Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2623/20.2T8FNC.L1-2
Relator: PAULO FERNANDES DA SILVA
Descritores: COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
COMPETÊNCIA ABSOLUTA
NULIDADES DE SENTENÇA
CONTRATO DE TRABALHO DESPORTIVO
DISPENSA DO PAGAMENTO DE TAXA DE JUSTIÇA REMANESCENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. Salvo o consignado em matéria de recurso de revisão, a decisão final de mérito definitivamente assente tem efeitos no respetivo processo e fora deste, relativamente às partes, quer no sentido de que não se pode repetir a causa, quer na aceção de que tal decisão final se impõe às partes, assumindo uma autoridade tal que as partes a ela estão vinculados em subsequente ação existente entre elas, havendo uma relação de prejudicialidade entre o objeto da primeira ação e o objeto da segunda ação.
II. Sob pena de nulidade, exige-se que a sentença esteja minimamente motivada de facto e de direito, sendo nula tão-só aquela em que falte de todo em todo tal motivação.
III. Sem prejuízo da prejudicialidade que o discurso jurídico impõe, o juiz deve referir-se aos temas, aos assuntos nucleares do processo, suscitados pelas partes, bem como àqueles de que oficiosamente deva conhecer, cumprido que se mostre o contraditório, não se exigindo que o juiz aprecie toda e qualquer consideração ou argumento tecido pelas partes.  
IV. Considerando o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 28/98, de 26.06, 35.º do Anexo III do CCT celebrado entre a LPFP e o SJPF, e 208.º do Regulamento Geral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, relativamente a situação ocorrida entre julho de 2009 e junho de 2011, observados os demais requisitos, cessado o contrato de trabalho desportivo com um determinado Clube, o direito de compensação pela formação e valorização de jogador profissional de futebol pertence ao clube onde o jogador cessou o contrato, enquanto «clube de procedência», devendo tal compensação ser paga a este pelo novo clube contratante.
V. Como «clube de precedência» não deve ser considerado o clube a quem o jogador foi cedido temporária e gratuitamente, sem prejuízo do princípio da solidariedade.
VI. Como corolário dos princípios do acesso à justiça, da proporcionalidade e da adequação, sob impulso das partes ou oficiosamente, nas causas de valor superior a €275.000,00, o Tribunal pode dispensar total ou parcialmente o remanescente da respetiva taxa de justiça caso as peculiaridades da situação assim o justificarem.
VII. Tal redução ou dispensa de taxa de justiça deve fundar-se em critérios de razoabilidade, como, designadamente, a complexidade da causa, a utilidade económica dos interesses nela envolvidos e a atitude das partes ao longo do processo, apreciada em função dos princípios da cooperação e boa-fé processual, explicitados nos artigos 7.º e 8.º do CPCivil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
RELATÓRIO.
Neste processo comum de declaração, a A., MARÍTIMO DA MADEIRA – FUTEBOL, SAD, SOCIEDADE ANÓNIMA DESPORTIVA, demanda a R., FUTEBOL CLUBE DO PORTO, FUTEBOL, SAD. SOCIEDADE ANÓNIMA DESPORTIVA, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de €5.000.000,00 (cinco milhões de euros), acrescida de juros vencidos e vincendos, até efetivo e integral pagamento.
Como fundamento do seu pedido, a A. alegou, em síntese, que celebrou contrato de trabalho desportivo com o jogador KP, correspondendo a referida quantia peticionada na ação à compensação pela formação, promoção e valorização profissional daquele jogador, tendo tal quantia sido inscrita na lista de compensação elaborada pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, conforme artigo 208.º do seu Regulamento Geral, lista essa que foi divulgada por todos os clubes seus filiados.
Devidamente citada, a R. contestou, arguindo a incompetência absoluta do Tribunal, por preterição de tribunal arbitral, e, subsidiariamente, pedindo que a ação seja julgada improcedente, por não provada.
Notificada para se pronunciar sobre a exceção de incompetência deduzida, a A. concluiu pela sua improcedência.
Procedeu-se à realização de audiência prévia.
Conclusos os autos foi proferido saneador-sentença que julgou improcedente a arguida incompetência absoluta do Tribunal e igualmente improcedente a ação.
Inconformada, a A. recorreu daquela decisão, apresentando as seguintes conclusões:
«A) O recurso apresentado pela recorrente tem por objecto a impugnação da sentença proferida pelo Tribunal a quo, quer quanto à matéria de facto, quer no que à interpretação e aplicação do direito diz respeito.
B) Compulsada a fundamentação de facto, da sentença recorrida não é possível extrair, com o mínimo de clareza, a motivação do Tribunal, nem tão pouco a apreciação que o Tribunal a quo fez dos meios de prova, isto é, o porquê de o tribunal ter incluído no elenco dos factos provados determinados factos e não outros.
C) A sentença recorrida viola, pois, o dever geral de fundamentação previsto no número 1 do artigo 154º do CPC.
D) Nessa medida, a sentença recorrida deverá ser declarada nula, nos termos da alínea b) do número 1 do artigo 615º do CPC, por violação do dever de fundamentação da sentença previsto no número 4 artigo 607º do mesmo CPC.
Por outro lado:
E) O Tribunal a quo não deu como provados factos demonstrados por prova documental e que eram essenciais à procedência do pedido, nomeadamente, os alegados nos artigos factos 17º, 18º e 19º da PI, que, como tal, deverão ser aditados à decisão de facto.
F) Para além disso, o Tribunal a quo, ao prescindir da realização da audiência de julgamento, prejudicou a possibilidade de ser produzida prova testemunhal sobre factos que, a resultarem provados, seriam essenciais ao julgamento da relação controvertida e à procedência do pedido, assim impedindo a prova dos factos alegados nos artigos 77º a 87º da PI, cujo conhecimento era essencial à boa decisão da causa e à procedência do pedido.
G) Deverá assim ser ordenada a produção da prova testemunhal omitida com vista a, a final, modificar a decisão quanto à matéria de facto, nos termos previstos no artigo 662º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
H) O Tribunal a quo, ao prescindir da prova a produzir em sede de audiência de julgamento, deixou de se (poder) pronunciar sobre parte significativa da matéria alegada, essencial para aferir a questão de direito suscitada pela relação controvertida, pelo que a sentença é nula, ainda, porque o juiz deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, ao abrigo da aliena d) do número 1 do artigo 615º do CPC.
I) O Tribunal a quo limitou a questão de direito a saber se à Autora assiste (ou não) o direito de compensação por promoção ou valorização do jogador KP e, em caso afirmativo, qual o montante a fixar para a referida compensação.
J) O direito a compensação por promoção ou valorização é um direito nuclear na organização da competição e na definição do equilíbrio entre competidores, garantido uma justa repartição de contrapartidas desportivas e económicas entre os competidores, no caso, as sociedades desportivas.
K) O direito a uma compensação atribuir a entidades empregadoras anteriores dos praticantes desportivos é um direito que procura valorizar e beneficiar, economicamente, as entidades que contribuíram para a formação e promoção de um determinado praticante desportivo, que, a dada altura, se valorizou sendo transferido para outra ou outras entidades desportivas.
L) A compensação pela promoção ou valorização prevista no referida CCT pode ocorrer em duas situações determinadas e apenas e só no caso de cumprimento das condições pré-estabelecidas no Regulamento supra-referido, isto é, “compensação no caso de celebração do primeiro contrato de trabalho desportivo” (art. 33º) e a denominada “compensação nos demais casos” (art. 35º). No caso, a modalidade aplicável é a de “compensação nos demais casos”.
M) A recorrente cumpriu os requisitos enunciados no artigo 35º do CCT, bem como os requisitos formais necessários para poder ter direito a receber a compensação por formação, promoção ou valorização do jogador KP prevista no Regulamento Geral da LPFP.
N) Resulta do espírito do respectivo regime que a compensação por valorização e formação tem um objectivo polivalente, por um lado, de promover o melhor desenvolvimento do jovem futebolista e, por outro, de facultar uma maior possibilidade de acesso do exercício do futebol como profissão. Desta feita, é salutar que haja um modelo que de facto incentive, valorize e atribua uma compensação “justa e proporcional” às entidades desportivas que asseguram ao atleta essa formação e valorização, dando ao jogador condições para jogar e promover-se.
O) No caso vertente, a Autora arroga-se no direito de receber justa compensação pela formação e valorização que proporcionou ao jogador KP pelo facto de o atleta ter representado a equipa de futebol profissional da recorrente nas épocas desportivas 2009/2010 e 2010/2011, numa altura em que tinha 19 a 21 anos de idade, ali completando a formação, e obtendo notoriedade e reconhecimento desportivos, com consequente valorização profissional.
