Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
865/13.6TBPDL.L1-8
Relator: RUI MOURA
Descritores: DOAÇÃO
TRADIÇÃO DA COISA
CONTA BANCÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - Se a doação tem por objecto bens móveis, a lei exige a forma escrita, a menos que ocorra a tradição da coisa concomitantemente ao acto. A dispensa da forma escrita apenas ocorre na doação de coisas móveis acompanhada da tradição da coisa, constituindo porém, nesse caso a tradição uma formalidade essencial ao contrato, não se podendo considerar válida a doação se esta não se verificar – cfr. artigo 497º, 2 do C.Civil.
- Se a doadora verbal de valores depositados em conta bancária a que associou a donatária como contitular, ambas com poderes de movimentação solidária, se mantém com tais poderes até falecer, e não entrega de facto o dinheiro à donatária nem esta o movimenta a seu favor em vida da dadora, o que só vem a acontecer depois do decesso desta, tal significa que não houve tradição da coisa, obrigando a doação a produzir os seus efeitos já depois da morte da doadora, o que implica a ineficácia da doação efectuada por falta de forma mínima.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:



I - RELATÓRIO:



A..., casada, residente ..., entretanto falecida na pendência da causa e substituída pelos herdeiros habilitados para tal no Apenso A, H..., A... e N... - veio propor em 19 de Abril de 2013 acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum ordinário contra M... e V..., casados entre si, ambos residentes ,,,, pedindo a condenação dos Réus na restituição da quantia de € 92.544,43, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de € 3.397,52, e vincendos, à taxa legal para os juros civis, e até efectivo e integral pagamento, alegando, para o efeito, em suma, (i) que é única e universal herdeira de M...; (ii) após o óbito desta, a Ré se apropriou indevidamente da verba correspondente ao saldo bancário pertença daquela, aproveitando-se da circunstância de ser co-titular dessa conta; (iii) a Ré em 14 de Maio de 2012 entregou-lhe parte da verba em questão - mais precisamente € 92.544,43 -, mas permanece em poder da quantia peticionada a título de capital (portanto, que integra a herança), embora tenha sido intimada a devolvê-la.

A Autora demanda o Réu, esposo da Ré, porquanto, por via do regime de casamento de ambos – comunhão de bens adquiridos -, o Réu tem proveito da verba  peticionada.

Junta procuração e documentos.

Citados, os Réus contestaram, excepcionando.

Alegam ter a falecida doado na véspera de Natal de 2009 à 1ª Ré todos os valores presentes e futuros da dita conta, dos quais o 2º Réu nada beneficiou. Alega que a Ré aceitou – artigo 21º da contestação. Materializaram o cumprimento da vontade da falecida alterando no dia 2 de Dezembro de 2009 a ficha de assinatura do contrato de abertura de conta.

(Alegam ainda, em contradição com o referido, que a falecida a incluiu como co-proprietária dos valores ali depositados – artigo 18º. Retiram daqui que o saldo da conta não pertencia em exclusividade à falecida, na data da morte desta – artigo 48º - mas sim em compropriedade com a Ré – artigo 49º).

De acordo com a defesa assente na doação do saldo positivo presente e futuro, retiram que o saldo bancário da referida conta, após o falecimento da M..., não integra(va) o acervo hereditário.

Impugna o alegado no artigo 10º da petição inicial, segundo o que a Ré tenha efectuado a transferência para a conta da Autora inicial de sensivelmente metade do valor levantado por si, “após inúmeras insistências da Autora, explicando que na verdade procedeu à transferência de metade do valor por “forma livre” – artigo 44º da contestação -, como “liberalidade” – artigo 49º da contestação .

Concluem os Réus pela improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.

Juntam procurações e um documento.

Responde a Autora, pugnando pela improcedência da excepção peremptória, mantendo os termos da petição inicial.

Com a entrada em vigor das alterações introduzidas ao CPC pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, o processo passou a seguir a tramitação agora determinada para o referido diploma adjectivo. 

Foram juntos documentos – fls. 34-verso a 37-verso. A Autora posiciona-se em relação a eles- fls. 40.

Foram pela Autora juntos documentos – fls. 48 a 68 – e a Ré, notificada, nada disse.
*

Foi dispensada a realização da audiência prévia.

Foi fixado o valor à causa.

Saneou-se o processo.

Identificou-se o objecto do litígio.

Enunciaram-se os temas da prova.

Teve lugar audiência final, com gravação dos trabalhos.

Na sentença foi proferida decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, motivadamente.
*

Na 1ª instância dão-se como provados os seguintes factos:

Da petição inicial:

1.M... (doravante designada apenas por M..., por melhor facilidade de exposição) faleceu no dia 30.04.2012, na Rua ..., no estado de solteira;
2.A falecida M... não deixou ascendentes vivos, descendentes, testamento ou qualquer outra disposição de última vontade;
3.A falecida Autora A... (doravante designada apenas por A..., por melhor facilidade de exposição) era parente em quarto grau da linha colateral da falecida e sua única e universal herdeira;
4.Em 12.07.2005, a falecida M... constituiu a conta bancária nº 30753541, junto do BANIF, balcão da Av. Antero de Quental, nº 30, Ponta Delgada;
5.Em 02.12.2009, a dita conta bancária passou a ter a 1ª Ré como segunda titular;
6.Em 30.04.2012 a dita conta bancária apresentava, o saldo no montante de € 1.278,66 em depósito à ordem, e o saldo no montante de € 186.554,12 em depósito a prazo;
7.Nunca a 1ª Ré depositou qualquer verba na dita conta bancária;
8. Em 02.05.2012, a 1ª Ré transferiu o montante de € 185.696,58 da dita conta bancária para a conta bancária nº 000984064543010, de que é titular no BANIF;
9.Em 11.05.2012, a 1ª Ré transferiu o montante de € 4.512,29 da dita conta bancária para a conta bancária indicada em 8., ficando a primeira, nessa data, com saldo a zero;
10.Em 14.05.2012, a 1ª Ré transferiu para a conta bancária titulada por A... o montante de € 92.544,43;
11.Os Réus casaram em 25.09.2004 sem convenção antenupcial;
Da contestação
12.M... quis beneficiar a 1ª Ré doando-lhe os valores existentes ou a existir na dita conta bancária, o que esta aceitou;
13.Nesta decorrência, a 1ª Ré passou a ser a segunda titular da dita conta bancária nos termos referidos em 5., à qual ambas, nessa data, lhe atribuíram a natureza solidária;
14.No dia 04.12.2009 foi constituído o depósito a prazo referido em 6. com o montante de € 147.000,00.

Proferiu-se decisão de mérito que, a final, julgou a acção improcedente por não provada e, em consequência, absolveram-se os Réus do pedido.

As custas ficaram pelos Autores habilitados.


Inconformados, recorrem os Autores habilitados, recurso admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, e efeito meramente devolutivo.

Conclusões de recurso dos Autores:

Os Autores habilitados concluem assim a motivação da sua apelação:

1.Vêm os A.A., ora Apelantes, interpor recurso por não se conformarem com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que julgou improcedente a acção objecto dos presentes autos, por não provada e, consequentemente, absolveu os R.R. do pedido.
2.Os Recorrentes entendem que o Tribunal a quo, além do mais, fez uma incorrecta apreciação da prova, nomeadamente do ponto 12, 13 e 14 da matéria considerada assente, conclusão esta que resulta claramente dos depoimentos das testemunhas, das declarações de parte dos A.A., dos suportes documentais junto aos autos e da conjugação de ambos;

3.As questões a dilucidar nos presentes autos são:

a) Saber se os montantes existentes à data da morte na conta bancária titulada pela falecida foram por si doados em vida à 1ª. R. (pontos 12 e 13 da matéria de facto considerada assente);
b) Da insuficiência da matéria julgada (ponto 14);
c) Da omissão de pronúncia relativamente a factos instrumentais;
d) Por cautela de patrocínio: a validade da doação e
e) Ainda por cautela de patrocínio: Da validade da doação de bens futuros.

4.O Tribunal a quo decidiu a matéria de facto nos termos constante do ponto 4 das presentes alegações, que dão por reproduzido;
5.Quanto aos pontos 12. e 13. dos factos provados, os ora Apelantes entendem que os R.R. não provaram, como era seu ónus, que os montantes existentes à data da morte na conta bancária titulada pela falecida M... lhe foram, por esta, doados em vida, pelo que impugnam a resposta aos identificados pontos (Art. 640º. do C.P.C.);
6.Resposta que requerem seja alterada, porquanto do processo constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre tais factos;
7.Não obstante o Tribunal a quo ter respondido aos pontos 12. e 13. com base no depoimento das testemunhas A..., M..., M..., M... e nas declarações da R., M..., entendem os Apelantes que dos mesmos não pode resultar uma resposta positiva quanto a esta matéria;
8. Relativamente às relações de proximidade entre a falecida G... e a M... por um lado, e a falecida A..., por outro, as mesmas não fugiam ao normal das relações familiares, com momentos mais próximos e outros menos, sendo que isso em nada abala o sentimento que nutrem umas pelas outras.
(…)

12.Já quanto ao relacionamento da R. M... com a M..., o Tribunal considerou que a convivência entre ambas era permanente e quase diária e os laços de afecto eram fortíssimos, com base nos depoimentos de A..., M..., M..., M..., nas declarações da R. M... e numa carta de A... para a sua tia I...;
13.Com o que os Apelantes discordam, pois entendem que o Tribunal se limitou a retirar conclusões das conclusões aventadas pelas testemunhas, já que estas não apontaram qualquer facto donde efectivamente o Tribunal pudesse concluir por tal tipo de relação (por ex., que passassem férias juntas, que festejassem qualquer período festivo, que viajassem, saíssem, tomassem refeições, etc.);
(…)

