Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2341/13.8TBFUN.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: INVENTÁRIO
DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.Da análise do art. 20º do CC resulta que o seu objectivo se centra na determinação da ordem jurídica local competente, dentro da lei pessoal competente, devendo recorrer-se ao princípio da conexão mais estreita, no caso da residência habitual do interessado se situar fora do Estado da nacionalidade.
2.A legítima tem como fundamento o interesse dos filhos do autor da herança e é inspirada por razões de interesse e ordem pública, devendo afastar-se a lei estrangeira que tenha permitido ao testador dispor livre e ilimitadamente de todos os seus bens em prejuízo dos filhos, desde que existam fortes elementos de conexão com Portugal, nomeadamente a nacionalidade e residência dos filhos, a residência do de cujus e a situação dos bens, por atingir o sentimento ético e jurídico dominante e lesar gravemente interesses de primeira grandeza da comunidade local.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Em 30.05.2013, Vina …E…L… intentou o presente processo de inventário para partilha da herança aberta por óbito de W…A…E… L…, falecido a 9.5.2010, na freguesia do ..., com residência na Casa Branca, nº 9, São Martinho, ....

Foi nomeada cabeça de casal Oksana B…, que prestou declarações, em 7.11.2013.

Em 3.03.2014, a cabeça de casal veio requerer a rectificação das suas declarações, bem como a consequente inutilidade superveniente da lide.

A requerente pronunciou-se no sentido da improcedência do requerido, ao que a cabeça de casal respondeu.

Foram juntos pareceres jurídicos e requerida documentação após o que foi proferida sentença que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

Não se conformando com o teor da decisão, apelaram as interessadas Vina L… e Mary C… ..., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
a.-O presente recurso vem interposto pelas interessadas Vina … E…L…e Mary S…E…e L…C…R… da decisão proferida pelo Tribunal a quo a 27 de Fevereiro de 2016, nos termos da qual se decidiu que a lei aplicável à sucessão por morte de William … … ... é a lei inglesa e, em consequência, se considerou inexistirem quaisquer bens a partilhar no âmbito do presente processo de inventário, na medida em que o falecido outorgou testamento através do qual declarou deixar todos os seus bens à cabeça-de-casal, Oksana B….
b.-A primeira questão sobre a qual o Tribunal a quo proferiu decisão no âmbito da sentença recorrida respeita precisamente à determinação da lei aplicável à sucessão por morte de William ... ... L... e, consequentemente, à avaliação sobre a validade legal do testamento por este outorgado, tendo, quanto a esta matéria, concluído, de forma simplista e, salvo o devido respeito, sem fundamentação concreta e consistente, que a lei aplicável será a lei inglesa.
c.-Tal entendimento – não podendo deixar de se salientar que a sentença recorrida contém, no que à sua fundamentação diz respeito, duas meras páginas de texto – decorre exclusivamente da circunstância de o falecido ter nacionalidade britânica e de os artigos 62º e 63º do Código Civil disporem que, à sucessão por morte e especificamente quanto à capacidade de disposição por morte, é aplicável a lei pessoal, a qual corresponde, nos termos do disposto no artigo 31º do Código Civil, à lei da nacionalidade.
d.-A referida decisão judicial, para além de simplista e escassamente fundamentada, ignora por completo circunstâncias específicas do caso sub judice e disposições concretas da Lei,
em matéria de normas de conflitos, em particular, o facto de as regras de conflitos do nosso sistema jurídico apontarem, no que concerne a lei da nacionalidade, para o direito de um Estado que não possuiu um ordenamento jurídico unitário. Assim, uma questão que podia revelar-se de grande simplicidade – determinação da lei pessoal do inventariado nos termos, conjugadamente, do disposto nos artigos 62º e 31º, nº 1 do Código Civil – traduz, no caso concreto sub judice, um factor de complexidade adicional, uma vez que o inventariado é nacional de um Estado em que coexistem diferentes ordenamentos jurídicos locais, i.e., um ordenamento jurídico plurilegislativo.
e.-Impunha-se ao Tribunal a quo ter apreciado a questão concreta em decisão com recurso às normas legais aplicáveis, i.e. com recurso ao disposto no artigo 20º do Código Civil, o qual prevê, precisamente, os critérios de decisão a adoptar no tipo de situação em apreço.

f.-Decorre do disposto no artigo 20º, nº 1 e 2 do Código Civil que o nosso ordenamento jurídico estabelece um mapa claro a seguir na eventualidade de estarmos perante a atribuição de competência em razão da nacionalidade, sendo esta a de um Estado em que coexistem diferentes sistemas legislativos, a saber:
(iv)-em primeiro lugar, deve averiguar-se se o direito interno do Estado da nacionalidade determina, para o tipo de caso específico em análise, qual o sistema aplicável;
(v)-em segundo lugar e caso o referido em (i) não ocorra, determina a Lei que deve recorrer-se ao direito internacional privado do Estado em apreço, ou seja, devem aplicar-se aos conflitos de leis interlocais os princípios aplicáveis no Estado à solução dos conflitos de leis em situações privadas internacionais;
(vi)-em terceiro lugar e caso não tenha sido possível recorrer a qualquer das formas previstas em (i) e (ii), a Lei é clara ao determinar que deverá considerar-se como lei pessoal a lei da residência habitual, ou seja, que deverá abrir-se uma excepção à regra geral do artigo 31º nº 1 do Código Civil quanto à determinação da lei pessoal do interessado.