P) Se o fundamento do direito à compensação tem a sua ratio no investimento feito por uma entidade desportiva na formação e promoção de um determinado atleta, criando condições e contribuindo decisivamente para a sua valorização e promoção no mercado desportivo nacional e internacional, e ainda no facto de esta ser a entidade empregadora precedente à transferência definitiva, então a Autora, aqui recorrente, não poderá deixar de ser considerada, materialmente, como titular daquele direito.
Q) Na situação da cedência, o vínculo jurídico-laboral entre a entidade empregadora cedente e o praticante desportivo não cessa, pese embora este exerça a sua actividade para uma outra entidade empregadora.
R) Não podemos, todavia, ignorar que a manutenção do contrato de trabalho desportivo entre o praticante desportivo e a entidade empregadora cedente é, sobretudo, formal, já que, em grande medida e materialmente, a entidade empregadora do praticante desportivo durante o período da cedência é a entidade empregadora cessionária.
S) Durante as épocas desportivas em que vigorou a sua cedência à Autora, o jogador KP foi remunerado pela Autora, realizou treinos, estágios e jogos nas instalações da Autora ou em locais pela mesma definidos, participando nos jogos das várias competições em que a Autora se encontrava inscrita, e recebeu instruções e orientações da Autora, pelo que é inelutável concluir-se que todas estas notas são características da existência de subordinação jurídica entre a entidade cessionária e o praticante desportivo, nota essencial e indiscutível para que se possa apurar a existência de um vínculo jurídico laboral entre duas pessoas ou entidades.
T) Essencial, porque sem a nota da subordinação jurídica não existe relação laboral, indiscutível, porque existindo subordinação jurídica não é possível negar a existência de uma relação laboral entre as duas pessoas ou entidades.
U) Exige-se assim, salvo melhor entendimento, que sejam consideradas as exigências de justiça do caso concreto, de modo a aferir qual entidade que, de facto, mais contribuiu para a formação do atleta, apurando assim qual das entidades deverá ser titular da referida compensação.
V) À data da transferência do jogador para a Ré, a Autora, recorrente, era, pois, a entidade empregadora de KP nos termos e para os efeitos de atribuição do direito de compensação.
W) Não podemos a este respeito desconsiderar que a justiça deve ter sempre por referência o caso concreto, compatibilizado o direito com a realidade, de forma a garantir interpretação e aplicação materialmente justa do direito.
X) É, pois, nosso entendimento que a sentença recorrida é injusta e viola a lei por não respeitar a ratio da figura da “compensação por formação ou valorização” e por operar uma discriminação injustificada entre entidades desportivas que invistam na formação dos seus atletas.
Y) Impõe-se, assim, salvo o devido respeito, uma interpretação teleológica extensiva que permita incluir naquele direito as entidades cessionárias se estas forem, na prática, como é o caso, a entidade empregadora do jogador anterior à nova entidade empregadora (após a transferência definitiva deste).
Z) Por todo o exposto, dever-se-á concluir que a Autora deve ser considerada a entidade empregadora do praticante desportivo durante o período da cedência, logo, a entidade empregadora do jogador anterior à transferência do jogador KP para a Ré, impondo as exigências de justiça no caso concreto que a devida compensação por valorização ou promoção do praticante desportivo seja paga a quem, verdadeiramente, contribuiu, de forma, decisiva, para a formação, promoção e valorização do jogador.
A adir:
AA) Em matéria de custas judiciais, a regra geral é, pois, a de que a taxa de justiça é fixada em função do valor, mas também da complexidade da causa (artigos 6º, 1, e 11º do RCP e 529º do CPC), tornando-se assim claro que o valor da acção deixou de ser o único elemento a considerar para efeitos de fixação da taxa de justiça, estabelecendo-se um sistema misto, assente, por um lado, no valor da causa até determinado limite e, por outro, na sua correcção em casos de processos especialmente complexos.
BB) Passou então o RCP a permitir, com as alterações introduzidas pela Lei nº 7/12, de 13 de Fevereiro, que, em acções de valor superior a 275.000 EUR, o Juiz possa dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça, desde que a especificidade da situação o justifique.
CC) De modo consensual, a jurisprudência tem entendido que o direito fundamental do acesso ao direito, aos tribunais e à justiça impede a fixação de elevadas taxas de justiça, quando, exclusivamente, com base no critério do valor de acção esses valores se mostrem desproporcionais à complexidade, morosidade, aos incidentes, recursos ou diligências de prova da causa, como é o caso.
DD) O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 421/2013, publicado no Diário da República, II Série, de 16/10/2013, julgou já inconstitucionais, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, da Constituição, as normas contidas nos artigos 6.º e 11.º, conjugadas com a Tabela I-A anexa, do Regulamento das Custas Processuais, na redacção introduzida pelo DL 52/2011, de 13 de Abril, quando interpretadas no sentido de que o montante da taxa de justiça é definido em função do valor da acção sem qualquer limite máximo, não se permitindo ao tribunal que reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcional do montante exigido a esse título.
EE) Estão assim reunidos os pressupostos legalmente exigidos para que o Tribunal, em função da falta de complexidade da causa, gradue casuística e prudencialmente a taxa de justiça, dispensando a recorrente ou a recorrida do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto pelo artigo 6º, 7, do RCP.
*
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá:
a) o recurso ser julgado inteiramente procedente e, em consequência, ordenada a produção de prova testemunhal omitida, reapreciada a matéria de facto e de direito e, a final, revogada a sentença recorrida e substituída por outra que julgue a acção inteiramente procedente, por provada;
b) revogada a sentença no segmento relativo às custas processuais e, em consequência, substituída por outra que dispense as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça, atenta a simplicidade da causa, nos termos do artigo 6º, n.º 7, do RCP, assim se fazendo inteira JUSTIÇA».
Notificada das alegações, a R., ora Recorrida, contra-alegou, ampliando o âmbito do recurso e recorrendo de modo subordinado, apresentando nesta última sede as seguintes conclusões:
«- Do Recurso Subordinado –
II - Não se conforma a Ré-Recorrida com a Sentença recorrida na parte em que julgou “Temos em que se julga improcedente a exceção de incompetência absoluta deste tribunal deduzida pela ré e, em consequência, declara-se este tribunal absolutamente competente para conhecer da presente ação.” Porquanto entende que a competência para a presente demanda não é deferida por lei à jurisdição estadual, pertencendo a mesma em exclusivo, ao Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), nos
termos consignados na atual Lei n.º 74/2013, de 06 de Setembro (Lei do TAD).
JJ - A qualificação da Comissão Arbitral da LPFP como Tribunal Arbitral Voluntário consiste numa errada interpretação e violação do disposto nos artigos 202º e 209º da Const. Rep. Portuguesa e no artº 18.º, nº 1, da Lei 5/2007, proquanto a adesão à convenção arbitral – a sujeição de todos os conflitos à jurisdição da Comissão Arbitral da LPFP (cfr. artigo 4.º-A do Regulamento Geral da LPFP) - não resulta de um acto de vontade, mas da aplicação de regulamento, de natureza pública, atentos os poderes exercidos pela LPFP, por delegação da Federação Portuguesa de Futebol, a que as SAD’s estão obrigadas por via da inscrição obrigatória na LPFP, para poderem ter acesso a disputar a competição profissional, pelo que a competência para o presente litígio terá necessariamente de ser atribuída ao TAD, enquanto sucedâneo da Comissão Arbitral Paritária da LPFP, que se consubstancia como tribunal
arbitral necessário.
KK – Sem prescindir, ainda que se admita – o que tão só se consente para este efeito – que a Comissão Arbitral da LPFP deva ser qualificada como tribunal arbitral voluntário, é incorrecta a determinação de aplicação subsdiária da LAV à referida Comissão, concretamente, no que ao prazo supletivo para proferir decisão diz respeito, uma vez que do Regulamento Geral da LPFP não consta qualquer prazo previsto para a prolação de decisão, e
LL - Desde logo porque as regras de caducidade apenas são aplicáveis por imposição legal ou por vontade das partes, nos termos no previsto no artigo 298º, nº 2, do Cód. Civil , inexistindo qualquer uma dessas no caso em discussão.
MM - A inexistência da estipulação de prazo para prolação de decisão no Regulamento Geral da LPFP não significa a existência de um caso omisso que reclame a aplicação supletiva da LAV, menos quando dessa aplicação subsidiária resulte a declaração de caducidade da convenção arbitral, determinando o esgotamento do poder jurisidicional dos árbitros, contrariando o espírito do legislador desportivo que, manifestamente, pretende que os conflitos desportivos sejam sanados pelas instâncias desportivas.