19.Ao concluir que os laços entre a G... e M... eram fortíssimos e era permanente a convivência entre elas, o Tribunal a quo fez uma incorrecta análise da prova;
20.Quanto a saber se o dinheiro que a M... tinha na conta bancária à data do óbito, foi, ou não, objecto de doação à M..., o Tribunal firmou a sua convicção de que existiu uma doação no depoimento das testemunhas identificadas em 9. desta alegação, e tendo por pano de fundo o contexto relacional entre ambas;
21.A propósito do contexto relacional, dá-se por reproduzido o já alegado quanto às respostas aos pontos 12 e 13, sendo que o Tribunal recorrido fez uma incorrecta apreciação da prova e uma incorrecta subsunção dos factos ao direito;
22.Quanto à alegada doação, também aqui os depoimentos são meramente conclusivos e contraditórios, as testemunhas nem têm conhecimento da existência de conta bancária, salvo a S..., mas que apresentou um depoimento totalmente “construído”, sem identificar qualquer conta em concreto;
23.Ao invés, as testemunhas referem que a M... apenas geria/administrava o dinheiro da G..., atentas as suas dificuldades de mobilidade – que foram sobejamente faladas – pois já nem conduzia, foi atacada de doença que a incapacitou, e que seria com o testamento – que nunca chegou a fazer – é que esta dava a entender que o dinheiro seria para ela, o que nos conduz, não à doação em vida pretendida pela R., mas a uma doação por morte, que sempre seria inválida, atenta a ausência de testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.
24.Foi a confiança que a G... depositava na M... e o facto de esta ser funcionária bancária que conduziram a esta solução, e não a qualquer intenção de doar fosse o que fosse, pois se assim fosse a testemunha teria feito o testamento ou até mesmo formalizado a doação, pois era conhecedora do modo como tudo se fazia, pois já tinha sido beneficiária do testamento da tia I... e conhecia o notário e a respectiva funcionária, e era “pessoa culta, letrada, esperta, autónoma, bem informada”, como o Tribunal a quo considerou;
25.A G... não colocou o dinheiro ao dispor da M..., e tanto assim foi que esta nunca o usou em seu benefício.
26.Entendem os A.A. que tal resulta dos depoimentos, desde logo, (…).
(…).
29.O Tribunal refere na decisão sub judice que não abala em nada esta sua convicção o facto de os herdeiros nunca terem ouvido falar em doação – referindo-se o Tribunal à falecida G..., quando na verdade os A.A., A..., B..., se referiram à M..., a qual nunca, em tempo algum, falou em doação, nem mesmo quando aceitou entregar metade da verba existente na conta bancária à A..., tudo foi feito com base na presunção relativa à propriedade saldos bancários em casos de contitularidade - conforme resulta dos depoimentos prestados nas Sessões de 21/11/2014 por A... e de 18/11/2014 por B...:
30.Entendem os A.A. ser relevante o facto de a R. nunca ter levantado qualquer verba da conta bancária, quando o fez foi sempre no cumprimento da gestão que havia acordado com a G..., atitude que é compatível com a de alguém que apenas está a gerir algo alheio e que terá que prestar contas – tudo resultante das declarações da própria R.;
31.Além disso, esta também refere que a M... terá ido sozinha ao banco a tratar de tudo, mas o Tribunal, contrariamente a esta declaração, dá como provado – ponto 13 factos assentes – que ambas, (G... e M...) atribuíram natureza solidária (referindo-se à conta), donde se infere que se terão deslocado ao banco as duas.
32.Além disso, a R. M..., referindo-se à situação em si, mas mais propriamente ao montante de €92.544,43, sensivelmente metade do valor do saldo bancário, que devolveu à A. A... , diz estar arrependida de não ter obrigado a A... a assinar um papel onde constasse que a situação ficava arrumada.
33.Não diz que está arrependida de ter devolvido metade do dinheiro à A... Vasconcelos, o que seria normal, pois, (…).
34.Sendo apenas nesta sede – judicial – que vem invocar a doação, porquanto não conseguiria manter a presunção resultante dos depósitos bancários a seu favor, pois os A. A. facilmente a afastariam, provando com os extractos bancários que aquele dinheiro pertencia exclusivamente à G..., por isso somente lhe restava a tese da doação, para o que lhe bastava trazer a Tribunal, como fez, algumas testemunhas a dizer que a G... lhe havia doado o dinheiro.
35.Mas a R. bem sabia que a G... não lhe havia doado o dinheiro, por isso tudo fez para que os A.A. desistissem da sua pretensão; aliás, na véspera da data designada para realização da audiência de discussão e julgamento a R., numa atitude de puro desespero, apresenta nos autos um articulado que denomina de superveniente, onde denuncia a existência de um outro familiar, alegadamente irmão da G.... – fls..…. dos autos, sendo que com base nessa alegação solicitou a suspensão da instância com vista à averiguação da paternidade desse dito familiar, tendo previamente proposto aos A.A., ora Recorrentes, que desistissem do processo, caso contrario nada seria nem para ela, nem para eles.
36.Ora, em face de todo o exposto entendem os A.A., ora recorrentes, que o Tribunal a quo não podia, com base nestes depoimento que supra se analisaram, dar como provado o ponto 12 e 13 da matéria assente, como o fez.
(…)
38.Pelo que os A.A. entendem que a R. não logrou provar, ónus que lhe cabia (art. 342º. nº. 1, do C.C.) a matéria do ponto 12, que o Tribunal considerou assente, no sentido que a M... lhe houvesse doado o saldo da conta bancária que titulava no Banif.
39.Entende-se que a prova da R. foi de tal modo vaga e inconclusiva, que não nos poderia conduzir à conclusão de a que a intenção da M... fosse deixar o valor depositado à R. e muito menos as quantias futuras que ela ainda pudesse vir a possuir, pois à data que a M... entra na conta – 2/12/2009 – o saldo era de €148.840,00, como resulta do doc. nº. 1 (extracto bancário) junto pelos A.A., com o requerimento datado de 7/10/2013 e à data do óbito da G... era de €186.554,12.
40.Na verdade, em face da prova produzida, dúvidas não restam que a M... administrou a conta da G... no período da doença que a vitimou, mas que esta lhe tenha doado o dinheiro existente nesse depósito bancária nenhuma prova credível foi produzida.
(…)
44.Quanto à insuficiência da matéria assente no ponto 14 dos factos provados, o Tribunal a quo considerou provado neste ponto 14 que no dia 04.12.2009 foi constituído o depósito a prazo referido em 6. com o montante de €147.000,00.
45.No entanto, não fez constar que o referido depósito a prazo foi constituído na mesma conta titulada pela G... e com mesmo dinheiro já existente à ordem (cfr. doc. nº. 1 junto ao requerimento probatório dos A.A. e extracto bancário junto à p.i. como nº. 4, e ponto 8 da matéria assente).
46.Aliás, a própria R. o admite, alegando-o no art. 27º da sua contestação.
47.Pelo que, deve a referida matéria, porque alegada e provada documentalmente, por documentos não impugnados, ser aditada ao referido ponto 14, por ser relevante para a boa decisão da causa, passando o mesmo a ter a seguinte redacção: No dia 04.12.2009 foi constituído o depósito a prazo referido em 6. com o montante de €147.000,00, na mesma conta da falecida G... e com o dinheiro já lá existente.
48.Quanto à da omissão de pronúncia relativamente a factos instrumentais, a R. alegou sob os pontos 39º a 41º da contestação que a G... lhe queria fazer um testamento através do qual lhe pretendia transmitir os seus bens e por um impedimento de uma das testemunhas não chegou a fazer, não obstante dizer a todos que era sua intenção deixar à R. todos os seus bens, incluindo o dinheiro.
49.Não obstante a este propósito ter sido produzida abundante prova, a verdade é que o Tribunal não se pronunciou sobre esses pontos, tendo-os apenas enunciado na fundamentação da decisão.
50.Pelo que, porque resulta da prova produzida em audiência de julgamento, deve esta matéria ser considerada assente, nos termos referidos sob o ponto 124 desta alegação, porquanto assim resultou da prova produzida e oportunamente analisada, devendo a mesma relevar para fundamentação da decisão final, porquanto desta resulta que a intenção da falecida G... seria outorgar um testamento, para produzir efeitos após a sua morte, e nunca uma doação, como decidiu o Tribunal a quo.
51.No que toca à validade da doação, ainda que se admitisse que o negócio jurídico sub judice configurasse uma doação, tal como o concluiu o Tribunal a quo, incluindo os dinheiros futuros – o que por remotas hipóteses se admite, sempre sem conceder -, cumpre aferir da validade da mesma à luz do disposto pelo Art. 947º, nº, 2 do Código Civil, tendo em conta que a mesma não foi reduzida a escrito.
(…)

56.Estando assente que a importância depositada na conta bancária de que a R. veio a ser co-titular em 2/12/2009, bem como as que entretanto nela vieram a ser depositadas, eram da única e exclusiva pertença da falecida M..., cumpre saber se houve de facto tradição da mesma para a R., M....
57.O Art. 947º, nº 2 do C.C. exige a (…).
(…)

64.Por fim, e quanto à validade da doação de bens futuros, o Tribunal a quo considerou provado, sob o ponto 12. dos factos assentes, que a M... quis beneficiar a 1ª Ré doando-lhe os valores existentes ou a existir na dita conta bancária, o que esta aceitou;
65.Ora, ainda que, por remota hipótese, que apenas por cautela de patrocínio seadmite, vier a concluir-se que existiu uma doação a favor da R. e que a mesma é válida, ainda assim a mesma sempre deveria ser reduzida ao montante que existia na conta bancária da M... à data de 2/12/2009, na qual a 1ª R. entrou para a respectiva titularidade.
66.E outro não pode ser o entendimento nesta matéria, porquanto dispõe o Art.942º do C.C. que a doação não pode abranger bens futuros, sendo certo que se mostra assente, sob o ponto 7. que nunca a 1ª R. depositou qualquer verba na dita conta bancária.
67.Pelo que, caso venha a entender-se ter existido uma doação válida, a redacção do ponto 12 dos factos assentes deverá passar a ser que M... quis beneficiar a 1ª Ré doando-lhe os valores existentes na dita conta bancária na data de 2/12/2009, o que esta aceitou.
68.Ao decidir, como o fez, a decisão recorrido violou o disposto nos Arts. 942º e 947º do C.P.C., devendo os mesmos ser interpretados com o sentido defendido supra pelos Apelantes.

