Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
523/22.0T8BRR.L1-1
Relator: RENATA LINHARES DE CASTRO
Descritores: ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
FALTA DE INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O contitular de uma quota social (co-herdeiro do sócio falecido) tem legitimidade processual para invocar a nulidade de deliberação social por falta de convocação para a realização da assembleia geral da sociedade – artigo 56.º, n.º 1, al. a) do CSC e artigo 286.º do CC.
II. Não obstante, consistindo a deliberação impugnada na apresentação à insolvência pela sociedade, e tendo tal insolvência sido declarada por sentença, entretanto transitada em julgado, deixou de existir interesse processual do referido contitular para prosseguir com a acção por si intentada, já que nenhuma utilidade da mesma poderá extrair.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - RELATÓRIO
AA intentou acção declarativa sob a forma de processo comum contra B … Lda. e C, peticionando a declaração de nulidade da deliberação de apresentação à insolvência que teve lugar na Assembleia Geral da primeira ré realizada no dia 30/11/2021, bem como que sejam declarados nulos os actos que a mesma contemplou e que dela decorreram. Fundamentou a sua pretensão no disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 56.º do CSC.

Regularmente citadas, as rés apresentaram contestação, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Invocaram a ilegitimidade da segunda ré (defendendo que, para a acção de declaração de nulidade de deliberações sociais, ou de anulação das mesmas, apenas a sociedade tem legitimidade para ser demandada - artigo 60.º, n.º 1 do CSC), bem como a ilegitimidade do autor, sob a alegação de o mesmo não ser sócio da sociedade (qualidade que perdeu a partir de 12/07/2013, quando vendeu a respectiva quota ao pai), mas tão só herdeiro do falecido sócio JJ. Acrescentaram, ainda, que a quota não é transmissível aos herdeiros (por assim ter sido deliberado em assembleia geral, cuja acta juntaram) e não poder o autor ser considerado interessado para os efeitos previstos no artigo 286.º do CC.
Mais impugnaram o alegado pelo autor, defendendo que, na assembleia geral universal no âmbito da qual foi aprovada a deliberação cuja nulidade se pretende, encontrava-se representado 100% do capital (porquanto, à data, a deliberação de cessão de quotas ocorrida em 30/04/2020 não havia sido declarada nula).
Por fim, defenderam ter a segunda ré legitimidade para, enquanto gerente da sociedade, efectivar a apresentação à insolvência, a qual veio a ser declarada por sentença proferida em 21/01/2022.
Concluíram pela absolvição da instância da segunda ré, pela ilegitimidade do autor e pela declaração da validade da deliberação de apresentação à insolvência da primeira ré.

Por despacho proferido em 16/05/2022, foi o autor notificado para exercer o contraditório quanto às invocadas excepções, tendo o mesmo pugnado pela improcedência da excepção de ilegitimidade activa, afirmando que, enquanto herdeiro do falecido sócio, é contitular da quota social (sendo a segunda ré a outra contitular).

Por sentença proferida em 09/06/2022, o tribunal a quo julgou procedente a excepção de ilegitimidade activa do autor e absolveu as rés da instância.

Inconformado com tal decisão, em 01/09/2022, veio o autor interpor RECURSO, tendo, para o efeito, formulado as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
1. A douta sentença faz uma interpretação restritiva da lei, que leva à inviabilização do direito de acção, consagrado no art.º 2º, do CPC (Garantia de acesso aos tribunais) e no art.º 20º da CRP (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva).
2. O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo considerou o A. ora recorrente parte ilegítima por não ser cabeça de casal da herança e por estar desacompanhado dos outros herdeiros.
3. Na verdade, a única outra herdeira é a cabeça de casal e irmã do ora A., que também é representante da outra sócia da R. e é ela própria também indicada como R., e com interesses contrários aos do A., pelo que nunca acompanharia o A. na presente acção em que este quer que os seus direitos, que estão a ser prejudicados pela sua irmã, sejam reconhecidos.
4. O A. tem legitimidade para a presente acção, na medida em que adquiriu, por força e à data do óbito do seu pai, a contitularidade da quota deste.
5. O A. passou, assim, a ter o direito de ser convocado para qualquer assembleia geral da sociedade, enquanto não ocorrer amortização da quota ou acto semelhante que faça cessar a posição jurídica adquirida por sucessão, independentemente de poder ou não votar relativamente à amortização.
6. Não tendo sido convocado, a deliberação é nula e o A., contitular da quota, tem interesse em agir na acção que visa a declaração de nulidade daquela deliberação. Cfr. Ac. STJ, de 23/09/1997: JSTJ00033060/ITIJ/Net.
7. Os contitulares das quotas têm necessariamente interesse no destino da sociedade, nada obstando que cada um no seu interesse, enquanto titular de uma expetativa de aquisição, despolete a simples declaração de nulidade de uma deliberação social, pelo que a existirem outros interessados, não é exigida a intervenção de todos.
8. Foi decidido no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - Acórdão de 19 de Fevereiro de 2013 (Processo n.º 994/11.0T2AVR.C1) que “É parte legítima, o herdeiro de uma quota de sociedade, ainda que desacompanhado dos restantes contitulares, para pedir a declaração de nulidade de deliberação social. Não sendo convocado para as assembleias que deliberaram sobre a extinção das quotas que também são suas, foi violado o seu direito de participação, o que determina a nulidade da deliberação emitida naquelas condições.”
