Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CRISTINA LOURENÇO | ||
Descritores: | AÇÕES DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA CASO JULGADO ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA CIRCUNSTÂNCIAS SUPERVENIENTES ALTERAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | Sumário: (elaborado pela relatora - art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil): 1. Nas ações de jurisdição voluntária o caso julgado forma-se em termos idênticos ao que se forma em qualquer outro processo (de jurisdição contenciosa), mas as decisões proferidas neste tipo de processos, apesar de cobertas pelo caso julgado, não são irrevogáveis, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração, tal como se admite no art. 988º do CPC. 2. De acordo com o regime previsto no nº 3, do art. 1793º, do CC, o regime de atribuição da casa de morada de família pode vir a ser alterado, independentemente de ter sido fixado por decisão do tribunal ou mediante homologação de acordo dos cônjuges, nos termos gerais da jurisdição voluntária, ficando a alteração dependente da ocorrência de circunstâncias supervenientes que permitam a modificação (art. 988º, nº 1, do CPC). 3. A avaliação de tais circunstâncias pressupõe, necessariamente, uma análise comparativa entre o estado atual das coisas e aqueloutro que existia aquando da decisão sobre a atribuição da casa de morada de família, donde decorre a necessidade de o(a) requerente alegar, por um lado, a factualidade que esteve subjacente àquela decisão, por outro, descrever os factos suscetíveis de evidenciar a alteração de circunstâncias capazes de motivar a alteração do regime preconizada. 4. A modificação substancial capaz de motivar a alteração não poderá deixar de obedecer às exigências previstas no art. 437º do CC para os casos de resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, ainda que de forma mais mitigada, considerando a natureza do processo (jurisdição voluntária). | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: Relatório A…, veio intentar contra V…, nos termos e ao abrigo dos invocados arts. 1793º, nº 3, do CC, e 990º, do CPC, incidente de alteração do regime quanto à atribuição da casa de morada de família, pedindo, a final, o seguinte: a) Que a casa de morada de família lhe seja atribuída; b) Seja fixado novo prazo de arrendamento para três anos; c) Seja fixado o pagamento mensal de € 150,00, ao requerido, a título de renda. * O requerido deduziu oposição. Defendeu-se por exceção (exceção dilatória de caso julgado, fundada na alegada repetição de causa, por já ter sido homologado por sentença o acordo firmado pelos intervenientes quanto à atribuição da casa de morada de família) e por impugnação (diz, neste campo, que a requerente não sustentou o pedido na alteração de circunstância(s) ocorrida(s) desde a prolação da dita sentença). Termina, pedindo: a) A procedência da exceção de caso julgado, com a consequente improcedência do processo; b) Caso assim não se entenda, que se conclua pela inexistência de circunstancialismo que justifique o pedido e que se lhe devolva, de imediato, o uso do imóvel. * Realizado o julgamento, foi proferida a seguinte decisão: “(…) julgo totalmente procedente o pedido, pelo que decido atribuir a casa de morada de família, sita na Rua …., à Autora, no prazo de três anos, mediante o pagamento mensal da quantia de €150 (sem despesas incluídas) ao Requerido a título de renda. Valor da causa: € 30.000,01 - cfr. arts. 303º, nº 1, e 306º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, e art. 44º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8. Custas pelo Réu - art. 527º, nºs 1 do Código de Processo Civil. Registe. Notifique.” * O requerido não se conformou com a decisão e dela veio recorrer. Pugnou pela revogação da sentença e pela sua substituição, por outra, que julgue improcedente a ação. Formulou a seguinte síntese conclusiva, que se transcreve: “A. Os presentes Autos fundamentam-se num pedido de alteração ao regime fixado quanto ao uso da casa de morada de família. B. Casa que, por Acordo Homologado, foi atribuída à Autora pelo período de 18 meses mediante o pagamento de 150,00€ mensais. C. Peticionou a Autora que a casa de morada de família lhe continue atribuída por um período adicional de três anos. D. E tal como resulta da Sentença recorrida a questão que se coloca prende-se com a possibilidade de prorrogação do prazo de atribuição da casa de morada de família à Requerente e nada mais. E. Entendeu o tribunal a quo que foram alegados factos que permitem fundamentar um processo de alteração do regime acordado. F. Assente nos pressupostos previstos no artigo 990.