Concluem pela alteração da sentença recorrida e sua substituição por outra que condene os R.R. na devolução dos valores peticionados.

Ainda que se entenda considerar correctamente julgada a matéria de facto, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, deverá a doação ser julgada inválida e, consequentemente condenados os R.R. na devolução do valores peticionados pelos A.A..

E ainda que a doação venha a ser julgada válida, o que também apenas por mera cautela de patrocínio se concebe, deve a mesma ser reduzida nos moldes supra referida, atenta a nulidade da doação de futuros.
*

Contra-alegam os Réus.

Concluem a peça como segue:

1.A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto não pode confundir-se com a reapreciação sistemática e global da prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso, conforme assinalado na Lei e na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores;
2.Os Recorrentes não cumprem os requisitos de identificar com clareza e exactidão quais os concretos pontos sobre incidiu o erro de julgamento, nem identificam com exactidão os concretos meios probatórios que justificariam diferente decisão, limitando-se a uma mera discordância genérica e subjectiva com o decidido;
3.Estamos, pois, perante uma situação que impõe a imediata rejeição do recurso nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 640º do NCPC, cujos requisitos se montem idênticos aos do artigo 690º-A do velho CPC.
4.A douta sentença recorrida fundamentou exaustivamente o julgamento de facto – decisão de 16 de Julho de 2013 – indicando de forma expressa e minuciosa as razões que levaram à formulação do decidido e enunciando claramente quais os meios de prova que obtiveram credibilidade no espírito do julgador em relação aos diversos factos.
5.O Meritíssimo Juiz elaborou uma apreciação crítica e comparativa do desempenho das várias testemunhas e demais meios de prova tornando transparente o “iter”cognitivo e valorativo que percorreu e que conduziu à decisão, bem como das razões por que decidiu em determinado sentido e não noutro, em termos que revelam que o Meritíssimo Juiz não só estava convencido das opções tomadas, mas se mostra convincente da bondade das mesmas.
6.Não se verifica, portanto, qualquer erro de julgamento quanto à matéria de facto, pelo que douta sentença recorrida não merece censura no que respeita ao cumprimento das normas de direito substantivo e processual aplicável.
7.Os recorrentes arguiram ainda insuficiência da matéria assente no ponto 14 dos factos provados, alegando que à redacção daquele ponto (“14. No dia 04.12.2009 foi constituído o depósito a prazo referido em 6. com o montante de € 147.000,00.”) deveria ser acrescentada a expressão “na mesma conta da falecida G... e com o dinheiro já lá existente”.

8.Também aqui não lhes assiste razão, porque:
a) à data em que o referido depósito a prazo foi constituído, a 1ª Ré já era co-titular da conta da falecida G... - veja-se o que consta do ponto 5. da matéria de facto provada, não impugnado: “5. Em 02.12.2009, a dita conta bancária passou a ter a 1º Ré como segunda titular.”; e b) se os recorrentes pretendem vincar que o montante com que o depósito a prazo foi feito tinha sido depositado pela M..., isso é absolutamente inútil, pois consta do ponto 7. dos factos provados que “7. Nunca a 1ª Ré depositou qualquer verba na dita conta bancária.” .
9.Ou seja, a alteração pretendida pelos recorrentes quanto à matéria provada indicada sob o nº 14. dos factos provados é, numa parte, contraditória com o que consta do nº 5. dos factos provados e, na outra, desnecessária, porque já resulta do que consta do nº 7. dos factos provados.
10.Mas os recorrentes imputaram também à decisão recorrida o vício de omissão de pronúncia relativamente a factos instrumentais, por suposta violação do disposto no artigo 5º nº 2 do CPC, porque entendem que deveria ter sido dada como assente a matéria alegada nos artigos 39 a 41 da contestação sobre a qual se produziu prova abundante em audiência de julgamento e porque essa matéria foi enunciada na fundamentação da decisão recorrida.
11.Em primeiro lugar, não se vislumbra em qual das três possíveis situações previstas no artigo 5º nº 2 do CPC os recorrentes enquadram esta omissão de pronúncia, pois eles próprios recorrentes dizem que questão da intenção da M... de outorgar o testamento a favor da 1ª Ré é matéria que foi expressamente alegada pelos recorridos na contestação, e por isso, o citado nº 2 do artigo 5º do CPC simplesmente não se aplica ao caso.
12.Por outro lado, essa matéria foi expressamente considerada pelo Meritíssimo Juiz, pois que, como os próprios recorrentes alegam, essa matéria foi enunciada na fundamentação da decisão, e a mais não estava este obrigado, pois para que um determinado facto seja considerado numa decisão não é necessário que seja expressamente levado à “discriminação dos factos que considera provados” nos termos previstos no nº 3 do artigo 607º do NCPC.
13.Não existe qualquer disposição legal que imponha ao juiz a obrigação de discriminar os factos instrumentais, estando apenas obrigado a levá-los em conta na fundamentação da decisão, designadamente, especificando as ilações que deles tirou nos termos do disposto no nº 4 deste mesmo artigo.
14.Ora, verifica-se que foi isso mesmo que o Meritíssimo Juiz fez: enunciou o que, nesta matéria foi dito pelas testemunhas e retirou daí ilações que entendeu e que foram decisivas para a sua convicção.
15.Mas, embora sob a qualificação de omissão de pronúncia, a questão que os recorrentes colocam é uma outra: pretendiam que na decisão de facto constasse que a intenção da M... de dar o dinheiro da conta bancária à 1ª Ré seria consubstanciada apenas através do testamento e para valer apenas depois da morte daquela; ora, isto é, mais uma vez, uma mera discordância dos recorrentes em relação ás ilações que o Meritíssimo Juiz retirou da prova produzida sobre esta matéria de facto e não do vício de omissão de pronúncia, que não existiu.
16.A douta sentença recorrida não merece, pois, censura no que respeita ao cumprimento das normas legais quanto á forma como apreciou e decidiu as questões da matéria facto.
17.Não obstante os esforços envidados pelos Recorrentes, também não podem, legitimamente, suscitar-se dúvidas sobre a existência e validade da doação feita à Recorrida, conforme a douta sentença abundantemente fundamenta de facto e de direito.
18.A atribuição patrimonial, geradora de um enriquecimento, apresenta-se correntemente nas doações sob a forma de transferência, do doador para o donatário, de um direito de propriedade ou e outro direito real, mas pode transferir-se por doação um direito de crédito, como acontece no caso dos autos.
19.Por outro lado, verifica-se a vantagem patrimonial ou enriquecimento do património da donatária, característico da doação, à custa do património da doadora, sem qualquer correspectivo de natureza patrimonial por parte desta, ou seja, foi uma atribuição patrimonial gratuita, feita em total espírito de liberalidade por parte da doadora, de forma espontânea e sem ser determinada por necessidade ou de dever – o animus donandi.
20.As declarações e a conduta da falecida M..., nas circunstâncias em que ocorreram, impõem a conclusão de que para ela a alteração da movimentação da conta a favor da Recorrida terá sido o mesmo que entregar o dinheiro a esta, sendo essa a sua intenção.
21.Está, pois, provada a verificação dos três requisitos exigidos no artigo 940º do Código Civil para que no caso dos autos se conclua, como o fez a decisão recorrida, que existiu uma doação.
22.Os Recorrentes pretendem também pôr em causa a validade dessa doação.
23.A mera constituição de um depósito bancário em nome conjunto do doador e de uma ou mais pessoas, para que funcionem como depositantes solidários, não representa necessariamente uma doação, enquanto se não conhecer a intenção do dono do dinheiro depositado” como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela.
24.No caso sub judice a intenção da falecida M... transparece abundante e claramente da matéria de facto, no sentido de que, ao incluir a Recorrida na titularidade da conta bancária, atribuindo-lhe natureza solidária teve o propósito de beneficiar esta, com efeitos imediatos, transferindo para ela o direito de dispor dos montantes depositados, como sua proprietária, em resultado do longo, apertado e afectuoso relacionamento que mantinham.
25.Essa doação feita pela falecida M... não se confunde com a intenção por esta manifestada de fazer um testamento, pois este destinava-se a dispor especificamente de outros dos seus bens, designadamente do apartamento onde morava a favor da Recorrida, e de outros bens para outras pessoas; trata-se de dois momentos diferentes no tempo e no processo volitivo da falecida M... tal como ela o exprimiu, não só de acordo com a narrativa dos depoimentos e declarações, mas também pela sua própria actuação junto do Banco depositário da conta e do cartório notarial para marcar o testamento.
26.A aceitação da doação conclui o processo constitutivo da doação, conforme decorre do artigo 945º nº 1 do Código Civil.
27.Nos termos previstos no artigo 217º nº 1 do mesmo Código, a declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelem.
28.Ora, a factualidade constante da douta sentença recorrida e que resulta da prova produzida não permite seriamente duvidar que a atitude da donatária, ora Recorrida, foi a de aceitação: não só manifestou verbalmente à donatária a sua aquiescência expressa mas, além disso, exprimiu a sua aceitação ao subscrever os documentos bancários que lhe atribuíram o direito aos montantes depositados.
29.Este entendimento tem acolhimento não só na disposição legal indicada como na posição doutrinal defendida por Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103º, pág. 95, e por Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II vol., pág. 132 quanto à verificação da aceitação tácita.
30.Porém, mesmo que se entendesse que a factualidade não configurava uma aceitação, o que não se concebe, ter-se-ia concretizado a tradição para a donatária, nos termos do disposto nos artigos 947º nº 2 e 945º nº 2 do Código Civil, que são objecto de interpretação pacifica no sentido de que a tradição não tem de ocorrer em simultâneo com a declaração do donatário.
31.Nos termos da alínea b) do artigo 1263º do Código Civil, a posse adquire-se pela tradição material ou simbólica da coisa efectuada pelo anterior possuidor.
32.Como ensina A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, (Reprint 1979), ed. LEX, 1993, pág. 524 e 525, na “traditio ficta”, ou tradição simbólica não existe qualquer acto material sobre a coisa; a tradição efectiva-se, simplesmente, pela entrega de documentos que ponham a posse da coisa à disposição do transmissário, falando-se por isso em “traditio per chartam”.
33.E Supremo Tribunal de Justiça adoptou posição idêntica quanto ao modo de tradição de depósitos bancários nos acórdãos de de 27/05/2003, Proc.º 03B1251 (Conselheiro Abílio Vasconcelos), in www.dgsi.pt; de 03/06/2003, Proc.º 03A1615 (Conselheiro Silva Salazar), in www.dgsi.pt; de 03/03/2005, Proc.º 04B3711 (Conselheiro Bettencourt de Faria), in www.dgsi.pt; de 06/10/2005, Proc.º 04B2753 (Conselheiro Pereira da Silva), in www.dgsi.pt; de 18/12/2008, Revista nº 3759/08 – 6ª Secção (Conselheiro João Camilo), in Sumários do STJ (Boletim).
34.Também esta orientação foi adoptada nos Acórdãos da Relação do Porto, de 21/05/1992, Recurso 280/92 - 3ª Secção (Desembargador Pais de Sousa), sumariado no BMJ nº 417, pág.821, e de 19/09/2011, Proc.º nº 82/19999.P1 (Desembargador António Mendes Coelho), Processo nº82/1999.P1, in www.dgsi.pt; e no Acórdão da Relação de Coimbra de 29/01/2013, Proc.º 1504/09.5TBFIG.C1 (Desembargadora Sílvia Pires), in www.dgsi.pt.
35.Em face factualidade que enforma a situação sub judice, do regime legal aplicável e da jurisprudência referenciada, tem de se considerar que a falecida M... doou o dinheiro à Recorrida; que se verificou a tradição da doadora para a donatária; e que, portanto, face ao disposto no art. 947º nº2 do Código Civil, tal doação é válida.
36.Os Recorrentes alegam a natureza de coisa futura da doação; mas sem razão alguma, em face do disposto no artigo 211º do Código Civil , pois no caso sub judice a falecida M... transmitiu para a Recorrida um direito actual de que era titular e não coisas, bens ou direitos de não fosse titular ao tempo da declaração negocial.
37.Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição pág. 243, não deve, porém, confundir-se a doação de bens futuros com a doação, não de bens, mas de um direito que tenha por objecto coisas ainda não existentes no património do doador. As coisas podem ser futuras, mas o direito transmitido é actual.
38.Por outro lado, como se entendeu no Acórdão do STJ de 03/06/2003, acima referenciado, quando se trate de dinheiro que seja depositado num estabelecimento bancário, a tradição pode ser feita sem consistir na colocação de qualquer quantia nas mãos do donatário, desde que simplesmente seja colocada na sua disponibilidade, ainda que condicional no que respeite ao seu montante.
39.A propósito da validade das doações de valores em depósito, veja-se ainda o parecer da Prof. Dra M... Mimoso e do Mestre Ricardo Alexandre Cardoso Rodrigues, publicado na Revista da O.A., ano 74, vol. II, Abr./Jun. 2014, pág. 443, agora distribuída.
40.Assim, não tem qualquer fundamento a apelação dos Recorrentes, pelo que, caso não seja rejeitada, terá de improceder, sendo-lhe negado provimento.

