial, existindo factores que, de um modo global ou particular, reduzem ou eliminam a voluntariedade e consciência dos seus actos, em função dos seus juízos de capacidade, os quais devem ser aferidos em concreto e não em abstracto. Assim, sempre que uma pessoa tenha a capacidade mental mínima para tomar decisões racionais e desempenhar tarefas como um agente racional, não se justifica qualquer medida limitadora da sua capacidade jurídica, podendo até serem implementadas outras medidas de apoio, mas fora do âmbito do acompanhamento legal, como a assistência pessoal, os cuidados informais ou o acolhimento familiar.
Por outro lado, as medidas de acompanhamento devem ser sujeitas a um teste de proporcionalidade, determinando-se em concreto o que é necessário, adequado e na justa medida para preservar os interesses legítimos da pessoa acompanhada e não de qualquer outra (145.º, n.º 1 Código Civil) - como sejam os interesses patrimoniais de terceiros, inclusivamente de familiares. Para que tal ocorra, o tribunal deve partir de um critério realista da capacidade natural na formação da livre vontade da pessoa que vier a beneficiar das medidas de apoio, mormente da sua capacidade mental e da heterogeneidade desta, mas não de critérios abstratos e ficcionados a partir de modelos estanques, como são aqueles que partem de uma leitura exclusivamente médica. Para o efeito, será de ponderar todas as circunstâncias endógenas e exógenas que em termos funcionais reduzem ou eliminam as suas aptidões mentais de autonomia pessoal (capacidade básica de autogoverno e autodeterminação) para dirigir a sua pessoa, administrar os seus bens e celebrar actos jurídicos em geral.
Destarte e como está em causa a aptidão funcional da capacidade jurídica e mental, essa avaliação deverá estar centrada na própria pessoa, o que passa pelo seguinte: (a) realizar uma listagem das suas necessidades básicas, destrinçando aquelas para as quais está apta a realizar, daquelas outras que denota algumas limitações; (b) estabelecer as prioridades de intervenção; (c) elencar os recursos pessoais e patrimoniais disponíveis; (d) avaliar as alternativas de intervenção não jurisdicionais existentes; (e) respeitar os desejos e vontades manifestados pela pessoa a ser acompanhada. Deste modo, a designação judicial do(s) acompanhante(s) deve estar igualmente centrada na pessoa maior que em concreto, e não em abstracto, vai ser legalmente acompanhada, concluindo-se que aquela está em melhor posição para assumir as funções de acompanhamento legal, o que passa por: (i) assegurar as medidas de apoio que foram determinadas pelo tribunal; (ii) prestar-lhe os cuidados devidos, atento o respectivo contexto pessoal, social e ambiental; (iii) participar juridicamente na representação legal determinada pelo tribunal; (iv) assegurar em todos os domínios a vontade e os desejos da pessoa acompanhada, tanto a nível pessoal, como patrimonial, que não foram judicialmente reservados ou restringidos.”[[7]]
Só podemos acompanhar este entendimento que escalpeliza os traços essenciais do regime jurídico do maior acompanhado, do qual avulta o primado do respeito pela autonomia e dignidade da pessoa.
Em boa verdade se diga que, além da (i) primazia pela autonomia do beneficiário, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até aos limites do possível, são vectores essenciais do regime do maior acompanhado (ii) a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à capacidade do visado pela medida de protecção, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de protecção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar, designadamente através dos deveres de cooperação e assistência que impendem sobre o cônjuge; (iii) a flexibilização da medida de acompanhamento, dentro da ideia de que cada caso é um caso; (iv) A manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; (v) O primado dos interesses pessoais e patrimoniais do visado.
