Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ISILDA PINHO | ||
Descritores: | OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS ESPECIAL CENSURABILIDADE OU PERVERSIDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/06/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I. Em face do princípio da subsidiariedade vertido no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, sendo o enquadramento penal a ultima ratio, a ofensa ao corpo ou à saúde prevista na norma do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, deve assumir um grau mínimo de gravidade, descortinável segundo uma interpretação do tipo legal à luz do critério de adequação social, mas não relevam para o preenchimento do tipo a existência de dor ou sequelas, os meios empregues pelo agressor ou a duração da agressão, sendo tais circunstâncias de atender, ao abrigo do artigo 71.º do Código Penal, na determinação da medida da pena. II. O ato de um pai agarrar a filha pelos cabelos e empurrá-la contra a parede não é “insignificante” e “de diminuto e irrisório desvalor“, nem se insere no exercício das responsabilidades parentais, constituindo, antes, uma agressão no corpo desta reprovado criminalmente. III. A verificação de uma das circunstâncias padrão elencadas no artigo 132.º do Código Penal não importa, de forma automática, a qualificação do crime de ofensa à integridade física, mostrando-se necessário conjugar as demais circunstâncias do ato e verificar se dessa conjugação resulta uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. IV. Reforça a especial censurabilidade e perversidade do arguido o facto de ter sido já julgado e condenado como autor material de um crime de violência doméstica perpetrado precisamente contra a mesma vítima, sua filha, quando esta era ainda menor, o que evidencia a sua personalidade mal formada e o enviesado sentido “pedagógico” que o levou a agredir, novamente, a sua filha, quando esta apenas intervinha em defesa da mãe, igualmente vítima das agressões do arguido. [sumário elaborado pela relatora] | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I-RELATÓRIO I.1 No âmbito do processo comum coletivo n.º 21/22.2SVLSB, que corre termos pelo Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 15, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 23-01-2023, foi proferido acórdão, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]: “III - DECISÃO Pelo exposto, com os fundamentos invocados e de acordo com as disposições legais acima citadas, decide-se: a. Condenar o arguido JM, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152.º/1, alíneas b) e c), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, perpetrado na pessoa de MC, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão. b. Condenar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos artigos 143.º/1 e 145.º/1, alínea a), e n.º 2, por referência ao art. 132.º/2, alínea a), todos do Código Penal, perpetrado na pessoa de DM, na pena de 1 (um) ano de prisão. c. Em cúmulo, pela prática dos referidos crimes, aplicar ao arguido a pena única de 4 (quatro) anos de prisão. d. Aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactos com a ofendida MC, incluindo tal pena o afastamento da residência e do local de trabalho desta, e sendo o seu cumprimento fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, pelo período de 4 (quatro) anos, nos termos do disposto no art. 152º/4 e 5, do C. Penal. (…).” » I.2 Recurso da decisão Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]: “ IV. CONCLUSÕES: I) Antes de mais, o presente recurso vem interposto do Acórdão prolatado pelo Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 15, pertencente ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, datado de 23/01/2023, que decidiu aplicar ao Arguido, em cúmulo jurídico, a pena única de 4 (quatro) anos de prisão, na qual se integra a pena de 1 (um) ano de prisão pela alegada prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal. II) Neste sentido, entendeu o Tribunal a quo que a conduta do Arguido é apta a integrar a circunstância prevista no artigo 132.º, n.º 2, alínea a) do C.P., sendo alegadamente reveladora de especial perversidade e censurabilidade o facto de a Ofendida deste crime ser filha do Arguido e a ofensa ter ocorrido como reacção à intervenção daquela, em defesa da mãe, numa situação de conflito entre a sua mãe e o Arguido. III) Porém, salvo o devido respeito por opinião contrária, por tal entendimento improceder quer de facto, quer de Direito, não pode o mesmo merecer o acompanhamento e o aplauso do Recorrente em qualquer medida. IV) Efectivamente, a condenação do Recorrente pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada na pessoa da sua filha encontra apenas sustentação no facto julgado provado 18. V) Contudo, ainda que o tipo de ofensa à integridade física se possa preencher independentemente da dor ou sofrimento causados, nem todas as condutas gramaticalmente subsumíveis a um tipo legal devem considerar-se portadoras de suficiente ilicitude penal material. VI) No caso concreto, entre as causas de atipicidade penal importa particularmente o princípio da insignificância, que foi concebido por Claus Roxin como causa de atipicidade, segundo o qual não podem ser penalmente típicas as acções que, apesar de encaixarem numa descrição típica e de conterem algum desvalor jurídico, o seu grau de ilicitude é mínimo ou insignificante. VII) Além disso, de harmonia com o carácter fragmentário do Direito Penal, as condutas penalmente típicas só devem ser constituídas por acções que sejam gravemente antijurídicas, não por factos cuja gravidade seja insignificante. VIII) Por seu turno, referindo-se especificamente aos crimes de ofensa à integridade física, elucida Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 2.