Terminam, dever:
a) Ser o presente recurso rejeitado liminarmente;
Ou, caso assim se não entenda,
b) Ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
*

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II- ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

Pelas conclusões das alegações do recurso se afere e delimita o objecto e o âmbito do mesmo.
“Questões” são as concretas controvérsias centrais a dirimir.

III - OBJECTO DO RECURSO

Ao presente recurso são aplicáveis as disposições do C.P.C. introduzidas pela Lei nº 41/2013, sem prejuízo da conservação dos actos processuais pretéritos praticados antes da sua entrada em vigor – 1-9-2013- Cfr. Rui Pinto in Notas ao CPC, Coimbra Editora, 1ª ed., 2014, pág. 10.

As questões que se colocam ao julgador através da presente apelação são:

I- saber quais os factos a ter em conta.
II- saber se a sentença recorrida padece de omissão de pronúncia – conclusões 48 a 50.
III- decidir do mérito da causa.
IV- mérito do recurso

1ª questão:

A decisão da primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada nas situações previstas no artigo 662º do CPC, na redacção da Lei nº 41/2013, nomeadamente se do processo constarem todos os elementos probatórios em que se baseou a decisão recorrida quanto à matéria de facto em causa, ou se, tendo ocorrido, como ocorreu, gravação dos depoimentos prestados, tiver havido impugnação nos termos do artigo 640º da decisão com base neles proferida.

O uso dos poderes de modificabilidade da decisão de facto destina-se a reapreciar a prova sobre os concretos pontos impugnados, sem deixar de permitir que, no caso de formação de uma nova convicção, a Relação altere a decisão de facto. A Relação não “remenda” a decisão proferida sobre a matéria de facto, mas “integra” os novos pontos provados ou não provados.

Por outra banda, a modificação da decisão de facto impõe-se agora mais veemente ao Tribunal superior, mesmo que não objecto de impugnação pelas partes, consoante o disposto no artigo 662º, 1 e 2, a) e b) do CPC nos casos em que o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova (artigos 371º, 1 e 376º, 1 do CC), quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou do processo (artigos 358º do CC e 484º, 1 e 463º do CPC), ou acordo estabelecido nos articulados sobre determinado facto (artigo 574º, 2 do CPC), optando por se atribuir prevalência à livre convicção formada sobre outros elementos probatórios. Ou quando tenha sido provado certo facto com base em meio de prova claramente insuficiente, situação em que a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra do direito probatório material (artigo 364º, 1 do CC). São aplicáveis aos acórdãos, as regras sobre a elaboração da sentença onde estas possibilidades encontram esteio legal – artigos 607º, 4 e 5, 663º e 679º do CPC. Cfr. António Geraldes in Recursos no NPC, Almedina, 2013, pág. 115, 225 e 226.

Analisando.

O espaço jus-conceptual acabado de circunscrever visa colocar as matérias no devido lugar, fornecendo o necessário enquadramento para as soluções que cabe tomar. 
*

Os Apelados sustentam que o recurso dos Autores deve ser liminarmente rejeitado por implicar a reapreciação sistemática e global de toda a matéria de facto, o que na sua óptica contraria o disposto no artigo 640º, 1 do CPC.

Aduzem que: a matéria de facto elencada sob os nºs 1 a 11 foi a alegada na petição inicial e ficou provada por documentos ou por falta de impugnação; e os outros factos que foram objecto de produção de prova em audiência foram os alegados na contestação, e que foram vertidos sob o nºs 12, 13 e 14 da matéria provada na douta sentença recorrida, são objecto de impugnação pelos recorrentes.

Tal não corresponde à verdade.

Dos factos alegados na petição inicial, os Réus na contestação apenas aceitam os dos artigos 1,2,3 e 5, impugnando todos os demais, como se vê dos artigos 1º e 2º da contestação, rotulando todos os demais factos alegados como falsos ou deturpações da realidade.

Os factos da petição inicial aceites pela contraparte correspondem apenas aos factos dados como provados nos pontos 1 a 5.

Dos factos dados como provados de 6 a 11, só os deste último é a provar por documento autêntico.

O recurso dos Autores não implica a reapreciação sistemática e global de toda a matéria de facto, uma vez que só os factos 1 a 5 e 11, dos provados, é que resultam provados por documento e/ou acordo das partes, sendo que os factos 6 a 10, dos provados, resultaram do concurso da prova produzida, e esses, em sede de recurso, não vêem a respectiva decisão impugnada.

Por outro lado, no corpo das suas alegações os Recorrentes não se limitam a manifestar discordância com a convicção do julgador do 1º grau, opondo a esta, a sua. Fundamentam, defendem a credibilização de uns depoimentos em relação a outros, apoiando-se em trechos precisos.

Não é prudente concluir, perante a impugnação da decisão da matéria de facto, e o modo concreto como os Apelantes impugnam, e aprioristicamente, como pretendem os Apelados, que a falecida “podia ter tido umas conversas com uns e outras conversas com outro conteúdo com outros” – porque isso implica que a própria reapreciação da matéria de facto tenha lugar.

Como saber se as conversas eram iguais ou diferentes com diversas pessoas, sem ouvir as gravações?

A resposta é negativa.

A impugnação da decisão da matéria de facto não pode ser recusada mesmo que a fundamentação da respectiva decisão revele que “o Meritíssimo Juiz mostrou não só estar convencido das opções tomadas, mas se mostra convincente da bondade das mesmas”.

Em suma: os Apelantes cumprem os ónus do artigo 640º do CPC.
O recurso sobre a decisão de facto não é assim de rejeitar liminarmente ou indeferir aprioristicamente. É de aceitar.

Os herdeiros habilitados da Autora inicial, no seu recurso da decisão da matéria de facto, pretendem que na Relação se alcance a convicção negativa relativamente aos pontos 12 e 13, onde se deu como provado: 

12. M... quis beneficiar a 1ª Ré doando-lhe os valores existentes ou a existir na dita conta bancária, o que esta aceitou;
13. Nesta decorrência, a 1ª Ré passou a ser a segunda titular da dita conta bancária nos termos referidos em 5., à qual ambas, nessa data, lhe atribuíram a natureza solidária.

No tocante ao ponto 14 pretendem que o mesmo seja acompanhado de “factos Instrumentais”. Nesse nº 14 deu-se como provado: No dia 04.12.2009 foi constituído o depósito a prazo referido em 6. com o montante de € 147.000,00.
Cfr. conclusões 44 a 47.