9. Decidiu-se no douto Acórdão da Relação de Lisboa, de 21.9.2004, (em C.J. 2004, tomo 4, página 87) que “O contitular de uma quota social, ainda que desacompanhado dos restantes contitulares, tem legitimidade para invocar a nulidade de deliberação social que procedeu à amortização dessa quota.”
10. Estando em causa a arguição da nulidade das deliberações, entende-se que a legitimidade para impugnar as deliberações é mais alargada.
11. A legitimidade processual afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada pelo autor, por contraponto à legitimidade material, substantiva ou “ad actum”, que consiste no complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade de um direito, estando assim em apreciação o mérito da causa.
12. Na falta de disposição especial que estabeleça um regime especial para a invocação da nulidade das deliberações sociais e assumindo estas a natureza de negócio jurídico, deve considerar-se aplicável a norma geral do artigo 286.º do Código Civil, que prevê que “a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.”.
13. Neste sentido, tem legitimidade para a acção “qualquer interessado” (cfr., Pinto Furtado, in Deliberações dos Sócios, p. 357; J. M. Coutinho de Abreu, em anotação ao artigo 57.º, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, p. 703; ou os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10.10.2002, p. 0231125, de 24.01.2018, p. 874/10.7TYVNG.P1).
14. O conceito de interessado pressupõe a existência de um interesse directo. Será interessado quem vê o seu direito directamente afectado na sua consistência jurídica, prática ou económica.
15. Por interessado, para os efeitos do artigo 286º do Código Civil, há que se considerar o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio (cf Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol I, Coimbra Editora. 1987, para 263).
16. O autor peticiona a declaração de nulidade da deliberação que teve lugar no dia 30/11/2021, na qual a 1ª R., em representação da própria sociedade aqui 2ª R. e em representação da sócia D …Lda., decidiu apresentar a 2ª R. à insolvência.
17. As deliberações em questão acarretam evidente ingerência jurídica e prejuízo económico para o direito do autor, pelo que o seu interesse na impugnação deve ser considerado um interesse directo, objecto de tutela.
18. É, assim, de considerar que a nulidade das deliberações em causa é passível de ser invocada pelo autor que assume nos autos a posição de “interessado”, em face da configuração que atribui à presente acção.
19. Pelo que, deve ser revogada a sentença que julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa invocada pelas rés, prosseguindo os autos os seus trâmites.

Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.

O recurso foi correctamente admitido, como sendo de apelação, com subida imediata nos autos e efeito devolutivo.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes, nem estar obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio - artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC.
Assim, a questão a decidir consiste em aferir da legitimidade do autor para requerer a declaração de nulidade da deliberação aprovada em Assembleia Geral da primeira ré, realizada em 30/11/2021 (deliberação de apresentação da sociedade à insolvência).
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III – FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para além dos factos e ocorrências processuais que resultam do relatório supra enunciado, tendo por base o constante do processo e documentos que ao mesmo foram juntos (e que não mereceram oposição), nos termos previstos pelos artigos 607.º, n.º 4, 2.ª parte, e 663.º, n.º 2, ambos do CPC, consideram-se provados os seguintes factos:
1. Em 17/10/1985, o autor e JJ constituíram a sociedade ré (cujo objecto é o comércio e instalação de material e equipamento de segurança), com um capital social 74.819,68€, correspondente a uma quota de 56.114,76€, pertencente ao segundo (então casado com E), e a uma quota de 18.704,92€ pertencente ao primeiro – cfr. certidão permanente junta aos autos com a petição inicial (PI).
2. A ré sociedade obrigava-se com a assinatura de um gerente, tendo ficado nomeado gerente o sócio JJ (cargo que exerceu até ao seu falecimento) e, por deliberação de 30/04/2020, a ré C – cfr. certidão permanente junta aos autos com a PI.
3. Em 12/07/2013, a quota do autor foi transmitida para JJ, o qual passou a ser o único sócio, detentor da totalidade do capital social da sociedade (Menção Dep 1601/2013-07-12) – cfr. certidão permanente junta aos autos com a PI.
4.  No Cartório Notarial de Almada, da Dra. Susana Valle, corre termos o processo de inventário n.º 3033/15, intentado por E, no mesmo tendo sido relacionadas as duas quotas referidas no facto n.º 1, inventário esse que foi declarado suspenso em consequência do falecimento do interessado JJ – cfr. relação de bens e despacho da notária proferido em 22/02/2021, ambos juntos com a PI.
5. Em 09/07/2020, deu entrada um registo de alterações ao contrato da sociedade ré e redução de capital de 74.819,68€ para 5.000€, com base em deliberação datada de 30/04/2020, o qual ficou provisório por dúvidas – cfr. certidão permanente junta aos autos com a PI.
6. A deliberação mencionada no facto anterior consta da Acta n.º 51, sendo que, na mesma assembleia geral, foi igualmente deliberada e aprovada a alteração dos artigos 3.º e 6.º do contrato social, aditado um novo artigo 7.º e redenominado e alterado o então artigo 7.º para artigo 8.º, passando o novo artigo 7.º a ter a seguinte redacção: “Um – Falecendo um sócio, a respectiva quota não se transmitirá aos seus herdeiros, tendo a sociedade direito a amortizá-la pelo valor nominal, adquiri-la ou fazê-la adquirir por sócio ou por terceiro. (…)” – cfr. acta n.º 51 junta com a PI.