NN - Tanto assim que, contrariamente ao que previsto na CCT para a Comissão Arbitral Paritária de um prazo de 40 dias para a prolação da decisão, o Regulamento Geral da LPFP não contém qualquer prazo para que a Comissão Paritária profira decisão;
OO - Conclui-se, pois, que a douta Sentença interpretou incorrectamente e violou o disposto nos artigos 9.º e 10.º do CC dado ser manifesto que a aplicação supletiva da LAV é incompatível com o todo do edifício normativo desportivo que, conforme se deixou dito, afasta da jurisdição estadual a resolução dos referidos conflitos desportivos.
PP – Atento o exposto, conclui-se que sempre teria o presente recurso subordinado de proceder, julgando-se procedente por provada a invocada exceção de incompetência absoluta deste tribunal e, em consequência, absolvendo-se a recorrente da instância e julgando-se a ação improcedente.
Nestes termos, e nos que V. Ex.as muito doutamente suprirão,
Deve ser negado provimento ao recurso interposto pelos Recorrentes, mantendo-se a douta Sentença recorrida.
Ou, na procedência do Recurso Subordinado, deve ser julgada procedente por provada a invocada exceção de incompetência absoluta deste tribunal e, em consequência, absolvida a recorrente da instância e julgada a ação improcedente.
Assim se fazendo JUSTIÇA»
Notificada das contra-alegações, a A./Recorrente nada disse.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir.
II.
OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pela Recorrente, bem como as contra-alegações apresentadas pela Recorrida, estão em causa apreciar e decidir:
- Da competência absoluta do Tribunal;
- Da nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação;
- Da omissão de pronúncia;
- Da insuficiência da matéria de facto;
- Do direito de compensação reclamado pela Recorrente;
- Do quantum indemnizatório;
- Da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.
III.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
O Tribunal recorrido proferiu a seguinte decisão de facto:
«Dos documentos juntos e da posição das partes nos respetivos articulados, resultam provados os seguintes factos:
1. A autora é uma pessoa coletiva de direito privado, constituída sob a forma de sociedade anónima que tem por atividade principal a participação em competições desportivas profissionais de futebol.
2. A ré é também ela uma sociedade anónima desportiva que tem por objeto, entre outras atividades, a participação nas competições profissionais de futebol.
3. No dia 07/10/2011, a Marítimo SAD intentou ação declarativa na Comissão Arbitral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de EUR 5.000.000,00, correspondente ao valor pelo qual o jogador KP se encontrava inscrito na lista de compensação elaborada pela Liga, acrescida de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento (cfr. documento de fls. 15 a 23).
4. Por decisão proferida pela Comissão Arbitral da Liga, a 01/02/2013, a ação foi julgada improcedente, tendo a ré sido absolvida do pedido. (cfr. documento de fls. 369 a 374).
5. A autora Marítimo SAD intentou ação judicial no Tribunal Judicial da Comarca do Porto a pedir a anulação da referida decisão arbitral, que correu termos na 3ª Vara Cível do Tribunal Judicial da Comarca do Porto com o número de processo 182/13.1TVPRT (cfr. documento de fls. 228 verso a 235).
6. Tal processo findou com Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, a 17/06/2014, já transitado em julgado, que, no âmbito do recurso n.º 182/13.1TVPRT.P1, decidiu anular na íntegra a decisão arbitral impugnada (cfr. documento de fls. 215 a 227).
7. Entretanto, decorreu tentativa de entendimento extrajudicial entre as partes, tentativa essa que não teve sucesso.
8. Em 28/08/2009, a autora celebrou contrato de trabalho desportivo com o jogador profissional de futebol KP, nascido a 02/05/1990, natural do Brasil, portador do Passaporte CV …, emitido em Belo Horizonte, República Federativa do Brasil, válido para a época desportiva de 2009/2019, com início em 26/08/2009 e término em 30/06/2010, contrato esse que foi registado junto da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP ou Liga) (cfr. documento de fls. 38 a 39).
9. Como contrapartida económica, a autora obrigou-se a pagar ao referido jogador a remuneração anual líquida de EUR 50.000,00 (cfr. documento de fls. 38 e 39).
10. No dia 12 de janeiro de 2010, a autora e o jogador KP acordaram prorrogar o contrato de trabalho desportivo que os unia para a época seguinte, de 2010/2011, com início em 01/07/2010 e termo em 30/06/2011, contrato este foi igualmente registado junto da LPFP, e tornado público através do Ofício-Circular da LPFP n.º 2601, da época desportiva 2009/2010, de 22/01/2010 (cfr. documentos de fls. 40 a 42 e 43 verso).
11. No dia 01/06/2011, a autora remeteu à Liga Portuguesa de Futebol Profissional e ao Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol cópia das cartas enviadas ao jogador KP.
12. Em consequência, o jogador KP foi incluído na lista de compensação elaborada pela LPFP a que se refere o artigo 208º do seu Regulamento Geral, pelo valor estabelecido de EUR 5.000.000 (cinco milhões de euros), lista essa que foi divulgada a todos os clubes filiados na LPFP, incluindo a aqui R, através do Ofício-Circular n.º 2506, datado de 15/06/2011 (cfr. documento de fls. 91 verso e 92).
13. O jogador KP nasceu a 02/05/1990.
14. No dia 26/08/2009, mediante documento escrito, o Clube Atlético Mineiro, do Brasil, a autora Marítimo da Madeira – Futebol SAD e o jogador KP celebraram um acordo tripartido denominado "Cessão Temporária de Direitos Federativos de Atleta Profissional de Futebol", do qual consta o seguinte;
“PREÂMBULO
- Considerando que o ATLÉTICO possui contrato de trabalho e vínculo desportivo com o ATLETA em plena vigência, e que deseja ceder temporariamente esses direitos ao MARÍTIMO, na forma deste contrato;
- Considerando que o ATLETA deseja se transferir ao MARÍTIMO para prestar os seus serviços profissionais em caráter temporário, mediante ajuste formal de contrato de trabalho entre as partes, com término previsto para 30/06/2010;
Entre as partes outorgantes é acordado e mutuamente aceite o presente instrumento contratual de CESSÃO TEMPORÁRIA DE DIREITOS FEDERATIVOS DE ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL, que se rege pelos termos das cláusulas seguintes:
CLÁUSULA PRIMEIRA – DO OBJETO
O objeto do presente contrato é a cessão temporária, sem ónus, do ATLÉTICO ao MARÍTIMO, dos direitos federativos do ATLETA para que este possa prestar os seus serviços profissionais de atleta de futebol profissional junto ao MARÍTIMO, pelo período de vigência deste contrato.
CLÁUSULA SEGUNDA – DA VIGÊNCIA
a) O período de cessão temporária se iniciará em 25/08/2009 e se encerrará, independentemente de qualquer aviso ou notificação prévia, em 30/06/2010.
b) Após o termo final do empréstimo ou com a sua rescisão antecipada por qualquer motivo ou fundamento fica o ATLETA obrigado a se apresentar ao ATLÉTICO para prestar os seus serviços e retomar a execução do seu contrato de trabalho com o ATLÉTICO.
CLÁUSULA TERCEIRA –DO PREÇO
Pela presente cessão temporária, o MARÍTIMO nada pagará ao ATLÉTICO.
CLÁUSULA QUINTA – DAS OBRIGAÇÕES DO MARÍTIMO
a. Firmar com o ATLETA contrato de trabalho de atleta de futebol profissional na forma da legislação vigente e pelo período do empréstimo.
b) Pagar ao ATLETA todos os seus salários e outros eventuais componentes da remuneração, inclusive prémios, subsídios e as verbas rescisórias ao final do contrato de empréstimo (…).
c) Obriga-se a zelar, administrar e prover o ATLETA de todos os instrumentos necessários ao desempenho das suas atividades como atleta de futebol profissional;
d) Providenciar o pagamento de taxas, impostos e toda e qualquer despesa referente à inscrição do ATLETA junto das entidades de administração do desporto que se fizerem necessária;
e) Contratar seguro obrigatório de acidentes de trabalho do ATLETA de acordo com a legislação em vigor em Portugal sobre acidentes de trabalho (…);
f) O MARÍTIMO obriga-se a efetuar seguro desportivo de “acidentes pessoais” do ATLETA, antes do início da atividade desportiva do atleta (…).
g) (…) O MARÍTIMO arcará com as despesas médicas e fisioterápicas necessárias à reabilitação completa do ATLETA (…).
CLÁUSULA SEXTA – DAS OBRIGAÇÕES DO ATLÉTICO
a. Garantir ao MARÍTIMO o direito de usufruir e utilizar a prestação de serviços do ATLETA pelo prazo de vigência deste contrato.