A prova oral foi gravada. As pessoas ouvidas identificam-se pela seguinte ordem. Relativamente a cada far-se-á um pequeno relato do depoimento, no relevante para o objecto da impugnação, seguida da apreciação que couber.

- M...

Amiga dos Autores de há muitos anos. Não conhece os Réus.

Era visita de casa da Autora inicial, A.... Visitavam-se. Conviviam. A partir de 2009-2010 a amizade intensificou-se. A A... era enfermeira.

Ouvia falar na Dona G.... Não a conhece. A A... falava da sua prima – a Dona G.... De se juntarem. De conviverem. Faleceu o pai da A.... Mais tarde a A... disse à testemunha que a prima G... estava doente. Disse-lhe (em 2011) que estava a pensar em ir buscá-la, para a auxiliar. Mas a A... também estava doente (desde 2010). Já não pôde fazer isso. Começou a ter de tratar de si.

Havia contactos telefónicos entre a A... e a G..., mesmo durante as doenças das duas.

Esclerose lateral amiotrófica- a A.... Toda a parte muscular dela ficou atrofiada. Entrou numa depressão muito grande. Isolou-se completamente. A G... morre em Abril de 2012. Nessa altura a A... estava em tratamentos (no Continente).

A Dona G... tinha um namorado.

- Depoimento irrelevante para a impugnação factual em análise.

- S...

Conhece os Autores habilitados. Conhecia a A..., como mãe e esposa dos ora Autores. Visitava a casa dela. Não conhece os RR.
Conheceu a Dona G..., e conheceu a Dona I..., que era tia da Dona G... e da Dona P.... Dona G... e Dona I... viviam no mesmo prédio. Conheceu estas por via de conviver com a N..., ora Autora habilitada, estudante como a testemunha (em Ponta Delgada). Isto até 2007.

A Dona I... faleceu em 2007.

A A... continuou a vir à Ilha Terceira. Era a testemunha que a ia buscar ao aeroporto. Vinha em trabalho de formação profissional. Isto até 2009-2010. A Mãe da N..., A..., ficou doente. Esclerose lateral amiotrófica. Deixou de andar. Isolou-se. A partir da data do diagnóstico da doença a testemunha apenas falava com a A... pelo facebook.

Soube que a Dona G... ficou doente.

A A... e a G... tinham uma relação de amizade, normal.

Não sabe quem é a Ré.

Nunca viu a Ré nas casas da Dona I... e da Dona G.... Nunca lá viu a Ré. Não a conhecia.

A Dona G... era uma pessoa instruída, tinha sido funcionária pública. Está convencida que sabia o que era uma doação.

A Dona G... era madrinha da Autora N... e da M... (Ré).

-Depoimento irrelevante para a impugnação factual em análise.

- N..., médico a trabalhar em Inglaterra.

Conhece os Autores. É casado com a N.... O Autor H... é sogro da testemunha. A A..., era enfermeira, e a testemunha era seu médico já há muito tempo. Não conhece os RR.

Conheceu as tias da N... -  a Dona I... e a Dona G... (pelos anos de 2006-2007).

Não conhece a Ré. Nunca a viu em casa das Dona I... e da Dona G....

Frequentava estas casas quando namorava a N..., estudava nos Açores ou vinha à Ilha Terceira ( o que fazia mensalmente ).

Quando a sogra faleceu, a testemunha escreveu para o Banco de Portugal a pedir os saldos bancários da falecida. No Banif havia um saldo bancário. Esse dinheiro pertencia à Dona A.... A Dona G... tinha uma boa situação, tinha trabalho, tinha herdado tudo da I.... A I... tinha deixado tudo à G....

A Dona G... trabalhava na Segurança Social. Era pessoa esclarecida. Já tinha sido beneficiária de um testamento. Sabia o que era um testamento. (Mas não se pergunta à testemunha se a Dona G... sabia o que era uma doação). Teve tempo para deixar por morte o que entendesse a alguém, se o pretendesse fazer. 

Nunca ouviu falar da Dona G... ter feito uma doação à M... (ora Ré).

A conta no Banif era alimentada apenas com dinheiros da Dona M....

Desta conta saiu uma verba para a conta da Ré e depois saiu uma verba da conta desta para a conta da Autora A... (metade).


-Depoimento pouco relevante para a impugnação factual em análise.

Depoimento atinente sobretudo aos anos 2006-2007.

- A...

Conhece a Ré deste a infância desta. À amiga da mãe da Ré, de nome F..., de há muitos anos. Não frequenta a casa dos Réus. 

Conheceu a Dona G....

Não conhece os ora Autores.

Era amiga da Dona G... desde há 50 anos. Fizeram o 2º ciclo juntas. A testemunha trabalhou com a mãe da G....

Conheceu a Autora – A..., através da M....

A Dona G... tinha um namorado. Encontravam-se quase todos os dias. O namorado passava grande parte do dia com ela. 

A Dona G... era muito amiga da mãe da M.... Viviam na mesma rua. Quando a M... nasceu passou a ser tudo para a Mãe e para a Dona G....

Conviviam muito, a Dona G..., o namorado da Dona G..., a M.... A M... frequentava a casa da Dona G... todos os dias, desde que esta era pequenina. Gostavam muito de crianças.

Com a doença da Dona G..., a M... passou a ajudar a Dona G..., a quem tratava por avó.

A Dona G... tinha duas empregadas, ficou imobilizada, tinha ajuda quer da testemunha, quer da Ré, e outras.

Relacionamento entre a Dona G... e a A..., da Ilha Terceira. Houve uma altura em que o relacionamento teve uma ruptura total (aquando da morte da Dona I...). Mais tarde houve outra ruptura, quando a N... esteve a estudar cá.

Também refere que a A... queria que a Dona G... fosse viver para a Ilha Terceira. Mas a A... já estava igualmente doente.

Para a testemunha, Dona G... e A... tinham uma convivência esporádica, não havia grande proximidade.

A M..., quando a Dona G... faleceu, tratou de tudo. Os familiares da Ilha Terceira, isto é os Autores, não vieram ao funeral da Dona G....

Só vieram na semana seguinte, semana da missa do 7º dia. Não foram à missa mas mudaram a fechadura da casa da falecida, tomando posse dela.
 
A testemunha refere que a Dona G... várias vezes lhe disse (Abril de 2011) que por morte queria deixar as jóias da família aos familiares da Ilha Terceira, isto é à prima A.... Bem assim uma mobília que tinha mandado restaurar. Não assim o apartamento onde vivia. Tudo o que fosse dela, dela mesmo, não da família, não iria para a família da Ilha Terceira, mas sim para a Ré M....

Falou-se até em diligenciar por um testamento onde dispusesse nesse sentido – (21:32). Para a M... ia o apartamento (com algum recheio) que possuía e o dinheiro.

Foi adiando ( a testemunha chegou a falar com uma funcionária do Cartório de nome Hélia ) o testamento, por isto e aquilo, e entretanto a Dona G... começou a ficar muito doente, ficou hospitalizada, e não mais recuperou. A testemunha também teve receio em abordar o assunto da outorga do testamento com receio de ser interpretada de estar a adivinhar a morte da amiga.   

A testemunha refere que a Dona G... tinha um apartamento seu, herdou depois o da tia I..., vendeu o dela e ficou com o da tia. O dinheiro da venda depositou-o na conta que tinha com a M.... (23:28). Várias vezes a Dona G... disse à testemunha que a M... movimentava a conta, geria a vida financeira da Dona G..., e que, quando morresse, o dinheiro que lá estivesse ficava para a M....

A relação da Dona G... com a M... era de mãe para filha. Havia uma grande confiança entre as duas.

Não sabe pormenores da entrada da M... na conta da Dona G....

Explica melhor: pelo que a Dona G... disse à testemunha o dinheiro da conta bancária era da M.... A Dona G... tinha o usufruto (26:16) do dinheiro enquanto precisasse dele. O dinheiro servia para as despesas pessoais, com a empregada, alimentação e saúde, fisioterapia, internamentos.

Até porque a Dona G... precisava de dinheiro para investir. Vendia produtos da Avon – (27:09).

A M... geria aquele dinheiro (26:16).

Porque precisava de quem lhe gerisse o dinheiro? Porque estava muito fragilizada, não saía de casa, ou saía muito pouco, tinha dificuldades em atravessar uma porta, não lhe apetecia ir à rua.

Era muito desinteressada em sair. 

-Depoimento agora de testemunha indicada pelos Réus, que nos reporta os factos vistos de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores, local onde vivia a M.... Podemos ver que a Ré frequentava a casa de M... desde pequenina, durante o dia. Não à noite.

M... tinha pessoas amigas, namorava um senhor que a acompanhava diariamente, queria muito à ora Ré.

Teve oportunidade e tempo para lavrar testamento, disso tendo dado nota à testemunha, mas por isto ou aquilo sempre foi adiando, até que internada mais uma vez, já não saiu do hospital.

Os pormenores da entrada da Ré na conta da M... não foram abordados.

Não se percebe bem como a M..., se por um lado linha muitas dificuldades de mobilização, e nem sequer saia à rua ( a não ser para se tratar ), por outro, precisava de “quem lhe gerisse os dinheiros”, ou ainda vendia produtos da “Avon”. Afinal a gestão dos dinheiros passava apenas por levantar e depositar, uma vez que pelos elementos do processo, o grosso das poupanças estava a prazo.

Não se sabe porque a testemunha apenas refere a intenção de M... de dar o dinheiro e o apartamento à Ré, deixar as jóias e uma mobília à prima A..., e nada diz sobre a intenção de fazer algo do género em relação ao namorado e outras pessoas amigas que com ela conviviam diariamente.

Se a M... queria deixar, dar, entregar… o apartamento à Ré, podia tê-lo feito quando herdou o da tia I... e vendeu o que tinha… A Dona I... faleceu em 2007.