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Ora, salvo o devido respeito, o que se constata da leitura da decisão recorrida é que o Tribunal a quo não teve em atenção as descritas linhas de orientação, não tendo determinado as concretas medidas de apoio de que está carecido o Beneficiário e o melhor critério funcional na designação das acompanhantes, dando primazia às preocupações de ordem patrimonial de terceira pessoa, como é exemplo o facto de  ter nomeado a Requerente para a gestão de assuntos de natureza patrimonial do Beneficiário, afastando dessa valência o respectivo cônjuge, CC…, com quem está casado desde 1987 e com quem tem uma real comunhão de vida e interesses há cerca de 40 anos. A referida decisão tem como único fundamento a idade avançada da mulher do Beneficiário e a presunção de que tal condição a impedia de gerir adequadamente outros aspectos mais complexos (quais ??) da vida patrimonial do Requerido. Certo é que nos autos nada foi alegado relativamente a essa incapacidade ou capacidade diminuída da mulher do Beneficiário para o assistir e coadjuvar na gestão do respectivo património, aliás, desconhecido, nem tal se pode extrair dos factos provados e da prova produzida e carreada para os autos. E não se olvide que o Beneficiário, quando questionado sobre o assunto, expressou vontade de que a escolha do acompanhante recaísse sobre a sua mulher e companheira de uma vida, com quem tem grande proximidade.
Como bem referem o Beneficiário e a Acompanhante CC…, a sentença recorrida apresenta-se deficientemente fundamentada de facto e de direito, pois não especificou nem valorou elementos de facto que poderia ter dado como provados, que resultam da prova documental carreada para os autos e dos depoimentos prestados, designadamente pelo Beneficiário e pela mulher, CC…, bem como dos relatórios dos exames médico-legais de psiquiatria efectuados aos mesmos. Omitiram-se, factos essenciais como os indicados nas conclusões recursivas sob as alíneas b), c) e podia e devia ter-se indagado, por iniciativa do Tribunal a quo, a factualidade indicada sob as alíneas e) e j).
Concorda-se com o Beneficiário e a mulher CC… quando afirmam que o raciocínio do Tribunal recorrido se revela incoerente e temerário quando considera que a idade daquela não releva para a gestão de assuntos de natureza corrente, mas já releva para a gestão de assuntos de natureza patrimonial do Requerido, ou seja, que a Acompanhante CC… não é velha para cuidar do marido, nos aspectos relacionados com a saúde, aceitação de tratamentos médicos, alimentação e vestuário, mas já o é para tratar das questões patrimoniais que a si e ao seu marido digam respeito, sem se saber em concreto o património a gerir em termos de se poder concluir pela complexidade ou não da sua gestão.
Diga-se, por fim, que a sentença recorrida não se debruçou sobre as condições pessoais do Requerido, que deveriam ter sido averiguadas pelo Tribunal recorrido, face à sua relevância para a determinação, de uma concreta e não abstracta, medida de acompanhamento, minimamente invasora da dignidade do visado e adequada à sua situação real.
Como se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-09-2019, já citado, «as medidas de acompanhamento devem ser sujeitas a um teste de proporcionalidade, determinando-se em concreto o que é necessário, adequado e na justa medida para preservar os interesses legítimos da pessoa acompanhada e não de qualquer outra (145.º, n.º 1 Código Civil) – como sejam os interesses patrimoniais de terceiros, inclusivamente de familiares. Para que tal ocorra, o tribunal deve partir de um critério realista da capacidade natural na formação da livre vontade da pessoa que vier a beneficiar das medidas de apoio, mormente da sua capacidade mental e da heterogeneidade desta, mas não de critérios abstratos e ficcionados a partir de modelos estanques, como são aqueles que partem de uma leitura exclusivamente médica. Para o efeito, será de ponderar todas as circunstâncias endógenas e exógenas que em termos funcionais reduzem ou eliminam as suas aptidões mentais de autonomia pessoal (capacidade básica de autogoverno e autodeterminação) para dirigir a sua pessoa, administrar os seus bens e celebrar actos jurídicos em geral.