ª edição, pág. 309 que: “(…) a ofensa ao corpo ou a lesão da saúde não podem ser insignificantes, o que é imposto por critérios de natureza constitucional, como o princípio da dignidade do bem jurídico protegido e da necessidade da intervenção do direito penal (…) e pelo próprio teor literal do tipo, uma vez que não se poderá considerar existente uma ofensa ao corpo ou à saúde, onde a lesão seja insignificante ou irrelevante.” IX) Face à factualidade que foi julgada como provada pelo Tribunal a quo, da qual apenas resulta como integradora deste tipo de crime o facto provado 18., salvo o devido respeito, o agarrar pelos cabelos e empurrar contra a parede não pode deixar de reputar-se insignificante do ponto de vista da afectação ou lesão da integridade física da Ofendida, enquanto bem jurídico tutelado pelo crime pelo qual o Recorrente foi condenado. X) Embora tenha sido provocado pelo Arguido, a concreta configuração do contacto físico foi de pequena intensidade e sem quaisquer consequências assinaladas, bem como o contexto em que se verificou, impondo-se, assim, que a conduta do Arguido não seja suficiente para preencher materialmente o tipo de ofensa à integridade física, dada a insignificância do respectivo grau de ilicitude. XI) Assim, tendo em conta o carácter fragmentário e de última intervenção do Direito Penal, as condutas penalmente típicas só devem ser acções gravemente ilícitas, pelo que as condutas decorrentes do facto provado 18., ainda que possam ser ilícitas por atingir direitos ou interesses de uma terceira pessoa, tem de entender-se como excluída da tipicidade penal, pelo seu diminuto e irrisório desvalor objectivo e subjectivo. XII) Nesta conformidade, veja-se como se decidiu no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 12/04/2011, proferido no Proc. n.º 3705/08.4TDLSB.L1-5, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Gonçalves, disponível in www.dgsi.pt, onde se salienta: “(…) III – Face ao princípio da subsidiariedade, vertido no art. 18.º, n.º 2, da C.R.P., sendo o enquadramento penal a última ratio, a ofensa ao corpo ou à saúde prevista na norma do art. 143.º, n.º 1, do Código Penal deve assumir um grau mínimo de gravidade descortinável segundo uma interpretação do tipo legal à luz do critério da adequação social. (…).” XIII) Desta feita, segundo o princípio da subsidiariedade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da C.R.P., atenta a solução de ultima ratio do direito penal, a ofensa ao corpo ou à saúde prevista no artigo 143.º, n.º 1 do C.P. deve assumir sempre um grau mínimo de gravidade, revelada através de uma interpretação deste tipo de crime à luz do critério de adequação social. XIV) Posto isto, por não se mostrarem devidamente preenchidos no caso concreto os elementos objectivo e subjectivo do tipo de crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do C.P., cumpre o Arguido ser absolvido da sua prática. Sem conceder, caso esse não seja o venerando entendimento de V. Exas., sempre se dirá, XV) Por outra banda, a qualificação da ofensa à integridade física, operada no acórdão recorrido, é decorrente da conjugação do disposto no artigo 145.º, n.º 1, alínea a), com o preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea a), ambos do C.P., ou seja, resulta do facto de o crime em causa ter sido praticado contra uma pessoa que é filha do Arguido. XVI) Todavia, como tem sido entendimento da doutrina e jurisprudência nacionais, não basta o facto de a vítima do crime ser filha do Arguida, cônjuge ou ter vivido com o agente em condições análogas às do cônjuge para que o crime em apreço seja qualificado. XVII) Na realidade, como se salienta no sumário do Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 08/11/2022, proferido no Proc. n.º 987/17.4SDLSB.L1-5, relatado pela Exma. Desembargadora Isilda Pinho, acessível in www.dgsi.pt: “(…) III. Não basta o facto de a vítima ser cônjuge ou de ter vivido com o agente em condições análogas às do cônjuge para que o crime de ofensa à integridade física seja qualificado, sendo necessário conjugar as demais circunstâncias do ato e verificar se, dessa conjugação, resulta uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.” XVIII) Com efeito, não obstante a Ofendida deste crime ser filha do Arguido e apesar de impender sobre este um dever de respeito e protecção para com a mesma, tal facto mostra-se desacompanhado de qualquer outro facto que permita concluir por um especial desvalor capaz de denotar uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. XIX) Efectivamente, o facto de o Arguido a suposta agressão ter sido praticada contra a sua filha, numa situação em que esta interveio em defesa da sua mãe, por si só, não é suficiente para qualificar o crime de ofensa à integridade física, impendendo também sobre a Ofendida deste crime o dever de respeito para com o Arguido enquanto seu progenitor. XX) Por seu turno, como é reconhecido no próprio acórdão recorrido, a factualidade apurada apenas pode revelar um grau de ilicitude reduzido para o crime em apreço, tendo em conta a agressão ligeira que foi praticada e o desconhecimento de quaisquer mazelas ou sequelas físicas na Ofendida. XXI) Nesta medida, as lesões insignificantes não devem ser consideradas ofensas ao corpo ou à saúde tipicamente relevantes, sob pena de violação dos princípios da dignidade do bem jurídico tutelado e da intervenção mínima do direito penal, pelo que a conduta do Arguido não deve ser em caso algum qualificada, face ao contexto em que ocorreu. XXII) De facto, não se pode descurar que um crime de ofensa à integridade física qualificada apenas poderá ocorrer se do facto resultar uma especial censurabilidade ou perversidade que possa ser imputada ao arguido por força da ocorrência de qualquer dos exemplos-padrão enumerados no n.º 2 do artigo 132.º do C.P. XXIII) Porém, importa sublinhar que não é pelo facto de se verificar em concreto uma qualquer das circunstâncias referidas nos exemplos-padrão do artigo 132.º, n.º 2 do C.P. ou noutras substancialmente análogas, que fica preenchido o tipo de ofensa à integridade física qualificada, deduzindo-se daquelas a especial censurabilidade ou perversidade. XXIV) Na verdade, a existência, num determinado caso, de alguma das circunstâncias referidas no artigo 132.º, n.º 2 do C.P., não conduz necessariamente à especial censurabilidade ou perversidade da cláusula geral do n.º 1 daquele preceito. XXV) Como refere o Prof. Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, págs. 25 e 26: “(…) Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; (…) Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador (…), que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no artigo 123.º-2.” (Sublinhados nossos). XXVI) Salvo o devido respeito por opinião diversa, tendo a alegada agressão ocorrido na sequência de uma discussão e desentendimento entre o Arguido e a mãe da Ofendida, motivada por outra relação daquele com outra mulher, tendo a Ofendida deste crime intercedido em defesa da sua mãe e em jeito desafiador para o Arguido enquanto seu pai, não se justifica de qualquer modo a agravação ou qualificação do comportamento do Arguido. XXVII) Tendo que haver algo mais para se poder considerar a conduta do Arguido como transcendendo o mero campo de ofender a integridade física da sua filha, realidade que já se mostra contemplada no tipo de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do C.P., não se podendo falar na situação sub judice em especial censurabilidade ou perversidade. XXVIII) Ora, vertendo ao caso dos autos, o qual se situa numa situação de reduzida gravidade, em que está em causa o agarrar dos cabelos da Ofendida e o empurrar desta a uma parede, não lhe provocaram quaisquer dores, como resulta do teor das suas declarações prestadas para memória futura, nem lhe provocaram quaisquer sequelas, nem qualquer dia de doença. XXIX) De igual modo, no acórdão recorrido nada se refere de substancial sobre a especial censurabilidade ou perversidade da conduta do Recorrente, tendo o Tribunal a quo efectuado a subsunção dos factos provados ao disposto nos artigos 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 132.º, n.º 2, alínea a), ambos do C.P. de modo automático, não podendo ocorrer a qualificação do crime de ofensa à integridade física. XXX) Contudo, quanto às circunstâncias a que alude o artigo 132.º, n.º 2 do C.P., veja-se a este respeito o entendimento perfilhado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/03/2019, referente ao Proc. n.º 449/16.7GBPVL.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador António Teixeira, acessível in www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler: “I – (…) as enunciadas no n.º 2 não são elementos do tipo, mas antes elementos da culpa. O que significa que não são de funcionamento automático, bem podendo dar-se o caso de se verificar qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas, e nem por isso se poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. (…).” (Sublinhado nosso). XXXI) Destarte, analisada a factualidade provada do acórdão recorrido, apesar do desvalor da acção inerente ao facto de a vítima ser a filha do Arguido, nada mais resulta que revele uma insensibilidade e uma “imagem global do facto agravada”, susceptível de sustentar um juízo de especial censurabilidade ou perversidade. XXXII) Assim sendo, o facto provado 18., correspondente à única factualidade julgada como provada que pode ser integrada na prática pelo Arguido de um crime de ofensa à integridade física, não pode ser subsumido ao tipo de crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea a), todos do C.P., tendo o Tribunal a quo incorrido em erro de julgamento de direito. XXXIII) Aqui chegados, sem conceder quanto ao supra exposto, a factualidade julgada como provada integra apenas a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do C.P., e não o cometimento pelo Recorrente de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea a), do mesmo diploma legal. Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exas doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente Recurso e, por via dele, ser revogado o acórdão recorrido, sendo substituído por outro que absolva o Arguido da prática do crime de ofensa à integridade física, assim e como sempre se fazendo a necessária e costumada JUSTIÇA!”. » Foi admitido o recurso nos termos do despacho proferido a 24-02-2023. » I.3 Resposta ao recurso Efetuada a legal notificação, veio a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância apresentar resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, concluindo nos seguintes termos [transcrição]: “IV – Conclusões: a) O douto Acórdão sob censura efectuou correcta subsunção da conduta do Recorrente relativamente à ofendida DM ao crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea a), todos do C. Penal, por que foi condenado. b) Com efeito o modo de execução do crime afasta inelutavelmente a pretensa insignificância das agressões perpetradas ou a sua tolerância social. c) No caso em apreço, a ofendida é filha do arguido, sendo assim a conduta deste apta a integrar a hipótese prevista na citada al. a) do art. 132º/2, do C. Penal, porque reveladora de um grau de culpa particularmente intenso, atenta a especial proximidade entre o Recorrente e a ofendida DM, sua filha que com ele habitava, e que junto do mesmo deveria sentir-se particularmente segura. d) A tal acresce – como revelador, em concreto, de especial censurabilidade da conduta do Recorrente – o contexto em que a agressão em apreço ocorreu, quando a ofendida presenciava uma situação de conflito entre os pais, com agressões psicológicas à sua mãe e procurava chamar a atenção do pai para que não procedesse desse modo. e) Deve, assim, a decisão ser mantida nos seus precisos termos. Pelo exposto, negando provimento ao recurso interposto e confirmando a douta decisão sob censura nos seus precisos termos, V. Exas farão, JUSTIÇA!!!” » I.4 Parecer do Ministério Público Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, mais acrescentando o seguinte [transcrição]: “(…) Na verdade, tal como no Acórdão condenatório se consignou, o arguido não revelou capacidade auto-crítica, susceptível de lhe permitir interiorizar o gravoso da sua conduta (cingindo-nos ao crime controvertido), permitindo-se, mesmo depois da produção da prova, a que assistiu, e da condenação colegial, interpretar a sua actuação nos parâmetros dum “jus corrigendi”, irrelevando as sequelas psicológicas (irreversíveis), mais que as corporais, infligidas na sua própria filha, não se inibindo de a fazer presenciar (como aos demais dois filhos) discussões com a progenitora, com a humilhação constante da figura materna, e de ver marcas físicas nesta por agressões desencadeadas pelo arguido, seu pai (“facto provado” 8). Dito doutra forma, os sentimentos de segurança, protecção e felicidade que se esperavam ser protagonizados e assegurados pelo recorrente foram postos em crise, justamente por si, com acções contrárias a esse dever, demitindo-se do estatuto securitário que lhe competia. Ora, quando um pai considera que agir assim é na justa medida e âmbito de um exemplar “pai de família”, autorizadamente pela “adequação social”, que lhe advém dessa pretensa posição referencial, reputando “insignificante” o facto de dirigir-se à sua “educanda” (e filha) e agarrar-lhe o braço, quando esta estava sentada, e ao mesmo tempo puxar-lhe os cabelos, empurrando-a contra a parede, estamos entendidos. Classificar irrisório o desvalor desse seu comportamento, negando o apelo da vítima para que cessasse mais uma agressão psicológica à sua mãe e não a incentivasse a praticar um crime contra terceiros (o arguido exigia à sua companheira que fosse bater numa sua ex-companheira: “facto provado” 18), só tem paralelo com o facto de olvidar (no Recurso) o “facto provado” 21, justamente aquele onde se regista uma condenação em pena de prisão efectiva por violência doméstica contra a mesma vítima, quando esta era ainda menor, evidenciando-se o sentido “pedagógico” com que já interagia com a sua descendente , aqui ofendida. Chega a parecer, permita-se-nos, provocatório (senão irresponsável), propugnar-se pela absolvição ou, mesmo, pela convolação jurídico-penal, num contexto destes, em que impede a (justa) oposição da filha que socorre a mãe, exteriorizando o seu ascendente físico, através dum gesto brusco, brutal e indefensável (na esteira doutros comportamentos marcantes, recorde-se: “facto provado” 21). Aqui chegados, afigura-se-nos, casuisticamente, forçoso concluir pelo preenchimento do “tipo de culpa agravado”, não só dado o modo de execução (não se limitou à repreensão verbal ou a um simples afastamento da vítima, antes partindo para uma agressão gratuita, desproporcionada e desleal, sobre quem aguardaria a sua protecção), mas pela personalidade por essa factualidade revelada, capaz de superar, com inteira facilidade e insensibilidade, laços de consanguinidade, emergindo um inegável e especial desvalor de atitude, particularmente intenso. Em apertada síntese, carece de respaldo legal a pretensão absolutória e, mesmo, a sugerida convolação (para o “crime-base”), porquanto é incontornável a existência dum comportamento particularmente censurável, de resto, sancionado (concretamente) com uma pena (parcelar) bem dentro do 1º terço da baliza-abstracta. Assim, sugere-se a validação do judiciosamente Deliberado, neste segmento recursório.”. » I.5. Resposta Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, veio o arguido apresentar resposta ao sobredito parecer, reafirmando a sua posição vertida na motivação do recurso por si apresentado. » I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal. Cumpre, agora, apreciar e decidir: » II- FUNDAMENTAÇÃO II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso: Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2]. Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do respetivo recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes: 1. Se a conduta do arguido, no que respeita à sua filha DM, preenche, ou não, os elementos do tipo de crime de ofensa à integridade física; Na afirmativa: 2. Se tal conduta é suscetível de integrar o conceito de “especial censurabilidade ou perversidade do agente” e, consequentemente, a prática pelo arguido do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, nº 1 e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. a), todos do Código Penal. » II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]: “(…) II – FUNDAMENTAÇÃO A. FACTOS PROVADOS Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados, com relevo para a decisão, os factos seguintes: 1. O arguido JM (…) e … (doravante MC) conheceram-se em 17.07.2000, no dia em que MC fez 15 anos, e começaram a namorar, passando a viver um com o outro, desde o ano de 2002 até 17.04.2022, como se de marido e mulher se tratasse, partilhando cama, mesa e habitação, residindo na Rua das …, em Lisboa. 2. Desse relacionamento nasceram três filhos em comum, DM, em 20 de dezembro de 2001, EM, em 23 de julho de 2004 e DAM, em 1 de fevereiro de 2020, com aqueles residentes. 3. A convivência entre o arguido JM e MC tem-se pautado por episódios de violência psicológica e física, perpetrados pelo primeiro. 4. O arguido JM ofendia MC chamando-lhe designadamente “Burra”, com uma frequência trimestral, ou na sequência de discussões ou porque vinha da rua maldisposto. 5. A primeira agressão física ocorreu, em dia não concretamente apurado durante a vida em comum do casal, quando ambos se encontravam numa casa que o arguido JM possui na Rua de … Cova da Moura, na Amadora, em que o arguido JM ameaçou MC com um objecto em tudo semelhante a uma caçadeira de canos serrados que se encontrava atrás de uma porta e, com um chicote, desferiu-lhe várias chicotadas, deixando-a com muitas dores ao ponto de nem se conseguir pentear. 6. O arguido JM passou a agredir MC, com uma frequência mensal, dando-lhe várias bofetadas na cara. Todos os meses o arguido arranjava discussão para lhe bater, da forma acima descrita. 7. Quando discutiam, por vezes ficavam sem falar um com o outro, depois sentavam-se para ter uma conversa e ficava tudo bem, desculpando MC o arguido JM e voltando a falar-se, mas logo depois este voltava a bater-lhe. 8. Os filhos assistiam às discussões, mas quando apareciam junto do casal o arguido parava de bater na MC. 9. Em data não apurada do mês de Janeiro de 2019, os dois saíram e o arguido JM levou a MC para Monsanto, já noite, numa zona que é só mato, e começou a discutir com MC. 10. De seguida pegou nas mãos dela e torceu-as, devido às dores MC deu entrada no Hospital de Santa Maria sob o episódio clínico n.º …, tendo MC dito aos médicos que as lesões eram resultantes de queda de móvel, para não prejudicar o arguido JM. 11. Em consequência da conduta do arguido JM, MC deixou de conseguir pegar nas coisas por sentir dores em ambos os punhos, no direito com dor à palpação da 1ª e 4ªMCF e no esquerdo dor à palpação da estiloide cubital e 4ª MCF, sendo necessário tala amovível do punho, por fratura da apófise estiloideia cubital a esquerda, tendo sido retirada a ortótese amovível em 18.02.2019, cfr. fls. 240 e 252. 12. Em dia não concretamente apurado, situado em meados de fevereiro de 2022, quando o arguido JM e MC se encontravam no interior do quarto da residência comum, e esta lhe disse que não queria ter relações sexuais, aquele disse-lhe “tu tens outro”, “já estás toda aberta”, “estás aberta, tu tens outro”. 13. Em 03.03.2022, o arguido foi condenado a 5 anos de prisão, no âmbito do Inquérito n.º … , por ter praticado os crimes de violência doméstica e roubo, entre outros, contra AF, conforme certidão do acórdão, a fls. 297 a 318. 14. Por vingança, o arguido JM, que se encontrava a cumprir pena de prisão em regime de permanência na habitação (cfr. fls. 345 a 348), exigia a MC, de forma persistente, que fosse bater em AF, instigando-a e chamando-lhe medricas, levando de manhã à noite a dizer: “tu vais, tu vais, tu vais”. MC, para não o continuar a ouvir e para que se calasse, saía para a rua, dava uma volta ao bairro e voltava para casa, dizendo que não tinha encontrado AF e o arguido respondia: “Tu quando chegares do trabalho, tu vais atrás dela’’. 15. No dia 16 de abril de 2022, o arguido JM manifestou a intenção de se deslocar à residência da sua ex-companheira, AF, para a agredir. 16. Para sair de casa, o arguido JM informou os serviços de saúde referindo os sintomas da COVID 19 e sair de casa a pretexto de ir ao Hospital e disse à MC que a ia buscar ao trabalho, e esta avisou as autoridades. 17. O arguido continuava a ligar, tendo gritado com a MC ao telefone, altura em que a filha DM tirou o telefone à mãe, MC, e disse: “porque é que estás a gritar com a mãe? Porque é que estás a gritar com a mãe?”” e o arguido respondeu: “não falas assim comigo. Eu é que sou o teu pai” e DM, respondeu “ok” e mais tarde, começou a ligar para o pai, o aqui arguido JM, para este ir para casa, tendo este ido para casa. 18. Quando MC e a filha DM chegaram a casa, o arguido JM estava exaltado sempre a dizer à MC para ir atrás da AF e bater nela, altura em que a filha DM disse ao arguido JM: “mas tu não tens que mandar a mãe bater nela. Porque é que não vais tu?”, O arguido não agradado disse: “DM, levanta-te. Eu é que sou o teu pai. Tu não tens que te meter” e pegou no braço de DM, que estava sentada no sofá e agarrando-a pelos cabelos empurrou-a contra a parede, dizendo: “Mando-te contra o chão”. 19. MC fugiu de casa para se dirigir à Esquadra da Polícia de Segurança Pública do Bairro da Boavista, em Lisboa, e o arguido JM foi no seu encalço e, já na via pública, meteu a mão no pescoço de MC e disse “tu ias aonde?’’ e MC respondeu: “não me disseste para eu ir atrás dela? la atrás dela”, omitindo que ia à Esquadra, e dizendo: “ia atrás dela”. 20. Já na esquina da Esquadra o arguido JM agarrou MC pelos cabelos, virou-a ao contrário, pôs-lhe a mão no pescoço de encontro à parede e pegou a mesma pelo braço para ir para casa. 21. Em 14.06.2006, no Processo Comum n.º …, o arguido JM foi condenado como autor material num crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do C. Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, perpetrado contra a sua filha DM, cfr. fls. 139 a 148. 22. Ao atuar da forma descrita, o arguido JM, molestando física e psicologicamente MC e DM, faltou ao respeito e consideração devida para com a sua companheira, e mãe dos seus filhos, e para com a sua filha, fazendo-as viver em permanente sobressalto e angústia, bem sabendo que as suas condutas são idóneas a provocar-lhes medo e ansiedade. 23. O arguido JM, ao comportar-se da forma descrita, também sabia que molestava no seu corpo, e na sua saúde, MC, sua companheira e mãe dos seus filhos e DM, sua filha. 24. O arguido JM também não desconhecia que o seu comportamento punha em causa a paz familiar, indispensável ao saudável convívio entre os membros familiares, impedindo-a de se verificar. 25. O arguido JM agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. (…) **** C. DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL (…) Do crime de ofensa à integridade física qualificada Vem ainda o arguido acusado da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, ex vi, 132.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal, perpetrado na pessoa de DM. Dispõe o primeiro dos referidos normativos que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” Tal crime tem como bem jurídico protegido a “integridade física”, da pessoa humana, cumprindo pois avaliar da ofensa no corpo ou saúde de outrem. Por agressão física deve entender-se “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante” [3], ou, dito de outra forma, toda a acção violenta que perturbe, modifique ou altere desfavoravelmente o estado de equilíbrio psicossomático da pessoa. No que respeita ao elemento subjectivo do crime, age dolosamente quem, representando que um facto preenche um tipo de crime, actua com a intenção de o realizar (dolo directo); quem, representando a realização do facto como consequência necessária da sua conduta não se abstém de a praticar (dolo necessário), e ainda quem, representando como consequência possível da conduta o preenchimento do tipo de crime, se conforma com essa realização (dolo eventual) - art. 14º do Código Penal. Prevê depois o art. 145º do mesmo diploma formas agravadas do crime de ofensa à integridade física, caso as ofensas tenham sido produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, dispondo o respectivo n.º 2 que são susceptíveis de revelar tal censurabilidade ou perversidade, entre outras, as circunstâncias previstas no art. 132º/2 do Código Penal. Tal critério de aferição de um grau de culpa susceptível de levar à qualificação do crime em apreço está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados –a especial censurabilidade ou perversidade do agente. As circunstâncias enunciadas exemplificativamente no n.º 2 do preceito em questão, relativas ao modo de execução do facto ou ao agente, são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, desse modo, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral. Assim, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão (enunciadas de forma exemplificativa no art. 132º/2, do C. Penal) não significa, forçosamente, a realização do tipo especial de culpa e consequente qualificação do crime. Com efeito, pode suceder que a verificação de qualquer uma dessas circunstâncias não implique, por si só, a qualificação do crime; ou seja, tal qualificação não é automática, em face da ocorrência de uma das circunstâncias enunciadas (cfr., neste sentido, entre outros, Maia Gonçalves em anotação ao artigo 132.º do Código Penal; Actas das Sessões da Comissão Revisorado Código Penal, Parte Especial, pág. 21 a 24; também, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 1983, inBMJ n.º 327, pág. 458, de 8 de Fevereiro de 1984, inBMJ nº 334, pág. 258, de 5 de Janeiro de 1983, inBMJ nº 323, pág. 121, de 26 de Abril de 1989, in BMJ nº 386, pág. 273 e de 5 de Dezembro de 1990, inBMJ nº 402, pág.195). Por outro lado, e pelo mesmo motivo, a circunstância de não se verificar em concreto qualquer de tais circunstâncias (exemplos-padrão) não impede que se verifique, em concreto, uma actuação do agente reveladora de especial perversidade ou censurabilidade, e susceptível, como tal, pelo seu especial desvalor, de integrar o crime de homicídio qualificado (ou, neste caso, de ofensa à integridade física qualificada), previsto no art. 132º do Código Penal. Assim, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, seja por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade e que conforma o especial tipo de culpa. De entre os exemplos-padrão enunciados no referido art. 132º/2, encontra-se prevista, na respectiva al. a), a circunstância de o agente ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima. Ora, na situação em apreço, resultou provado que o arguido, nas circunstâncias acima descritas, pegou no braço da sua filha DM –então com 20 anos de idade –que se encontrava sentada no sofá e, agarrando-a pelos cabelos, empurrou-a contra a parede. Tais factos não podem deixar de ser considerados como agressão à integridade física da ofendida, nos termos acima expostos, tendo ainda resultado provado que o arguido agiu com o propósito de molestar o corpo desta última, o que conseguiu, assim se mostrando preenchidos os elementos típicos do crime de ofensa à integridade física. A referida ofendida é filha do arguido, sendo assim a conduta deste apta a integrar a hipótese prevista na citada al. a) do art. 132º/2, do C. Penal, não podendo ainda deixar de ser reveladora de um grau de culpa particularmente intenso, nos termos acima explanados, devendo pois ser tida como reveladora de especial perversidade e censurabilidade, atenta a especial proximidade entre o Arguido e a ofendida DM, sua filha que com ele habitava, e que junto do mesmo deveria sentir-se particularmente segura. A tal acresce –como revelador, em concreto, de especial censurabilidade da conduta do arguido –o contexto em que a agressão em apreço ocorreu, quando a ofendida DM presenciava uma situação de conflito entre os pais e procurava chamar a atenção do pai para que não procedesse para com a mãe nos termos em que o vinha fazendo, e aquele, ignorando tais apelos, a agrediu nos termos descritos. Assim, tendo em conta, por um lado, os particulares deveres de respeito e protecção do Arguida face à ofendida DM, sua filha, e que impunham àquele o correspondente dever acrescido de não atentar contra a integridade física desta, e, por outro, a circunstância de a ofensa ter ocorrido como reacção à intervenção da ofendida, em defesa da mãe, numa situação de conflito entre esta e o Arguido, a conduta deste não pode deixar de ser tida como reveladora de especial perversidade e censurabilidade. Conclui-se, assim, ter o Arguido praticado o crime de ofensa à integridade física qualificada por que veio acusado. (…)”. » II.3- Apreciação do recurso II.3.1- Se a conduta do arguido, no que respeita à sua filha DM, preenche, ou não, os elementos do tipo de crime de ofensa à integridade física: Insurge-se o arguido contra a sua condenação pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, perpetrado na pessoa da sua filha DM, pugnando pela sua absolvição. Alega, para o efeito, que a sua condenação pela prática de tal crime encontra apenas sustentação na factualidade considerada provado em 18., a qual, na sua ótica, não pode deixar de considerar insignificante o grau de ilicitude da sua conduta, do ponto de vista da afetação ou lesão da integridade física da ofendida, enquanto bem jurídico tutelado pelo crime pelo qual o recorrente foi condenado, pois o contacto físico foi de pequena intensidade e sem quaisquer consequências assinaladas. Além disso, prossegue o recorrente, é necessário atentar ao contexto em que atuou, tendo agido no exercício das suas responsabilidades como pai de família. Assim sendo, conclui, ainda que possa ser ilícita por atingir direitos ou interesses de uma terceira pessoa, tem de entender-se como excluída da tipicidade penal, pelo seu diminuto e irrisório desvalor objetivo e subjetivo, pelo que, perante a inobservância, no caso concreto, dos elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º1. do Código Penal, deverá o recorrente ser absolvido. Ora, pese embora o esforço argumentativo do recorrente, desde já se adianta que não lhe assiste razão. Com efeito, preceitua o artigo 143.º do Código Penal que comete o crime de ofensa à integridade física simples: “1 - Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa”, caso em que é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. Trata-se da tutela do bem jurídico “integridade física da pessoa humana”, obedecendo ao comando constitucional do artigo 25.º, n.º 1, da Constituição da República [A integridade moral e física das pessoas é inviolável]. No que concerne ao tipo objetivo, escreve Paula Ribeiro de Faria[4]: “A lei distingue duas modalidades de realização do tipo: a) ofensas no corpo e b) ofensas na saúde. Muitas das vezes haverá coincidência entre estas duas formas de realização do tipo; assim será, por exemplo, quando o agente, espetando uma seringa no braço da sua vítima, lhe causa uma infecção. Mas não necessariamente. Casos há em que existe uma lesão no corpo sem que concomitantemente haja lesão da saúde. Pense-se na controvertida agressão à bofetada (leve) sobre uma pessoa, sem qualquer sofrimento ou incapacidade para o trabalho, e que parte da jurisprudência (Ac. da RL de 26-6-90, CJ XV-III 172) tinha, à luz da versão anterior do art. 142.