Um testamento é mais fácil de lavrar, em termos meramente materiais, que a celebração da compra e venda de um imóvel…

Não está explicado de que modo é que a M... pretendia deixar à Ré um apartamento e o dinheiro da conta sem testamento ou outra disposição de última vontade documentada.
         
-Depoimento a ter em conta mas cujo sentido, para se firmar, carece de mais prova.

- M...

Amiga da M... desde os tempos de escola. Conhece a Ré por ser afilhada da M.... Conhece os pais da Ré. Não tem relacionamento com a Ré.

Não conhece os Autores. A G... nunca lhe falou deles.

Foi contactada pela testemunha Aida, ouvida antes, a pedido da M..., para servir de testemunha num testamento que a M... queria fazer. Em finais de 2011, depois de sair da clínica. Disponibilizou-se junto da testemunha Aida e junto da M.... A testemunha até forneceu à M... das datas da ausência da testemunha de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, para que a marcação não coincidisse com elas. A M... disse que já tinha tudo pronto. Pôs à vontade a testemunha. Disse-lhe que quando a testemunha voltasse do Continente ia tratar do assunto.

A M... queria fazer um testamento a favor da Ré. Os netos da M... eram os filhos da Ré.

A mãe da M... vivia perto da M....

A M... tinha um namorado.
 
A testemunha passou a visitar mais frequentemente a M... depois desta ficar doente.

Nada sabe da conta bancária aberta em regime de movimentação solidária.

Um dia a M... disse à testemunha, um dia que eu falte isto fica tudo para a M.... E nessa altura ainda não se falava do testamento. (Portanto, antes de 2011).

Mas o testamento não foi marcado, a M... piorou, foi internada, ficou nos cuidados intensivos, e faleceu, intestada.

Não sabe onde a Ré trabalha. Não sabe se trabalha num banco ( a intervenção do Sr. Juiz ).

A M... disse que o testamento era a favor da Ré. Não sabe se a M... tinha dado à Ré alguma coisa antes dessa conversa (2011).

Não presenciou a relação entre a M... e a Ré. Sabe dela pelo que a M... lhe dizia.

-Depoimento revelador de que a M... pretendia celebrar um testamento a favor da Ré. A testemunha foi solicitada para testemunha nesse acto. Forneceu à M... as datas em que estaria ausente da Ilha de São Miguel. A testemunha ausentou-se duas vezes. O testamento não foi marcado. A M... sabia bem o que era um testamento e com quem havia de contactar para o realizar. Já tinha estado envolvida no testamento da tia I.... Entretanto foi internada. A testemunha supõe que durante este internamento último a M... não estava em condições de emitir a declaração no testamento porque ficou nos cuidados intensivos.

No mais revela saber pouco. Não se relaciona com a Ré, não sbe onde esta trabalha, não assistia ao convívio entre a Ré e a M....

- M...

Era empregada da Dona G.... Conhece a Ré lá de casa. Conhece o Réu, mas sem grande convivência com este. Trabalhava a dias. Fê-lo nos últimos cinco anos até ao falecimento da Dona G.... Não conhece a prima da Ilha Terceira (os Autores).

Conversava muito com a M.... Eram muito amigas. A Ré era a “filha” dela. A testemunha até pensava mesmo que era filha da M.... Os filhos da Ré eram os “seus netos”.

A M... tinha um namorado.

A M..., já doente, precisava de apoio. Tinha doença oncológica. A testemunha, nesses trabalhos, tinha a ajuda da Ré.

Ouvia a Dona G... falar com outras pessoas. Falavam as duas.

A M... ( em 2011 ) disse à testemunha que o dinheiro que tinha já o tinha dado à Ré.  E que faltava outorgar um testamento a favor da Ré para lhe deixar o resto- o apartamento e as outras coisas. (10:37).

Ouviu falar do testamento à Dona G... em conversas tidas com a Dona A... e a Dona V..., aqui testemunhas (11:03).

Nunca foi paga por transferência bancária. Recebeu o vencimento sempre em dinheiro. 150 € por semana.

Mas na documentação bancária há uma transferência bancária a que foi dada a designação de “ordenado de M...”…

A testemunha não tem conta bancária. Só o seu marido tem. 
 
No final dos trabalhos é ouvida de novo relativamente ao testamento da Dona I... para a M... junto a fls. 146 e ss. Nunca viu o testamento. Sabe do seu teor. Fala de telefonemas da M... à Prima A... para que esta viesse buscar os bens deixados por morte da tia I.... Até de um ultimato, quando o apartamento estava a ser vendido: ou vêm buscar, ou eu ponho os bens na rua. Veio uma empresa, contratada pelos “Primos da Terceira” que embalou as coisas, as recolheu e transportou.

-Depoimento algo induzido pelas perguntas da Ex.ma Mandatária que procedeu ao interrogatório, mas igualmente revelador de alguma naturalidade e espontaneidade embaraçantes. É o caso das transferências bancárias designadas como de salários das empregadas domésticas da Dona M..., que … afinal recebiam em numerário e não por transferência bancária. Certo como o Sr. Juiz explicou ser a designação da responsabilidade de quem efectua a transferência, a partir daí, cabe ao julgador extrair as conclusões que houver a tirar.

A fls. 143 os Réus esclarecem que as importâncias de 250 € e 150 € que a Ré transferiu, em 24 e 27 de Abril de 2012, como se vê do doc. nº 4 junto com a pi, o foram para uma conta que tem como titular a própria Ré, conta essa para onde foram igualmente efectuadas as transferências da totalidade do saldo da conta da falecida M....

- M...

Conhece a Ré. Amiga desde infância. Eram vizinhas. Conheceu a M.... Sabe dos Autores por serem primos da M.... A A..., inicial Autora, de vez em quando vinha a casa da M.... A testemunha conhece-a dessas visitas.

Fala da relação da Ré com a M.... A M... tinha uma adoração por aquela afilhada. Era a sua filha.

Acompanhou a fase da doença da M.... Faleceu em 2012. Em 2009 ela estava bem.

A M... era bastante clara, dizia muitas vezes a mesma: os seus bens eram todos para a afilhada Ré (9:10). Só não entravam neste lote uma mobília e umas jóias da tia, que pretendia dar à Prima A....

A M... disse uma vez, numa festa de família, à testemunha  que ia tornar a Ré co-titular da sua conta. Que aquele dinheiro era para a M.... Mais tarde disse que já tinha falado com a sua gestora de conta, já tinham tornado a Ré titular da conta dela para a Ré ficar com aquele dinheiro. E que estava bastante satisfeita. Não sabe o que aconteceu ao nível de documentação (10:37).

A M... falou à testemunha na intenção de outorgar um testamento (11:00). Foi sempre adiando talvez, começou a ficar doente… a doença, hospital, mais debilitada – (12:24). A M... de precisasse de dinheiro também podia movimentar a seu favor a conta em regime de movimentação solidária com a Ré (37:37). Não é bancária. Não sabe como isso se processa.

-Depoimento que vai no sentido dos anteriores. Mas sem profundidade acrescida ao que já vem sendo dito.

- N...

Autora em virtude da habilitação de herdeiros por morte de A..., mãe da depoente.

Presta declarações de parte.

Fala do relacionamento da mãe da depoente e da Ré, uma vez que durante algum tempo e enquanto estudante -1999 e 2007- esteve na Ilha Terceira e viveu e inclusivamente chegou a viver com a tia I.... Quanto estava com a tia I... estava com a M....

-Depoimento que nada acrescenta ao esclarecimento da matéria impugnada. Discorre sobretudo de “coisas de família”. Percebe-se o ambiente e o quotidiano familiar das pessoas envolvidas.
 
- A...

Em 14 de Maio de 2012 a Ré transferiu para uma conta bancária titulada pela inicial Autora o montante de € 92.544,43, isto é sensivelmente metade do que havia retirado da conta com o nº 30753541 em 2 de Maio de 2012. Cfr. documentação bancária de fls. 9. A Depoente refere que esta transferência se baseia no entendimento de que como a conta era solidária. Metade do saldo lá existente pertencia a cada uma das titulares – M... e Ré.

Refere-se a contas bancárias. Refere-se ao relacionamento entre a mãe da Depoente e a M.... A Madrinha da Depoente, M..., nunca lhe falou da Ré, M....

Só conhece a Ré por fotografia, e agora viu a senhora no Tribunal.
A M... – em 2007 –, já depois do falecimento da tia I..., diz à Depoente que quando ela falecesse tudo ia para a mãe da Depoente. Nunca ouviu falar de doações, de testamento.
     
-Depoimento que nada acrescenta ao esclarecimento da matéria impugnada.

- M...

Ré nos autos. Presta declaração de parte.

Fala da relação muito próxima entre a sua madrinha, Dona G..., e a Depoente, e bem assim com os filhos desta.

A M..., depois do falecimento da tia I..., vendeu o apartamento que herdou dessa tia, e passou a ter algum dinheiro. Falou com a Depoente, dizendo que pretendia salvaguardar a Depoente, que pretendia que a Depoente não passasse necessidades. A Depoente tinha tido um filho nessa altura… Sempre que a depoente precisasse poderia usar o dinheiro (06:07).

A M... falou com a sua gestora de conta no Banif –(06:44). A Depoente trabalha no Banif, mas na rectaguarda. A actividade da Depoente não tem a ver com a actuação ao balcão.

A solução que a M... encontrou com o gestor de conta foi a inclusão da Depoente na conta.

A Depoente aceitou (07:38).

A M... disse depois à Depoente: o tema do dinheiro está resolvido (07:41 a 07:43, o testo eu vou resolver.

Estas declarações da M... não surpreenderam a Depoente.

A M... estava a referir-se ao resto dos bens dela. A Depoente via a M... como mãe, a mãe dela como avó.

Isto aconteceu em Dezembro de 2009.

Quando a M... estava bem de saúde, a M... é que movimentava a conta e geria a conta.

Em Março de 2011 a M... caiu, partiu o colo do fémur, deixou de conduzir. Ficou internada num hospital. Foi depois para uma clínica. Foi depois para casa. Já não se podia movimentar. 