º do Código do Processo Civil, sendo passível da aplicação do disposto no n. º3 do artigo 1793.º do Código Civil, entendeu o Tribunal a quo procedente tal pretensão. G. Ora, é desta procedência que se Recorre e este Tribunal Superior. H. Ainda que sendo um processo de jurisdição voluntária e com alguma liberdade quanto à estrita legalidade, não há certamente dispensa no cumprimento e respeito pelas normas processuais. I. O que, no caso concreto, não aconteceu. J. Ora, existindo acordo homologado por sentença sobre o destino da casa de morada de família, a sua alteração, para ser procedente, está sempre dependente de uma alteração das circunstâncias que determinaram o acordo e que justificaram tal decisão. K. Os factos que foram considerados para a determinação do Acordo que foi homologado por Sentença são os mesmos que foram agora apresentados para a permanência na habitação. L. Ausência de habitação alternativa num raio de 50km da escola do menor, parcos rendimentos, diferença de rendimentos entre Autora e Réu. M. Referiu a Autora que, à data da homologação do acordo as rendas variavam entre 600,00€ e 1000,00€. N. Refere na presente ação, que as rendas oscilam entre os 800,00€ e os 900,00€. O. Quanto à sua condição profissional sempre se dirá que terá ficado provado que a sua condição profissional é, para além de mais estável, também mais recompensada. P. No Acordo que se encontrava em vigor, a retribuição da Autora, comparativamente aos valores do mercado de arrendamento era mais distante do que os valores de retribuição atual, comparativamente ao mercado atual. Q. A retribuição alegada e considerada para o Acordo que vigorava foi de 791,87€ para um mercado que, segundo a Autora, oscilava entre os 600,00€ e os 1000,00 €. R. A Sentença recorrida considerou uma retribuição de cerca de 1000 euros, para um mercado de arrendamento que oscila, segundo a Autora, entre os 800,00€ e os 900,00€. S. Esta diferença financeira não pode justificar a Decisão, bem pelo contrário, na medida em que, o fosso, que se pretende realçar, entre a retribuição da Autora relativamente aos valores de arrendamento é, na presente ação bastante menor. T. A Requerente manteve a situação inalterada e decidiu simplesmente requerer a sua continuação e nada mais. U. Não tendo sido alegados factos que demonstrem a alteração das circunstâncias de vida da requerente que justifiquem a alteração do acordo anteriormente homologado, nunca o tribunal poderia julgar procedente a ação. V. A manter-se a Decisão agora recorrida, estará esta Sentença em violação flagrante da força do caso julgado, formado com a homologação do acordo sobre o destino da casa de morada de família. W. E por esta razão, andou mal o Tribunal a quo ao decidir como decidiu e ao considerar improcedente a exceção de caso julgado invocada pelo Réu, aqui Recorrente. X. Conclui-se nada ter mudado, pelo que também se conclui inexistir fundamento para a alteração alegada e procedente. Y. Com o devido respeito se dirá, que não podia o Tribunal a quo decidir como decidiu quer, por ausência de prova, quer por ausência de fundamento legal. Z. O Recorrente está impedido de dispor do seu património, ainda que a Sentença tenha inclusivamente considerado provado o prejuízo consequente desta Decisão. AA. A natureza absoluta do direito de propriedade fica em crise com a Decisão recorrida. BB. Tendo o direito de propriedade natureza absoluta, apenas poderão prevalecer as situações que a Lei prevê. CC. O que no caso concreto não sucede, pelo que