º, como integrando o tipo legal de injúrias. Outra foi, no entanto, a última palavra do STJ, que fixou jurisprudência sobre esta matéria no Ac. de 18-12-91, qualificando o dito comportamento como ofensa corporal. Por outra banda, poderá haver lesões da saúde que não configuram ofensas no corpo, pois que inclusivamente aumentam o bem-estar do lesado (será o caso da administração de estupefacientes). Pode aqui recorrer-se à impressiva imagem, utilizada por ESER (cf. S/ S / ESER § 223 1), de dois círculos que se cruzam embora mantenham a sua autonomia”. Ou seja, o tipo legal do artigo 143.º fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados. Também não relevam para o preenchimento do tipo os meios empregues pelo agressor, ou a duração da agressão, pese embora, como é evidente, tais circunstâncias sejam de ter em conta, ao abrigo do artigo 71.º do Código Penal, para determinação da medida da pena. Admite-se, é certo, que, em face do princípio da subsidiariedade, vertido no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, sendo o enquadramento penal a ultima ratio, a ofensa ao corpo ou à saúde prevista na norma do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, deve assumir um grau mínimo de gravidade, descortinável segundo uma interpretação do tipo legal à luz do critério de adequação social. Porém, não constitui condição da relevância típica a provocação de dor ou mal-estar corporal, incapacidade da vítima para o trabalho, aleijão ou marca física, nada legitimando uma interpretação do conteúdo constitucional do direito à integridade pessoal, concretamente na sua componente de direito à integridade física, em termos de apenas abranger a proteção contra um determinado grau de ofensas corporais, designadamente as que tenham por efeito a provocação de uma lesão ou de incapacidade para o trabalho[5]. A existência de dor ou a sua intensidade, a existência de lesões, sequelas e sua intensidade e a incapacidade para o trabalho, não são questões de tipicidade no que respeita ao crime de ofensa à integridade física simples, pelo que qualquer ato comportamental, que seja voluntário, injustificado, atentatório da incolumidade corporal de terceira pessoa, verificados os demais pressupostos legais, fará incorrer o respetivo agente em responsabilidade criminal, independentemente da maior ou menor extensão objetiva da respetiva ofensa e das suas resultantes consequências. Pois bem: In casu, resultou provado que: “18. Quando MC e a filha DM chegaram a casa, o arguido JM estava exaltado sempre a dizer à MC para ir atrás da AF e bater nela, altura em que a filha DM disse ao arguido JM: “mas tu não tens que mandar a mãe bater nela. Porque é que não vais tu?”, O arguido não agradado disse: “DM, levanta-te. Eu é que sou o teu pai. Tu não tens que te meter” e pegou no braço de DM, que estava sentada no sofá e agarrando-a pelos cabelos empurrou-a contra a parede, dizendo: “Mando-te contra o chão”. [sublinhado nosso]. Ora, não se compreende como se possa questionar que o descrito ato perpetrado pelo arguido na pessoa da sua filha DM [a saber: agarrando-a pelos cabelos empurrou-a contra a parede] não seja considerado, do ponto de vista ético-social, uma agressão no corpo desta e, consequentemente, reprovado criminalmente. Muito menos se compreende a adjetivação de tal ato como sendo “insignificante”, “de diminuto e irrisório desvalor“, como se estivéssemos perante uma atuação normal, perfeitamente compreensível por qualquer homem comum, a coberto do exercício das responsabilidades parentais, como se fosse legítimo a um progenitor agarrar os filhos pelos cabelos e empurrá-los contra a parede, no intuito de os educar. Tal entendimento fere as mais elementares regras de convivência social, os ditames que gerem a instituição familiar e o exercício das funções parentais. É verdade que o poder de correção dos pais sobre os filhos pode constituir uma causa de exclusão da ilicitude do crime de ofensa à integridade física, porém, como é bom de ver, trata-se de uma situação excecional, que só se verificará se for exercido com finalidade exclusivamente educativa, na justa medida em que se mostre ter sido necessário, adequado e proporcional, criterioso e moderado, e inserido no conjunto de poderes-deveres que integram o exercício das responsabilidades parentais[6], o que não foi, de todo, o caso. Como bem refere o Ex.mo PGA junto deste Tribunal da Relação, no seu douto parecer, “quando um pai considera que agir assim é na justa medida e âmbito de um exemplar “pai de família”, autorizadamente pela “adequação social”, que lhe advém dessa pretensa posição referencial, reputando “insignificante” o facto de dirigir-se à sua “educanda” (e filha) e agarrar-lhe o braço, quando esta estava sentada, e ao mesmo tempo puxar-lhe os cabelos, empurrando-a contra a parede, estamos entendidos”. Face ao exposto, não há qualquer dúvida que a descrita conduta do arguido integra o elemento objetivo do tipo de crime em apreço. Decorre, ainda, da factualidade provada, que não foi posta em causa pelo recorrente, que: “ 23. O arguido JM, ao comportar-se da forma descrita, também sabia que molestava no seu corpo, e na sua saúde, MC, sua companheira e mãe dos seus filhos e DM, sua filha.” 25. O arguido JM agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”, verificando-se, portanto, também preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime em causa. Consequentemente, improcede, com base nesta argumentação recursiva, a requerida absolvição do arguido. II.3.2-Se a conduta do arguido, no que respeita à sua filha DM é suscetível de integrar o conceito de “especial censurabilidade ou perversidade do agente”: Nesta sede, argumenta o recorrente que a sua conduta não integra o tipo de ofensa à integridade física qualificada, pois, na sua ótica, não se encontra preenchido o conceito legal de “especial censurabilidade e perversidade do agente”. Vejamos:
A introdução de tal alínea na lei, teve a finalidade de responder à censurabilidade social das situações de agressões no contexto familiar, na consideração de que, como anota Paulo Pinto de Albuquerque[7], “os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade”.[8] Está-se no âmbito dos vínculos familiares cuja incriminação agravada das agressões e dos maus tratos entre os seus membros, está ligada à necessidade de recriminar o crescente aumento da sua prática. O legislador entende que qualidades ou relações como as descritas agravam potencialmente a censurabilidade ou a perversidade com que o crime é praticado e integra estes comportamentos no artigo 132.º. Deste modo, o crime de ofensa à integridade física qualificada define-se, em termos genéricos, pela verificação de circunstâncias - quaisquer circunstâncias - que revelem aquela especial censurabilidade ou perversidade na produção do evento [no caso, da ofensa à integridade física], seguindo-se, no n.º 2, pela denominada técnica dos exemplos-padrão, a enumeração de circunstâncias específicas que podem revelar a especial censurabilidade ou perversidade que importa o agravamento do crime. Assim, por um lado, não apenas aquela enumeração é meramente exemplificativa, como o revela a utilização da expressão “entre outras”, como ainda, por outro lado, as várias circunstâncias aí apontadas não são de preenchimento automático, ou seja, apesar de se verificar uma situação formalmente enquadrável numa dessas circunstâncias, daí não se segue necessariamente a qualificação do crime, exigindo-se que tal circunstância tenha aquele alcance, isto é, que, em concreto, sustente esse juízo de especial censurabilidade ou perversidade do agente na prática do crime. Na palavra de Figueiredo Dias “..., a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no nº 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador”. “A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor (…), que denota qualidades desvaliosas da sua personalidade” [9] É verdade que temos vindo defendendo, como é exemplo disso o acórdão citado pelo recorrente[10], redigido pela aqui relatora, que a verificação de uma das circunstâncias padrão elencadas no artigo 132.º do Código Penal, não importa, de forma automática, a qualificação do crime de ofensa à integridade física, mostrando-se necessário conjugar as demais circunstâncias do ato e verificar se dessa conjugação resulta uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Porém, não é menos verdade que, in casu, o recorrente agiu num contexto cuja conduta é suscetível de configurar os apontados conceitos de especial censurabilidade e perversidade do agente. Com efeito, perscrutada a factualidade provada constata-se que a vítima DM, filha do arguido, foi por este agarrada pelos cabelos e empurrada contra a parede, de forma gratuita e despropositada, como resposta ao apelo que fazia para que o arguido cessasse mais uma das agressões psicológicas à sua mãe [incentivando-a a praticar um crime contra terceira pessoa - o arguido exigia à mãe da vítima DM que fosse bater numa sua ex-namorada], também esta vítima, de maus tratos físicos e psicológicos por parte do arguido, que, aliás, importaram a sua condenação pelo crime de violência doméstica, numa pena de três anos e seis meses de prisão efetiva, contra a qual o arguido não se insurgiu. Além disso, resulta, igualmente, da factualidade provada que a vítima DM, tal como os irmãos, assistiam à referida vivência do casal, pautado por discussões e agressões físicas e psicológicas perpetradas pelo arguido na pessoa da progenitora de DM, fazendo-os viver em permanente sobressalto e angústia, com ansiedade e medo do arguido. E não se diga que a adjetivada conduta “desafiadora” da vítima para com o arguido, seu pai, retira a especial censurabilidade e perversidade da conduta deste, pois ao que o arguido apelida de desafiador, mais não é do que uma chamada à razão pela sua própria filha, como que que se estivéssemos numa inversão de papéis no âmbito das funções parentais. Mais reforça a especial censurabilidade e perversidade do arguido o facto de ter sido já julgado e condenado como autor material de um crime de violência doméstica perpetrado precisamente contra a ora vítima, sua filha DM, quando esta era ainda menor e já vivenciava, na própria pele, as agressões perpetradas pelo arguido, o que evidencia a sua personalidade mal formada e o enviesado sentido “pedagógico” que o levou a agredir, novamente, a sua filha, quando esta apenas intervinha em defesa da mãe, que, mais uma vez, estava a ser vítima de uma agressão por parte do arguido. Ou seja, a conduta do arguido, ao agredir a sua filha da forma descrita, não só configura uma conduta desvaliosa e ilícita criminalmente, como preenche, sem sombra de dúvida, o tipo legal de crime de ofensa à integridade física qualificada, nos termos em que foi condenado, perante a sua especial censurabilidade e perversidade, cuja existência acabamos de analisar. Consequentemente, improcede, in totum, o recurso interposto pelo arguido. » III- DISPOSITIVO Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido. Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS [artigo 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III], sem prejuízo de se verificar o pressuposto a que alude a alínea j), do n.º1, do artigo 4.º, do Regulamento das Custas Processuais. Comunique-se, de imediato, à 1.ª instância, com cópia. » Lisboa, 06 de junho de 2023 [Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal] Os Juízes Desembargadores Isilda Maria Correia de Pinho Luís Almeida Gominho Jorge Gonçalves _______________________________________________________ [1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010 in http://www.dgsi.pt, [2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95. [3] Faria, Paula Ribeiro de, Comentário Conimbricense do Código Penal, p. 207. [4] Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 205. [5] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 226/2000, de 5 de abril de 2000, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt. [6] Acórdão do TRL de 17-05-2022, Processo n.º 1093/20.0T9VFX.L1-5, in www.dgsi.pt [7] Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição atualizada, pág. 554. [8] Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal – Anotado e Comentado, pág. 344. [9] Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 29. [10] Acórdão do TRL, datado de 08-11-2022, Processo n.º 987/17.4SDLSB.L1, in www.dgsi.pt. |