A partir de Março de 2011 foi a Depoente que passou a movimentar a conta, pagamento das despesas que se apresentavam - às empregadas, fisioterapia, etc. A crédito a conta era alimentada apenas pela reforma da M... (13:07). A Depoente nunca colocou dinheiro seu nessa conta (13:12) até ao fim da vida da M.... A débito, era a Depoente que movimentava a conta.

A situação das transferências a que se refere fls. 143 é explicada pela prática da Depoente transferir o dinheiro, via banca electrónica, da conta solidária que tinha com a tia, para a sua, e depois entregava o dinheiro à tia (14:30). Assim evitava na operação a utilização de dois cartões, com o consequente pagamento de duas anuidades.

Até ao falecimento da tia, a Depoente via o dinheiro da conta como seu, da Depoente. A Depoente, como nunca precisou do dinheiro, nunca o levantou. (15:30)

Após a morte da M..., a Depoente transfere o saldo da conta solidária para uma pessoal sua, porque entendia que aquele dinheiro era da Depoente (20:03).

Mas depois recebeu um contacto da Autora, A..., a falar do saldo da conta bancária.

Informou-se no banco o que se passava nestas situações sobre a conta solidária. Foi contactada por um Senhor Advogado da A..., que referiu o mesmo teor da informação recebida no Banif. A Depoente não pretendia entrar em conflito com a A... no tribunal. Transferiu metade do valor que havia levantado, para uma conta da Autora. Nem exigiu recibo. Passado pouco tempo foi surpreendida com esta acção, estando a A... patrocinada já por uma Senhora Advogada.

É-lhe perguntado sobre qual o momento em que o dinheiro da conta passou a ser seu, se no momento em que a Depoente é associada à conta, ou com a morte da M..., e a Depoente responde que, de acordo com a declaração da M..., o dinheiro era da Depoente a partir do momento em que a Depoente se associou à conta (23:00).

O dinheiro está à tua disposição. É teu. Foi o que a M... disse.

Questionada sobre um cenário em que ainda em vida da M... a Depoente levantava o dinheiro na sua totalidade, responde: entre as duas havia uma relação de grande proximidade. A Depoente nunca faria isso à madrinha e a madrinha sabia disso. (23:31)

Perguntada porque razão a M... não optou por transferir todo ou parte do dinheiro para uma conta de que a Depoente fosse titular, a Depoente respondeu que isso aconteceu porque a M... poderia também precisar dele. (24:22)

Foi a modalidade que lhe aconselharam no banco. Foi a M... que disse ao Depoente.

É casada com o Réu no regime supletivo de comunhão de adquiridos.

- Relevante.

Temos então, resultar da prova produzida e da documentação dos autos:

M...  faleceu com 66 anos a 30 de Abril de 2012 no estado de solteira. Residia em Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores. Era pessoa instruída. Tinha sido funcionária pública (era reformada da Segurança Social). Era madrinha da Autora N... (filha da inicial Autora, A...) e da M... (Ré).

Era pessoa muito doente (foro oncológico).

Morreu intestada, sem descendentes, ascendestes, ou qualquer outra disposição de última vontade.

A inicial Autora, A..., era prima da M.... Vivia em Praia da Vitória, Ilha Terceira, Açores. Enfermeira de profissão.

A partir de 2010 a A... ficou doente. Foi-lhe diagnosticada esclerose lateral amiotrófica. Toda a parte muscular dela ficou atrofiada. Entrou numa depressão muito grande. Isolou-se.

M... e A... eram amigas. Contactavam pessoalmente ou por telefone. Visitavam-se. O relacionamento tinha altos e baixos. 

De acordo com a habilitação de herdeiros de fls. 4 e ss a herdeira universal da M... é a A....

A... faleceu a 5 de Outubro de 2013 no estado de casada com H... Os herdeiros habilitados da falecida – marido H... e filhas N... e A... – sucederam-lhe na posição de Autora na acção.

M... deixou bens. Entre eles o saldo de uma conta bancária aberta na agência do Banif sita na Av. Antero de Quental, de Ponta Delgada. 

Tal conta com o nº 30753541 foi aberta pela M... em 12 de Julho de 2005. Em 2 de Dezembro de 2009 passou a ter como 2ª titular a Ré, M..., sendo a sua forma de movimentação solidária. A ficha de assinaturas está a fls. 34 verso a 35 verso.

A conta à data do óbito da M... tinha em depósitos à ordem € 1.278,66 e em depósitos a prazo € 186.554, 12 – cfr. documentação bancária de fls. 6 e 7.

As verbas de tal conta eram da M..., provinham exclusivamente das suas poupanças e pensão de reforma. A Ré nunca colocou na conta qualquer valor seu. Isso mesmo reconheceu a Ré em declarações de parte.

A 2 de Maio de 2012, dois dias depois da M... falecer, a Ré M... transferiu dessa conta para uma outra com o nº 984064543010 de que era titular no Banif o montante de € 185.696,58 e em 11 de Maio de 2012 transferiu para essa mesma conta o remanescente de € 4.512,29, ficando assim aquela a zero.

Em 14 de Maio de 2012 a Ré transferiu para uma conta bancária titulada pela inicial Autora o montante de € 92.544,43, isto é sensivelmente metade do que havia retirado da conta com o nº 30753541 em 2 de Maio de 2012- cfr. documentação bancária de fls. 9.

Porque o fez? Liberalidade, como alega? Não.

Fê-lo porque, como a própria Ré revelou em audiência final, porque aconselhada no sentido de que dado o regime da solidariedade da conta, metade do saldo era seu e a outra metade da M..., e portanto da herança aberta por sua morte.
 
A prova oral produzida reconstrói no possível o quadro vivencial da M... e bem assim o seu relacionamento com a falecida Autora A..., ou melhor, com a mãe desta, e com a Ré, entre outras pessoas. Ao longo do tempo. Antes e depois da doença que afectou a M... até à morte.

Face aos depoimentos das testemunhas A..., M..., M... e M... há “espaço” no relacionamento entre a M... e a Ré que justifica a intenção de beneficiar a Ré através da doação dos valores da conta bancária em causa. No mesmo sentido as declarações de parte da Ré M.... Esta acaba por não delimitar se o alcance da pretensão da falecida era o de beneficiar a Ré com os valores existentes ao tempo da associação da Ré à conta, ou se só apenas com os valores existentes até á sua morte ou após a sua morte.

Depoimentos há no sentido de que a M... pretendia outorgar testamento a favor da Ré. Porém, essa faculdade não se efectivou e a factualidade em questão resulta inócua face ao pedido, à causa de pedir, e à repartição do ónus de alegar e provar.

A redacção do ponto 12 merece alguma melhoria.

O ponto 13 merece o assentimento nesta instância pelos mesmos motivos.

Sobre o ponto 14 nada há a acrescentar à redacção inicial, por não resultar da prova testemunhal qualquer elemento de relevo.

Posto o que se altera a redacção do ponto 12 e se mantém a redacção dos pontos 13 e 14:

Assim:

12.M... quis beneficiar a 1ª Ré declarando verbalmente “doar-lhe” os valores existentes ou a existir na dita conta bancária, o que esta declarou aceitar.
13.Nesta decorrência, a 1ª Ré passou a ser a segunda titular da dita conta bancária nos termos referidos em 5., à qual ambas, nessa data, lhe atribuíram a natureza solidária.
14.No dia 04.12.2009 foi constituído o depósito a prazo referido em 6. com o montante de € 147.000,00.

Resumindo: o factualismo a ter em conta é o dado como provado – para que se remete e já supra transcrito, com a pequena alteração na redacção do ponto 12. Não padece de contradição.

2ª questão:

Os Apelantes Autores asseveram padecer a decisão de facto de omissão de pronúncia porquanto da prova produzida resultará que a intenção da falecida M... não seria doar à Ré mas sim outorgar a favor desta um testamento, para produzia efeitos após a sua morte.

Apontam como violado o artigo 5º, 2 do CPC.

Analisando.

Trata-se de factualismo diferente apurar da existência de um contrato de doação a favor da Ré ou ainda da intenção frustrada de dispor a favor da Ré via testamento.

A busca para a economia dos autos da factualidade relativa à intenção de outorgar num testamento é inócua.

Não há assim motivo de nulidade da decisão – artigo 615º, 1, d) do CPC.

Não se violou o disposto no artigo 5º, 2 do CPC uma vez que o julgador não utilizou essa factualidade na decisão proferida.

Não têm razão os Apelantes, porque no fundo pretendem que na resposta a um factualismo se dê como provado um minus, pretendem uma resposta restritiva, um provado apenas. Perguntado se a M... doou, pretendem que se resposta: apenas pretendia beneficiar a Ré em testamento. A falta de razão dos Apelantes assenta na necessidade lógica da factualidade da resposta restritiva ter de caber necessariamente na factualidade da pergunta a que se responde, na premissa maior. E no caso isso não acontece por se tratar de factualismo diferente. Da pretensão dos Apelantes resultava responder a um facto, com outro facto diferente, não contido no primeiro, o que está vedado.  

Não há assim omissão de pronúncia relativamente a factos instrumentais.

3ª questão:

Como sabemos a 2 de Maio de 2012, dois dias depois da M... falecer, a Ré M... transferiu duma conta solidária que tinha com a M... para uma outra com o nº 984064543010 de que era titular no Banif o montante de € 185.696,58 e em 11 de Maio de 2012 transferiu para essa mesma conta o remanescente de € 4.512,29, ficando assim aquela a zero.

E em 14 de Maio de 2012 a Ré transferiu para uma conta bancária titulada pela inicial Autora o montante de € 92.544,43, cfr. documentação bancária de fls. 9.

Não está em causa nesta acção este montante de € 92.544,43.

O que os Autores pretendem dos Réus é a condenação destes a restituírem àqueles o remanescente que a Ré transferiu ilegitimamente por abuso de confiança da referida conta solidária, ainda não reposto, e juros de mora, vencidos e vincendos.