também quanto a este princípio mal andou o Tribunal a quo.” ** Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. * Objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código). No caso, as questões que importa decidir são as seguintes: - Se ocorre a exceção dilatória de caso julgado; - E, concluindo-se pela sua não verificação, se se impõe a revogação da decisão recorrida por não terem ocorrido alterações que justifiquem a prorrogação do prazo anteriormente fixado quanto à atribuição da casa de morada de família. Fundamentação de Facto Os factos a ponderar para a decisão são os que ficaram descritos em sede de relatório, os que foram fixados em 1ª instância e que não foram objeto de impugnação, e, bem assim, a factualidade infra aditada nos termos e pelos fundamentos que se deixarão aduzidos. Factos Provados (em 1ª instância): 1. A Autora e o Réu contraíram casamento civil, em 16 de janeiro de 2017[1], vindo o casamento a ser dissolvido por divórcio em 24 de novembro de 2022, por sentença homologatória dos autos principais, tendo acordado prescindir reciprocamente de alimentos e quanto à casa de morada de família o seguinte: “Declaram que existe casa de morada de família, sita na Rua….. A casa de morada de família ficará atribuída à cônjuge mulher durante 18 (dezoito) meses, mediante pagamento ao cônjuge marido, do valor de 150,00€ (cento e cinquenta euros) mensais, a pagar até ao dia 8 (oito) de cada mês por transferência bancária para conta cujo IBAN o cônjuge marido irá indicará. A cônjuge mulher pagará as despesas de consumo de água, eletricidade, gás e comunicações.” 2. As partes têm um filho em comum, L…, nascido em 25.01.2018, tendo as responsabilidades parentais sido fixadas no apenso A, em 24.09.2024, vigorando um regime de residência alternada, por períodos de uma semana, sem fixação de pensão de alimentos, mas ficando as despesas a cargo do progenitor. 3. O menor frequenta o Externato ….. sito …... 4. A progenitora é tradutora, tendo registada como última remuneração na Segurança Social, em janeiro de 2025, a quantia de 1.154,24 € ilíquidos. 5. A Autora despende mensalmente: a) Em água, gás, eletricidade e renda ao Réu a quantia de € 250,00; b) Em alimentação, a quantia de € 250,00; c) Em despesas de saúde, a quantia de € 50,00; d) Em transporte, a quantia de €150,00; e) Em reembolso de IRS, a quantia de € 90,00. 6. A Autora tem vindo a procurar uma casa para arrendar, num raio de 50 km da escola do menor, junto de agências imobiliárias, porém inexiste oferta abaixo dos € 800,00 mensais. 7. A Autora inscreveu-se junto dos municípios de … e … para habitação social, estando em lista de espera. 8. A Autora não tem veículo próprio. 9. A Autora não tem qualquer suporte familiar em Portugal. 10. Os preços do mercado de arrendamento têm vindo a aumentar de forma significativa, sendo que apenas entre maio de 2023 e maio de 2024, o aumento ascendeu a 14%. 11. Existe escassez de oferta de apartamentos no concelho de …. ou limítrofe. 12. O Réu é piloto na TAP, tendo registada como última remuneração na Segurança Social, em janeiro de 2025, a quantia de 26.913,86 € ilíquidos. 13. No período de 01.01.2023 a 31.12.2023, declarou um rendimento global de €146.839,89, com uma taxa efetiva de tributação de 41,32%, e um valor a pagar de € 4.261,81. 14. O Réu celebrou um contrato de promessa de compra e venda do imóvel descrito em 1, que é bem próprio seu, pelo valor de € 255.000 (duzentos e cinquenta mil euros), que se encontra válido até ao final do mês. 15. O Réu adquiriu uma casa para habitação própria, na zona do Infantado, pela qual se encontra a pagar a quantia de € 930,00 mensais, pelo empréstimo de € 230.000 (duzentos e trinta mil euros) que contraiu. 