Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3688/20.2T8SNT-C.L1-1
Relator: FÁTIMA REIS SILVA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PERÍODO INTERMÉDIO
NOTIFICAÇÃO AO DEVEDOR
PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 – O período intermédio, previsto no nº1 do art. 236º do CIRE para a apresentação de pedido de concessão da exoneração do passivo restante, tem como pressuposto a citação do devedor, uma vez que a denominação o situa entre dois acontecimentos, sendo o termo inicial a citação – e o decurso subsequente do prazo de 10 dias – e o final, ou o encerramento da assembleia, quando ocorra, ou o decurso do prazo de 60 dias após a sentença.
2 – O pedido de exoneração do passivo restante deduzido por devedor que não tenha sido citado ou notificado com valor de citação, não poderá ser rejeitado por extemporâneo nos termos conjugados do nº 1 do art. 236º do e da al. a) do nº1 do art. 238º do CIRE.
3 – A notificação do devedor prevista no nº2 do art. 37º do CIRE tem valor de citação, pelo que, sendo efetuada, pessoal ou editalmente, determina o início da contagem do prazo de 10 dias para a dedução do pedido.
4 – Nesses casos, o período intermédio decorrerá entre o termo daquele prazo de 10 dias e o termo do prazo de 60 dias subsequentes à prolação da sentença que declarou a insolvência, se este ocorrer posteriormente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
Banco C, SA, intentou ação especial pedindo a declaração de insolvência de DAF.
Tentada a citação da devedora por via postal e por contacto de agente de execução, a mesma não se mostrou possível.
Após colhidas informações nas bases de dados, foi determinada a dispensa de citação da devedora, nos termos do disposto no art. 12º do CIRE.
Realizou-se audiência de julgamento, vindo a ser proferida, em 31/03/2021, sentença que declarou a insolvência da requerida, na qual foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório.
A Sra. Administradora da Insolvência apresentou o relatório previsto no art. 155º do CIRE e, posteriormente, a insolvente requereu lhe seja concedida a exoneração do passivo restante.
Foi proferido, em 17/06/2021, o seguinte despacho:
“Nestes termos, sem necessidade de mais considerações, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 238.º, n.º 1, al. a), porque apresentado fora do prazo legalmente consagrado para o efeito.”
Inconformada apelou a insolvente pedindo seja dado provimento ao recurso, sendo consequentemente revogado o despacho recorrido e substituído por outro que aprecie o pedido de exoneração do passivo restante, formulando as seguintes conclusões:
“1. A insolvente requereu a exoneração do passivo restante no dia 4 de junho de 2021;
2. Pedido que foi indeferido por despacho proferido a 17/06/2021;
3. Com o seguinte fundamento: «(…) a sentença de 31-03-2021 e a sentença dispensou a realização da assembleia de credores. Assim, o termo dos sessenta dias subsequentes à sentença ocorreu em 31-05-2021, razão pela qual o pedido de exoneração do passivo restante, apresentado em 05-06-2021, é extemporâneo. (…)»;
4. O tribunal “a quo” está em erro relativamente à data de entrada do pedido de exoneração do passivo restante;
5. Pois, o mesmo deu entrada via electrónica Citius no dia 4 de Junho de 2021, pelas 23h30, que é a data e hora indicadas junto da assinatura electrónica da ora subscritora, aposta nos termos previstos na Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, que deve ser a considerada para a contagem do término do prazo;
6. Os presentes autos foram da iniciativa do credor Banco C;
7. A insolvente não foi notificada, a não ser por edital, o último dos quais a 13 de Abril de 2021;
8. Pois desde momento anterior à proposta desta acção de insolvência, a mesma estava a residir no estrangeiro, nomeadamente Reino Unido;
9. O tribunal “a quo” fez uma interpretação errada do artigo 136.º, n.º 1 do CIRE, violando o mesmo;
10. A insolvente teria o prazo de 10 dias a contar da citação para apresentar o pedido de exoneração do passivo restante, se essa citação tivesse ocorrido, o que não sucedeu;
11. Ainda assim, a mesma a ter tido lugar, só se poderia considerar conhecida a 5 de Abril de 2021;
12. Numa outra perspectiva, a declaração de insolvência tem de ser publicada por editais, a partir dos quais correm éditos, como foi o que aqui sucedeu;
13. Ou seja, correndo 5 dias de éditos, a sentença só se poderia tornar conhecida a 6 de Abril de 2021, data a partir da qual começam a contar os prazos;
14. A lei determina um período intermédio de 60 dias, o qual só poderá ter início com o conhecimento do acto, pois de outra forma, estar-se-ia a limitar os direitos processuais das partes;
15. Não se podem retirar de forma discricionária dias à contagem dos prazos, o que é ilegal e fere as regras gerais da contagem dos prazos;
16. Por outro lado, veja-se a anotação ao artigo 236.º, n.º 1 do CIRE de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, do qual resulta que para que a contagem do prazo de 10 dias faça sentido, o prazo de 60 dias deverá contar a partir da citação da sentença e não da data em que ela foi proferida, tendo ainda por referência o que resulta dos artigos 37.º e 38.º do CIRE;
17. Veja-se ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 11/04/2019, in www.dgsi.pt, cuja posição adoptamos com as devidas adaptações ao caso concreto: « (…) sendo o processo de insolvência um processo que se rege pelo mesmo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (cf. artigo 17º do CIRE) alcançamos a conclusão que foi postergada na citação do apelante uma formalidade essencial que impede que a data da publicação do anúncio seja a data determinante para o início do cômputo do prazo para deduzir embargos.»;
18. Pelo exposto, conclui-se que ainda que considerando o dia 5 de Abril de 2021, como data de notificação da insolvente (a qual factualmente nem sequer ocorreu), sendo essa a data a partir da qual deverão ser contados os 60 dias;
19. O que significa, que apresentado o pedido de exoneração a 4 de Junho de 2021, o mesmo entrou dentro do prazo, por este ser o 60.º dia, pelo que deveria ter sido apreciado;
20. Razão por que o despacho proferido deverá ser revogado por ilegal e substituído por outro de apreciação do pedido, assim como cumpridas as formalidades referentes ao pedido.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho de 14/08/2021 (ref.ª 132219144).
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas a única questão a decidir é a de se o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela insolvente foi deduzido intempestivamente.
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3. Fundamentos de facto:
Com relevância para a decisão do recurso, resultam dos autos, além dos constantes no relatório, os seguintes factos:
1 - O presente processo de insolvência foi requerido por credor em 27/02/2020.
2 – A carta registada remetida para citação da requerida veio devolvida com a menção “não atendeu”, não tendo sido reclamada.
3 – Tentada a citação por contacto pessoal de agente de execução, a mesma não se mostrou possível.
4 – Foi dispensada a citação da requerida nos termos do nº1 do art. 12º do CIRE.
5 – A notificação expedida para a requerida relativa à marcação de audiência de julgamento foi devolvida coma menção “Mudou-se (morada desconhecida)”, em 29/03/2021.
6 – A insolvência da requerida foi decretada por sentença de 31/03/2021, na qual foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório.
7 – O edital previsto no art. 37º nºs 7 e 8 do CIRE foi afixado à porta do último domicílio conhecido da devedora em 11/05/2021.
8 – A carta registada com AR enviada para a requerida em 01/04/2021 para notificação da sentença nos termos do nº2 do art. 37º do CIRE foi devolvida com a menção “Mudou-se (morada desconhecida)”, em 12/04/2021.
9 – Foi afixado à porta do tribunal onde corre termos o processo, em 13/04/2021, edital com o seguinte teor:
“Nos autos acima identificados, correm éditos de 30 dias, contados da data da publicação do anúncio eletrónico na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, acessível no endereço eletrónico https://tribunais.org.pt., citando:
Insolvente: DAF, profissão: Desconhecida ou sem Profissão, filho(a) de XX e de XX, nascido(a) em xx-xx-xxxx, natural de (…), nacional de (…), NIF – (…), Passaporte – (…), Cartão Cidadão – (…), domicílio: Rua (…) MEM MARTINS com última residência conhecida na(s) morada(s) indicada(s), da sentença proferida a 31-03-2021, declarando a sua insolvência.
Da sentença pode ser interposto recurso, no prazo de 15 dias (nº 2 do artº 42º do CIRE - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Em alternativa ou cumulativamente ao recurso, nos termos da alínea a do nº 1 do artº 40º do CIRE, pode o devedor, querendo, no prazo de 5 dias, opor embargos à sentença.
Em ambas as situações é, obrigatória a constituição de mandatário.
Com a petição de embargos, devem ser oferecidos todos os meios de prova de que o embargante disponha, ficando obrigado a apresentar as testemunhas arroladas, cujo número não pode exceder os limites previstos no artigo 511º do Código de Processo Civil (nº 2 do artº 25º do CIRE).
Foi prescindida a realização da assembleia de credores aludida no artº 156º e prevista na alínea n) do nº 1 do artº 36º, ambos do CIRE.
Fica ainda notificado para de imediato, fazer entrega ao administrador da insolvência nomeado:
(identificação do Administrador da Insolvência)
dos documentos previstos no nº 1 do artº 24 do CIRE, e para os efeitos da declaração de insolvência, nomeadamente os previstos nos artigos:
81º - Efeitos sobre o devedor e outras pessoas;
82º - Efeitos sobre os administradores e outras pessoas e
83º - Dever de apresentação e de colaboração,
todos do CIRE.
Os duplicados encontram-se na secretaria à disposição do citando.”
10 – Em 20 de maio de 2021 foi apresentado relatório nos termos do art. 155º do CIRE, e respetivos anexos.
11 – No dia 04/06/2021 (pelas 23.30.59 h) foi apresentado requerimento pela insolvente, requerendo lhe seja concedida a exoneração do passivo restante e juntando documentos e procuração forense da qual consta a mesma data.
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4. Fundamentos do recurso:
A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o fresh start.
Nos termos do disposto no art. 235.º do CIRE[1]: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.»
“A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[2]
É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente.
Não esqueçamos que o processo de insolvência «…tem como finalidade a satisfação dos credores…» como se prescreve logo no art. 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo.[3]
Essa tensão entre dois interesses opostos reflete-se nas várias normas que regulam a exoneração, desde logo na opção do nosso legislador pelo regime do earned start, ou reabilitação (por contraposição ao fresh start puro), ou seja, fazendo o devedor passar por um período de prova e concedendo o benefício apenas se o devedor o merecer.
A ponderação destes interesses contrapostos deve ser considerada como guião para a interpretação das normas dos arts. 235º e ss. do CIRE, como resulta, entre outros, do Ac. STJ de 02-02-2016 e TRP de 15-09-2015[4], entre as quais os arts. 236º e 238º.
O art. 236º regula a oportunidade de apresentação do pedido, cuja legitimidade pertence em exclusivo ao devedor declarado insolvente, nos seguintes termos:
«1 - O pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio.
2 - Se não tiver sido dele a iniciativa do processo de insolvência, deve constar do acto de citação do devedor pessoa singular a indicação da possibilidade de solicitar a exoneração do passivo restante, nos termos previstos no número anterior.
3 - Do requerimento consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes.
4 - Na assembleia de apreciação de relatório ou, sendo dispensada a realização da mesma, no prazo de 10 dias subsequente ao decurso do prazo de 60 dias previsto na parte final do n.º 1, é dada aos credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento.»
Estabelece, por sua vez, o art. 238º, sob a epígrafe Indeferimento liminar:
«1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
(…)
2 - O despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência nos termos previstos no n.º 4 do artigo 236.º, exceto se o pedido for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior.»
O art. 238º, como é unanimemente apontado pela doutrina, não prevê um “verdadeiro e próprio indeferimento liminar”, mas algo mais, porquanto alguns dos requisitos previstos obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito do tribunal[5].
E o juízo de mérito exigido no preceito não é relativo à concessão ou não concessão da exoneração do passivo restante, mas antes sobre a oportunidade de o devedor se submeter a um período probatório que, a final, pode resultar na oportunidade de ser liberado das dívidas. Este é o primeiro de dois momentos fundamentais no procedimento de exoneração, o despacho inicial, sendo o segundo o despacho de exoneração, propriamente dito.
De entre as causas de indeferimento liminar previstas, a alínea a) reveste natureza processual e as demais são requisitos de ordem substantiva[6].
É exatamente quanto à previsão da alínea a), de natureza formal, que se coloca a questão em apreciação neste recurso.
Sinteticamente, no caso de processo de iniciativa de credor ou outro legitimado, como o presente, o devedor dispõe do prazo de 10 dias após a citação – o mesmo prazo de que dispõe para deduzir oposição – para apresentar o seu pedido de exoneração do passivo restante. Não o fazendo nesse prazo, pode apresentar tal pedido no que a lei designa de período intermédio, que decorre entre o termo do prazo de 10 dias posterior à citação e até ao encerramento da assembleia de apreciação do relatório ou, caso esta tenha sido dispensada, até 60 dias depois da sentença. Após esse momento, refere a lei o pedido «será sempre rejeitado».
Como nos dão nota João Labareda e Carvalho Fernandes[7] o verdadeiro alcance deste regime, resultante da conjugação do nº1 do art. 236º e da al. a) do nº1 do art. 238º, é o de “o pedido de exoneração do passivo restante ser dado a conhecer na assembleia de apreciação do relatório, trâmite que, por um lado, ficava prejudicado se se permitisse a apresentação posterior à sua realização, mesmo que dentro dos dez dias posteriores à citação, mas, por outro, também não se justificaria, uma vez que sempre seria de rejeitar o pedido.”
Já então, na versão anotada anterior à revisão do CIRE operada pelo Decreto-Lei n.º 79/2017 de 30/06, se levantava a questão quanto ao termo deste prazo quando não fosse convocada assembleia de credores. Tal podia suceder, precisamente nos processos em que o devedor não se havia apresentado à insolvência pedindo a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no nº2 do art. 36º nessa versão do diploma.
Nesses casos, os ilustres anotadores entendiam que, não se realizando assembleia de credores, e sendo o fundamento do regime o conhecimento pelos credores no momento da assembleia, o pedido deveria considerar-se sempre tempestivo, desde que deduzido nos 10 dias subsequentes à citação. O período intermédio para esses casos, propõem, será o decorrido entre os 10 dias subsequentes à citação e o 45º dia posterior à sentença, por aplicação do nº4 do art. 36º.
Alexandre Soveral Martins[8], sobre a mesma questão e na mesma versão do código avança que existem várias teses: “Uma primeira leitura poderia ser a de considerar que então não haveria limite legal para a apresentação do pedido. Outra poderia ser a de que não haveria período intermédio e, por isso, o devedor não poderia apresentar o pedido de exoneração fora das hipóteses referidas na primeira parte do art. 236º, 1. Por fim, a terceira via, que parece mais razoável, leva-nos a aplicar o prazo de 45 dias previsto no art. 36º nº4: se o não for diretamente parece adequado aplica-lo, ao menos por analogia.”
O caso presente, decorrido já na versão do CIRE que permite a dispensa de assembleia de apreciação do relatório quando é requerida a exoneração do passivo restante, apenas tem por especialidade o facto de agora a lei prever expressamente o prazo de 60 dias após a prolação da sentença como termo final do período intermédio quando a assembleia seja dispensada, afastando assim qualquer dúvida sobre a aplicabilidade do prazo de 45 dias proposto pelos autores que vínhamos citando atenta a regra do nº4 do art. 36º do CIRE.
Qualquer das posições enumeradas tem por pressuposto a citação do devedor[9]. Note-se que a própria denominação de período intermédio[10] o situa entre dois acontecimentos, sendo o termo inicial a citação – e o decurso subsequente do prazo de 10 dias – e o final ou o encerramento da assembleia, quando ocorra, ou 60 dias após a sentença.
Quid júris quando, como no caso presente, o devedor não haja sido citado, e tenha vindo a ser decretada a insolvência após dispensa de citação?
Os termos da questão são os mesmos que já se colocavam antes de 2017, como já referimos.
O tribunal recorrido sublinhou o segmento da regra que refere que o pedido será sempre rejeitado se for deduzido após os 60 dias subsequentes à sentença e aplicou-o sem qualquer consideração quanto à citação da devedora.
Percorrendo a jurisprudência sobre este tema da tempestividade do pedido de concessão de exoneração do passivo restante, encontramos essencialmente três núcleos de temas: nos Acs.[11] TRP de 16/01/2012 (Ana Paula Carvalho) e de 05/05/2014 (Rita Romeira), consolidou-se a ideia de que um pedido deduzido após os 10 dias decorridos sobre a citação e antes do encerramento da assembleia não é extemporâneo. Em ambos os casos os devedores tinham sido citados; os Acs. TRC de 10/12/2009 (Francisco Caetano) e 10/03/2015 (Maria Inês Moura), centraram-se na interpretação da expressão “livremente” no que toca à apreciação dos pedidos formulados no período intermédio; mais uma vez, no concreto, tratávamos de devedores citados; estas duas ideias foram retomadas no Ac. TRG de 30701/2020 (Afonso Cabral Andrade), no qual o devedor havia, igualmente sido regularmente citado; finalmente nos Acs. TRE de 24/09/2020 (dois acórdão proferidos na mesma data por Francisco Matos e Vítor Sequinho), citados pela decisão recorrida, o tribunal rejeitou a ideia de que o prazo de 60 dias se contaria do trânsito em julgado da decisão que decretou a insolvência e não da prolação da mesma. Nestes dois arestos, os devedores tinham sido citados.
No Ac. TRE de 02/04/2020 (Isabel Peixoto Imaginário), numa situação em que o devedor havia sido também regularmente citado, foi revogado o despacho de indeferimento por intempestividade, de um pedido apresentado para lá dos 60 dias após a sentença, mas em que o devedor havia pedido apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, o que interrompeu o prazo em curso. Ou seja, o termo final do prazo foi entendido como não prejudicando a aplicabilidade de outras regras imperativas – que no caso asseguravam o acesso ao direito e aos tribunais.
Importa sublinhar que nenhum destes doutos acórdãos se debruçou sobre a questão do termo inicial do prazo de dedução do pedido, termo esse que não é o do início de contagem do prazo de 60 dias – que a devedora situa na notificação da sentença e o tribunal coloca na prolação da sentença – mas sim o do início do prazo de 10 dias após a citação do devedor.
A nosso ver, a correta interpretação do nº1 do art. 236º do CIRE é a proposta por Carvalho Fernandes e João Labareda: a previsão de que o pedido será sempre rejeitado se for deduzido após a realização da assembleia significa que é assim mesmo que ainda estejam a decorrer os dez dias subsequentes à citação do devedor, sem prejuízo de situações limites de denegação de acesso ao direito. Não significa, porém, que o pedido será sempre rejeitado, nas mesmas circunstâncias de tempo, mesmo que o devedor não tenha sido citado.
A possibilidade de estar ainda a decorrer o prazo de dez dias subsequente à citação no momento da realização da assembleia ou 60 dias depois da sentença resulta da norma do nº2 do art. 36º do CIRE, nos termos do qual a sentença que declara a insolvência é notificada ao devedor «nos termos previstos para a citação» caso este não tenha sido citado pessoalmente para os termos do processo. Os autores que vimos seguindo consideram que, neste caso há mesmo lugar a citação[12].
Quer se considere que ocorre uma verdadeira citação, quer se considere tratar-se de uma notificação com valor de citação, as consequências a extrair terão que ser as mesmas: o legislador não ignora esta regra (citação ou notificação com valor de citação para os casos de dispensa de audiência do devedor – arts. 36º nº2 e 12º do CIRE), pelo que estando disso ciente e prevenindo a citação tardia, ou seja, só na sequência da sentença, a lei estabeleceu um termo final para a dedução do pedido de exoneração que protege o outro interesse equilibrado no instituto, o interesse dos credores, garantindo que eles se poderão sempre pronunciar na assembleia de apreciação do relatório (e quiçá adequar as suas opções quanto à tramitação futura na medida em que a lei tal lhes permita).
Na verdade, o devedor não citado nunca dispôs do prazo e da oportunidade de deduzir o pedido, não se lhe seguiu o período intermédio, que, consequentemente, não terminou com o encerramento da assembleia ou com o decurso do prazo de 60 dias após a prolação da sentença.
O regime jurídico processual e as respetivas consequências têm que ser interpretados tendo em conta a sua finalidade e os fins substantivos que possibilitam: no caso proporcionar aos devedores uma segunda chance, permitindo, porém, aos credores que se pronunciem e pesando os respetivos interesses nos termos previstos por lei.
Considerar que um prazo já decorreu sem que tenha ocorrido o evento que a lei elege em termo inicial é, em bom rigor, negar o direito, que, neste caso é o próprio interesse do devedor em pedir a segunda chance. Denegar por completo esse direito apenas porque os credores não se poderão pronunciar em assembleia quando essa assembleia não foi, sequer, convocada, é excessivo e frustra por completo as finalidades do instituto.