g.-O Reino Unido é precisamente um dos casos em que se revela impossível, por inexistente, o recurso a regras unificadas de direito interlocal e de regras de conflitos num sistema internacional privado, o que obriga, precisamente, ao recurso à solução prevista na parte final do nº 2 do artigo 20º do Código Civil.
h.-Independentemente dos argumentos doutrinários que possam ser aventados na defesa de uma ou outra solução, não é possível ignorar que estamos aqui perante uma escolha concreta e expressa do legislador, depois de ponderadas as diversas soluções possíveis para os casos em apreço, i.e., o legislador português, em face das diversas opções que podiam legitimamente ter sido adoptadas no que concerne a determinação do direito material aplicável (como sejam a aplicabilidade da lei vigente na capital do Estado da nacionalidade ou da tentativa de determinação da subnacionalidade do interessado) optou por definir como lei pessoal a lei da residência habitual do interessado, sempre que a lei da nacionalidade do mesmo remetesse para um ordenamento de um Estado plurilegislativo onde não existem normas de conflitos de direito inter-regional ou de direito internacional privado comuns às várias circunscrições legislativas.
i.-Esta determinação legal impõe, salvo o devido respeito, que no caso concreto sub judice o Tribunal a quo tivesse concluído que a lei pessoal do inventariado é a lei do Estado onde o mesmo tinha a sua residência habitual, ou seja, a Lei Portuguesa.
j.-Optar por ignorar o disposto no artigo 20º nº 2 do Código Civil, nomeadamente por recurso à denominada interpretação revogatória ou ab-rogante, mais não é do que incumprir a Lei e, dessa forma, ferir de morte a decisão recorrida.
k.-Neste sentido pronunciou-se a melhor e mais abrangente doutrina (acima parcialmente transcrita) – entre os quais J. Baptista Machado, A. Ferrer Correia, Manuel Almeida Ribeiro e António Marques dos Santos - bem como o Prof. Luís Barreto Xavier no parecer junto aos autos pelas Recorrentes e para o qual se remete, por uma questão de economia processual.
l.-No que concerne a aplicação da lei do país da residência habitual como lei pessoal, importa deixar claro que não existe nenhum factor que possa determinar tal solução como inaceitável ou chocante.
m.-Bem pelo contrário, não podia o Tribunal a quo ignorar que a residência habitual desempenha, no nosso sistema jurídico, tal como em muitos outros, uma importância fundamental, estando, em todos os campos relativos aos elementos de conexão, ao mesmo nível que a lei da nacionalidade.
n.-O facto de o legislador nacional ter optado por escolher como lei pessoal a lei da nacionalidade, não implica nenhum desfavor ou desconsideração pela conexão (em muitos casos até mais estreita) decorrente da residência habitual. Bem pelo contrário, muitos casos concretos – entre os quais o caso sub judice, conforme infra se demonstrará – apontam precisamente em sentido oposto, uma vez que, em não poucas situações, a ligação, o vínculo, entre uma pessoa e o Estado onde a mesma escolheu estabelecer-se e residir com carácter de permanência e estabilidade, é muito mais relevante e significativo do que o vínculo de natureza política decorrente da nacionalidade.
o.-Chegados aqui, importa, por último, salientar a importância da residência habitual como elemento de conexão em face do caso concreto em apreço.
p.-Conforme resulta da factualidade assente, para além de William ... ... L... ter nascido em Portugal (mais precisamente no ...) onde a sua família residia estavelmente há várias gerações, residiu aí praticamente durante toda a sua vida e aí faleceu. Contrariamente, atente-se que o inventariado residiu no Reino Unido durante curtos períodos de tempo da sua vida, motivados por questões específicas como os estudos, embora tenha retornado sempre a Portugal, onde desenvolveu a sua actividade empresarial, onde constituiu família e onde, conforme acima se referiu, veio a morrer.
q.-Ademais, as únicas três filhas do inventariado nasceram igualmente no ..., tendo duas delas nacionalidade (exclusiva) portuguesa e uma dupla nacionalidade (portuguesa e britânica) em virtude de casamento com nacional britânico, sendo que apenas esta última reside fora de Portugal.
r.-Com efeito, ainda que se estivesse perante um caso de residência habitual em Portugal baseada em critérios meramente formais, ou seja, em que pudesse ser colocada em causa o significado e profundidade da conexão concreta entre o interessado e Portugal, tal questão seria manifestamente irrelevante do ponto de vista jurídico. No entanto e sem prejuízo de tal questão ser irrelevante em face do disposto no artigo 20º do Código Civil, nada disso pode sequer ser invocado ou argumentado no presente caso concreto, uma vez que, conforme amplamente demonstrado, a ligação do inventariado e da família deste a Portugal é manifesta, duradoura e estável.
s.-Por tudo o supra exposto, resulta evidente que a sentença recorrida não se pode manter por manifesta violação da Lei, em particular do disposto no artigo 20º do Código Civil.
t.-No entanto, mesmo que assim não se entendesse – o que se considera a mero benefício de raciocínio, sem conceder – nunca a decisão em causa se poderia manter, uma vez que a aplicação da lei substantiva inglesa ao caso sub judice é de molde a produzir um efeito manifestamente ofensivo dos mais basilares princípios jurídicos do nosso ordenamento jurídico.
u.-Resulta do disposto no artigo 22º do Código Civil que, mesmo que a norma de conflitos nacional aponte para a aplicação ao caso concreto de determinada lei estrangeira, esta não será aplicada se, dessa mesma aplicação, resultar um efeito manifestamente ofensivo dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português.
v.-Ou seja, a Lei impõe que, depois de determinada qual a lei aplicável ao caso concreto, se avalie se essa mesma aplicação passa o crivo fundamental dos princípios da ordem pública internacional, isto é dos “princípios fundamentais estruturantes da presença do País no concerto das nações”, conforme foi já definido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
w.-Muito embora a ordem pública seja, em Portugal, um conceito normativo legal, estando consagrado no Código Civil, a lei não a define, na medida em que estamos perante um “conceito necessariamente em branco”, uma vez que é, antes de mais, uma cláusula geral que não é susceptível de definição, tendo sido caracterizada por Baptista Machado como sendo “indefinível conceitualmente, como indefinível é o “estilo” ou a “alma” de uma ordem jurídica”.
x.-A insusceptibilidade da sua definição é justificada em larga medida pela volatilidade do próprio conceito que se vai modificando ao longo do tempo em função dos diferentes contextos históricos, sociais, políticos, geográficos e económicos. Não obstante a referida impossibilidade de definição conceptual, é unanimemente aceite que a ordem pública interna é constituída por “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, sobre eles se alicerçando a ordem económico-social”.
y.-Na impossibilidade de recorrer a uma lista de princípios ou normas fundamentais concretizadoras do conceito de ordem pública internacional do Estado português, cumpre apreciar qual a consequência da aplicação da lei inglesa ao caso concreto em decisão, uma vez que, tal como nos ensina a melhor e unânime Doutrina, para apurar se a aplicação de determinada lei estrangeira passa o crivo da ordem pública internacional do Estado português, é fundamental ter em consideração as características do caso concreto, em particular no que concerne os elementos de conexão do mesmo ao Estado português.
z.-Caso se admitisse que a lei aplicável à sucessão por morte do inventariado é a lei inglesa, conforme resulta do postulado na decisão recorrida – o que se considera a mero benefício de raciocínio, sem conceder – estaríamos perante a aplicação de um direito que desconhece o instituto da sucessão legitimária, prevendo, antes, uma total amplitude na liberdade de testar do de cujus.
aa.-Ou seja, independentemente de o de cujus deixar cônjuge, descendentes e/ou ascendentes, estaríamos perante a aplicação de um direito sucessório que em nada limitaria a capacidade de testar, inclusive possibilitando, em termos práticos e sem respeito pelos apertados limites impostos pelo artigo 2166º do Código Civil, o “deserdar” de todos os seus descendentes, conforme sucede no caso em apreço.
bb.-Ora, dúvidas não podem existir de que o direito sucessório português e, em particular, a sucessão legitimária fazem parte do quadro fundamental da nossa ordem jurídica.
cc.-No entanto, mesmo que se entendesse que a protecção dos herdeiros legitimários não constitui, por si só, um princípio suficientemente fundamental para enquadrar o restrito leque que compõe, em cada momento, o conceito de ordem pública internacional do Estado português, é imperativo que se considere quais as consequências, qual o efectivo impacto e efeito prático da aplicação ao caso concreto sub judice de um direito estrangeiro que ignora por completo o referido princípio.
dd.-Com efeito e conforme já acima referido, o artigo 22º do Código Civil impõe precisamente que o julgamento em causa se faça, não em abstracto, mas por referência a cada caso concreto e ao resultado da aplicação concreta da lei estrangeira a esse mesmo caso.
ee.-No caso em apreço, a aplicação da lei inglesa, tal como postulado pela sentença recorrida, para além de violar frontalmente a lei na determinação da lei substantiva aplicável, conforme acima já demonstrado, produz um resultado manifesta e flagrantemente contrário a princípios fundamentais, basilares e estruturantes da nossa ordem jurídica, atenta, precisamente, a quantidade e a densidade dos elementos de conexão existentes com a ordem jurídica portuguesa.
ff.-Relembre-se que o inventariado tem apenas três filhas, sendo que todas elas são nacionais portuguesas e nasceram, tal como o próprio inventariado, em Portugal, importando não esquecer que, à excepção de uma das filhas do inventariado, as duas outras, aqui Recorrentes, nem sequer possuem dupla nacionalidade, sendo exclusivamente nacionais portuguesas e nunca tendo residido fora de Portugal.
gg.-Por outro lado, o próprio inventariado residiu toda a sua vida em Portugal, onde nasceu e onde veio a morrer, com excepção de breves períodos destinados nomeadamente a estudos, em que residiu no Reino Unido.
hh.-E se tudo o acima exposto não fosse já amplamente demonstrativo da fortíssima conexão ao Estado português, importa não esquecer que toda a actividade profissional e empresarial do inventariado foi exercida em Portugal, onde aliás se encontra o património, mormente imobiliário, que constitui a sua herança e que foi objecto do testamento outorgado. Em suma:
dificilmente poderíamos estar perante um caso concreto com maior quantidade e qualidade de elementos de conexão com o Estado Português.
ii.-Permitir que ao caso concreto sub judice seja aplicada a lei inglesa implica, para todos os efeitos, afastar integralmente as descendentes do património do inventariado, nacionais portuguesas, impedindo-as de tomar parte na sucessão do seu pai, tudo em sentido diametralmente oposto ao postulado na lei portuguesa, chocando o mais íntimo sentido de justiça decorrente do direito sucessório nacional.
jj.-Por último, refira-se que nem sequer se compreende - e muito menos se pode aceitar – a referência decisiva feita na sentença recorrida à vontade do inventariado no que concerne a aplicação da lei inglesa.
kk.-Para além de tal vontade ser juridicamente irrelevante, uma vez que, conforme já amplamente demonstrado supra, a escolha do autor da sucessão não é critério aceite nas normas de conflitos nacionais para determinação da lei aplicável em matéria sucessória, tal vontade nunca poderia ser de molde a contrariar a aplicação da reserva da ordem pública internacional.
ll.-No caso em apreço, a sentença recorrida é – para além de violadora da Lei – absolutamente contraditória, pois se determina que a lei aplicável é a lei inglesa (assim excluindo, necessariamente, a aplicação ao caso concreto da lei portuguesa), acaba precisamente por recorrer (embora erradamente) ao postulado na lei portuguesa (mais precisamente ao disposto no artigo 2187º do Código Civil) para defender a inaplicabilidade da reserva da ordem pública internacional do Estado.
mm.-Mas mais do que isso: parece resultar da sentença recorrida que seria aceitável, com argumento no respeito absoluto e inultrapassável da vontade do testador, executar um testamento que contivesse disposições ilegais e/ou inválidas.
nn.-No entanto, como é absolutamente incontestável, a vontade do testador pode e deve ser respeitada, nos termos do disposto no referido artigo 2187º do Código Civil, até ao limite da legalidade, sob pena de justificar a prática de actos que a lei não permite, como sejam, a título de exemplo, a própria deserdação fora dos casos taxativos previstos no artigo 2166º do Código Civil.
oo.-Da mesma forma, aceitar que o testador escolha a lei que pretende ver aplicada à sua própria sucessão, i.e., aceitar que a vontade do testador se sobreponha às normas legais sobre determinação da lei aplicável em matéria sucessória (in casu, ao artigo 20º do Código Civil) e/ou aceitar que o testador tem legitimidade para, por via do seu testamento, contrariar os mais basilares princípios estruturantes da ordem pública internacional do Estado (e, in casu, afastar aplicabilidade do artigo 22º do Código Civil), corresponde precisamente a permitir que, por via de testamento, se pratiquem actos em violação directa de normas e princípios jurídicos imperativos.
pp.-Para além do exposto, saliente-se que nos termos do artigo 2186º do Código Civil “É nula a disposição testamentária, quando da interpretação do testamento resulte que foi essencialmente determinada por um fim contrário à lei ou à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes”.
qq.-Nestes termos, o entendimento contraditório e sem qualquer fundamento legal perfilhado na sentença recorrida não pode ser aceite, devendo, como é por demais notório e de elementar justiça, aplicar-se, ao caso em apreço, a reserva da ordem pública internacional, sob pena de permitir a produção de efeitos extremamente gravosos e absolutamente contrários aos mais basilares princípios jurídicos nacionais que afectam, em primeira linha, três nacionais portuguesas.
rr.-Em consequência da aplicação ao caso sub judice da reserva da ordem pública internacional do Estado português, nos termos do disposto no artigo 22º do Código Civil, deverá, necessariamente e nos termos do nº 2 in fine da mesma norma, concluir-se que a lei aplicável ao presente caso deverá ser a lei portuguesa, não esquecendo que esta, para além de tudo o demais, tem a virtualidade de corresponder (i) à lei do Estado em que o inventariado tinha a sua residência habitual, (ii) à lei da nacionalidade de todas as suas descendentes, (iii) à lei da residência habitual da maioria das suas descendentes e, ainda, (iv) à lei da situação da maioria dos bens, nomeadamente imobiliários, que compõem a herança do inventariado.
ss.-Conforme resulta da melhor e unânime doutrina e jurisprudência, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, pressupõe a ocorrência de um facto posterior à data de entrada da acção em juízo, ou seja, durante a pendência desta.
tt.-Nesse sentido, verifica-se que, no caso em apreço e contrariamente ao que foi entendimento do Tribunal a quo, não ocorreu qualquer facto novo no decurso da acção que tenha tornado esta inútil, antes apenas a decisão recorrida pronunciou-se sobre questão jurídica colocada como prévia ao processo de inventário em curso.
uu.-Nestes termos e também com fundamento na violação da lei processual – in casu, alínea e) do artigo 277º do Código de Processo Civil – não pode manter-se a decisão recorrida.
vv.-Por tudo o exposto, resulta que a decisão recorrida viola os artigos 9º, 20º, 22º, 2156º,
2157º, 2159º, 2166º todos do Código Civil, bem como artigo 277º, alínea e) do Código de Processo Civil.
Terminam pedindo a procedência total do recurso.

A cabeça de casal contra-alegou propugnando pela manutenção da sentença recorrida.

QUESTÕES A DECIDIR.

Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões das recorrentes (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1do CPC), as questões a decidir são:
a)-da lei aplicável  à sucessão de William ... ... L...;
b)-da violação da reserva da ordem pública internacional do Estado Português;
c)-da ausência de inutilidade superveniente da lide.

Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1.-William ... ... L... faleceu em 09 de Maio de 2010 no ... no estado de casado com Oksana B....
2.-O falecido nasceu em Portugal, no dia 23 de Maio de 1941, no sítio de São João, da freguesia de São Pedro, concelho do ...
3.-Consta do assento de nascimento que: “Em virtude de declaração de opção de nacionalidade, prestada perante a Câmara Municipal do ..., no dia dois do corrente, pelo pai do registado, este passa a seguir a nacionalidade inglesa, como consta do respetivo termo lavrado no livro competente desta Conservatória, Conservatória, sob o número 64” (sublinhado nosso).

4.-O falecido outorgou testamento cerrado, em 1 de Março de 2010, notarialmente aprovado em 2 de Março de 2010 com o seguinte conteúdo: “Lego à minha esposa Oksana B....,(…) todos os meus bens móveis, bem como todos os meus bens imóveis situados na Região autónoma da Madeira e no reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, que à data da minha morte me pertençam, no todo ou em parte, naqueles se incluindo os direitos de crédito (e respectivas garantias que estejam associadas aos mesmos) de que sou titular, e que subsistam à data do meu falecimento, emergentes dos contratos particulares que passo a identificar: Um. O celebrado entre mim e a sociedade “... Control- Investimentos e Participações SA”, pessoa colectiva número cinco, um, um, dois, oito, zero, zero, sete, seis, com sede na cidade do ..., aos seis dias do mês de Dezembro do ano de 2007, nos termos do qual vendi à referida sociedade anónima, pelo preço global de três milhões e cento e cinquenta e um mil euros, quatrocentos e sessenta e quatro mil acções ordinárias da Série “A” de que era titular na sociedade “Leacock Investimentos, SGPS, SA”, pessoa colectiva número cinco, um, um, zero, zero ,um, sete, cinco, quatro, com sede no .... Dois, O celebrado entre mim e a sociedade “Triplus Investimentos-Gestão e Consultoria SA”, pessoa colectiva número cinco, um, um, dois, cinco, três, oito. Nove , três, com sede na sociedade do ..., aos seis dias do mês de Dezembro do ano de dois mil e sete, nos termos do qual vendi à referida sociedade anónima, pelo preço global de cinco milhões e setecentos e vinte e um mil euros, trezentos e dez mil acções preferenciais da série “C”, de que era titular na referida sociedade “Leacock Investimentos SGPS, SA”. E bem assim, o direito de preenchimento das livranças que se encontram anexas aos contratos identificados em “um” e “dois” deste testamento, nos termos que constam do denominado “Anexo 3” dos referidos contratos. Como consta do meu assento de nascimento e seus averbamentos, sou de nacionalidade britânica, pelo que posso dispor livremente de todos os meus bens, de harmonia com a lei inglesa, que pretendo que seja aplicada, com afastamento de qualquer outra, e em conformidade com o disposto no Código Civil português.”

Nos termos do disposto no art. 607º, nº 4 do CPC, ex vi do disposto no art. 663º, nº 2 do mesmo diploma legal, dão-se, ainda, como assentes os seguintes factos:
5.-O testamento a que se alude em 4. foi redigido e assinado na cidade do ..., onde residia o testador, como do mesmo e da certidão de óbito consta (fls. 94 e 8, respectivamente).
6.-William ... L... casou com Maria L...M...G...D..., no dia 17.06.1970, na área da 3ª CRC de Lisboa, tendo sido decretada a separação de pessoas e bens entre os cônjuges por sentença de 27.11.1974, convertida em divórcio por sentença de 21.11.1975 – fls. 130 a 132.
7.-William ... L... casou com Maria L...P...A...C..., no dia 4.03.1976, no Registo Civil de W..., Inglaterra, tendo sido decretado o divórcio entre os cônjuges por decisão da CRC de 7.01.2008 – fls. 130 a 132.
8.-William ... L... casou com Oksana B..., no regime de separação de bens, no dia 17.8.2009, no Old M...T...H..., distrito de W..., constando da certidão de casamento como morada do 1º, 44 C... S... M..., London, W1J 74G, e da 2ª, 375 The W...Gardens, P...
addington, L..., W2 2DJ – fls. 133 a 137.

9.-Oksana B... é natural da Letónia.
10.-Vina ... ... L... nasceu no dia 8.1.1972, na freguesia do ... (São Pedro), concelho do ..., e é filha de William ... ... L... e de Maria L...M...G...D...que ... L... – fls. 142.
11.-Marina ... L... nasceu no dia 18.12.1976, na freguesia do ... (São Pedro), concelho do ..., e é filha de William ... ... L... e de Maria L...P...A...C... – fls. 147.

12.-No assento de nascimento da Marina ... L... encontram inscritos os seguintes averbamentos:
-Averbamento nº 1, de 2008-10-30 - Perdeu a nacionalidade portuguesa nos termos da alínea da base dezoito da Lei nº 2098 de 29 de Julho de 1959, por efeito de declarações prestadas pelos pais. Boletim nº 133. Maço 6. Ano 1978. Em 29 de Março de 1978;
-Averbamento nº 2, de 2008-10-30 - Casou catolicamente com T... E...L..., em 8 de Julho de 2006, na freguesia do ... (São Pedro), concelho do ... e alterou o nome para Marina ... L... W..., por efeito do casamento. Assento nº 280 de 2006 da Conservatória do .... Em 14 de Julho de 2006.
-Averbamento nº 3, de 2008-11-04 - Adquiriu a nacionalidade portuguesa nos termos do artigo 4º da Lei nº 37/81 de 3 de Outubro. Processo nº 11000-P/2008 da Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa. (fls. 148).

13.-Mary S... ...L... nasceu no dia 2.8.1981, na freguesia do ... (São Pedro), concelho do ..., e é filha de William ... ... L... e de Maria L...P... A...C... ... L... – fls. 152.
14.-No assento de nascimento da Mary S... ... L... encontra-se inscrito o seguinte averbamento: - Averbamento nº 1, de 2008-07-30 Casou catolicamente com José M...G...P...C...R..., em 26 de Julho de 2008, na freguesia do ... (São Pedro), concelho do ... e alterou o nome para Mary S... ...L...C...R..., por efeito do casamento. Assento nº 608 de 2008 da Conservatória do ... (fls. 153).
15.-Vina K... ... Leacock, Marina ... Leacock e Mary Silence ... Leacock foram registadas nos serviços consulares britânicos – fls. 165 a 176.
16.-Vina Katerina ... Leacock e Mary Silence ... Leacock Corte Real residem em Lisboa, vivendo Marina ... Leacock em Londres.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Como resulta do relatório, a questão fundamental que se coloca no processo (e neste recurso) é a da determinação da lei aplicável à sucessão por morte de William ... ... Leacock e, consequentemente, a ponderação sobre a validade legal do testamento por este outorgado no dia 1 de Março de 2010, sopesando a factualidade concreta do caso, nomeadamente, ser o referido William ... ... Leacock, cidadão britânico, nascido e falecido no ..., onde outorgou o referido testamento.
Uma vez que as relações jurídicas em causa se acham em contacto com dois sistemas jurídicos (o português e o britânico), cumpre determinar a lei aplicável fazendo intervir as Regras de Conflitos, previstas nos arts. 14º e ss. do CC [1].
Por força do disposto nos arts. 25º, 62º e 63º, à sucessão por morte e especificamente quanto à capacidade de disposição por morte, é aplicável a lei pessoal, a qual corresponde, nos termos do disposto no art. 31º, à lei da nacionalidade do indivíduo.
A significar, no caso, a lei britânica, face à factualidade provada sob os nºs 2 e 3.
Dispõe o art. 16 que “a referência das normas de conflito a qualquer lei estrangeira determina apenas, na falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno dessa lei”, prevendo-se, porém, nos arts. 17º e 18º situações de reenvio da lei estrangeira aplicável para a lei de um terceiro estado ou para a lei portuguesa, por força das regras de direito de conflitos respectivas, e em que poderá aceitar-se esse reenvio.
As normas de conflito britânicas de direito internacional privado no que à sucessão respeita distinguem entre bens móveis e imóveis, remetendo para a lei do domicílio do falecido, no que aos primeiros respeita, e para a lei do local onde os imóveis se encontrem (lex rei sitae), quanto aos segundos, o que poderia levar a aplicar a lei portuguesa, por força do disposto no art. 18º.
Contudo, a remissão feita pelas referidas normas não é feita para o direito interno português, mas opera, pelo contrário, como referência global para o direito interno e para as normas de conflito portuguesas, que, como vimos, mandam aplicar a lei britânica, entrando-se num conflito em círculo, que deverá ser solucionado pela aplicação da lei britânica que aceita o retorno - neste sentido decidiram os Acs. do STJ de 27.09.1994, em CJAST, Tomo III, pág. 71, e o Ac. da RE de 28.10.1993, CJ, Tomo V, pág. 276 [2]

Aqui chegados, um outro problema se coloca, que o tribunal recorrido não equacionou: é que a lei britânica é um ordenamento jurídico plurilegislativo [3] (ou complexo, como lhe chama o Prof. Luís Lima Pinheiro, na ob. cit., pág. 57 e ss).

Assim sendo, haverá que aplicar o art. 20º que dispõe que “1 - Quando, em razão da nacionalidade de certa pessoa, for competente a lei de um Estado em que coexistam diferentes sistemas legislativos locais, é o direito interno desse Estado que fixa em cada caso o sistema aplicável. 2 – Na falta de normas de direito interlocal, recorre-se ao direito internacional privado do mesmo Estado; e, se este não bastar, considera-se como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual. …”.

Ou seja, de acordo com o artigo mencionado, é ao ordenamento complexo que compete fixar o sistema de direito interno aplicável (através, nomeadamente, do sistema unitário de direito interlocal); não existindo, deve aplicar-se aos conflitos de leis interlocais o direito internacional privado unificado; e na falta de ambos, atende-se à lei da residência habitual, no caso, do de cujus.
Tal como referem as apelantes, o Reino Unido é precisamente um dos casos em que se revela impossível, por inexistente, o recurso a regras unificadas de direito interlocal e de regras de conflitos num sistema internacional privado unificado, o que obriga ao recurso à solução prevista na parte final do nº 2 do artigo 20º.

A interpretação deste normativo não é, porém, unânime.

Para a Escola de Coimbra [4], a que as apelantes aderem, a parte final do artigo aplica-se, mesmo que a lei da residência habitual se situe fora do Estado da nacionalidade, atendendo, nomeadamente, aos trabalhos preparatórios que estão na génese do art. 20º, por ser a interpretação que resulta, clara e expressamente, do texto legal, e por substituir a referência à lei da nacionalidade em favor da residência habitual, que é a conexão subsidiária em matéria de lei pessoal (nº 2 do art. 32º) e uma vez que se esgotaram as possibilidades de determinação do direito competente no interior do Estado da nacionalidade [5].

Para a Escola de Lisboa [6] só releva a residência habitual dentro do Estado da nacionalidade, existindo uma lacuna resultante de uma interpretação restritiva da parte final do referido nº 2 do art. 20º, que deve ser integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita.

Propendemos a seguir esta posição, baseando-nos nos argumentos do Prof. Luís Lima Pinheiro, na ob. cit., págs. 525 e 526, que escreve que “Para Isabel de Magalhães Colaço há uma lacuna descoberta através da interpretação restritiva do art. 20º/2 in fine. A função deste preceito é indicar o sistema aplicável de entre os que integram o ordenamento complexo. Como este preceito não fornece um critério para determinar o sistema aplicável quando a residência habitual se situa fora do Estado da nacionalidade, surge uma lacuna. Esta lacuna deve ser integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita. Creio ser este o melhor entendimento. Por certo que o recurso à lei da residência habitual, quando o ordenamento complexo não dispõe de Direito Interlocal ou de Direito Internacional Privado unificados, evita certas dificuldades na determinação da lei aplicável. Mas é de rejeitar, porque significa tratar como apátrida quem tem uma nacionalidade e menospreza a primazia da nacionalidade em matéria de estatuto pessoal. Dos trabalhos preparatórios que estão na génese do art. 20º pode retirar-se um argumento em sentido contrário. O art. 32º do Anteprojecto de 1951 consagrava esta solução e, no entanto, foi alterado no Anteprojecto de 1964 (art. 6º), que adoptou a redacção que veio a constar do art. 20º. Este argumento é invocado por Ferrer Correia para defender uma interpretação declarativa do art. 20º. Mas este argumento não é conclusivo de uma intenção legislativa de aplicar a lei da residência habitual quando a pessoa tenha residência habitual fora do Estado da nacionalidade. Além disso a interpretação exige uma inserção do preceito no seu contexto significativo e a consideração dos vectores do sistema. Estes critérios de interpretação apontam claramente para o entendimento defendido por Isabel de Magalhães Colaço. Por conseguinte, em matéria de estatuto pessoal, quando a residência habitual for fora do Estado da nacionalidade, devemos aplicar, de entre os sistemas que integram o ordenamento complexo, aquele com que a pessoa está mais ligada. Neste sentido também pode invocar-se a analogia com o disposto no art. 28º da Lei da Nacionalidade, relativo ao concurso de nacionalidades”.
No mesmo sentido vai Florbela de Almeida Pires, em Conflitos de Leis, Comentário aos artigos 14º a 65º do Código Civil, págs. 35 e 36, ao escrever que “…, existem argumentos importantes que apontam no sentido de uma interpretação restritiva da parte final do nº 2 do artigo 20º, segundo a qual a referência à lei da residência habitual só fará sentido nos casos em que o interessado resida no país da sua nacionalidade, pois essa referência, no contexto dos nºs 1 e 2 do artigo 20º, mais não é do que um critério para a determinação da ordem jurídica local competente. Com efeito, a aplicação da lei da residência habitual quando a mesma se situa fora do ordenamento jurídico da nacionalidade originaria uma discriminação inaceitável entre os nacionais de ordenamentos plurilegislativos (sem direito interlocal ou direito internacional privado unificado) e os nacionais de outros Estados. Por exemplo, a capacidade de um norte-americano, residente habitualmente em Lisboa, seria regulada pela lei portuguesa, ao passo que a capacidade de um francês, residente em Portugal, seria determinada segundo a lei francesa. Na perspectiva do direito de conflitos, o norte-americano estaria a ser tratado como apátrida pois, não obstante ser detentor de uma nacionalidade, a sua lei pessoal seria a da residência habitual, elemento de conexão relevante para o caso dos apátridas (artigo 32º). Da análise do artigo 20º resulta que o seu objectivo se centra efectivamente na determinação da ordem jurídica local competente, não visando modificar a lei pessoal competente”.
Também se nos afigura que o nº 2 do art. 20º deve ser interpretado, na “lógica” do preceito, considerado na sua unidade, devendo recorrer-se ao princípio da conexão mais estreita, no caso da residência habitual se situar fora do Estado da nacionalidade.
Para determinar a conexão mais estreita há que atender, nas palavras de Luís Lima Pinheiro, ob. cit., págs. 526 e 527, “a todos os laços objectivos e subjectivos que exprimam uma ligação entre a pessoa em causa e um dos sistemas vigentes no ordenamento complexo …, ao vínculo de domicílio e, na sua falta, à última residência habitual ou último domicílio dentro do Estado da nacionalidade”.
E no caso em apreço a conexão mais estreita é com a lei inglesa (única, aliás, com a qual ressaltam pontos de conexão), quer objectiva quer subjectivamente, porquanto dois dos casamentos do falecido foram realizados no distrito de Westminster [7], e aquele declarou, no testamento que outorgou, pretender que fosse aplicada a lei inglesa [8].
Assim sendo, embora com fundamento diverso, sufraga-se o entendimento do tribunal recorrido de ser aplicável, in casu, a lei inglesa, improcedendo a apelação nesta parte.
De acordo com o ordenamento jurídico inglês, não há limitações à liberdade de testar, ou seja, a lei inglesa desconhece o instituto da sucessão legitimária.
Nessa medida, o testamento outorgado por William ... ... Leacock, no qual legou à esposa Oksana Baiguzina, “todos os meus bens móveis, bem como todos os meus bens imóveis situados na Região autónoma da Madeira e no reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, que à data da minha morte me pertençam, no todo ou em parte” é válido perante a lei inglesa.

Cumpre, então, apreciar a 2ª questão colocada pelas apelantes, à cautela [9], e que se prende com o disposto no art. 22º.
Dispõe este preceito, com a epígrafe “Ordem Pública”, que “1 – Não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português.2 – São aplicáveis, neste caso, as normas mais apropriadas da legislação estrangeira competente ou, subsidiariamente, as regras de direito interno português”.

O Código não define o que é a ordem pública internacional, estando em causa um conceito indeterminado que ao juiz compete concretizar no momento da sua aplicação.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, no CC Anotado, Vol. I, pág. 56, “trata-se, pois, de um princípio geral, de uma ideia mestra, cujo conteúdo positivo terá de ser preenchido pelo julgador na análise de cada caso”, concretizando mais adiante que, “o que interessa, para saber se houve ou não violação da ordem pública internacional, não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto: …”.

João Baptista Machado, em Lições de Direito Internacional Privado, 2ª ed., pág. 256, escreve que “…, o próprio DIP está ainda sob o comando daquela concepção mais elementar de justiça que gerou as linhas de rumo essenciais da ordem jurídica global (incluindo as normas de Direito dos Conflitos) e à qual nenhuma lei pode renunciar sem se negar a si própria. Daqui se segue que o juiz precisa de ter à sua disposição um meio que lhe permita precludir a aplicação de uma norma de direito estrangeiro, quando dessa aplicação resulte uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que informam a sua ordem jurídica. Este meio ou expediente é a excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública”.

Sobre esta matéria, escreve Luís Lima Pinheiro, na ob. cit., págs. 659 e ss., que “perante a diversidade das situações em que o resultado a que conduz a aplicação do Direito estrangeiro … pode ser intolerável perante a concepção de justiça do foro, o legislador formulou uma cláusula geral. Esta cláusula geral actua quando, perante o conjunto das circunstâncias do caso concreto, esse resultado seja incompatível com princípios e normas fundamentais da ordem jurídica portuguesa. A cláusula geral da ordem pública internacional é um veículo para a actuação dos princípios e normas fundamentais da ordem jurídica portuguesa. … Uma característica fundamental da cláusula de ordem pública internacional consiste na sua excepcionalidade. Esta cláusula só intervém como limite à aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional quando a solução dada ao caso for não apenas divergente da que resultaria da aplicação do Direito português, mas também manifestamente intolerável. … Nas ordens jurídicas em que a Constituição constitui a sede dos valores básicos da comunidade, como sucede com a Constituição portuguesa, o conteúdo da ordem pública internacional tende a ser determinado à luz dos princípios constitucionais. Excepcionalmente, poderão existir princípios fundamentais estruturantes da ordem jurídica portuguesa que não tenham dignidade constitucional, mas terão de resultar de uma sedimentação e consolidação de sectores importantes da ordem jurídica, mediante uma consagração legislativa ou consuetudinária, facultada pela vontade colectiva manifestada pelos órgãos do poder político com competência legislativa ou pelo consenso social. …Uma outra característica da cláusula de ordem pública internacional é o seu carácter evolutivo. O conteúdo da ordem pública internacional acompanha a evolução da ordem jurídica, designadamente dos seus valores fundamentais que se encontram consagrados constitucionalmente. … O tribunal tem de atender ao conteúdo actual da ordem pública internacional, no momento em que aprecia a questão” [10].

Retomando ao caso sub judice, quid juris?

Aplicando ao caso a lei inglesa, e, consequentemente, considerando-se válido o testamento outorgado pelo de cujus, a única herdeira de todos os seus bens, móveis e imóveis, é a sua esposa, nos autos cabeça de casal, nada recebendo as suas 3 filhas, em manifesta violação do direito destas interessadas consagrado na lei portuguesa (art. 2156º e ss.).

O de cujus era de nacionalidade britânica, e não obstante tenha nascido em Portugal e aqui residido quase 69 anos, aqui tendo nascido as 3 filhas, nunca quis adquirir a nacionalidade portuguesa, tendo, no testamento, outorgado em Portugal, não só reafirmado a sua nacionalidade britânica, como declarado que pretendia que fosse aplicada a lei inglesa.

Como se referiu, todas as filhas do de cujus nasceram em Portugal e são filhas de mães portuguesas, tendo, pelo menos uma delas, nacionalidade portuguesa, residindo duas em Portugal.

A legítima não tem consagração constitucional.

Contudo, a jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido, maioritariamente, que a quota indisponível tem como fundamento o interesse dos filhos do autor da herança e é inspirada por razões de interesse e ordem pública, devendo afastar-se a lei estrangeira que tenha permitido ao testador dispor livre e ilimitadamente de todos os seus bens em prejuízo dos filhos, desde que existam fortes elementos de conexão com Portugal, nomeadamente a nacionalidade e residência dos filhos, a residência do de cujus e a situação dos bens, por atingir o sentimento ético e jurídico dominante e lesar gravemente interesses de primeira grandeza da comunidade local – ver, com interesse, os Acs. da RL de 5.05.1992, P. 0057701 (Coutinho Figueiredo), do STJ de 23.10.2008, P. 07B4545 (Pires da Rosa), do STJ de 15.1.2015, P. 317/11.9YRLAB.L1.S1 (Orlando Afonso), todos em www.dgsi.pt [11].

Afigura-se-nos que o referido entendimento não é afastado com a vigência do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu [12], que não é aplicável à situação em apreço, atenta a data da morte do de cujus e por não se verificarem os pressupostos previstos no art. 83º do referido Regulamento, devendo, pois, fazer-se funcionar a excepção prevista no nº 1 do art. 22º, aplicando-se, subsidiariamente a lei portuguesa nesta matéria (nº 2 do mencionado preceito), que deverá conduzir à aplicação do disposto no art. 2172º. 

Por quanto se deixa dito, conclui-se proceder, nesta parte a apelação, devendo revogar-se a sentença recorrida e determinar o prosseguimento do processo.

DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, devendo prosseguir seus termos o processo de inventário em causa, tendo em conta o que supra se deixou consignado quanto à lei aplicável.
Custas pela apelada.
*

Lisboa, 2017.03.07
                                                       
(Cristina Coelho)
(Luís Filipe Pires de Sousa)                                                          
(Carla Câmara)


[1]Diploma de que serão todos os artigos citados sem menção expressa a outro diploma legal.
[2]Como escreve o Prof. Luís de Lima Pinheiro, em Direito Internacional Privado, Vol. I, Introdução e Direito de Conflitos - Parte Geral, 2015 – 3ª ed. refundida, págs. 550 e 551, “não há razões de fundo para não aceitarmos neste caso o retorno; o retorno não é necessário para haver harmonia; se nós aplicarmos L2, L2 considera-se competente. Não se justifica sacrificar o nosso critério de conexão”.
[3]Em que coexistem os sistemas jurídicos inglês, escocês, do País de Gales, da Irlanda do Norte, das Ilhas do Canal e das Ilhas Mann e Colónias.
[4]Profs. Ferrer Correia e Baptista Machado.
[5]Neste sentido vai o parecer do Prof. Luís Barreto Xavier junto pelas apelantes a fls. 257 e ss. dos autos.
[6]Profs. Magalhães Colaço e Luís Lima Pinheiro.
[7]Devendo ter-se em atenção a Lei dos Casamentos de 1949 (Marriage Act 1949), conforme referido na Declaração junta pela recorrida aos autos a fls. 232 e ss.
[8]Nesta matéria, afigura-se-nos ser, também, relevante, o que se escreve na Declaração junta a fls. 232 e ss. sobre os princípios gerais de “domicile” segundo a lei inglesa.
[9]Para o caso de se entender ser aplicável a lei inglesa.
[10]Também assim entendem Baptista Machado, ob. cit. pág. 266, e Florbela de Almeida Pires, ob. cit., pág. 43.
[11]Afigurando-se-nos que os Acs. da RE de 28.10.1993, em CJ, Tomo V, pág. 276 e ss., do STJ de 27.9.1994, em CJASTJ, Tomo III, pág. 71 e ss., e do STJ de 18.06.2013, P. 832/07.9TBVVD.L2.S2 (Gregório Silva Jesus), em www.dgsi.pt, não afastam, completamente, o referido entendimento, estando, porém, em causa situações em que o nexo de conexão a Portugal era débil, ou em que a quota indisponível, embora estabelecida por lei, era inferior à consagrada na nossa lei. 
[12]Atento o disposto no art.º 35º do Regulamento e o teor do Considerando (58) do mesmo.