16. Caso não consiga reaver a posse do imóvel, perderá o negócio de venda e a impossibilidade de reinvestimento após a segunda compra, com um prejuízo estimado de €60.000. * Nos termos e ao abrigo do disposto no art. 607º, nºs 3, e 4, do CPC, aplicáveis por força do disposto no art. 663º, nº 2, do mesmo Código, adita-se a seguinte matéria ao quadro factual provado em 1ª instância, alegada pela Requerente no art. 2º do seu requerimento inicial, que não foi objeto de impugnação em sede de oposição e que reveste interesse para a apreciação e decisão da causa: 17. As circunstâncias que justificaram o acordo mencionado em 1, prenderam-se com o facto de a casa que constituiu a casa de morada de família ser a única residência que a requerente conheceu em Portugal desde que chegou ao nosso país; de pretender cumprir com as responsabilidades parentais; assegurar residência e assistência ao seu filho menor; suportar as despesas mensais do seu agregado familiar; não ter condições económicas para suportar uma renda mensal superior a €150,00 e prestar qualquer tipo de garantia; e não ter suporte familiar e social que lhe permitisse, nem que fosse temporariamente, arranjar uma alternativa. * Inexistem factos não provados. Fundamentação de Direito É pacífico estarmos no âmbito de uma ação de jurisdição voluntária, que é caracterizada pela liberdade do julgador na investigação dos factos, na aquisição das provas e na recolha de informações que considere essenciais à decisão (art. 986º, nº 2, CPC), bem como na possibilidade de nas providências a tomar não estar sujeito a critérios de legalidade estrita, impondo-se-lhe o dever de adotar casuisticamente a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art. 987º CPC), sem prejuízo, porém, de a decisão a tomar ter de ser conformar com o objeto do processo. Neste tipo de ações, o caso julgado forma-se em termos idênticos ao que se forma em qualquer outro processo (de jurisdição contenciosa), o que sucede, e tal como é salientado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/09/2016, proferido no processo nº 671/12.5TBBCL.G1.S1 (acessível em www.dgsi.pt), é que as decisões ou resoluções proferidas neste tipo de processos “(…) apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade” (…)”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração, tal como se admite no art. 988º do CPC. De acordo com o regime previsto no nº 3, do art. 1793º, do CC, o regime de atribuição da casa de morada de família pode vir a ser alterado, independentemente de ter sido fixado por decisão do tribunal ou mediante homologação de acordo dos cônjuges, nos termos gerais da jurisdição voluntária. E o art. 988º, do CPC, dispõe, por seu turno, no seu nº 1, o seguinte: “1 - Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.” Este nº 1, “(…) estabelece como regra a tangibilidade do caso julgado, legitimando que a decisão transitada em julgado possa ser alterada por circunstâncias supervenientes, algo que nos demais processos é excecional, como o prescreve o art. 619º, nº 2. Tal regime, contudo, só é de aplicar a situações que, pela sua própria natureza, admitem modificações (…)”[2] – sublinhado nosso. Tal é o caso, como vimos, das decisões atinentes à atribuição da casa de morada de família. Deste modo, a apelação improcede no que diz respeito à invocada violação do caso julgado. Admitindo-se a possibilidade de alterar o regime de atribuição da casa de morada de família que, no caso, foi fixado por sentença homologatória de acordo firmado entre a requerente e o requerido, a alteração ficará dependente da ocorrência de circunstâncias supervenientes que permitam a modificação (cf. nº 1, do citado art. 988º, do CPC). A avaliação de tais circunstâncias pressupõe, necessariamente, uma análise comparativa entre o estado atual das coisas e aqueloutro que existia aquando do acordo firmado entre os intervenientes e que foi homologado por sentença, o que obrigava a requerente a alegar, por um lado, a factualidade que esteve subjacente ao dito acordo, por outro, a descrever os factos suscetíveis de evidenciar a alteração de circunstâncias capazes de motivar a alteração do regime preconizada. A decisão recorrida não fez tal análise comparativa como se impunha, sendo que a requerente alegou no art. 2º da petição inicial o quadro factual subjacente ao acordo que firmou com o requerido, que não o impugnou em sede de oposição, razão pela qual deveria o mesmo ter integrado o acervo dos factos provados, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 607º, nº 4, do CPC, a fim de ser feita a adequada apreciação da causa à luz do regime jurídico já enunciado. Tal matéria foi já aditada ao rol dos factos provados, nos termos e ao abrigo das normas legais que se deixaram indicadas e será de seguida objeto de apreciação. Antes, porém, cumpre dizer que o requerido para além de não ter impugnado em sede de oposição a matéria ora aditada sob o ponto nº 17, não alegou em tal articulado quaisquer outros factos que tenham estado na base do acordo homologado por sentença. Fê-lo, agora, em sede recursiva (como se alcança das conclusões L – 1ª parte -; M, e Q), descurando que os recursos não garantem aos interessados a faculdade de alegar de forma ilimitada e, em qualquer fase processual, os factos constitutivos do seu direito e/ou os impeditivos extintivos ou modificativos, antes são os meios a usar para se obter a reapreciação de uma decisão, já não para obter decisões sobre questões novas, ou seja, questões que não foram suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido, não sendo lícito invocar neles questões que não tenham sido objeto da decisão impugnada, excetuando as questões que sejam de conhecimento oficioso, que sempre poderão ser conhecidas pelo tribunal de recurso, o que manifestamente não é o caso. “A questão nova não é susceptível de vir a obter um novo enquadramento jurídico, em sede de recurso, mas antes uma primeira e definitiva abordagem, pelo que, a menos que se reconduza a uma hipótese de conhecimento oficioso, está vedado, até com base no princípio da estabilidade da instância, ao Tribunal Superior a sua apreciação, que não pode conhecer e decidir o que, anteriormente, o não foi, por falta de atempada invocação”.[3] Posto isto, apreciemos, então, a questão da alteração do regime que vem peticionado pela requerente, a qual pressupõe, como se disse, a comparação entre a situação contemporânea do acordo que firmou com o requerido e aquela em que funda o pedido de alteração do regime de atribuição da casa de morada de família e que resultou demonstrada em audiência, cumprindo acrescentar que a modificação substancial capaz de motivar a alteração não poderá deixar de obedecer às exigências previstas no art. 437º do CC para os casos de resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, ainda que de forma mais mitigada, considerando a natureza do processo (jurisdição voluntária). Dispõe o dito art. 437º, no seu nº 1: “1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.” Em consonância com este regime, Salter Cid[4] defende que para deferir o pedido de alteração do regime da atribuição da casa de morada de família, é necessário que fique demonstrado o seguinte: “a) Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de representações consideradas ao tempo da adoção das medidas, o mesmo é dizer, uma alteração ou transformação do “cenário” contemplado pelos cônjuges ou pelo juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se postula. (...); b) Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não resulte tão extraordinária ou transcendental. (...); c) Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio, como definitiva. (...); d) E, finalmente, que a alteração ou variação afete as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adoção das medidas e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental da sua determinação. (...).” A matéria de facto atinente às circunstâncias que as partes ponderaram aquando da fixação do acordo que veio a ser homologado por sentença é parca e de pendor essencialmente conclusivo. Segundo apurado, o dito acordo fundou-se nas seguintes premissas: a) o imóvel que constituiu a casa de morada de família dos ex-cônjuges foi a única residência que a requerente conheceu em Portugal desde que chegou ao nosso país; b) a requerente pretendia cumprir com as responsabilidades parentais, assegurar residência e assistência ao seu filho menor e suportar as despesas mensais do seu agregado familiar; c) não ter a requerente condições económicas para suportar uma