Não permitir o pedido de exoneração, num caso em que o devedor não tenha sido citado, pessoal ou editalmente, “obriga” o devedor a deduzir embargos à sentença, a fim de a eliminar para poder recomeçar a contagem do prazo. Ora se o devedor apenas pretender pedir a exoneração, concordando que está insolvente, não há qualquer justificação para a dedução de embargos, ficando, assim, totalmente vedada ao insolvente a possibilidade de sequer submeter o pedido.
Vejamos então a sucessão de atos ocorridos no processo:
- a devedora não foi citada, nomeadamente nos termos previstos no nº2 do art. 236º do CIRE, dado que a sua audiência foi dispensada nos termos do nº1 do art. 12º do CIRE;
- a sentença foi proferida em 31/03/2021;
- foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório;
- a notificação pessoal da sentença à devedora, com valor de citação, frustrou-se;
- foi efetuada a notificação edital da sentença à mesma[13], em 13/04/2021, tendo o edital respetivo sido afixado à porta do tribunal em 13/04/2021;
- o pedido de concessão de exoneração do passivo restante foi apresentado em 04/06/2021.
Nos termos do nº1 do art. 17ºdo CIRE, o processo de insolvência é regido pelas regras deste código e, subsidiariamente pelo Código de Processo Civil, «em tudo o que não contrarie as disposições do presente código.».
Sem prejuízo, ao longo do CIRE, o legislador remeteu especificamente para algumas regras do CPC, em especial para as normas que regulam o processo executivo na parte relativa à tramitação de feição “executiva”, ou seja, a apreensão e liquidação, mas não só[14]. A regra geral do art. 17º, no entanto vale também para as remissões expressas, ou seja, a aplicação dos preceitos do CPC dá-se enquanto os mesmos não contrariem disposições do CIRE.
A matéria da formalidade das notificações e citações tem previsão no CIRE em algumas matérias específicas, como o já citado art. 37º, mas, em tudo o que não seja regulado no diploma insolvencial, rege-se pelas normas do CPC.
A citação edital não se encontra prevista, sendo o respetivo regime afastado na fase declarativa do processo, precisamente pela previsão do art. 12º do CIRE, mas não o sendo quanto à notificação pessoal com valor de citação prevista no nº2 do art. 37º do CIRE[15].
E neste passo convém esclarecer que a especificidade dos éditos prevista no nº8 deste preceito – éditos de cinco dias, que se contrapõem aos éditos de 30 dias previstos no art. 245º nº3 do CPC – se aplica apenas à citação de credores e outros interessados prevista no nº7 do mesmo preceito.
Dos autos resulta ter sido efetuada a notificação com valor de citação, da devedora, com respeito pelo disposto no art. 240º do CPC[16], considerando-se a notificação/citação efetuada no dia da publicação do anúncio e da afixação (242º nº1 do CPC), ou seja, em 13/04/2021.
Neste passo há que referir que não tem aplicação, no caso dos autos, a doutrina do douto Ac. TRE de 11/04/2019 (Maria João Sousa e Faro), que numa notificação nos termos dos nºs 7 e 8 do art. 37º (e não nº2) do CIRE valorou o facto de o edital ter sido afixado muito depois da publicação do anúncio no portal citius, entendendo dever ser considerada a última publicidade, dado que a lei pretende que a publicação seja subsequente à afixação. Ora, no caso presente, publicação e afixação coincidiram.
O texto do edital menciona expressamente como prazo dos éditos 30 dias.
No entanto não é mencionada a possibilidade de requerimento de concessão de exoneração do passivo restante ou qualquer prazo para o efeito.
A consequência de tal omissão apenas poderá ser a mesma que para a omissão na citação pessoal do devedor na fase declarativa do processo – o juiz não poderá apreciar livremente o pedido se formulado no período intermédio, tendo que, nessa fase, apreciar o pedido como se tivesse sido formulado nos 10 das subsequentes à citação.
Temos assim, como data da citação – ou da notificação com valor de citação – 13/04/2021, a que acrescem 30 dias de éditos, ou seja, o prazo de 10 dias para a dedução do pedido nos termos do nº1 do art. 236º do CIRE contou-se a partir de 13/05/2021, terminando a 24/05/2021(dado que o dia 23/05/2021 não foi um dia útil).
Tal implica que, no nosso caso concreto, no dia 25/05/2021 começou o período intermédio, que terminou, como decidido, no dia 31/05/2021, dia em que se perfizeram os 60 dias sobre a prolação da sentença.
Seguindo a tese já exposta, se neste caso concreto não houvesse sido efetuada a notificação edital com valor de citação, o pedido seria tempestivo, mesmo decorridos os 60 dias sobre a prolação da sentença, dado que foi dispensada a realização de assembleia e a tutela dos credores não exigiria fosse dada maior relevância a este prazo que ao próprio prazo de apresentação do pedido.
No entanto, o pedido foi apresentado mais de dez dias depois da notificação/citação e mais de 60 dias depois da prolação da sentença. Neste ponto concordamos com a decisão recorrida e com a jurisprudência citada – o prazo de 60 dias conta-se da prolação da sentença, não do seu trânsito e não da sua notificação, pessoal ou edital.
Neste ponto há a notar que se trata de uma técnica – visando a celeridade e segurança jurídica dados os efeitos da sentença declaratória de insolvência para terceiros – que o CIRE usa noutros preceitos, como no art. 21º, não permitindo a desistência do pedido ou da instância por parte do requerente da insolvência que não seja o próprio devedor após ser proferida sentença. Também no art. 236º nº1 é possível identificar o interesse da certeza e segurança jurídicas, protegendo desta feita o interesse dos credores, que, decorrido determinado prazo sobre a sentença e desde que o devedor tenha sido citado, já não existe a possibilidade de perdão dos créditos que reclamaram. Podem vir ou não a ser satisfeitos pelo produto da venda dos bens a apreender e liquidar, mas não “perdoados” ou exonerados[17].
Assim, embora com diversa e reforçada argumentação, deve ser confirmada a decisão recorrida, dado que o pedido de concessão do benefício da exoneração do passivo restante formulado pela devedora/apelante, foi apresentado fora de prazo, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 236º nºs 1 e 2, 238º nº1, al. a) e nº2, 37º nº2, todos do CIRE e arts. 240º e ss. do CPC, aplicáveis ex vi art. 17º do referido diploma.
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Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil.
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5. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar integralmente improcedente a apelação, decidindo-se manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Notifique.
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Lisboa, 28 de setembro de 2021
Fátima Reis Silva
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
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[1] Diploma ao qual pertencem todos os artigos citados sem indicação de proveniência.
[2] Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Abril de 2018, pg. 560.
[3] Neste sentido Catarina Serra, local citado, pgs. 562 e 563.
[4] Todos disponíveis em www.dgsi.pt
[5] Cfr. Menezes Leitão, em Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 10ª edição, Almedina, 2018, pg. 288, Assunção Cristas em Exoneração do devedor pelo Passivo Restante, em Themis, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, pg. 169 e Catarina Serra, em Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pg. 564.
[6] Assunção Cristas, local citado na nota anterior.
[7] Em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, Quid Juris, 3ª edição, 2015, pgs. 849 e 850.
[8] Em Um curso de direito da insolvência, Almedina, 2ª edição, 2016, pg. 588.
[9] Alexandre Soveral Martins, local citado, nota 13, refere a hipótese de ter sido dispensada a audiência do devedor como devendo ser ponderada pelo juiz, mas para a “livre apreciação” dos pedidos formulados no período intermédio e não para a determinação da tempestividade do pedido.
[10] Que está ou fica de permeio entre duas coisas, como consta do dicionário online Priberam, disponível em https://dicionario.priberam.org/interm%C3%A9dio.
[11] Todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[12] Local citado, pg. 263.
[13] A prévia consulta às bases de dados havia sido ordenada antes da dispensa de audiência da devedora.
[14] Por exemplo, a remissão relativa ao limite de testemunhas constante do nº2 do art. 25º do CIRE, a remissão do nº5 do art. 35º do CIRE para o art. 596º do CPC ou a remissão para os termos do processo comum constantes do art. 148º, também do CIRE.
[15] Neste sentido João Labareda e Carvalho Fernandes, local citado, pg. 263.
[16] Não foi arguida qualquer irregularidade desta notificação, devidamente documentada nos autos.
[17] O que é relevante, nomeadamente para efeitos contabilísticos e fiscais.