7. Por tal registo, o capital social passou a corresponder a uma quota de 3.750€ e a uma outra de 1.250€, ambas pertencentes a JJ (no estado civil de divorciado) – cfr. certidão permanente junta aos autos com a PI.
8. Em 09/07/2020, foi registada a transmissão de duas quotas do referido JJ à sociedade D …Lda., sendo uma quota no valor nominal de 1.875€ e outra no valor nominal de 1.250€ (Menções Dep 405 /2020-07-09 e Dep 406 / 2020-07-09) – cfr. certidão permanente junta aos autos com a PI.
9. Em 18/02/2021, a primeira ré reuniu em assembleia geral extraordinária, no âmbito da qual foi aprovada a deliberação de amortização da quota que JJ detinha na sociedade (quota de 1.875€) pelo respectivo valor nominal – cfr. acta n.º 56 junta aos autos com a PI.
Consta da respectiva acta: ter estado presente a gerente C, “também legal representante da sócia D … Lda., detentora de uma quota no valor nominal de 3.125,00€, correspondente a 62,5% do capital social, encontrando-se assim representados 62,5% por cento do capital social de 5.000,00€. // (..) Ordem de trabalhos: // Ponto um: deliberação sobre se a sociedade procederá à amortização da quota do falecido sócio JJ, em conformidade com o artigo sétimo do contrato social, ou se aceita prosseguir a actividade, com os herdeiros do sócio falecido. // Ponto dois: alteração do artigo terceiro e oitavo do contrato social.”
Este artigo 3.º do pacto social da sociedade ré foi alterado no sentido de passar a constar que o capital social de 5.000€ corresponde a três quotas – uma com o valor nominal de 1.875€ pertencente à própria sociedade e outras duas – de 1.875€ e de 1.250€ -, ambas pertencentes à D …Lda.
10. Em 22/02/2021, foi registada a transmissão da quota de 1.875€ de JJ para a primeira ré (Menção Dep 59 /2021-02-22) – cfr. certidão permanente junta aos autos com a PI.
11. A sociedade D …L.da (cujo objecto é comércio e instalação de material e equipamento de segurança) foi constituída com um capital social de 10.000€, distribuído em duas quotas, uma no valor de 7.000€ da titularidade de JJ e outra no valor de 3.000€ da titularidade de C (por deliberação de 21/12/2016) (inscrição no registo comercial ap. 27/20161227) – cfr. certidão permanente junta aos autos com a PI.
12. Esta sociedade obrigava-se com a intervenção do gerente JJ (nomeado para o efeito por deliberação de 21/12/2016), o qual cessou funções por óbito, sucedendo-lhe nesse cargo C (por deliberação de 18/01/2021 - ap. 32/20210222) – cfr. certidão permanente junta aos autos com a PI.
13. Posteriormente, pela menção Dep. 317/20210222, foi registada a transmissão da quota de JJ (de 7.000€) para D … Lda – cfr. certidão permanente junta aos autos com a PI.
14. Em 30/11/2021, a primeira ré reuniu em assembleia geral extraordinária, no âmbito da qual foi proposta e aprovada a deliberação da sua apresentação à insolvência.
Consta da respectiva acta (acta n.º 62), ter estado presente a gerente C, “em representação da sociedade B … Lda, detentora de uma quota de 1.875,00€, correspondente a 37,5% do capital social, e também em representação da sócia D …Lda, de quem é legal representante, sociedade que é detentora de duas quotas, uma no valor nominal de 1.875€, correspondente a 37,5% do capital social e uma quota no valor nominal de 1.250€, correspondente a 25% do capital. Encontrando-se assim representados 100% (cem por cento) do capital social de 5.000,00€” – cfr. acta n.º 62 junta aos autos com a PI, da qual consta como ordem de trabalhos: “analisar a situação económico financeira da empresa e deliberar sobre a sua apresentação à insolvência”.
15. JJ faleceu em 24/11/2020, no estado de divorciado de E, tendo deixado como únicos herdeiros os seus dois filhos, o autor e a ré C – cfr. assento de óbito junto com a Contestação e escritura de habilitação de herdeiros lavrada em 22/02/2021 junta com a PI.
16. Pela Ap 7/20220222 deu entrada um registo da acção judicial a que corresponde o Proc. n.º 1054/21.1T8BRR, intentada pelo aqui autor contra as aqui rés, pela qual o primeiro peticionou a declaração de nulidade de deliberação de redução de capital social da ré sociedade ocorrida na assembleia geral de 30/04/2020 (a que se alude no facto n.º 5), bem como da deliberação de 18/02/2021 referente à amortização da quota de JJ (a que se alude no facto n.º 9), o qual ficou provisório por dúvidas – cfr. certidão permanente junta aos autos com a PI.
17. No âmbito do processo n.º 1458/21.0T8BRR[1], foi proferida sentença em 04/03/2022, pela qual foi declarada a nulidade da deliberação de cessão de quotas da aqui ré sociedade, cessão essa que teve lugar na Assembleia Geral realizada em 30/04/2020 (a que se alude no facto n.º 5) – cfr. documento junto com a Contestação.[2]
18. A presente acção deu entrada em juízo no dia 28/02/2022 (ref.ª/Citius 31825657).

Aos factos agora elencados, nos termos previstos pelos artigos 663.º, n.º 2 e 611.º do CPC, acrescentam-se os seguintes (por serem do conhecimento funcional deste colectivo):
19. Por sentença proferida em 20/01/2022 no processo n.º 130/22.8T8BRR, que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo do Comércio do Barreiro (Juiz 1), foi a ré sociedade declarada insolvente.
20. Tal sentença foi confirmada por acórdão desta Secção proferido em 08/11/2022, já transitado em julgado – cfr. certidão do recurso n.º 130/22.8T8BRR-C.L1 cuja junção aos autos foi ordenada.[3]
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O autor, aqui apelante, pretende a declaração de nulidade da deliberação de apresentação da primeira ré à insolvência, a qual foi aprovada na Assembleia Geral realizada no dia 30/11/2021.
Defende que foi a deliberação aprovada apenas pela ré C (enquanto gerente da sociedade ré e legal representante da D …Lda), a qual não tinha legitimidade para o fazer - em face das impugnações das deliberações aprovadas em 30/04/2020, de redução do capital social da ré sociedade (acta n.º 51), e em 18/02/2021, de amortização da quota do falecido JJ (acta n.º 56).
Mais alega que, com o óbito de JJ (ocorrido em 24/11/2020) e enquanto seu herdeiro, adquiriu a contitularidade das quotas deste último, com os valores nominais de 56.114,76€ e de 18.704,92€ (em face da nulidade da acta n.º 51 e, consequentemente, de todos os actos que daí decorreram), ou, pelo menos, da quota com o valor nominal de 1.875€ (da qual o mesmo era detentor à data do seu óbito).
Nessa qualidade, deveria ter sido convocado para a Assembleia Geral de 30/11/2021, o que não sucedeu (em incumprimento do estatuído nos artigos 54.º, 234.º e 248.º, n.º 5, todos do CSC), realizando-se a mesma sem a presença de todos os sócios (nomeadamente do aqui autor), o que acarreta a nulidade da deliberação aí aprovada – artigo 56.º, n.º 1, al. a) do CSC.
As rés invocaram a ilegitimidade activa do autor para impugnar a deliberação social por o mesmo não ser sócio da sociedade (só o foi até 12/07/2013), sendo que a quota do falecido sócio JJ não é transmissível aos herdeiros.
O Mmo. Juiz a quo concluiu pela ilegitimidade do autor para propor a acção, nos moldes que se passam a transcrever:
“A legitimidade é uma qualidade ou posição da parte em relação ao objeto do processo, qualidade ou posição essas que justificam que aquele A, ou aquele R, se ocupe em juízo desse objeto do processo.
Nos termos do disposto no artigo 2024.º do Código Civil (CC), diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam.
Aberta a sucessão, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade (artigo 2032.º, n.º 1, do CC).
No caso dos autos, perante todo o acervo recolhido, está fora de dúvida que o A. é herdeiro do falecido sócio JJ – como o também é a Ré C.
Da certidão de registo comercial da sociedade R. junta aos autos, aliás, não consta ainda sequer qualquer outro titular de quotas sociais que não seja aquele entretanto falecido JJ.
Do exposto resulta, em suma, que o A. é contitular da quota de que era titular o seu falecido pai.
Trata-se, porém, de uma contitularidade de mão comum, não derivando do registo de aquisição uma titularidade direta daquela quota, já que só após efetivação da partilha e da liquidação da herança se virá a determinar se, e a quem, é transmitida a quota social, e sempre também com observância do que estiver previsto no pacto social (artigos 225.º e 226.º do Código das Sociedades Comerciais) - cfr. Ac. do TRC de 21.6.2011, Processo nº 1215/10.9TJCBR.C1, o qual seguiremos de perto).
Até lá, nenhum dos contitulares a título hereditário terá a qualidade de sócio (cfr. Meneses Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, II, Das Sociedades em Especial, 2ª edição, 2007, Almedina, página 350, IV, citado no referido Acórdão do TRC).
Sendo o A. contitular da quota de que era titular o seu pai, importa verificar no Código das Sociedades Comerciais (CSC) qual o regime jurídico aplicável à contitularidade da quota.
Nesse particular, dispõe o n.º 1 do artigo 222.º do CSC, que os contitulares da quota devem exercer os direitos a ela inerentes através de representante comum, sendo que este, quando não for designado por lei ou disposição testamentária, é nomeado e pode ser destituído pelos contitulares, sendo a deliberação dos contitulares tomada por maioria, nos termos do artigo 1407.º, n.º 1, do CC, salvo se outra regra se convencionar e for comunicada à sociedade (artigo 223.º n.º 1 do CSC).
Assim, por força das regras legais que se acabam de citar, no domínio da contitularidade de quota de uma sociedade por quotas, no que respeita o exercício dos direitos a ela inerentes, não vigora a regra geral do litisconsórcio necessário prevista, em termos gerais, no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil.
Por isso, embora todo o sócio tenha direito a impugnar judicialmente quaisquer deliberações tomadas em assembleia de sócios, o exercício deste direito no caso de contitularidade da quota - porque não é um direito que só individualmente possa ser exercido -, deve ser efetivado através de representante comum, sendo de admitir que esse representante comum possa ser o cabeça-de-casal (cfr. Ac. do TRC acima citado).
No caso, porém, o A. não litiga enquanto cabeça-de-casal da herança do falecido sócio. E, como se viu, não pode um contitular de um quota social que não seja representante comum nos termos da lei, ou cabeça-de-casal, por si só exercer o direito a impugnar uma deliberação social, por não ser sujeito ativo de tal direito.
Em suma, caso o A. pretenda adquirir a qualidade de sócio, essa qualidade terá de lhe advir após efetivação da partilha - e caso lhe seja aí transmitida a quota social.
Em conclusão, sendo o A. mero contitular da quota social de que era titular o seu falecido pai, quota essa que integra o acervo hereditário impartilhado, e não sendo representante comum dos herdeiros, não tem legitimidade para a presente causa.
A ilegitimidade constitui uma exceção dilatória (art.º 577º al. e) do CPC), que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição da instância (art.º 576º nº 2 do CPC).
Tanto basta para, sem necessidade de outras considerações, dar por falida a pretensão do Autor.”
 
Posto isto, comecemos por valorar qual a pretensão solicitada na acção pelo autor – declaração de nulidade da deliberação de apresentação à insolvência aprovada na Assembleia Geral de 30/11/2021, por não ter sido convocado para a mesma.
O CSC, nos seus artigos 56.º a 60.º, alude expressamente à nulidade e à anulabilidade das deliberações sociais.
Como refere Menezes Cordeiro[4], “A nulidade de deliberações sociais corresponde aos casos mais graves, sendo expressamente visada pela lei: quando não, caímos na mera anulabilidade. Nesse sentido, os casos de nulidade são taxativos. O regime da nulidade consta, em parte, do 57.º devendo, no resto, aproximar-se do 286.º do CC.
Em regra, o nosso sistema jurídico sanciona com a nulidade a violação de interesses públicos e com a anulabilidade a violação de interesses meramente privados, sendo que, também em regra, a nulidade é invocável a todo o tempo, é de conhecimento oficioso e pode ser invocada por qualquer interessado, enquanto a anulabilidade apenas pode ser invocada em determinado período subsequente à cessação do vício e por aqueles em cujo interesse foi estabelecida – cfr artigos 285.º a 294.º do CC.
Discute-se a legitimidade activa do autor para arguir a mencionada nulidade.
Constituindo a legitimidade um pressuposto processual referente às partes, revela-se o mesmo imprescindível para a admissibilidade e para o prosseguimento de qualquer acção pelo que, não estando preenchido, configura excepção dilatória que acarreta a absolvição da instância – cfr. artigos 278.º, n.º 1, al. d), 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º, al. e), todos do CPC.[5]
Decorre do artigo 30.º do CPC que o autor é parte legítima quando, atenta a relação jurídica que invoca, surge nela como sujeito susceptível de beneficiar directamente do efeito jurídico pretendido (isto é, quando retira utilidade/vantagem da procedência da acção).[6]
Sem prejuízo do disposto nesta norma, no que concerne à acção de anulação de deliberação social, a legitimidade para a sua instauração está prevista no n.º 1 do artigo 59.º do CSC, sendo que, como refere Menezes Cordeiro, apenas poderá arguir a anulabilidade o sócio que tenha votado contra a aprovação da deliberação e que a não tenha posteriormente aprovado (tácita ou expressamente).[7]
Em caso de contitularidade de quota, a impugnação deverá ser exercida através de um representante comum – artigos 222.º, n.º 1 e 223.º do CSC -, admitindo-se que tal exercício possa ser levado a cabo pelo cabeça de casal da herança indivisa.
Como referido, o autor não é sócio, nem invocou ser o representante comum dos herdeiros (ou o cabeça de casal da herança)[8], sendo apenas, como mencionado na decisão recorrida, contitular da quota da qual era titular o seu falecido pai (o sócio JJ).
Argumenta-se na mesma decisão: “Trata-se, porém, de uma contitularidade de mão comum, não derivando do registo de aquisição uma titularidade direta daquela quota, já que só após efetivação da partilha e da liquidação da herança se virá a determinar se, e a quem, é transmitida a quota social, e sempre também com observância do que estiver previsto no pacto social (artigos 225.º e 226.º do Código das Sociedades Comerciais) – cfr. Ac. do TRC de 21.6.2011, Processo nº 1215/10.9TJCBR.C1, o qual seguiremos de perto). Até lá, nenhum dos contitulares a título hereditário terá a qualidade de sócio (…).”
E, continua, “dispõe o n.º 1 do artigo 222.º do CSC, que os contitulares da quota devem exercer os direitos a ela inerentes através de representante comum, sendo que este, quando não for designado por lei ou disposição testamentária, é nomeado e pode ser destituído pelos contitulares, sendo a deliberação dos contitulares tomada por maioria, nos termos do artigo 1407.º, n.º 1, do CC, salvo se outra regra se convencionar e for comunicada à sociedade (artigo 223.º n.º 1 do CSC). (…) embora todo o sócio tenha direito a impugnar judicialmente quaisquer deliberações tomadas em assembleia de sócios, o exercício deste direito no caso de contitularidade da quota - porque não é um direito que só individualmente possa ser exercido -, deve ser efetivado através de representante comum, sendo de admitir que esse representante comum possa ser o cabeça-de-casal (…). No caso, porém, o A. não litiga enquanto cabeça-de-casal da herança do falecido sócio. E, como se viu, não pode um contitular de uma quota social que não seja representante comum nos termos da lei, ou cabeça-de-casal, por si só exercer o direito a impugnar uma deliberação social, por não ser sujeito ativo de tal direito. Em suma, caso o A. pretenda adquirir a qualidade de sócio, essa qualidade terá de lhe advir após efetivação da partilha - e caso lhe seja aí transmitida a quota social.” [9]
Contrapõe, no entanto, o autor que, ao ser contitular da quota, passou a “ter o direito de ser convocado para qualquer assembleia geral, enquanto não ocorrer amortização da quota ou acto semelhante que faça cessar a posição jurídica adquirida por sucessão, independentemente de poder ou não votar relativamente à amortização” (Conclusão 5).
Não tendo sido convocado, a deliberação é nula e o autor “tem interesse em agir na acção que visa a declaração de nulidade daquela deliberação” (Conclusão 6).
Defende que os “contitulares das quotas têm necessariamente interesse no destino da sociedade, nada obstando que cada um no seu interesse, enquanto titular de uma expetativa de aquisição, despolete a simples declaração de nulidade de uma deliberação social, (…)” (Conclusão 7).
Por fim, no ponto 12 das suas conclusões, defende o apelante que, na falta de disposição especial que estabeleça um regime especial para a invocação das deliberações sociais e assumindo estas a natureza de negócio jurídico, deve considerar-se aplicável a norma geral do artigo 286.º do Código Civil. Assim, referindo resultar da deliberação impugnada “uma ingerência jurídica e prejuízo económico para o direito do autor”, invoca ter um “interesse directo, objecto de tutela”.
Neste sentido, conclui, tem o autor legitimidade para a acção por assumir a posição de interessado.[10]

Vejamos se assim se deve entender.
Concordamos com o autor quando defende que, estando em causa a arguição da nulidade de deliberação social, a legitimidade para a impugnar é mais alargada, devendo ser aferida “em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada pelo autor” (Conclusões 10 e 11), valorando-se, para tanto, o disposto no artigo 286.º do CC - “A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.”.
Não se poderá, contudo, deixar de realçar que, como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, interessado para efeitos do artigo 286.º do CC será “o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio.”[11]
Será essa a situação do autor?
Como decorre do artigo 56.º, n.º 1, al. a), do CSC, “São nulas as deliberações dos sócios (…) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados.
No caso, invoca o autor não ter sido convocado para a assembleia geral que se realizou no dia 30/11/2021 (nem na mesma tendo estado presente), nessa medida reputando como nula a deliberação que nessa assembleia foi aprovada (segundo a qual a primeira ré se iria apresentar à insolvência).
Considerando a preterição invocada pelo autor como sendo causa de nulidade da deliberação - não convocação da assembleia -, sempre estaremos perante uma nulidade de procedimento, sendo que os vícios de procedimento são passíveis de ser sanados – cfr. artigo 62.º, n.º 1 do mesmo código. Daí que Menezes Cordeiro refira que, em “rigor, a não convocação de um sócio dá lugar a anulabilidade: cabe ao sócio atingido decidir se anula, ou não, o que tenha sido deliberado”.[12]
Contudo, como se defendeu no acórdão da Relação de Guimarães de 18/01/2018[13], está previsto “no artigo 57º nº 1 e nº 4 do Código das Sociedades Comerciais que o órgão de fiscalização da sociedade deve dar a conhecer a nulidade aos sócios, em assembleia geral e que nas sociedades que não tenham órgão de fiscalização, os deveres supra mencionados são incumbidos a qualquer gerente. Daqui é patente a vontade que o sistema jurídico tem de expurgar as deliberações sociais nulas (e podendo estas serem sanadas, que tal ocorra) do seu universo, a par do seu conhecimento oficioso e alargamento da legitimidade para a sua invocação a qualquer interessado. É ainda pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que estas normas, especialmente previstas no artigo 57º do Código das Sociedades Comerciais, não afastam o regime geral previsto no artigo 286º, do Código Civil: a mesma nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente (…) também aqui não há razões para afastar o regime legal que permite o conhecimento oficioso da nulidade e a pedido de qualquer interessado, atenta a elevada ilicitude de que padece o ato nulo. Enfim, nos termos do artigo 286º do Código Civil, a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.”
E, continua, “os contitulares das quotas têm necessariamente interesse no destino da sociedade, nada obstando que cada um no seu interesse, enquanto titular de uma expetativa de aquisição, despolete a simples declaração de nulidade de uma deliberação social. (…) Há, assim, que concluir pela legitimidade dos Autores para a dedução do primeiro pedido, com, obviamente, a causa de pedir formulada na ação: a declaração de nulidade por preterição da convocação para a Assembleia Geral.”
No seguimento do aqui defendido, com o qual se concorda, e reportando à situação dos autos, dir-se-á assistir razão ao autor/apelante quando defende ser interessado para efeitos de peticionar a nulidade da deliberação com fundamento na não convocação para a assembleia geral realizada em 30/11/2021.
E, se assim é, ao contrário do decidido pela 1.ª Instância, é o mesmo parte legítima para intentar a acção com esse fundamento (independentemente de a convocação cuja omissão foi invocada dever ou não ter lugar, o que contende já com o mérito da causa e não com a análise do pressuposto processual de que estamos a cuidar).
Impõe-se, assim, revogar a decisão recorrida.

A revogação da decisão recorrida implicaria o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido deduzido pelo autor.
Porém, como resulta expressamente do artigo 130.º do CPC, não é lícito realizar no processo actos inúteis - “O direito adjetivo não constitui um fim em si mesmo, sendo um mero instrumento para resolução de litígios de acordo com o que emergir do direito material. Daí que no processo em que o litígio se dirime apenas devam ser praticados os atos que se revelem úteis para alcançar aquele desiderato, de forma simples e ágil, como o impõe o art.º 6º.[14]
Ora, no caso, não se vislumbra qual a utilidade que, do prosseguimento da acção, resultaria para o autor.
A ré sociedade foi já declarada insolvente, por sentença transitada em julgado.
Como se referiu expressamente no acórdão proferido no recurso intentado sobre tal sentença (proferido no âmbito do processo n.º 130/22.8T8BRR-C.L1, aí sendo igualmente apelante o aqui autor), C, enquanto gerente da ré sociedade, tinha o dever de diligenciar pela apresentação à insolvência (como sucedeu) – cfr. artigos 18.º e 19.º do CIRE -, independentemente de existir ou não deliberação social a determinar que assim fosse.  
Neste acórdão defendemos:
«No caso, sendo a requerente uma sociedade por quotas, dúvidas inexistem quanto à legitimidade de C para promover a insolvência, tanto mais que a mesma é gerente da sociedade insolvente.
Com efeito, como refere António Menezes Cordeiro, em anotação ao artigo 252.º, n.º 1 do CSComerciais, cabe à gerência, enquanto órgão da sociedade por quotas, formar e exprimir a vontade imputável à pessoa colectiva, “com relevo nas relações internas, perante os demais órgãos sociais, mas com especial relevo nas relações com terceiros.
Já Alexandre Soveral Martins, aludindo em concreto ao caso de apresentação à insolvência, também assim o defende – “Relativamente aos devedores que sejam sociedades comerciais, é importante saber se a decisão de apresentar o devedor à insolvência cabe ao órgão de administração ou se este apenas tem poderes para executar a decisão já tomada. Estando em causa, por exemplo, uma sociedade por quotas, a gerência pode avançar com o requerimento de apresentação à insolvência sem ter apoio em deliberação dos sócios? O art.º 19.º dá a entender que, no plano externo, esse requerimento será válido e eficaz. Com efeito, aquele preceito confere ao órgão social de administração a própria «iniciativa». Isto parece significar que o órgão de administração não tem de esperar pela tomada de decisão de um qualquer outro órgão para poder eficazmente apresentar o pedido de insolvência em representação da sociedade. Por outro lado, uma decisão de sentido contrário à apresentação à insolvência que seja tomada noutro órgão da sociedade também não retira eficácia ao pedido de declaração de insolvência que seja apresentado pelo órgão de administração.”».
Mais se tendo aí escrito:
«O facto de existirem processos pendentes nos quais esteja em discussão “a legalidade das deliberações que levaram à titularidade dos sócios da devedora” e subsequentes deliberações, sendo que, inclusive, foi já proferida sentença, com trânsito em julgado, a declarar a nulidade da deliberação de cessão de quotas da sociedade ré B … Lda, factos que, no entender do recorrente, acarreta a invalidade da deliberação junta com a petição inicial, também não obsta ao que se acabou de defender.
Como refere Pedro de Albuquerque, “Não falta quem considere que sendo devedor uma sociedade para além das exigências constantes do artigo 24 nº 2, alínea a), se mostraria ainda necessária a apresentação de uma acta da Assembleia Geral (…). E isto porque a dissolução da sociedade depende de deliberação dos sócios (artigos 1007 e 1008 do Código Civil e artigo 383 nº2, do Código das Sociedades Comerciais (...). Com a devida vénia não se vê como acompanhar semelhante exigência (...). Levada às suas naturais consequências, a construção em referência redundaria em exigir uma deliberação dos sócios em todos os casos de dissolução o que é inaceitável. Aliás o artigo 141, nº1, alínea e) do Código das Sociedades Comerciais é claro ao contrapor e distinguir a dissolução por efeito da falência da dissolução por deliberação dos sócios. (...) Acresce não se vislumbrar porque razão se deveria exigir a deliberação dos sócios no caso de apresentação e se não devesse exigir idêntica deliberação nos casos em que processa desencadeado por outra legitimados. Se essa exigência pode faltar nuns casos também o pode nos outros. Nada impõe outro entendimento. Tanto mais quanto é certa a circunstância de no caso das sociedade recair sobre os gestores um dever de apresentação, cujo cumprimento não pode nem deve ficar condicionados por deliberações dos sócios, pela sua diferente leitura da situação ou sequer pelas dificuldades de convocar imediatamente assembleias gerais ou de cumprir o respectivo quorum”.
Conclui-se, assim, poder a apresentação à insolvência ser efectuada pela sua gerente, como sucedeu.»
Como resulta deste aresto, para além de estarem preenchidos os pressupostos para a declaração da insolvência, sempre a mesma podia, e devia ter sido impulsionada nos moldes em que o foi – apresentação à insolvência por intermédio da sua gerente -, não sendo necessária qualquer prévia deliberação social nesse sentido.
Assim, não obstante o autor ter sido considerado parte interessada – independentemente de lhe assistir ou não razão quando alega que deveria ter sido convocado para a assembleia geral (questão que não cumpre aqui conhecer) -, nunca o mesmo poderá (mesmo na hipótese de vir a ser declarada a nulidade da deliberação por preterição da convocação) obstar à declaração de insolvência da primeira ré.
Ordenar o prosseguimento da acção não revestiria qualquer interesse prático (designadamente para o autor). Ou seja, no caso, a necessidade de prosseguir com a acção deixou de existir.
Consistindo o interesse processual na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção, o mesmo não se confunde com os restantes pressupostos processuais, designadamente com o referente à legitimidade.[15]
Nestes termos, pese embora se revogue a decisão impugnada (que julgou procedente a excepção de ilegitimidade activa do autor) não deverão os autos prosseguir para conhecimento da invocada nulidade por da mesma não resultar qualquer utilidade para o autor.
***
IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
a) em julgar procedente a apelação e, nessa sequência, revogar a decisão recorrida que julgou procedente a excepção de ilegitimidade activa do autor,
b) em considerar prejudicado o prosseguimento dos autos em virtude de não resultar dos mesmos qualquer utilidade para o apelante, em face de a ré sociedade ter sido declarada insolvente por sentença já transitada em julgado, nessa medida se validando a absolvição das rés, embora com diferente fundamentação.

Sem custas.

Lisboa, 07 de Março de 2023
Renata Linhares de Castro
Nuno Teixeira
Rosário Gonçalves
_______________________________________________________
[1] O qual correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo do Comércio do Barreiro (Juiz 3), no mesmo tendo sido autora E e rés B …Lda, D … Lda e C.
[2] A sentença em causa transitou em julgado no dia 19/04/2022, como consta do Proc. n.º 130/22.8T8BRR-C.L1 (ao qual foi junta certidão dessa mesma sentença).
[3] Acórdão no qual a relatora e os adjuntos são os mesmos do presente.
[4] Código das Sociedades Comerciais Anotado, Almedina, 4.ª edição, revista e actualizada, 2021, pág. 294.
Defendendo que, para os casos de nulidade de deliberação social, vigora o princípio da tipicidade, veja-se, entre outros, o acórdão do STJ de 13/05/2004 (Proc. n.º 04A1519, relator Lopes Pinto), in www.dgsi.pt, como todos os demais que vierem a ser citados sem referência à sua fonte.
[5] Segundo o artigo 30.º do CPC, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar (exprimindo-se tal interesse pela utilidade derivada da procedência da acção), sendo o réu parte legítima quando tem interesse directo em contradizer (interesse que se exprime pelo prejuízo que dessa procedência advenha) – n.ºs 1 e 2. Já segundo o n.º 3 do mesmo artigo, “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”
[6] Já ALBERTO DOS REIS, aludindo ao então artigo 27.º do CPC (actual artigo 30.º) referia tratar-se de uma norma que “exige que o interesse seja directo. Não basta, pois, um interesse indirecto ou reflexo; não basta que a decisão da causa seja susceptível de afectar, por via de repercussão ou por via reflexa, uma relação jurídica de que a pessoa seja titular. Noutros termos: não basta que as partes sejam sujeitos de uma relação jurídica conexa com a relação litigiosa; é necessário que sejam os sujeitos da própria relação litigiosa.”, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 1982, 3.ª edição, reimpressão, pág. 84.
[7] Obra citada, pág. 309.
[8] Pese embora na escritura de habilitação de herdeiros que foi junta aos autos o autor aí se tenha declarado cabeça de casal, na presente acção não referiu estar a agir nessa qualidade.
[9] No mesmo sentido do defendido pelo tribunal a quo, veja-se o acórdão da Relação de Guimarães de 09/07/2015 (Proc. n.º 1085/13.8TJVNF.G1, relator António Santos), no qual se concluiu pela ilegitimidade activa do contitular da quota para intentar a acção de anulação de deliberação social.
[10] Cfr. PINTO FURTADO, in Deliberações dos Sócios, pág. 357; J. M. COUTINHO DE ALMEIDA, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, pág. 703.
[11] Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra editora, 4.ª edição, revista e actualizada, 1987, pág. 263.
Defendendo aqui a aplicação do artigo 286.º do CC, veja-se o acórdão da Relação de Guimarães de 14/06/2018 (Proc. n.º 7071/17.9T8VNF-F.G1, relator Pedro Damião e Cunha), segundo o qual, “(…) VI – A legitimidade para a instauração de uma acção de declaração de nulidade de uma deliberação social não se mostra atribuída em exclusivo aos sócios da Sociedade Comercial. VII – Com efeito, à nulidade das deliberações sociais, enquanto negócios jurídicos, é aplicável o regime comum dos negócios jurídicos nulos (…)”.
[12] Vide, MENEZES CORDEIRO, obra citada, pág. 295, nota 4.
[13] Proc. n.º 5728/15.8T8VNF.G1, relatora Sandra Melo.
[14] ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2.ª edição, reimpressão, 2020, págs. 161-162.
[15] ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra editora, 2.ª edição, revista e actualizada, 1985, pág. 179 e 181.
Também PAULO PIMENTA, Processo Civil Declarativo, Almedina, 3.ª edição, 2020, pág. 98, assim o refere: “O interesse processual não se confunde com a legitimidade, porque o interesse directo em demandar e em contradizer (que caracteriza a legitimidade) refere-se ao objecto da lide, ao conteúdo material da pretensão, enquanto que o interesse em agir respeita ao interesse no próprio processo, no recurso à via judicial, na inevitabilidade do pedido de tutela jurisdicional apresentada em juízo.”.