CLÁUSULA OITAVA – DA ANUÊNCIA DO ATLETA
a) “O ATLETA declara, expressamente, para todos os fins de direito, que concorda e anui com todas as cláusulas e condições do presente contrato, sem nenhuma ressalva, se comprometendo a fazer justo e valioso todos os termos e condições aqui expostos”.
(…)
CLÁUSULA NONA – DA TRANSFERÊNCIA DO ATLETA
a) Após 30/06/2010, o ATLÉTICO possui exclusividade no direito de dispor e negociar os direitos federativos e económicos do ATLETA com terceiros que estejam interessados na aquisição de todo ou de parte dos seus direitos federativos e/ou económicos, para transferência definitiva, estando vedado ao MARÍTIMO emprestar ou “subceder”, a qualquer título, os direitos desportivos do ATLETA, sem a expressa anuência do ATLÉTICO.
b) Em caso de transferência do atleta, após 30/05/2010, o MARÍTIMO se obriga a liberar imediatamente o ATLETA ao ATLÉTICO ou a quem este indicar, no prazo máximo de 10 (dez) dias após a comunicação formal, sob pena de pagamento de indemnização ao ATLÉTICO no importe equivalente ao valor do “negócio de transferência” que o atlético pretendia realizar, acrescido de 10% (dez por cento), frustrado em razão do descumprimento do MARÍTIMO.
c) Em caso de “transferência” do ATLETA a outro clube em decorrência de cessão definitiva (venda) com a sua “liberação” e consequente rescisão antecipada deste contrato, após 30/06/2010, não haverá qualquer ónus entre as partes.
d) “O ATLÉTICO confere ao Marítimo o direito de preferência na aquisição dos direitos federativos e económicos do ATLETA, até trinta e um de janeiro de dois mil e onze”;
e) “No caso de um terceiro apresentar uma proposta na aquisição de todo ou de parte dos direitos federativos e/ou económicos do ATLETA, para transferência definitiva, o ATLÉTICO deverá informar o MARÍTIMO de todas as condições essenciais do negócio (v.g. identificação completa do adquirente, identificação completa e discriminada do objeto do negócio, do preço, , condições de pagamento, etc.), concedendo ao MARÍTIMO, um prazo de oito dias para exercer o direito de preferir, adquirindo nas mesmas e exatas condições;
e) “Pelo incumprimento do disposto nas duas alíneas anteriores o ATLÉTICO terá de pagar ao MARÍTIMO uma indemnização que as partes desde já fixam, a título de cláusula penal, no valor de um milhão de euros (cfr. documento de fls. 98 a 101).
15. No dia 02/01/2010, as mesmas três partes – Clube Atlético Mineiro, Marítimo SAD e KP – acordaram por escrito, em documento que denominaram “primeiro termo aditivo à cessão temporária direitos federativos de atleta profissional de futebol”, nos seguintes termos:
“Cláusula primeira: A partir da data de assinatura deste aditivo, as partes prorrogam o prazo de vigência da cessão temporária dos direitos federativos do ATLETA, que passa a se encerrar em 30.06.2011.
Cláusula segunda: Permanecem em vigor e inalteradas todas as demais cláusulas e condições do contrato (cfr. documento de fls. 102 verso).
16. A ré apresentou ao Clube Atlético Mineiro proposta datada de 24/06/2010, tendo em vista a transferência definitiva do jogador KP do Clube Atlético Mineiro para a ré, mediante o pagamento da importância de EUR 2.300.000,00 pelos direitos federativos (direitos de inscrição desportiva) e por 50% dos direitos económicos do atleta, em quatro prestações iguais e sucessivas, vencendo-se a 15/07/2010, 30/12/2010, 30/06/2011 e 30/12/2011.
17. O Clube Atlético Mineiro comunicou a aludida proposta à Marítimo SAD, mediante fax datado de 25/06/2010, nos seguintes termos:
“Prezados Senhores,
Servimo-nos da presente para informar o recebimento nesta data de proposta oficial formulada pela FCP SAD para cessão em definitivo dos direitos federativos do atleta profissional de futebol KP («ATLETA»), conforme documento em anexo.
Ao teor da referida proposta, o FCP SAD ofereceu ao Cube Atlético Mineiro o pagamento da importância de €2.300.000,00 (dois milhões e trezentos mil euros) líquidos como contraprestação à cessão definitiva dos direitos federativos do ATLETA, bem como do percentual dos seus direitos econômicos cuja titularidade é do Clube Atlético de Mineiro, qual seja, de 50% (cinquenta por cento). Este valor seria pago em 4 (quatro) parcelas iguais de €575.000,000 cada uma, vencíveis respetivamente em 15.07.2010, 30.12.2010, 30.06.2011 e 30.12.2011.
Assim sendo, ao teor da letra “e” da cláusula nona da “Cessão Temporária de Direitos Federativos de Atleta Profissional de Futebol”, firmada em 26.09.2009, o Clube Atlético Mineiro notifica o Marítimo da Madeira – Futebol SAD para, no prazo de 8 (oito) dias exercer seu direito de preferência de aquisição dos direitos do ATLETA, nas mesmas condições propostas pelo FC Porto SAD, implicando seu silêncio em negativa tácita a esta faculdade.
Caso não exercido o referido direito de preferência, informamos que aceitaremos a proposta formulada pelo FC Porto SAD, devendo ser imediatamente rescindido o vínculo entre o Marítimo da Madeira Futebol -SAD e o ATLETA, hipótese em que, na forma ajustada no instrumento datado de 26.08.2009, repassaremos oportuna e proporcionalmente ao Marítimo da Madeira Futebol SAD a quantia correspondente a 20% (vinte por cento), incidente sobre o valor de cessão da percentual dos direitos econômicos do ATLETA pertencente exclusivamente ao Clube Atlético Mineiro, ou seja, €460.000,00 (quatrocentos e sessenta mil euros), em 4 (quatro) parcelas iguais de €115.000,00 (cento e quinze mil euros) cada uma, nos dias 15.07.2010, 30.12.2010, 30.06.2011 e 30.12.2011.
No aguardo de vossa manifestação, permanecemos à disposição para eventuais esclarecimentos.
Atenciosamente”
18. O Clube Atlético Mineiro propôs, a 14/08/2010, ação contra a aqui autora nas instâncias da FIFA, peticionando indemnização pela obstaculização ilícita dessa pretendida transferência do jogador KP para a FC Porto SAD, ação que correu termos no Comité do Estatuto dos Jogadores da FIFA sob a referência n.º gbr-10-02309, tendo a Marítimo SAD contestado a ação e apresentado pedido reconvencional.
Em 23 de abril de 2013, o Juiz Único do Comité do Estatuto dos Jogadores da FIFA proferiu decisão, tendo considerado a reclamação do Clube Atlético Mineiro parcialmente procedente e, em consequência, a autora foi condenada a pagar ao Clube Atlético Mineiro, no prazo de 30 dias a contar da data da notificação da decisão, o montante de €2.530.000, à taxa de juros de 5%.
No dia 4 de março de 2013, a autora interpôs recurso junto do CAS contra o Atlético Mineiro, impugnando a decisão do Juiz Único do CSJ datada de 23 de abril de 2013, recurso esse que foi julgado parcialmente procedente e, confirmando a decisão tomada pelo Juiz Único da FIFA do Comité do Estatuto dos Jogadores, condenou a autora a pagar ao Atlético Mineiro o valor de €1.530.000,00, acrescido de juros de 5% (cfr., documento de fls. 238 a 240).
19. No dia 30/01/2011, via fax, com conhecimento à Marítimo SAD, a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD apresentou ao Clube Atlético Mineiro proposta tendo em vista a transferência definitiva do jogador KP para a Sporting CP SAD, mediante o pagamento da importância de EUR 2.530.000,00 pelos direitos federativos e por 50% dos direitos económicos do atleta, a realizar em quatro prestações iguais e sucessivas, com vencimento a 15/02/2011, 30/07/2011, 30/12/2011 e 30/06/2012.
20. O Clube Atlético Mineiro decidiu rejeitar esta proposta da Sporting CP SAD, o que lhe comunicou por fax enviado no próprio dia 31/01/2011, nos seguintes termos:
“Prezados Senhores,
Acusando o recebimento de vossas correspondências datadas de 30.01.2011 e 31.01.201, respetivamente, informamos que em razão do valor atual de mercado do mencionado atleta, são insuficientes as condições e os valores propostos – pagamento de €2.024.000,00 (dois milhões e vinte e quatro mil euros) para o Clube Atlético Mineiro e €506.000,00 (quinhentos e seis mil euros) para o Marítimo da Madeira, Futebol SAD, em 4 (quatro) parcelas iguais e sucessíveis vencíveis em 15.02.2011, 30.07.2011, 30.12.2011 e 30.06.2012 – para a cessão de 50% (cinquenta por cento) dos seus direitos econômicos e imediata e definitiva transferência do seu vínculo desportivo.
Atenciosamente”.
21. Em face da resposta do Clube Atlético Mineiro, a Sporting CP SAD esclareceu posteriormente, pelas 19h40 do dia 31/01/2011, que a aludida proposta era líquida da percentagem devida à Marítimo SAD, correspondendo, pois, a uma proposta real (não desconta da fatia de 20% a que a autora tinha direito) de EUR 3.162.500 (três milhões, cento e sessenta dois mil e quinhentos euros).
22. Mediante documento escrito datado de 4 de julho de 2011 e denominado de “Instrumento de Cessão Definitiva de Direitos Federativos de Atleta Profissional de Futebol e Outras Avenças”, a ré, o Clube Atlético Mineiro e KP, resolveram celebrar, de mútuo e comum acordo” o referido “Instrumento de Cessão Definitiva de Direitos Federativos de Atleta Profissional de Futebol e Outras Avenças”, que se rege pelas seguintes cláusulas:
“CLAÚSULA PRIMEIRA
1.1. Pelo presente contrato o ATLÉTICO cede ao FC PORTO, a título definitivo e com efeitos imediatos, os Direitos Federativos do ATLETA, bem como a percentagem de 35% (trinta e cinco por cento) dos Direitos Económicos do ATLETA.
(…)
1.3. Como contraprestação pela cedência a título definitivo dos Direitos Federativos do ATLETA, bem como da venda dos 35% dos Direitos Económicos do ATLETA, o FC PORTO obriga-se a pagar ao ATLÉTICO (…), a importância líquida de 1.680.000 (…).
(…)
CLÁUSULA SEGUNDA
O ATLÉTICO reconhece que o valor ora pago pelo FC PORTO já inclui as quantias devidas ao ATLÉTICO por formação e promoção do ATLETA, assumindo o ATLÉTICO exclusiva e integralmente a responsabilidade pelo pagamento de todas as quantias que, eventualmente, sejam reivindicadas por qualquer clube ou (con)federação a título de compensação por formação e/ou mecanismo de solidariedade na sequência da transferência do ATLETA para o FC PORTO – mas apenas em relação a esta transferência e sem prejuízo dos valores que, por força dos regulamentos da FIFA, o ATLÉTICO venha a ter direito a reivindicar na sequência de futuras transferências do ARLETA.
CLÁUSULA TERCEIRAO ATLETA neste ato expressamente e irrevogavelmente concorda com todos os termos, cláusulas e condições deste instrumento (…)” – cfr. documento de fls. 200 a 201)».
IV.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Da competência absoluta do Tribunal.
(Conclusões II) a PP) das contra-alegações de recurso da Recorrida).
A Ré/Recorrida interpôs recurso subordinado quanto à competência absoluta do Tribunal.
Alegou, em suma, que o Tribunal recorrido é absolutamente incompetente, por preterição de Tribunal arbitral, devendo a causa ser apreciada e decidida pelo Tribunal Arbitral do Desporto.
Vejamos.
Segundo o disposto nos artigos 96.º, alínea b), 97.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 577.º, alínea a), e 578.º, todos do CPCivil, a «preterição de tribunal arbitral» determina «a incompetência absoluta do tribunal», o que constitui uma exceção dilatória e determina a absolvição do réu da instância, sendo que apenas a preterição de tribunal arbitral necessário pode ser conhecida oficiosamente.
Por outro lado, o artigo 619.º, n.º 1, do CPCivil, sob a epígrafe «valor da sentença transitada em julgado», dispõe que «[t]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º».
Ou seja, salvo o consignado em matéria de recurso de revisão, a decisão final de mérito definitivamente assente tem efeitos no respetivo processo e fora deste, relativamente às partes, quer no sentido de que não se pode repetir a causa, quer na aceção de que tal decisão final se impõe às partes, assumindo uma autoridade tal que as partes a ela estão vinculados em subsequente ação existente entre elas, havendo uma relação de prejudicialidade entre o objeto da primeira ação e o objeto da segunda ação.
Com referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, edição de 2019, página 749, «[s]eja qual for o seu conteúdo, a sentença produz, no processo em que é proferida, o efeito de caso julgado formal, não podendo depois disso ser modificada (art. 620). Mas, quando constitui uma decisão de mérito (“decisão sobre a relação material controvertida”) a sentença produz também, fora do processo, o efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual (…), distinguindo-se, neste, o efeito negativo da inadmissibilidade duma segunda ação (proibição de repetição: exceção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade do caso julgado)».
Na matéria Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, volume I, edição de 2022, página 641, referem que «[o] caso julgado material produz a vinculação dos tribunais à decisão de mérito (…) e realiza um efeito positivo e um efeito negativo (…). Este último efeito tem expressão nas proibições de contradição e de repetição referidas no art. 580.º, n.º 2 (…)».
«O efeito positivo vincula o tribunal da acção posterior a aceitar a questão prejudicial decidida numa acção anterior e opera através da autoridade de caso julgado (…). Se se repropuser a questão como fundamento (e não como objeto) do pedido, o juiz tem de decidir a questão nos termos do caso julgado estabelecido».
In casu.
Releva a factualidade indicada sob os n.ºs 3 a 6., com negrito da nossa autoria:
«3. No dia 07/10/2011, a Marítimo SAD intentou ação declarativa na Comissão Arbitral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de EUR 5.000.000,00, correspondente ao valor pelo qual o jogador KP se encontrava inscrito na lista de compensação elaborada pela Liga, acrescida de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento (cfr. documento de fls. 15 a 23).
4. Por decisão proferida pela Comissão Arbitral da Liga, a 01/02/2013, a ação foi julgada improcedente, tendo a ré sido absolvida do pedido. (cfr. documento de fls. 369 a 374).
5. A autora Marítimo SAD intentou ação judicial no Tribunal Judicial da Comarca do Porto a pedir a anulação da referida decisão arbitral, que correu termos na 3ª Vara Cível do Tribunal Judicial da Comarca do Porto com o número de processo …/…. (cfr. documento de fls. 228 verso a 235).
6. Tal processo findou com Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, a 17/06/2014, já transitado em julgado, que, no âmbito do recurso n.º …/…, decidiu anular na íntegra a decisão arbitral impugnada (cfr. documento de fls. 215 a 227)».
 Ou seja.
Apurou-se que na Comissão Arbitral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional correu termos ação cujos sujeitos, causa de pedir e pedido correspondem aos da presente ação declarativa de condenação.
Apurou-se também que tal ação foi julgada improcedente por aquela Comissão Arbitral.
Apurou-se igualmente que a aqui Autora/Recorrente requereu a anulação daquela decisão ao Tribunal Judicial da Comarca do Porto, o qual deferiu tal pretensão.
Apurou-se ainda que a Ré/Recorrida recorreu daquela decisão para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por acórdão transitado em julgado, julgou o recurso improcedente.
Conforme decorre do documento de fls. 215 a 227, junto pela Recorrente com o seu requerimento de 07.01.2021, documento esse aludido no facto dado como provado n.º 6, a anulação da decisão da Comissão arbitral fundou-se, em síntese, no entendimento de que:
- «(…) A Comissão Arbitral da Liga funciona (…) como um tribunal arbitral voluntário» - cf. fls. 225 verso,
- sendo que as suas decisões devem ser proferidas no «prazo de seis meses supletivamente estabelecido no artigo 19º, nº 2, da LAV», correspondente à Lei n.º 31/86, de 29.08, vigente à data dos factos, sob pena de caducidade da convenção arbitral e, pois, a decisão arbitral proferida para além daquele prazo ser tida como inválida, por declarada por tribunal incompetente.
Dito de outro modo, relativamente à situação jurídica em causa, com as mesmas partes, causa de pedir e pedido, o Tribunal da Relação do Porto, entendeu que a Comissão Arbitral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional é um tribunal arbitral voluntário cujas decisões devem ser proferidas no prazo de seis meses, sob pena de serem anuláveis, por caducidade da respetiva convenção arbitral e, pois, por incompetência daquela Comissão para proceder à arbitragem.
Foi nesses termos que o acórdão de 17.06.2014 do Tribunal da Relação do Porto manteve a decisão do Tribunal Judicial da Comarca do Porto de 16.10.2013 que anulou a decisão da Comissão Arbitral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 01.02.2013.
Ora, tendo a Ré/Recorrida suscitado nos presentes autos a incompetência material do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores para a presente causa, por alegada preterição de Tribunal Arbitral, cumpre entender tal questão como prejudicial ao conhecimento do mérito da presente ação e, simultaneamente, abrangida pela autoridade de caso julgado decorrente do referido acórdão da Relação do Porto de 17.06.2014.
Sob pena de contradição de julgados, havendo uma identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido entre a presente ação e aquela que correu termos na Comarca e Relação do Porto, a autoridade do caso julgado do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto impõe-se na presente ação e, em consequência, cumpre considerar que o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores é absolutamente competente para apreciar e decidir a presente causa por haver caducado a convenção arbitral que atribuía tal competência à  Comissão Arbitral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.
A circunstância de, entretanto, ter sido criado e instalado o Tribunal Arbitral do Desporto não obsta a que assim se entendam, pois, a autoridade do caso julgado que decorre do apontado acórdão do Tribunal da Relação do Porto impõe que a competência para o conhecimento e decisão da causa seja exclusivamente conferida ao Tribunal Judicial.
Em função da apontada autoridade do caso julgado, fica prejudicado o demais alegado pela Ré/Recorrida na matéria.
Em consequência, improcede, assim, a arguida incompetência material do Tribunal recorrido, mantendo, pois, nesta sede a decisão aí proferida.
2. Da nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação.
[Conclusões A) a D) das alegações de recurso da Recorrente].
Alega a Recorrente que a sentença recorrida, no que respeita à decisão de facto, padece de falta de fundamentação porque, em síntese, dela «não é possível extrair, com a mínima clareza, a motivação do Tribunal, nem tão pouco a apreciação que o Tribunal a quo fez dos meios de prova, isto é, o porquê de o tribunal ter incluído no elenco dos factos provados determinados factos e não outros».
Ora, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPCivil, «[é] nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».
Sob pena de nulidade, exige-se, pois, que a sentença esteja minimamente motivada de facto e de direito, sendo nula tão-só aquela em que falte de todo em todo tal motivação.
A fundamentação escassa ou deficiente ou incorreta não constituem causas de nulidade da decisão. 
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume I, edição de 2020, página 763, no que ora está em causa a sentença é nula quando ocorre «(…) a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão (…)».
Na situação vertente, realizada audiência prévia, o Tribunal recorrido proferiu saneador-sentença no qual, além do mais, indicou os factos que considerou provados, os quais fundamentou a partir «dos documentos juntos e da posição das partes nos respetivos articulados», sendo que quanto aos factos indicados sob os n.ºs 3 a 6, 8 a 10, 12, 14, 15, 18 e 22 o Tribunal recorrido explicitou em concreto os documentos em que tais factos se justificavam como provados a partir de fls. dos autos.
No que ora releva e tão-só desse ponto de vista, tem-se tal fundamentação por bastante quanto à decisão de facto, pelo que inexiste a suscitada nulidade, improcedendo, pois, também nesta sede a pretensão recursiva da Recorrente.
3. Da omissão de pronúncia.
(Conclusão H) das alegações de recurso)
A Recorrente alegou que o Tribunal recorrido não se pronunciou «sobre parte significativa da matéria alegada», termos em que concluiu que «a sentença é nula, porque (…) deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar».
Vejamos.
Segundo o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPCivil «[é] nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)».
Em causa estão, pois, questões e não simples razões ou argumentos aduzidos.
Sem prejuízo da prejudicialidade que o discurso jurídico impõe, o juiz deve referir-se aos temas, aos assuntos nucleares do processo, suscitados pelas partes, bem como àqueles de que oficiosamente deva conhecer, cumprido que se mostre o contraditório, não se exigindo que o juiz aprecie toda e qualquer consideração ou argumento tecido pelas partes.  
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, edição de 2019, página 737, «[d]evendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado (…)».
In casu.
A A., aqui Recorrente, pediu que a R., aqui Recorrida, fosse condenada a pagar-lhe a quantia de quantia de €5.000.000,00, acrescida de juros moratórios, a título de compensação pela formação, promoção e valorização profissional do jogador KP, conforme artigo 208.º do seu Regulamento Geral da Federação Portuguesa de Futebol Profissional ao tempo em causa vigente.
Ora, a decisão recorrida atem-se àquele pedido e causa de pedir, dilucidando quanto a todas as questões correspondentes.
É certo que não considera a factualidade constante dos artigos 17.º a 19.º e 77.º a 87.º da petição inicial.
Contudo, tal pode configurar uma insuficiência da matéria de facto da decisão, aspeto que de seguida abordaremos, e não uma omissão de pronúncia nos termos indicados, termos em que improcede a arguida nulidade da sentença recorrida quanto a este último segmento.
4. Da insuficiência da matéria de facto.
(Conclusões E) a G) das alegações de recurso da Recorrente].
Nesta sede, a Recorrente referiu, em resumo, que o Tribunal recorrido não deu como provados os factos indicados sob os artigos 17.º a 19.º e 77.º a 87.º da sua petição inicial, os quais reputou como «matéria (…) essencial para aferir a questão de direito suscitada pela relação controvertida» em causa nos autos.
Vejamos.
Na sua petição inicial, a Recorrente tais artigos revestem o seguinte teor:
«17.º
No dia 09/05/2011, por carta registada com aviso de recepção, a A. comunicou ao jogador KP a sua vontade de renovar o contrato de trabalho desportivo – cf. doc. 6 adiante junto.
18º
Já anteriormente, no dia 22/02/2011, em reunião havida nas instalações da Administração da A., tal proposta havia sido apresentada ao jogador KP, que se manifestou interessado em aceitar as condições oferecidas – cf. doc. 7 adiante junto.
19º
A A. propôs, em ambas as ocasiões – primeiro de forma informal e depois formalmente –, a renovação do contrato ao jogador KP, de acordo com as seguintes condições essenciais:
a) Prémio de assinatura do contrato de trabalho desportivo no valor líquido de EUR 200.000 (duzentos mil euros), a liquidar até ao dia 01/09/2011;
b) Duração: cinco épocas desportivas, de 01/07/2011 a 30/06/2016 (2011/2012, 2012/2013, 2013/2014, 2014/2015 e 2015/2016);
c) Remuneração global líquida anual: em cada uma das épocas desportivas referidas, remuneração global ilíquida a que corresponda a remuneração global líquida de EUR 600.000,00 (seiscentos mil euros), repartida por doze prestações mensais, líquidas, e sucessivas de EUR 50.000,00 (cinquenta mil euros) cada, vencendo-se a primeira no dia 01/09/2011 e as restantes no primeiro dia dos meses subsequentes (os valores das prestações mensais indicados incluem, pois, os subsídios de férias e de Natal);
d) Objectivos: prémio no valor líquido de EUR 100.000,00 (cem mil euros) caso o KP o objectivo de participação consecutiva em doze jogos oficiais, durante mais de quarenta e cinco minutos, em cada um, pela equipa principal da Marítimo, SAD;
e) Residência: direito a uma remuneração em espécie, correspondente ao pagamento da renda anual de uma residência no Funchal, destinada a habitação do atleta e respectivo agregado familiar;
f) Passagens aéreas: quatro passagens aéreas Funchal - Belo Horizonte — Funchal, em classe turística, por ano.
(…)
77º
O jogador KP cumpriu a esmagadora maioria da sua formação como atleta de futebol na Marítimo SAD.
78º
De facto, no ano de 2009, ainda no Brasil, ao serviço do Clube Atlético Mineiro, o jogador KP disputou apenas seis jogos no Campeonato Estadual Mineiro (três como suplente utilizado), e quatro jogos no Campeonato Nacional Brasileiro (“Brasileirão”) (todos como suplente utilizado).
79º
Na época 2009/2010, após a celebração do contrato de empréstimo com a aqui A., o jogador KP, então com 19 anos, começou por disputar alguns jogos pela equipa B da Marítimo SAD, tendo rapidamente sido integrado nos trabalhos do plantel principal.
80º
Assim, na época 2009/2010, o jogador KP disputou vinte e um jogos oficiais ao serviço da Marítimo SAD (sendo titular em quinze e suplente utilizado em seis) e marcou oito golos.
81º
Na época seguinte, de 2010/2011, não obstante a ausência do atleta no início da mesma época,
KP disputou dezoito jogos oficiais pela Marítimo SAD (disputando os 90 minutos da partida em dez jogos e sendo suplente utilizado em apenas três) e marcou sete golos.
82º
Ao longo dessas duas épocas, entre os seus 19 e 21 anos, o jogador KP beneficiou de treinos diários nas instalações da Marítimo SAD, bem como dos estágios de preparação de pré-época.
83º
Em Setembro de 2011, já após ter integrado a equipa da R., o jogador KP foi convocado para representar a selecção principal brasileira de futebol – cf. doc. 26 adiante junto.
84º
Este êxito, sendo um factor de valorização futura do jogador, foi sobretudo um reconhecimento da sua afirmação enquanto futebolista e da sua qualidade já demonstrada.
85º
Note-se, todavia, que desde que integrou a equipa da R. até à chamada para a selecção brasileira de futebol decorreram somente cerca de dois meses, em que o jogador KP disputou apenas oito jogos oficiais pela R., nos quais, diga-se – numa apreciação sempre subjectiva –, não logrou afirmar as qualidades que demonstrou possuir ao serviço da A.
86º
Importa, portanto, considerar que o contributo da R. para esse marco na carreira do jogador foi muito diminuto, sendo que tal feito se fica a dever sobretudo à aposta na formação do jogador feita pela A. e às performances que aquele evidenciou ao serviço desta nas duas temporadas de 2009/2010 e 2010/2011 - e que, de resto, suscitaram o interesse da R., do Sporting CP SAD e de outros clubes.
87º
Foi, portanto, durante o tempo em que esteve na equipa da A. que o jogador KP beneficiou da parte mais significativa – senão mesmo exclusivamente – da sua formação enquanto aprendizagem sistemática, completa e progressiva que lhe permitiu valorizar-se como pessoa e atleta e desenvolver uma carreira auspiciosa no futebol profissional».
Os factos constantes daqueles artigos foram expressamente impugnados pela R., aqui Recorrida, conforme artigo 28.º da sua contestação.
Tais factos apenas são pertinentes à decisão de mérito caso se entenda que a Recorrente tem direito à alegada compensação em virtude do contrato que celebrou com o Clube Atlético Mineiro, podendo relevar em sede de quantum compensatório.
Ora, não tendo sido esse o entendimento do Tribunal recorrido, e não sendo esse igualmente o entendimento sufragado por este Tribunal da Relação de Lisboa, conforme infra se explicitará, revelando-se, pois, inócuo ao desfecho da causa a factualidade constante dos referidos artigos 17.º a 19.º e 77.º a 87.º da petição inicial, carece de fundamento a sua consideração na decisão de facto, como procedeu o Tribunal Recorrido.
Uma vez que a factualidade em causa foi impugnada pela R., sempre a mesma teria que ser objeto dos temas da prova e subsequente audiência de discussão e julgamento, o que constituiria uma atividade processual inútil, atenta a sua impertinência ao desfecho da causa, e, por isso, ilícita, atento o disposto no artigo 137.º do CPCivil.
Improcede, pois, também neste domínio a pretensão da Recorrente.
5. Do direito de compensação reclamado pela Recorrente.
(Conclusões I) a Z) das alegações de recurso).
Os presentes autos referem-se à compensação por formação, promoção e valorização de um jogador profissional de futebol, sendo que a factualidade em causa ocorreu de agosto de 2009 a junho de 2011.
À data, o artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 28/98, de 26.06, que estabelecia o regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo e do contrato de formação desportiva, estipulava que «[p]ode ser estabelecida por convenção colectiva a obrigação de pagamento de uma justa indemnização, a título de promoção ou valorização do praticante desportivo, à anterior entidade empregadora por parte da entidade empregadora desportiva que com esse praticante desportivo celebre, após a cessação do anterior, um contrato de trabalho desportivo».
Tal diploma legal foi, entretanto, revogado pela Lei n.º 54/2017, de 14.07.
Contudo, o pagamento de compensação por promoção e valorização mantém-se termos similares, conforme artigo 19.º, n.º 2, da referida Lei n.º 54/2017.
Em matéria de contratação coletiva, releva o Contrato Coletivo de Trabalho celebrado entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol, de 15.07.1999, publicado no BTE n.º 33, de 08.09.1999.
Segundo o artigo 35.º do Anexo III daquele CCT, intitulado como «Regulamento de formação dos jogadores profissionais de futebol», preceito esse aplicável a situações em que não esteja em causa o primeiro contrato de trabalho desportivo, como é o caso,
«1 - A celebração pelo jogador de um contrato de trabalho desportivo com outra entidade empregadora após a cessação do anterior, confere ao clube de procedência o direito de receber do clube contratante a compensação pelo montante que aquela tenha estabelecido nas listas organizadas, para o efeito, pela LPFP.
2 - A compensação prevista no número anterior só será exigível se, cumulativamente:
a) O clube de procedência tiver comunicado por escrito ao jogador, até ao dia 31 de Maio do ano da cessação do contrato, a vontade de o renovar, mediante as condições mínimas previstas no n.º 3 deste artigo, a sua inclusão nas listas de compensação e o valor estabelecido;
b) O mesmo clube tiver remetido à LPFP e ao SJPF, até ao dia 11 de Junho seguinte, inclusive, fotocópia do documento referido no número anterior;
c) O jogador não tenha, em 31 de Dezembro do ano de cessação do contrato, completado ainda 24 anos de idade.
3 — As condições mínimas do novo contrato proposto deverão corresponder ao valor remuneratório global do ano da cessação acrescido de 10% do montante estabelecido na lista de compensação e de uma actualização decorrente da aplicação da taxa de inflação correspondente ao índice médio de aumento dos preços ao consumidor do ano anterior fixada pelo Instituto Nacional de Estatística».
Por sua vez, o artigo 208.º do Regulamento Geral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, vigente à data dos factos em causa, preceituava que:
«1. A celebração pelo jogador de um contrato de trabalho desportivo com outra entidade empregadora após a cessação do anterior confere ao clube de procedência o direito de receber do clube contratante a compensação pelo montante que aquela tenha estabelecido nas listas organizadas, para o efeito, pela Liga P.F.P.
2. A compensação prevista no número anterior só será exigível se, cumulativamente:
a) O clube de procedência tiver comunicado por escrito ao jogador, até ao dia 31 (trinta e um) de maio do ano da cessação do contrato, a vontade de o renovar, mediante as condições mínimas previstas no número três deste artigo, a sua inclusão nas listas de compensação e o valor estabelecido;
b) O mesmo clube tiver remetido à Liga P.F.P. e ao S.J.P.F., até ao dia 11 (onze) de junho seguinte, inclusive, fotocópia do documento referido no número anterior;
c) O jogador não tenha, em 31 (trinta e um) de dezembro do ano de cessação do contrato, completado ainda vinte e quatro (24) anos de idade.
3. As condições mínimas do novo contrato proposto deverão corresponder ao valor remuneratório global do ano da cessação acrescido de 10% (dez por cento) do montante estabelecido na lista de compensação e de uma atualização decorrente da aplicação da taxa de inflação correspondente ao índice médio de aumento dos preços ao consumidor do ano anterior fixada pelo Instituto Nacional de Estatística».
O referido artigo 208.º corresponde hoje ao artigo 130.º do Regulamento Geral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, com as alterações aprovadas na Assembleia Geral Extraordinária de 07.02.2017.
Em função do apontado regime jurídico decorre que uma vez cessado o contrato de trabalho desportivo com um determinado clube o direito de compensação pela formação, promoção e valorização pertence a este clube, enquanto «clube de procedência», devendo tal compensação ser paga a este pelo novo clube contratante.
No contexto apurado nos autos e que decorre da decisão de facto, como clube de procedência deve ser tido o Clube Atlético Mineiro.
É certo que no caso em apreço temos uma situação jurídica quadrilateral: o Clube Atlético Mineiro, enquanto cedente, a R., ora Recorrida, como cessionária, o jogador KP, como cedido, e a A., aqui Recorrente, como um terceiro interposto entre o Clube Atlético Mineiro e o futebolista, na qualidade de cessionário gratuito e temporário, sem qualquer relação jurídica com a R., aqui Recorrida.
Com efeito, no âmbito da respetiva liberdade contratual, em 28.08.2009 a A./Recorrente «celebrou um contrato de trabalho desportivo» com o futebolista KP, contrato esse que em 12.01.2010 foi prorrogado até 30.06.2011, tudo na sequência da «cessão temporária de direitos federativos» do Clube Atlético Mineiro ocorrida em 26.08.2009, sendo que, entretanto, extinta tal «cessão temporária», em 04.07.2011 o Clube Atlético Mineiro cedeu «a título definitivo» à aqui R./Recorrida «os Direitos Federativos do Atleta», conforme factos indicados em III. 8., 10., 14. e 22.
Na relação laboral estabelecida entre a A./Recorrente e o jogador KP, perdurou sempre a relação laboral estabelecida entre este e o Clube Atlético Mineiro, pelo que este desse ser tido como «clube de procedência».
A «cessão temporária» não extinguiu a relação jurídico laboral existente entre o Clube Atlético Mineiro e o futebolista profissional KP, apenas a modificou, pelo que nos termos do apontado regime jurídico o Clube Atlético Mineiro deve ser considerado como «clube de procedência».
Neste contexto, mesmo admitindo que nas duas épocas desportivas a A./Recorrente tenha contribuído em alguma medida para a formação, promoção e valorização do futebolista KP, conforme alega na sua petição inicial, e, pois, por isso, no âmbito do chamado princípio da solidariedade, mesmo admitindo que A./Recorrente tenha direito à compensação por tal formação, promoção e valorização, quanto a tal não pode ser responsabilizada a R./Recorrida, pois esta nenhuma relação jurídica teve com a A./Recorrente relativamente à transmissão dos direitos do jogador KP.
Dito de outro modo, embora a A./Recorrente não seja titular efetivo de direitos sobre o jogador KP, o facto de este ter estado ao seu serviço durante duas épocas desportivas e alegadamente ter contribuído para a formação, promoção e valorização daquele não obsta, assim sendo, que a A./Recorrente possa reclamar a sua quota-parte na formação, promoção e valorização do jogador e, pois, invocar o respetivo direito à compensação no âmbito do denominado princípio da solidariedade.
Tal pretensão não pode, contudo, ser deduzida contra a aqui Recorrida, uma vez que esta é absolutamente alheia ao contrato celebrado entre o Atlético Mineiro e a A./Recorrente.
Nos termos do apontado regime jurídico, enquanto transmissária temporário, a A./Recorrente não pode, pois, ser entendida como «clube de procedência».
A cláusula nona, alínea a), do referido contrato de «cessão temporária», outorgado pelas partes ao abrigo da sua liberdade contratual, impelem um tal entendimento:
«CLÁUSULA NONA – DA TRANSFERÊNCIA DO ATLETA
a) Após 30/06/2010, o ATLÉTICO possui exclusividade no direito de dispor e negociar os direitos federativos e económicos do ATLETA com terceiros que estejam interessados na aquisição de todo ou de parte dos seus direitos federativos e/ou económicos, para transferência definitiva, estando vedado ao MARÍTIMO emprestar ou “subceder”, a qualquer título, os direitos desportivos do ATLETA, sem a expressa anuência do ATLÉTICO.
(…)
(cfr. documento de fls. 102 verso)».
Enfim, como se refere na decisão recorrida:
«Tudo o explanado redunda na inelutável conclusão de que a autora não se enquadra no conceito de “entidade empregadora” relativamente à qual, tratando-se da “anterior”, todos os preceitos mencionados e aplicáveis ao presente caso, estabelecem a possibilidade de pagamento da denominada “compensação por promoção e valorização de praticante desportivo”, pelo novo empregador.
Entidade empregadora anterior será, à luz do exposto, o Clube Atlético Mineiro, o qual, aliás, no contrato de cessão definitiva de direitos federativos do atleta profissional em causa que celebrou com a ré (ponto 21. da fundamentação de facto) reconheceu ter recebido desta as quantias que lhe eram devidas por formação, promoção e valorização do atleta, quantias essas que se incluíram no valor pago pela ré àquele clube brasileiro, além de que, assumiu exclusiva e integralmente a responsabilidade pelo pagamento de todas as quantias que, eventualmente, venham a ser reivindicadas por qualquer clube ou (con)federação a título de compensação por formação e/ou mecanismo de solidariedade na sequência da transferência do atleta para a ré».
Nestes termos, improcede igualmente nesta sede a pretensão recursiva da Recorrente, ficando, em consequência, prejudicada a apreciação do quantum indemnizatório reclamado e a ampliação do âmbito do recurso requerido pela Recorrida (EE a HH) das respetivas contra-alegações).
6. Da dispensa de pagamento do remanescente de taxa de justiça.
(Conclusões AA) a EE) das alegações de recurso).
Nesta sede a Recorrente veio pedir a reforma da sentença recorrida quanto a custas, «dispensando a recorrente ou a recorrida do pagamento do remanescente da taxa de justiça».
Vejamos.
Em conformidade com o disposto nos artigos 529.º, n.º 1, do CPCivil e 3.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais, «[a]s custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte».
Segundo o artigo 529.º, n.º 2 do CPCivil, «[a] taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente e é fixada em função do valor e complexidade da causa nos termos fixados no Regulamento das Custas Processuais».
Nos termos do artigo 6.º, n.ºs 1 e 7, daquele último diploma legal, «[a] taxa de justiça corresponde ao montante global devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o presente regulamento (…)», sendo que «[n]as causas de valor superior a €275 000 o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento».
Como corolário dos princípios do acesso à justiça, da proporcionalidade e da adequação, sob impulso das partes ou oficiosamente, nas causas de valor superior a €275.000,00, o Tribunal pode dispensar total ou parcialmente o remanescente da respetiva taxa de justiça caso as peculiaridades da situação assim o justificarem.
A redução ou dispensa de taxa de justiça deve fundar-se em critérios de razoabilidade, como, designadamente, a complexidade da causa, a utilidade económica dos interesses nela envolvidos e a atitude das partes ao longo do processo, apreciada em função dos princípios da cooperação e boa-fé processual, explicitados nos artigos 7.º e 8.º do CPCivil.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.01.2022, processo n.º 155/07.3TBTVR.E1.S1, www.dgsi.pt/jstj:
«Vem sendo entendimento da jurisprudência que a norma constante do nº 7 do artº 6º do RCP (Regulamento das Custas Processuais) deve ser interpretada no sentido de o juiz poder corrigir o montante da taxa de justiça quando o valor da ação ultrapasse o montante máximo fixado como limite de cálculo da taxa de justiça com base no valor da causa (€275.000) e, dispensar o pagamento, ou da totalidade ou de uma parte, do remanescente da taxa de justiça devida a final, ponderando as circunstâncias do caso concreto (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), servindo de orientação os princípios da proporcionalidade e da igualdade».
«Ou seja, o RCP estabelece um sistema misto de cálculo final da taxa de justiça processual, que assenta somente no valor da ação até um certo limite máximo e na possibilidade de correção da taxa de justiça para menos (dispensa total ou parcial do remanescente) quando se trate de processo de valor tributário assinalável (superior àquele limite máximo de €275.000), e que não seja considerado de excecional complexidade».
Na situação vertente.
Até à presente data os autos têm 482 folhas.
A petição inicial tem 90 artigos, tendo sido com ela juntos 26 documentos. e paga a taxa de justiça de €1.632,00.
A contestação tem 174 artigos e com ela foram juntos 11 documentos e paga a taxa de justiça de €1.632,00.
Na sequência de despacho judicial de 03.11.2020, a A. respondeu à exceção de incompetência em articulado com 19 artigos.
Em 16.12.2020 o Tribunal recorrido proferiu despacho para a A. juntar uma certidão.
Junta tal certidão, em 01.02.2021 o Tribunal recorrido solicitou que as partes apresentassem tradução de documentos constantes dos autos.
Juntos esses documentos, em 04.05.2021 o Tribunal recorrido notificou a A. para juntar uma outra certidão.
Em 28.06.2021 o Tribunal recorrido designou audiência prévia para 22.09 seguinte, o que sucedeu, com duração de cerca de sete minutos.
O saneador-sentença recorrido foi proferida em 50 páginas.
As alegações de recurso têm 175 artigos e 32 conclusões, tendo a Recorrente suportado a taxa de justiça de €816,00.
As contra-alegações têm 95 páginas, incluindo as respetivas conclusões, tendo a Recorrente suportado a taxa de justiça de €816,00.
A matéria em discussão nos autos reveste alguma especificidade, não sendo comum nos tribunais judiciais.
As partes são sociedades desportivas e o litígio tem a ver com o futebol, modalidade desportiva que faz mover muitos milhões de euros, contexto em que à causa foi dado o valor de €5.000.000,00.
Tudo ponderado, considerando os referidos princípios do acesso à justiça, da proporcionalidade e da adequação, assim como o disposto nos aludidos artigos 529.º, n.º 1 e 2, do CPCivil e 3.º, n.ºs 1 e 6.º, n.ºs 1 e 7, do Regulamento das Custas Processuais, bem como a relativa complexidade dos autos supra explicitada e os montantes já pagos a título de taxa de justiça, num total de €4896,00, entende-se que a taxa de justiça remanescente deve ser reduzida em 60% no recurso e na 1.ª instância.

V. DECISÃO  
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o presente recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos, salvo quanto a custas nos termos que a seguir se explicitam.
As custas da ação e do recurso serão suportadas pela Autora/Recorrente, sendo que a taxa de justiça remanescente é reduzida em 60% no recurso e na 1.ª instância - igualmente artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil.

Lisboa, 23 de junho de 2022
Paulo Fernandes da Silva
Pedro Martins
Inês Moura