renda mensal superior a €150,00 e prestar qualquer tipo de garantia (relacionada, seguramente, com a celebração de contrato de arrendamento); d) não ter suporte familiar e social que lhe permitisse, nem que fosse temporariamente, arranjar uma alternativa. A matéria de facto emergente da prova produzida nestes autos evidencia a manutenção das circunstâncias descritas em a), b), e d). Por seu turno, analisando conjugadamente os factos provados sob os pontos 4, e 5, e sendo notório que este último não abarca despesas com vestuário da própria requerente e outras, inerentes à vida doméstica, social…, podemos afirmar, apoiados nas regras da lógica e da experiência, que não se regista qualquer alteração face à matéria factual contida na sobredita alínea c). Não obstante, vislumbramos nos factos mais recentes e respeitantes à situação de vida da requerente e do próprio requerido, alterações significativas suscetíveis de justificar o deferimento da pretensão da requerente (traduzido no alargamento do prazo de atribuição da casa de morada de família). Vejamos. Em 24 de setembro de 2024 foi regulado o regime das responsabilidades parentais relativas ao filho comum dos ex-cônjuges, nascido em 25.01.2018, vigorando hodiernamente um regime de residência alternada, por períodos de uma semana; o menor frequenta o Externato ….., ou seja, na mesma localidade em que se situa o imóvel que constituiu a casa de morada de família e que foi arrendado à requerente; a Autora não tem veículo próprio e tem vindo a procurar uma casa para arrendar, num raio de 50 km da escola do menor, junto de agências imobiliárias, mas o seu salário, de valor líquido necessariamente inferior a € 1.000,00, não lhe permite arrendar uma casa na zona, dada a inexistência de oferta abaixo de € 800,00 mensais, tendo os preços do mercado de arrendamento registado um aumento significativo (de 14% entre maio de 2023 e maio de 2024). A residência alternada do menor com os progenitores, entretanto fixada, e a localização da escola que aquele frequenta, aliada à circunstância da requerente não ter veículo próprio demandam, agora, a necessidade de mãe e filho habitarem preferencialmente na localidade onde se situa o estabelecimento de ensino, de molde a que a criança, que conta apenas sete anos de idade, não tenha de ser confrontada com a necessidade de percorrer distâncias acentuadas entre a casa da mãe e a escola (nas semanas em que se encontra a residir com ela), em horas necessariamente de ponta e, no cenário mais provável, de tais deslocações terem de ser feitas em transportes públicos, tudo com reflexos negativos no seu bem estar, nomeadamente, ao nível do descanso e tranquilidade. E perante estas circunstâncias, e seguramente ciente da impossibilidade definitiva de arrendar uma casa próxima da escola que o filho frequenta, no mercado de arrendamento livre, a requerente inscreveu-se junto dos municípios de … e … para habitação social, o que consubstancia uma alteração significativa face ao quadro factual que ocorria à data da celebração do acordo, estando em lista de espera para atribuição de casa, e, nesta medida, dependente de um acontecimento cuja satisfação imediata não está na sua disponibilidade. A outra alteração substancial que se regista ocorreu na esfera do requerido, mas que, por isso, não pode ser desconsiderada na apreciação do pedido da requerente, dada a sua inequívoca relevância para o desfecho dos autos: o requerido adquiriu, entretanto, uma casa para habitação própria, e não provou que precise do imóvel em causa para sua habitação e/ou do seu filho. É certo que se provou que já tinha prometido vender o imóvel de que se fala nos autos; que tal venda já não se concretizará (face ao facto provado em 14, nomeadamente, na sua parte final), e que tendo ficado impossibilitado de reinvestir nos termos provados em 16, sofrerá um prejuízo estimado em € 60.000,00, valor que, obviamente, não pode deixar de considerar-se significativo. Trata-se, porém, de facto que pela sua natureza patrimonial não só não se pode impor, como terá de ceder ante a necessidade premente de habitação da ex-cônjuge e do seu filho, concordando-se com a decisão recorrida – que reflete a jurisprudência dominante - quando ali se diz que a casa de morada de família deve ser atribuída a quem mais precise dela (premissa que esteve notoriamente subjacente ao acordo inicial da requerente e do requerido). Logo, e necessariamente, há de concluir-se que a atribuição deverá manter-se num quadro como o supra descrito, em que para além de a requerente aguardar que lhe seja concedida habitação social numa área geográfica que lhe permita exercer cabalmente as suas funções parentais, o requerido não demonstrou que necessita da casa para sua habitação e do seu filho, pois neste circunstancialismo, não pode considerar-se que a prorrogação da atribuição da casa de morada de família à requerente, pelo prazo de três anos, afete gravemente os princípios da boa fé de que trata o art. 437º, do CC, regime que, como se disse anteriormente, tem de ser tratado de forma mais mitigada no âmbito dos processos de jurisdição voluntária. Tem-se como pertinente chamar à colação a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de julho de 2023, proferida no âmbito do processo nº 1779/21.1T8STB.E1.S1, publicado no sítio da internet, www.dgsi.pt., nomeadamente, no seguinte trecho: “A boa-fé convoca, naquela disposição, a necessidade de a relação contratual não poder manter-se se deixar de se poder considerar minimamente justa depois da verificação de uma alteração das circunstâncias. Não se trata de corrigir um qualquer desequilíbrio supervenientemente ocorrido, nem de salvar uma das partes de uma (hipotética) lesão numa comparação abstrata com a posição da outra parte; como não se trata de identificar tais situações com uma injustiça, pois a ordem jurídica não interfere, via de regra, no que as partes livremente estabeleceram, nem nos riscos que decidiram correr e que podem onerar apenas, e gravemente, uma delas. A boa-fé permite apenas avaliar a justiça de uma relação atingida por certa vicissitude à luz da racionalidade originária do contrato, fosse ela já então equilibrada ou não. O instituto da alteração das circunstâncias visa tutelar aquela justiça mínima que uma relação efetivamente afetada por uma perturbação anormal entretanto ocorrida há-de preservar. E tal por comparação com a justiça inicial da relação, tal qual as partes a configuraram. Os “princípios da boa-fé” que a lei refere correspondem à exigência de que se mantenha a justiça da relação atingida pela superveniência em consideração do modo por que foi ab initio configurada pelas partes. Daí a importância de respeitar a alocação originária do risco assumida pelas partes, que o art. 437.º, n.º 1, do CC, não pode sacrificar.” Improcede, por conseguinte, a apelação. Decisão Pelo exposto, e pelas razões de facto e de direito aduzidas, acordam as Juízas da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação e em manter a decisão recorrida. Custas pelo recorrente (art. 527º, nº 1, do CPC). Lisboa, 10 de julho de 2025 Cristina Lourenço Amélia Ameixoeira Marília dos Reis Leal Fontes _______________________________________________________ [1] Consigna-se ter-se procedido à correção do lapso manifesto de que enfermava a sentença no que diz respeito ao ano em que foi celebrado o casamento, o qual foi apurado tendo por referência o Assento de Casamento nº 8732/2017, da Conservatória do Registo Civil de Lisboa, junto com a petição inicial com que se iniciou o processo de divórcio, de que estes autos constituem apenso, e que está eletronicamente acessível para consulta através da plataforma informática de acesso aos tribunais – citius -. [2] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, 2021, pág. 438. [3] Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 2 de junho de 2015, Processo 505/07.2TVLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt. [4] “A Proteção da Casa de Morada da Família no Direito Português”, págs. 314 a 316, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/09/2020, proferido no processo nº 114/14.0TCGMR-A.G1, acessível para consulta em www.dgsi.pt. |