Destarte e como está em causa a aptidão funcional da capacidade jurídica e mental, essa avaliação deverá estar centrada na própria pessoa, o que passa pelo seguinte: (a) realizar uma listagem das suas necessidades básicas, destrinçando aquelas para as quais está apta a realizar, daquelas outras que denota algumas limitações; (b) estabelecer as prioridades de intervenção; (c) elencar os recursos pessoais e patrimoniais disponíveis; (d) avaliar as alternativas de intervenção não jurisdicionais existentes; (e) respeitar os desejos e vontades manifestados pela pessoa a ser acompanhada. Deste modo, a designação judicial do(s) acompanhante(s) deve estar igualmente centrada na pessoa maior que em concreto, e não em abstracto, vai ser legalmente acompanhada, concluindo-se que aquela está em melhor posição para assumir as funções de acompanhamento legal, o que passa por: (i) assegurar as medidas de apoio que foram determinadas pelo tribunal; (ii) prestar-lhe os cuidados devidos, atento o respectivo contexto pessoal, social e ambiental; (iii) participar juridicamente na representação legal determinada pelo tribunal; (iv) assegurar em todos os domínios a vontade e os desejos da pessoa acompanhada, tanto a nível pessoal, como patrimonial, que não foram judicialmente reservados ou restringidos.»[[8]]
No caso vertente não foram avaliadas as condições socioeconómicas do Requerido, o que passa, como se disse, por elencar os recursos pessoais e patrimoniais disponíveis e avaliar as alternativas de intervenção não jurisdicionais existentes.
Apesar de solicitado relatório social, na sequência de despacho de 22/06/2020, não se aguardou a sua realização, precipitando-se a decisão final.
E a desconsideração das condições pessoais do Requerido deu-se apesar da sugestão deixada pelo perito do INMLCF, nas conclusões dos relatórios dos exames de perícia médico-legal de psiquiatria respeitantes à Requerente e á Acompanhante CC…. Aí se refere que a adequação da medida de acompanhamento, na eventualidade de ser deferida, relativamente à representação do Beneficiário será essencialmente dependente da avaliação social já solicitada pelo tribunal.
As apontadas faltas de consideração tanto de facto, como de Direito, não permitem a esta Relação tomar posição quanto ao objecto dos recursos apresentados relativamente à nomeação do acompanhante.
Nestes casos e mesmo oficiosamente a Relação, ao abrigo do artigo 662.º, n.º 2, alíneas c), n.º 3, alínea c), do CPC, pode anular a decisão proferida em 1.ª instância, de modo a ampliar os factos respeitantes à aptidão funcional da capacidade jurídica e mental do Requerida, assim como de quem está em melhores condições para assumir as funções de acompanhamento legal. E no mesmo seguimento deve o Tribunal recorrido, agora ao abrigo do artigo 662.º, n.º 2, alíneas d), n.º 3, alínea d), do CPC, melhor fundamentar a sua decisão, atento os parâmetros agora definidos.
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- Não há lugar a custas (artigo 4.º, n.º 2, alínea h), do Regulamento das Custas Processuais).      
IV - Decisão
Perante o que fica exposto, acordam os Juízes da 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pela Requerente quanto às duas primeiras questões e relativamente ao restante (incluindo o suscitado no recurso interposto do Beneficiário e da sua mulher) anula-se a sentença recorrida, com vista à ampliação da matéria de facto e melhor fundamentação, nos termos anteriormente apontados.
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Sem custas.
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Registe e notifique, sendo a Recorrente CC… igualmente para, em 10 (dez) dias, juntar aos autos procuração outorgada a favor da Exma. Mandatária subscritora do requerimento de interposição de recuso e ratificar o processado (artigo 48.º, n.º 2, do CPC).

Lisboa, 7 de Outubro de 2021
Manuel Rodrigues
Ana Paula A. A. Carvalho
Nuno Lopes Ribeiro
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[1] Classificação Internacional de Doenças – 10ª Edição.
[2] Organização Mundial de Saúde
[3] Negrito e sublinhado nossos.
[4] Negrito e sublinhado nossos.
[5] Negrito e sublinhado nossos.
[6] Obra citada, pág. 54.
[7] Sublinhado nosso.
[8] Sublinhado nosso.