Na sentença recorrida considerou-se ter a Ré sido beneficiária de uma doação de bens móveis – o dinheiro depositado na conta solidária -, sendo doadora a M..., a outra contitular, e por isso legítima detentora do referido remanescente, que assim se entendeu não dever ser reposto, judicando-se a improcedência da acção.

Vejamos.

Irrelevante que a M... tenha ou não tenha pretendido beneficiar a Ré num testamento que não outorgou, pois faleceu, no estado de solteira, sem ascendentes vivos, sem descendentes, intestada, sem outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido, como única e universal herdeira, a inicial Autora, A..., sua prima.  

Em 12.07.2005, a falecida M... constituiu a conta bancária nº 30753541, junto do BANIF, balcão da Av. Antero de Quental, nº 30, Ponta Delgada. Em 02.12.2009, a dita conta bancária passou a ter a 1ª Ré como segunda titular. A conta ficou sujeita ao regime de movimentação solidária – fls. 35. A conta passou a ter mais que um titular, a ser plural. A conta foi movimentada a crédito. Passámos a ter um depósito solidário. Depósito solidário é aquele em que qualquer dos credores depositantes ou titulares da conta, apesar da indivisibilidade da prestação, tem a faculdade de exigir por si só, a prestação integral, ou seja o reembolso de toda a quantia depositada (acrescida de juros, se os houver), e em que a prestação assim efectuada libera o devedor – o banco depositário – para com todos eles - artigo 512º do C. Civil. Cfr. Paula Ponces Camanho, in Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, 2004, pág. 131.

Assim, nessa conta, quer a Ré quer a M... podiam livremente realizar qualquer tipo de operação, e, por exemplo, movimentar a conta a débito, colocando-a a zero, ficando o banco obrigado a pagar a qualquer das titulares. 

A opção por esta modalidade de movimentação assenta na confiança dos titulares que, pelo menos tacitamente, antecipada e reciprocamente dão uns aos outros para a livre disposição, designadamente dos numerários.

E no julgamento a Ré referiu-se a essa confiança mútua entre si e a M....

A titularidade da conta pode não ter nada a ver com a propriedade das quantias nela existentes. Os titulares da conta podem não ser os proprietários das quantias depositadas.

No caso dos autos ficou plenamente verificado que a Ré nunca depositou qualquer valor nessa conta bancária que fosse de sua propriedade, ou ainda sua e de seu esposo, Réu. Todos os valores depositados na referida conta provinham das poupanças e da reforma da M....

Assim a Ré não pode justificar o levantamento por transferência efectuado a seu favor com base na propriedade dos valores movimentados, nem beneficiar da presunção a seu favor de metade dos depósitos existentes, na falta de disposição em contrário.

A jurisprudência e a doutrina maioritárias afirmam que o facto de alguém depositar uma quantia numa conta solidária, em seu nome e no de outra pessoa, não significa que esteja a fazer uma doação a esta última, por inexistirem animus donandi e ainda a entrega da coisa. Cfr. Paula Ponces Camanho, in Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, 2004, pág. 135.

A associação da Ré à conta da M..., mediante a assinatura por elas da “ficha de assinaturas” de fls.34 verso a 35 verso, não integra a celebração um contrato de doação entre as contitulares.

A Ré alegou em sua defesa a constituição a seu favor de uma doação, sendo doadora a M... e donatária a Ré.

Ficou provado que:

12. M... quis beneficiar a 1ª Ré declarando verbalmente “doar-lhe” os valores existentes ou a existir na dita conta bancária, o que esta declarou aceitar.
13. Nesta decorrência, a 1ª Ré passou a ser a segunda titular da dita conta bancária nos termos referidos em 5., à qual ambas, nessa data, lhe atribuíram a natureza solidária.

Não se provou a reserva de usufruto do dinheiro depositado enquanto a M... fosse viva, facto não alegado, mas referenciado (apenas) pela testemunha Aida. Tal factologia a provar-se integraria uma doação entre vivos com aposição de cláusula modal.

O contrato de doação está tipificado nos artigos 940º e ss do C. Civil.

Vem definido como o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, (…), em benefício do outro contraente.

O montante depositado na conta será uma coisa móvel.

Efectivamente os factos provados preenchem os requisitos do contrato de doação. Doação entre vivos.

Não está provado que as partes condicionaram a causa da entrega dos valores da conta bancária à pré-morte da doadora, nem estabeleceram essa morte como termo incerto. Não se trata, à partida, face aos termos do acordo, de uma doação por morte, e mesmo se se tratasse seria nula, mas ainda assim podia ser aproveitada como disposição testamentária uma vez observadas as formalidades do testamento – cfr. artigo 946º do C.C. Ora o acordo foi verbal, não foram observadas as formalidades do testamento, de modo que o acordo havido será nulo se ainda assim for entendido como doação por morte. 

Voltaremos ao ponto.

Relativamente à forma, a doação de bens móveis não carece de forma especial, quando acompanhada da tradição da coisa doada. Não sendo acompanhada da tradição da coisa, a doação só pode ser feita por escrito – artigo 947º, 2 do C.Civil.

O efeito da doação é, no caso das coisas, (i) a transmissão da propriedade da coisa e (ii) a obrigação de entregar a coisa.

Nos termos provados, falecida a M..., a Ré movimentou a seu favor o saldo da conta a que estava associada, transferindo o dinheiro para uma conta bancária de que era titular. Isto é, apoderou-se do valor lá existente.

A Ré não movimentou a conta a débito em vida da contitular.

Já vimos igualmente que a Ré não logrou provar nos autos que tinha o direito de propriedade sobre aqueles montantes, à excepção do que se possa considerar em termos da alegada doação.

Conjugados os factos, com as disposições sobre a forma de que deve revestir o contrato de doação e os seus efeitos, verificamos que:

A M... associou a Ré à conta bancária onde depois depositou valores. A M... continuou até à sua morte com poderes de movimentação solidária. A M... não ficou privada da disponibilização das quantias depositadas.

Em vida da doadora inexiste tradição da coisa objecto da doação.

Se a Ré movimentasse a conta a seu favor em vida da M..., estaria a agir ao abrigo de um contrato de doação válido pela forma, e este estaria a cumprir os seus efeitos. Estava transmitida a propriedade do numerário para a Ré e estava cumprida a obrigação da doadora entregar a coisa doada.

Nestas condições a Ré tinha agido a coberto do Direito, lícita e legitimamente.

Não foi porém o que aconteceu. A Ré só movimenta a conta a débito, já depois do óbito da doadora.

A obrigação do banco depositante de entregar o dinheiro movimentado à Ré, que tinha poderes para movimentar e receber, nasce com a ordem de transferência da Ré. O banco opera no contrato de depósito no interesse dos credores, depositantes. Só paga, não quando quer nem a quem quer. Diferentemente do regime da solidariedade entre os credores do artigo 528º do C. Civil, o banco espera e cumpre as ordens de pagamento que recebe dos seus clientes. O banco necessita da iniciativa própria de qualquer dos credores para cumprir a prestação devida.  
Cfr. Paula Ponces Camanho, in Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, 2004, pág. 133.

Não se pode dizer que a Ré já tinha o direito a receber do banco o numerário objecto da transferência bancária efectuada. O direito a receber do banco e a obrigação do banco pagar só nascem com o pedido de transferência, e desde que este cumpra os requisitos e a forma legais segundo a legislação bancária e o estabelecido no contrato de abertura de conta ou e ainda no de depósito.

Por outro lado, dado o momento em que a Ré aparece a movimentar a conta – já depois do falecimento da doadora – forçosamente temos de concluir que a doação, para produzir os seus efeitos, já os produz depois da morte da doadora, depois da abertura da sucessão desta. E nestas condições terá de se considerar que os seus efeitos são os de uma doação por morte – artigo 946º de C. Civil, para o que a mesma não respeita a forma legal.

A actuação da Ré deixou de se efectuar ao abrigo da doação, que agora, no momento da entrega da coisa doada, já não reveste a forma exigida, já é ineficaz, já não pode produzir os efeitos típicos aludidos. 

Assim a Ré tem de prestar contas aos herdeiros da doadora.

No mesmo sentido Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, vol. III, 9ª edição. Almedina, pág. 169 e jurisprudência na nota 395.

A Ré não prova que o remanescente do saldo da conta ainda em seu poder lhe tenha sido doado pela M..., agora por falta de forma.
 
O Réu é demandado por via do regime de casamento que mantém com a Ré.

A Apelação procede.

Em resumo: se a doação tem por objecto bens móveis, a lei exige a forma escrita, a menos que ocorra a tradição da coisa concomitantemente ao acto. A dispensa da forma escrita apenas ocorre na doação de coisas móveis acompanhada da tradição da coisa, constituindo porém, nesse caso a tradição uma formalidade essencial ao contrato, não se podendo considerar válida a doação se esta não se verificar – cfr. artigo 497º, 2 do C.Civil.  

Se a doadora verbal de valores depositados em conta bancária a que associou a donatária como contitular, ambas com poderes de movimentação solidária, se mantém com tais poderes até falecer, e não entrega de facto o dinheiro à donatária nem esta o movimenta a seu favor em vida da dadora, o que só vem a acontecer depois do decesso desta, tal significa que não houve tradição da coisa, obrigando a doação a produzir os seus efeitos já depois da morte da doadora, o que implica a ineficácia da doação efectuada por falta de forma mínima.


V-DECISÃO:

Pelo que fica exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar a Apelação procedente, revogando-se a sentença recorrida que passa a julgar a acção procedente por provada e a condenar os Réus na restituição aos Autores da quantia de € 92.544,43, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de € 3.397,52, e vincendos, à taxa legal para os juros civis, e até efectivo e integral pagamento.
Custas em ambas as instâncias pelos Réus.
Valor da causa: € 95.908,95.


Lisboa, 2015.12.17

                      
Rui  António Correia  Moura                                                  
A. Ferreira de Almeida                     
Catarina Arêlo Manso
Decisão Texto Integral: