Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19222/20.1T8LSB.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA AUTÓNOMA
ARRENDAMENTO COMERCIAL
RESOLUÇÃO DE CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
COVID 19
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I-Apesar do regime jurídico da garantia bancária “on first demand” que lhe imprime as características da autonomia e literalidade, a Doutrina e a Jurisprudência têm admitido que, em casos excepcionais, possa ocorrer o recurso a procedimentos cautelares destinados a impedir o banco emitente de pagar, no caso de ter em seu poder prova líquida e inequívoca de fraude ou má-fé.
II-A resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias pode operar-se por declaração extrajudicial à outra parte contratante, dado que está sujeita ao regime geral da categoria em que se integra.
III-O instituto da resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias é uma figura jurídica de carácter geral cuja razão de ser e justificação se aplica a qualquer relação contratual, não havendo qualquer razão para excluir o contrato de arrendamento do respectivo âmbito de aplicação.
IV-A crise pandémica resultante da doença COVID-19 constitui uma situação susceptível de integrar os pressupostos da resolução ou modificação dos contratos por alteração das circunstâncias, nos termos do art.º 437.º do Código Civil.
V-É licita a resolução do contrato de arrendamento comercial, ao abrigo do disposto no art.º 437.º do CC, por parte do locatário que, após o decretamento do estado de emergência, em março de 2020, durante cinco meses, não conseguiu facturar valor que lhe permita cobrir o valor da renda.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
 
I-RELATÓRIO
Veio (...) LDA., instaurar o presente procedimento cautelar comum contra:
BANCO (...), S.A., e
(...) – FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO (gerido e representado por (...) GMBH, por sua vez representado por (...), Lda.), pedindo que:
«a. Seja o 1.º Requerido condenado a abster-se de pagar qualquer quantia ao 2.º Requerido, ao abrigo da garantia bancária on first demand emitida a pedido da Requerente no âmbito do contrato de arrendamento resolvido, até ao trânsito em julgado da ação principal;
e
b. Seja o 2.º Requerido condenado a abster-se de acionar a garantia bancária on first demand prestada pela Requerente no âmbito do contrato de arrendamento resolvido, até ao trânsito em julgado da ação principal».
Para tanto alega, em síntese, o seguinte:
É arrendatária da loja com o n.º 242-A do prédio sito a Avenida da …, em Lisboa, do qual é proprietário do 2.º requerido. Prestou a favor do 2.º requerido uma garantia bancária autónoma e à primeira solicitação, como garantia de todas as obrigações para si decorrentes do cumprimento ou incumprimento do contrato de arrendamento de que é locatária.
Em consequência do actual surto pandémico e da profunda crise económica que se lhe seguiu, resolveu o referido contrato de arrendamento por alteração anormal das circunstâncias, ao abrigo do art. 437.º do Código Civil, com efeitos reportados a partir de 31.08.2020, tendo procedido ao pagamento das rendas vencidas até essa data e à entrega do locado.
Assim, em face do termo do vínculo contratual e da extinção da obrigação garantida, deixou de existir qualquer fundamento que sustente a manutenção da relação jurídica existente entre as partes. O accionamento da garantia bancária prestada, numa altura em que os valores das vendas faturadas pela requerente não chegam sequer para cobrir os custos mínimos da atividade, irá colocá-la numa situação de insolvência, atentando perigosamente e de uma forma irreparável à sua capacidade de sobreviver e de ultrapassar a crise e colocando em causa o cumprimento integral dos seus compromissos face a trabalhadores e fornecedores.
Conclui alegando que, permitir o acionamento da garantia bancária autónoma num contexto de excepcional crise económica e sanitária, configuraria atribuir ao 2.º requerido um verdadeiro papel de carrasco da requerente e à garantia bancária, in se, o papel de pedra tumular (sic).
O primeiro Requerido interveio nos autos, constituindo mandatário, mas não deduziu oposição.
O segundo Requerido deduziu oposição, defendendo a improcedência do procedimento cautelar, porquanto:
- a garantia prestada pelo 1.º requerido é uma garantia bancária à primeira solicitação, que abdica de qualquer discussão por parte do garante das relações subjacentes à sua emissão e de qualquer comprovação de incumprimento;
- a doutrina e a jurisprudência são extremamente exigentes na admissão do procedimento cautelar que visa obstaculizar o acionamento dessa garantia, exigindo que se esteja perante abusos ou fraudes clamorosas e evidentes e que resultem inequívocos;
- foi a requerente que decidiu resolver o contrato de arrendamento, pelo que o acionamento da garantia não é subsumível a qualquer actuação fraudulenta do 2.º requerido;
- a resolução do contrato por parte da requerente é ilícita, pelo facto de o art. 437.º do CC não ser aplicável aos contratos de arrendamento, a resolução ser extemporânea (por ter ocorrido numa altura em que a requerente já dispunha de possibilidade de ter o seu estabelecimento aberto ao público) e não estarem preenchidos os pressupostos previsto no referido artigo;
- o sucesso ou insucesso da actividade comercial da requerente está dentro dos riscos próprios do contrato e corre por sua conta, não violando a manutenção do contrato os princípios da boa fé e sendo certo que a requerente estava em mora no momento da resolução, não gozando desse direito (art. 438.º do CC);
-a requerente não fundamenta a lesão grave e dificilmente reparável decorrente do acionamento da garantia, não tendo feito prova da sua situação económica, sendo que foram tomadas medidas legislativas mitigadoras dos efeitos decorrente da declaração do estado de emergência, não existindo, também, qualquer perigo iminente de lesão do direito da requerente, atento o estabelecimento legal de moratórias no pagamento de créditos bancários.
Inquiridas as testemunhas indicadas pelas partes, foi proferida sentença que julgou o procedimento cautelar improcedente e absolveu os Requeridos das providências contra si requeridas.
Inconformada a Requerente interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1.Vem o presente recurso interposto da aliás douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, que julgou improcedente o procedimento cautelar comum, proposto pela aqui Recorrente.
2.Com essa decisão, o Mmo Juiz a quo fez errada aplicação e interpretação do disposto nos arts. 362º e 365º do C.P.C. e art. 334º e art.º 437º todos do C.C., bem como interpretou e aplicou mal os princípios da autonomia e da abstracção.
3-Da matéria de facto julgada pelo douto Tribunal a quo, entende a Recorrente que não poderiam ter sido dados como não provados os factos constantes das alíneas a), c), d), e) e f), pugnando, desta forma, e em face daquela que foi a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, pela alteração da qualificação dos mesmos no sentido de serem dados como provados.
4- Entendendo a Recorrente que para tal alteração foi determinante a prova documental produzida, nomeadamente, os documentos n.ºs 4, 5, 6, 7, 9, 11 e 17, juntos com o requerimento inicial deduzido para interposição da providência cautelar.
5- Assim como, foi determinante a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, em particular os depoimentos prestados pelas testemunhas (….)
6-Impondo-se, ainda, a inclusão de cinco novos pontos no elenco de factualidade indiciariamente provada (tal matéria resulta alegada na P.I. sob os números 61 a 64, 66, 75, 92, 94 a 97, 98 a 104):
"25 – O regime das moratórias não serve a Recorrente, porque apenas implica adiar a
dívida, num panorama em que não é previsível que a Recorrente venha a conseguir recuperar volumes de vendas que lhe permitam cobrir os encargos correntes da loja.
acrescida da dívida entretanto gerada pela falta de pagamento atempado das rendas
adiadas ao abrigo do regime da moratória.”;
“26 – A manutenção do contrato implica a ruína financeira da Recorrente, que a breve trecho deixaria de ter condições para cumprir com o pagamento da renda.”;
“27 – Receia agora a Recorrente que o Recorrido Fundo acione a garantia bancária e solicite ao Recorrido Banco o pagamento do montante inscrito na mesma, no valor de 240.000,00 €.”;
“28 – O que a suceder, implicará que a Recorrente entre posteriormente em incumprimento perante o Recorrido Banco, por não ter fundos disponíveis para pagar o valor da garantia.”;
“29 – E esse incumprimento perante o Recorrido Banco fará com que a Recorrente não possa aceder aos apoios financeiros do Estado para as linhas Covid-19, sem os quais terá que se apresentar à insolvência.
7. A prova indiciária dessa matéria resulta do teor do documento n.º 5 junto aos autos, bem como dos depoimentos das testemunhas (…)as quais dão conta da atual situação financeira da Recorrente e da incomportabilidade da manutenção do contrato.
8. Essa realidade económica e financeira da Recorrente, devidamente reportada e atestada pelo seu contabilista certificado … – Cfr. Doc.5, junto –, e com a média do percentual das quebras registadas entre Março e Julho de 2020, nos termos supra explanados. Esse cenário é também confirmado pelo depoimento da testemunha … que, quando questionado sobre a viabilidade da manutenção do contrato, refere, sem pejo, que a Recorrente “Não tinha qualquer tipo de hipótese de aguentar a estrutura desta loja até Outubro 2021 (...)” (a tempo 00:59:56 – Cfr. pág.43 do documento de transcrição junto aos autos).
9. Já quanto à franqueza com que a Recorrente encara a hipótese de real acionamento da garantia bancária prestada a favor do Recorrido Fundo, avultam o teor das cartas remetidas pelo Recorrido Fundo, mediante as quais destaca, mais do que uma vez, a ameaça de acionamento da garantia bancária em seu poder – Cfr. documentos 14 e 16, juntoss aos autos pela Recorrente, bem como as palavras proferidas, pelo ilustre Mandatário do Recorrido Fundo em plena audiência de julgamento, dando conta, precisamente, de que o Fundo já requereu ao Recorrido Banco (garante) o acionamento da garantia em causa (a tempo 01:14:56 – Cfr. pág.52 do documento de transcrição junto aos autos). Sorte é que o Banco Recorrido não honrou ainda o pagamento da garantia, esperando, para tanto, o trânsito em julgado da decisão da presente providência, por forma a assim não esvaziar o efeito útil da mesma...
10. Por resultar inclusive das condições de elegibilidade legalmente fixadas, é de notório conhecimento que os mecanismos de apoio à atividade económica se encontram condicionados ao preenchimento de específicos requisitos, nomeadamente, a existência de uma situação líquida positiva, de uma situação regularizada junto da Banca e junto da Administração Tributária e Segurança Social, e inexistência de dificuldades financeiras à data de 31/12/2019.
11. Sem, contudo, se deixar de contabilizar os efeitos desencadeados nas restantes garantias existentes e já prestadas, algumas delas de natureza pessoal, nas renovações de contas caucionadas, bem como no acordo de distribuição exclusiva com o grupo (...), também ele sujeito a rigorosos pressupostos de solvabilidade – para este mesmo circunstancialismo alerta, de resto, a testemunha … (a tempo 01:01:41 a 01:06:52 - Cfr. págs. 44 a 46 do documento de transcrição junto aos autos).
12. A questão que V.Exas. são chamados a decidir no presente recurso, consiste em saber se o acionamento da garantia pelo Recorrido Fundo, nas circunstâncias que integram os factos indiciariamente provados, constitui evidente e manifesta má fé ou abuso de direito por parte do mesmo.
13. Temos para nós por evidente e inquestionável que as providências cautelares inominadas, como a presente, apenas podem ser decretadas quando estiver em causa o acionamento da garantia bancária, pelo seu beneficiário, com evidente e manifesta má-fé ou abuso de direito (aliáscomotambém entendeoTribunala quoeaesmagadora maioria da jurisprudência e melhor doutrina).
14. Como acertadamente refere Calvão da Silva, a má fé e o abuso de direito são “válvulas de ventilação de justiça” em ordem a evitar situações de abuso que as garantias autónomas on first demand acabam por facilitar.
15. Porém esse juízo sobre o acionamento abusivo da garantia é, em nosso entender, impossível de fazer à revelia total e absoluta da relação subjacente, que é aliás quem proporciona o advento da obrigação que a garantia se destina a acautelar!
16. No entanto, o Tribunal a quo recusa averiguar da licitude da resolução operada pela Recorrente, com invocação da alteração superveniente das circunstâncias, por entender que a autonomia e abstracção que são próprias da garantia bancária a impedem a discussão dos termos da relação subjacente.
17. Pensar e decidir como decidiu o Tribunal a quo equivale a transfigurar a garantia bancária on first demand numa profecia auto-realizável, equivalente a um cheque em branco, passado ao beneficiário.
18. Cheque esse, que o Beneficiário pode apresentar a pagamento, quando quiser e à revelia dos mais elementares princípios basilares de direito... E mesmo contra todo e qualquer meio de defesa em tempo oportuno, promovido nos Tribunais Judiciais!
19. Pensar assim, implica ver na garantia autónoma uma espécie de Licença para Matar!
20. À qual o Ordenante apenas pode reagir depois, procurando ver-se ressarcido pela morte ilegitimamente promovida pelo Beneficiário... Mas nunca pode pretender agir judicial e cautelarmente, com vista a evitar essa morte!
21. Entendemos por isso que a questão da abstracção e autonomia da Garantia Bancária não pode assumir o protagonismo que o Tribunal a quo lhe pretendeu atribuir, nem tem o alcance demolidor que decisão recorrida defende.
22. De facto, a garantia bancária on first demand incorpora um negócio que, embora autónomo e abstracto, não está desprovido de causa (o que não se confunde com causalidade).
23. E essa causa consta, neste caso em concreto, do próprio texto da garantia, quando refere a eventualidade que a mesma pretende acautelar, ou seja: a indemnização devida na hipótese de incumprimento pela aqui Recorrente de alguma obrigação para si resultante do contrato de arrendamento.
24. E é por isso que do texto da garantia bancária consta que o Recorrido Banco garante “o pagamento à BENEFICIÁRIA de quaisquer quantias exigidas por esta à ORDENANTE no âmbito do contrato de arrendamento celebrada entre ambas, respeitante ao piso 0 do prédio urbano designado “…..em Lisboa, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 901 da freguesia de Santo António, Lisboa” caso a aqui Recorrente “falte ao cumprimento das obrigações assumidas, designada mas não exclusivamente, quanto ao pagamento das rendas e/ou indemnizações, por mora e/ou pelo incumprimento dos prazos previstos para o arrendamento (...).”
25. Ora, sendo a garantia bancária o documento que incorpora um negócio (contrato de garantia), que se quis abstracto e autónomo, e levando em consideração que esse contrato é necessariamente atípico, porque desprovido de regime supletivo legal que lhe sirva de base, temos necessariamente também que concluir que a garantia bancária autónoma on first demand goza de uma outra característica: a literalidade!
26. Já que a garantia bancária condensa no seu corpo e no seu texto (e só aí!) os concretos termos e limites pelos quais as partes se obrigam e têm direitos e deveres recíprocos.
27. Levando em conta o supra citado texto da garantia, não podemos em rigor e com propriedade dizer que os termos do cumprimento ou incumprimento das obrigações da locatária no contrato de arrendamento estão arredados da apreciação do Tribunal, quando toca a aferir do advento da obrigação do garante pagar, ou não pagar, o valor caucionado pela garantia bancária autónoma on first demand.
28. A garantia pode até dispensar o Beneficiário de fazer prova do incumprimento. Porém isso não significa que o Tribunal esteja impedido de sindicar da existência ou inexistência da obrigação que espoleta o acionamento da garantia (ou se possa refugiar nessa circunstância para não decidir).
29. De facto, a existência da obrigação de indemnizar (ao abrigo do contrato de arrendamento) é o molde que a própria garantia importou para o seu texto, para delimitar e moldar os termos e extensão da obrigação de pagamento pelo garante!
30. E, portanto, a existência ou inexistência dessa obrigação é circunstância que não pode escapar à apreciação do Tribunal, à boleia de uma pretensa abstracção e autonomia da garantia bancária on first demand, que neste caso em concreto e atendendo ao texto da própria garantia, nem sequer nos parece que sejam absolutas!
31. No nosso entender, no âmbito da presente providência cautelar, o Tribunal podia e devia – diremos mais, estava obrigado a – conhecer da inexistência da obrigação de indemnizar o Recorrido Fundo, por se ter operado a resolução do contrato de arrendamento por alteração superveniente das circunstâncias.
32. Só se, previamente, se aferir se a resolução por alteração superveniente das circunstâncias é ou não lícita, é que depois se pode concluir pela manutenção ou não manutenção do contrato até 31/10/2021 e consequente obrigação de pagamento das rendas vincendas até essa data.
33. Dito de outra forma, se se concluir que a resolução do contrato de arrendamento pela Recorrente, com invocação da alteração superveniente das circunstâncias, é legítima, então não haverá qualquer indemnização a pagar ao Recorrido Fundo e, logo, o acionamento que o mesmo faz da garantia bancária autónoma on first demand será necessária e obrigatoriamente considerado abusivo!
34.O princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações e do princípio (da proibição) do abuso de direito plasmados nos arts. 762 nº 2 e 334º do C.C., respetivamente são “princípios cogentes de todo e qualquer ordenamento jurídico, que devem ser respeitados, não podendo as garantias automáticas violar grosseiramente os referidos princípios”.
35. O nosso ordenamento jurídico adota a concepção objetivista do princípio da proibição do abuso de direito que proclama a não obrigatoriedade de demonstração do animus nocendi do beneficiário da garantia, pelo que não se procura qualquer elemento subjetivo referente à conduta do beneficiário, bastando que a mesma exceda de forma evidente os limites prescritos no preceito. Assim, mesmo que o beneficiário não tenha noção da falta de fundamento manifesto da sua pretensão, a mesma será passível de ser excepcionada com base neste mecanismo.
36. O acionamento de uma garantia bancária autónoma on first demand será fraudulento e abusivo, sempre que for feito, sob a aparência formal de exercício de um direito, que substantivamente não assiste ao beneficiário da garantia.
37. Haverá assim que averiguar então e antes de mais se o Recorrido Fundo tem ou não direito a receber as rendas vincendas até 31/10/2021, conforme se arroga, ao pretender acionar a garantia pela totalidade do seu valor.
38. Mas, para issso, é necessário aferir se a resolução com invocação da alteração superveniente das circunstâncias, que a Recorrente promoveu em Agosto de 2020 é ou não legítima, pois, caso seja, a indemnização não é devida, caso o não seja, a mesma será devida, pelo menos enquanto não for promovida a sua redução nos termos do art.º 812.º do C.C. (o que de todas as formas, nunca seria suficiente para considerar o acionamento da garantia como abusivo).
39. A alteração superveniente das circunstâncias, prevista no art. 437º do C.C., permite a resolução ou a modificação do contrato, quando: (1) o circunstancialismo no qual ambas as partes assentaram a intenção de contratar sofre uma alteração; (2) essa alteração é anormal e imprevisível; (3) provocando um dano grave a uma delas; (4) de talmodoqueaexigência, a essa parte, das obrigaçõesassumidas,contrariegravemente a boa-fé; (5) e não estando o dano em causa coberto pelo expresso regime do risco do contrato.
40. Analisada a matéria de facto indiciariamente provada, mormente no que tange à data de celebração do contrato de arrendamento, à localização da loja – que se situa na zona premium da cidade de Lisboa, associada ao turismo e ao luxo –, bem como, por outro lado à superveniência da situação pandémica, que originou os efeitos nefastos na procura e na economia que são descritos e que são conhecidos, não resta senão concluir que os primeiros três pressupostos supra identificados estão verificados.
41. Coloca-se então a questão de saber se, face a esta alteração da grande base do negócio, a exigência à Recorrente que mantenha o pagamento integral do valor de renda até 31/10/2021, contraria ou não gravemente a boa-fé.
42. O equilíbrio contratual preside à determinação da prestação e contra-prestação e duração que são acordadas no momento da celebração do contrato. Mas, uma vez encontrado esse equilíbrio e vinculadas as partes num contrato, “deixa de ser possível aos sujeitos um exercício arbitrário da sua autonomia. O contrato funda um espaço (jurídico) de razoabilidade intersubjectiva a que as partes se encontram reciprocamente vinculadas”. Destarte, só em situações excepcionais de um excessivo, manifesto e evidente desequilíbrio contratual, é que as prestações previamente acordadas ao abrigo da autonomia contratual das partes e depois sujeitas ao pacta sunt servanda, podem ser alteradas.
43. Parece-nos que, no caso aqui em crise, é patente a desadequação actual entre a prestação de renda estabelecida no contrato e as actuais condições objectivas de retracção transversais a toda a economia. Tal como nos parece evidente a desadequação actual entre a prestação de renda estabelecida no contrato (e que o Recorrido Fundo exige, apesar de tolerar o seu deferimento) e a retracção da procura específica dos produtos do ramo de actividade da Recorrente. Procura essa, que, ainda para mais, era exponenciada pela localização da loja que a Recorrente tomou de arrendamento ao Recorrido Fundo e que assim motivava tão exorbitante preço de renda (€ 100,00/m2/mês).
44. Desadequada é também a obrigação de manutenção da inquilina no locado, até 31/10/2021, pois implica prolongar o calvário de exploração deficitária da loja, de forma desproporcional e desnecessária.
45. Assim, convocando a boa - fé – enquanto princípio geral de direito que diz que o direito deve ser exercido honestamente, como deveria ser exercido por uma pessoa de bem – facilmente concluímos que a intransigibilidade do Recorrido Fundo às propostas de redução de renda, apesar de conhecedor da situação económica difícil que isso gerará no futuro, é, no fundo, uma exigência de manutenção da sua prestação, apesar de saber e ter consciência que, com as actuais condições de mercado, a Recorrente jamais retirará da loja um proveito capaz de sequer cobrir uma parte da renda que lhe é devida, quanto mais os demais custos, nomeadamente, funcionários, Segurança Social, Impostos, Custo da Mercadoria, etc!
46. Ao fim e ao cabo, o que o Recorrido Fundo exige à Recorrente é a sua ruína económica, desde que a sua prestação e rentabilidade permaneça intocada!
47. Não parece por isso de acordo com a boa - fé, que é exigível no cumprimento dos contratos, que o Recorrido Fundo se pretenda eximir a repartir com a Recorrente qualquer custo ou sacrifício, derivado dos efeitos económicos nefastos que a pandemia COVID-19 tem representado!
48. E isto, pese embora aparentemente legal, não é próprio de uma pessoa de bem.
49. E, logo, não está de acordo com a boa - fé!
50. Neste sentido, pode-se considerar que a alteração das circunstâncias se apresenta como uma modalidade específica de abuso de direito (art.334º do Código Civil), neste caso de um direito de crédito, já que, por força da boa- fé, se torna ilegítimo ao credor a exigência da prestação numa situação em que os limites relativos ao equilíbrio das prestações no contrato se encontram ultrapassados.
51. Do que vimos de expor, parece- nos que está amplamente preenchido o quarto requisito do art. 437º do C.C., pois a exigência do Recorrido Fundo receber o valor integral da renda referente ao prazo de duração efetiva do contrato, no cenário pandémico actual e com todas as consequências e implicações económicas associadas, contraria gravemente a boa-fé.
52. Passemos então ao quinto e último requisito e, sobre o mesmo diremos que o dano em causa não está obviamente coberto pelo risco próprio do contrato de arrendamento! Aliás, a este respeito, convocamos aqui Carneiro da Frada, quando lapidarmente afirma que “a situação pandémica vivida encontra-se patentemente bem para lá desse âmbito”. Ou seja, a situação pandémica pela sua magnitude e efeitos apocalípticos na economia não pode naturalmente estar coberta pelos riscos próprios de qualquer contrato.
53. Por tudo quanto vimos de afirmar, parece-nos que, tendo sido frustrada a negociação,com vista à modificação do contrato, é LEGÍTMA e LÍCITA a resolução operada pela Recorrente, com invocação da alteração superveniente das circunstâncias.
54. E, ocorrendo como ocorre uma resolução que, a nosso ver, é legítima e lícita, não se pode não concluir que o Recorrido Fundo não é titular do direito de indemnização ao qual se arroga. E, portanto, o acionamento da garantia bancária por parte do Recorrido Fundo constitui manifesto abuso de direito!
55. Uma palava ainda para sublinhar que, em sede da apreciação da procedência ou não da presente providência cautelar apenas é necessário o fumus bonus iuris (sem prejuízo, claro está, da verificação do necessário requisito do periculum in mora).
56. Ou seja, para que a presente providência seja decretada, bastará para o efeito que se reconheça uma probabilidade séria da existência do direito da Recorrente.
57. Alertamos para esta circunstância, porque é vulgar na doutrina fazer-se alusão à necessidade de prova documental líquida e irrefutável para que se possa concluir que o exercício do accionamento da garantia é de um abuso evidente e manifesto.
58. Na verdade, a exigência de que o abuso seja evidente e manifesto, surge apenas concebida para legitimar a recusa do Garante em pagar a Garantia e como forma de alicerçar a sua protecção futura contra o beneficiário e/ou o ordenante. Numa hipótese de conflito, o Garante está sempre numa posição difícil em que se vê na contingência de ter que escolher entre pagar ou não pagar a garantia, sujeitando-se num caso e noutro a responsabilidade contratual às mãos do garante ou do ordenante... Assim, a exigência de que o abuso seja evidente e manifesto e suportado em prova documental irrefutável surge como forma de consumir a culpa do Garante e de o isentar de responsabilidade.
59. No entanto, tal exigência não pode ser decalcada como condição de procedência suplementar para a presente providência. Não só porque a lei não dá guarida a essa exigência, como também porque essa mesma lei, para a procedência de uma providência cautelar se basta apenas com a probabilidade séria de existência do direito e com a demonstração do periculum in mora.
60. Ao Tribunal não se pede que se substitua ao Garante no juízo que este tem de fazer acerca da existência ou inexistência de uma prova líquida e irrefutável sobre se o acionamento da garantia é abusivo ou fraudulento.
61. Ao Tribunal o que é pedido é que verifique se há fumus bonus iuris e periculum in mora.
62. Basta-se assim o Tribunal – e assim tem que ser! – com uma prova perfunctória própria dos procedimentos cautelares que aponte no sentido da provável existência de um acionamento abusivo da garantia bancária, que é preciso acautelar do perigo da demora na justiça!
63. No caso da Recorrente, de tudo quanto vimos de alegar, parece-nos evidente que essa probabilidade séria de existência do direito está manifestamente verificada! Há fumus bonus iuris. Tal como existe Periculum in mora, como agora veremos.
64. Foi entendimento do douto Tribunal recorrido que a Recorrente não logrou “demonstrar a sua atual situação financeira e, por conseguinte, a sua incapacidade de honrar os compromissos assumidos e o invocado risco de insolvência”,
65. Não se vislumbra, no entanto, que outros elementos poderia a Recorrente ter junto aos autos para prova da “atual situação financeira”, que não aqueles que já constam dos mesmos.
66. Por um lado, foi junta declaração do contabilista certificado da Recorrente, onde se atestam as acentuadas quebras de faturação registadas ao longo dos últimos meses de atividade,
67. Por outro lado, de destacar que nem poderia ser outro o documento contabilístico junto para efeitos de prova do que vem alegado, uma vez que, à data, ainda não se encontra naturalmente encerrado o balanço referente ao exercício de 2020, ainda em curso.
68. Em todo o caso, não será de descurar a circunstância de nos movermos no âmbito de um procedimento legal que se basta com a demonstração de uma prova indiciária, própria da sua natureza cautelar.
69. No que concerne aos apoios estaduais concebidos para mitigar os efeitos provocados pela pandemia, diga-se que Recorrente conseguiu aqui beneficiar de uma linha de apoio à Covid.
70. Linha de apoio que, no entanto, apenas se destina a ser utilizada para o pagamento dos salários aos seus trabalhadores (tendo uma massa salarial que ascende ao valor de 200.000,00 €) e não para o normal funcionamento da atividade da Recorrente.
71. Da atual situação financeira da Recorrente e dos efeitos prejudiciais e irreversíveis que o eventual acionamento da garantia bancária desencadearia para aquela, dá-nos precisamente conta a testemunha …, contabilista certificado, (a tempo 01:01:41 a 01:03:33 e 01:05:37 a 01:06:52).
72. Afirmar, como o fez o douto Tribunal recorrido, que “tem-se entendido que não constitui fundamento para recusa de pagamento da garantia o receio de que a sua execução cause prejuízos à requerente, advindos da sua obrigação de reembolsar os Bancos das quantias pagas ao beneficiário da garantia”, é preconizar um olhar extremamente redutor e simplista daquele que deve ser visto como o quadro geral dos prejuízos que efetivamente se abaterão sobre a Recorrente.
73. E é isto tanto mais verdade se se tiver em linha de conta, como não deverá deixar de se ter, que em causa estão qualquer coisa como 160 postos de trabalho,
74. Assim como, a perda irreparável do direito de representação e distribuição exclusiva de todos os artigos da marca (...) em Portugal,
75. Grupo com o qual a Recorrente trabalha há já vários anos e do qual faz depender inteiramente a sustentabilidade da sua atividade.
76. É por demais evidente que o acionamento da garantia bancária colocará a Recorrente numa situação financeira terminal, atentando perigosamente e de uma forma irreparável à sua capacidade de sobreviver e ultrapassar a crise.
77. Colocando inclusivamente em causa o cumprimento integral dos seus compromissos face a trabalhadores e fornecedores.
78. De salientar, de resto, a alteração legislativa introduzida pelo art.º 3.º da Lei n.º45/2020 que por sua vez veio aditar o art.12-A à Lei n.º 4-C/2020 de 06/04, a qual veio estabelecer que “No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, o senhorio não pode executar garantias bancárias pelo incumprimento no pagamento de rendas não habitacionais.”
79. Àluz deste normativo, a eventual decisão de julgar improcedente a providência cautelar requerida mais não configuraria do que uma solução atípica e profundamente injusta,
80. Uma vez que se a Recorrente tivesse permanecido no locado, ainda que incapaz de cumprir com o valor das rendas que se fossem, entretanto, vencendo, sempre se veria o Fundo Recorrido impedido de acionar a garantia bancária prestada pela Recorrente, durante o período de vigência desta norma.
81. Não o tendo feito, optou a Recorrente pela adoção de uma postura franca que acautelasse os interesses de ambas as partes, a qual, no fundo, visou evitar uma escaladados valores das rendas que com toda a certeza ficariam por pagar e,outrossim, dos prejuízos advindos para o locador, naturais de quem nada recebe, mas que também não pode despejar.
82. Resultando exposta ao “pior dos dois mundos”, porquanto, por já não ocupar o locado, não poderá também fazer-se prevalecer da suspensão legal fixada para a execução de garantias bancárias, ficando, ainda, na contingência de ver acionada a garantia bancária prestada para pagar rendas por uma ocupação do locado que já não faz.
(...) apresentou contra – alegações nas quais se pronuncia pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II-OS FACTOS
Na 1.ª instância firam dados como provados os seguintes factos:
1-A requerente tem por objecto a importação, distribuição e comércio de malas e acessórios de viagem, marroquinaria, sapatos e acessórios de moda.
2- O 1.º requerido tem por objecto o exercício da atividade bancária.
3-A Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., na qualidade de “senhoria”, e
G…. Unipessoal, Lda., na qualidade de “arrendatária”, subscreveram o acordo escrito cuja cópia consta de fls. 30 a 36, e que se dá por reproduzido, datado de 04.11.2014, intitulado “Contrato de Arrendamento Comercial com Prazo Certo”, tendo por objecto o espaço com o n.º 242-A do prédio sito…., em Lisboa;
4. Tal prédio veio a ser adquirido pelo 2.º requerido, que, no acordo referido no n.º 3, sucedeu na posição de locador.
5. O 2.º requerido, a sociedade G… Unipessoal, Lda., e a ora requerente, subscreveram o acordo cuja cópia consta de fls. 37 a 44, datado de 02.11.2017, intitulado “Cessão de Posição Contratual e Aditamento a Contrato de Arrendamento”, que se dá por reproduzido, datado de 02.11.2017, pelo qual a sociedade Gateleven, Unipessoal, Lda., cedeu à ora requerente a posição contratual de arrendatária no acordo referido no n.º3.
6. No acordo mencionado, ficou estabelecido que a arrendatária entregaria à senhoria uma garantia bancária autónoma e à primeira solicitação, como garantia de todas as obrigações que para arrendatária decorram do cumprimento ou incumprimento do contrato;
7. Nessa sequência, o 1.º requerido emitiu em 20.10.2017 a garantia bancária n.º 125-02-2080132, cuja cópia consta de fls. 45 e 46 e se dá por reproduzida, pela qual declara «prestar a favor de (...) FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO (…) uma garantia bancária autónoma, irrevogável incondicional e à primeira solicitação (“on first demand”), no montante de Eur 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), responsabilizando-se, dentro da citada importância, por fazer o pagamento à BENEFICIÁRIA de quaisquer quantias exigidas por esta à ORDENANTE no âmbito do contrato de arrendamento celebrada entre ambas, respeitante ao piso 0 do prédio urbano designado “Avenida ...”, sito na Avenida ..., em Lisboa, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 901 da freguesia de Santo António, Lisboa. O BANCO obriga-se de forma irrevogável e incondicional, como principal pagador e com expressa renúncia ao benefício da excussão, a pagar, no prazo de cinco dias úteis após 6. No acordo mencionado, ficou estabelecido que a arrendatária entregaria à senhoria uma garantia bancária autónoma e à primeira solicitação, como garantia de todas as obrigações que para arrendatária decorram do cumprimento ou incumprimento do contrato;
7. Nessa sequência, o 1.º requerido emitiu em 20.10.2017 a garantia bancária n.º 125-02-2080132, cuja cópia consta de fls. 45 e 46 e se dá por reproduzida, pela qual declara «prestar a favor de (...) FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO (…) uma garantia bancária autónoma, irrevogável incondicional e à primeira solicitação (“on first demand”), no montante de Eur 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), responsabilizando-se, dentro da citada importância, por fazer o pagamento à BENEFICIÁRIA de quaisquer quantias exigidas por esta à ORDENANTE no âmbito do contrato de arrendamento celebrada entre ambas, respeitante ao piso 0 do prédio urbano designado “Avenida ...”, sito na Avenida ..., em Lisboa, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 901 da freguesia de Santo António, Lisboa. O BANCO obriga-se de forma irrevogável e incondicional, como principal pagador e com expressa renúncia ao benefício da excussão, a pagar, no prazo de cinco dias úteis após recepção do pedido da BENEFICIÁRIA, a efetuar por simples comunicação escrita sem necessidade de reconhecimento de assinatura, as importâncias que lhe venham a ser solicitadas, por uma ou mais vezes e até ao montante
no acordo referido no n.º 3;
6. No acordo mencionado, ficou estabelecido que a arrendatária entregaria à senhoria uma garantia bancária autónoma e à primeira solicitação, como garantia de todas as obrigações que para arrendatária decorram do cumprimento ou incumprimento do contrato;
7. Nessa sequência, o 1.º requerido emitiu em 20.10.2017 a garantia bancária n.º 125-02-2080132, cuja cópia consta de fls. 45 e 46 e se dá por reproduzida, pela qual declara «prestar a favor de (...) FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO (…) uma garantia bancária autónoma, irrevogável incondicional e à primeira solicitação (“on first demand”), no montante de Eur 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), responsabilizando-se, dentro da citada importância, por fazer o pagamento à BENEFICIÁRIA de quaisquer quantias exigidas por esta à ORDENANTE no âmbito do contrato de arrendamento celebrada entre ambas, respeitante ao piso 0 do prédio urbano designado “…., sito na … em Lisboa, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 901 da freguesia de Santo António, Lisboa. O BANCO obriga-se de forma irrevogável e incondicional, como principal pagador e com expressa renúncia ao benefício da excussão, a pagar, no prazo de cinco dias úteis após recepção do pedido da BENEFICIÁRIA, a efetuar por simples comunicação escrita sem necessidade de reconhecimento de assinatura, as importâncias que lhe venham a ser solicitadas, por uma ou mais vezes e até ao montante garantido, caso a sua afiançada falte ao cumprimento das obrigações assumidas, designada mas não exclusivamente, quanto ao pagamento das rendas e /ou indemnizações, por mora e /ou pelo incumprimento dos prazos previstos para o arrendamento (…) a presente garantia permanece válida e em vigor desde a presente data até 31/01/2025, expirada a qual cessa a sua produção de efeitos e, por consequência, nada mais poderá ser exigido ao Banco com fundamento na mesma. A presente garantia apenas poderá ser cancelada antes da data limite assinalada, mediante declaração emitida pela BENEFICIÁRIA, autorizando o seu cancelamento».
8. No dia 11.03.2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o estado de pandemia em face do impacto causado pelo surto pandémico de COVID-19 à escala global;
9. O Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18.03, declarou o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública;
10. Nessa sequência, o Decreto da Presidência do Conselho de Ministros n.º 2-A/2020, de 20/03, que entrou em vigor no dia 22.03.2020, determinou a suspensão de atividades no âmbito do comércio a retalho, com exceção daquelas que disponibilizem bens de primeira necessidade ou outros bens considerados essenciais na presente conjuntura e que constam em anexo, não se aplicando essa suspensão aos estabelecimentos de comércio por grosso nem aos estabelecimentos que pretendam manter a respetiva atividade exclusivamente para efeitos de entrega ao domicílio ou disponibilização dos bens à porta do estabelecimento ou ao postigo, estando neste caso interdito o acesso ao interior do estabelecimento pelo público;
11. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30/04, que produziu efeitos a partir das 00:00h do dia 03.05.2020, decretou o levantamento da suspensão de acesso ao interior do estabelecimento pelo público, para os estabelecimentos de comércio a retalho com a área igual ou inferior a 200m2 e uma entrada autónoma e independente pelo exterior;
12. O Despacho n.º 3427-A/2020, de 18/03, interditou o tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal de todos os voos de e para países que não integram a União Europeia, com algumas excepções, com efeitos a partir das 24 horas do dia 18.03.2020, o que foi, posterior e sucessivamente, prorrogado.
13.As vendas realizadas a turistas representavam, pelo menos, 70% do volume de vendas registadas na loja referida no n.º 3;
14. Parte dessas vendas eram vendas em TaxFree, enquanto vendas realizadas a turistas residentes em Estados Terceiros;
15. …, inscrito na Ordem dos Contabilistas Certificados, certificou, na qualidade de contabilista da requerente, que as quebras de facturação ocorridas na loja referida no n.º 3, face ao período homólogo do ano de 2019, foram, no mês de Março de 2020, de 73%, no mês de Abril de 2020, de 100%, no mês de Maio de 2020, de 94%, no mês de Junho de 2020, de 83%, e que, à data de 31.07.2020, o acumulado anual totalizava uma quebra de faturação de 65% face ao período homólogo do ano anterior;
16.Entre a requerente e o 2.º requerido, foram trocadas as seguintes missivas:
a) carta enviada pela requerente em 11/03/2020, cuja cópia consta de fls. 49 a 51 e se dá por reproduzida, na qual refere uma quebra de vendas insustentável, que a situação é muito grave e que brevemente entrará em contacto com o 2.º requerido;
b) carta enviada pela requerente em 25/03/2020, cuja cópia consta de fls. 52 a 55 e se dá por reproduzida, na qual informa ter sido forçada a encerrar a loja no dia 19.03.2020 e que não poderá pagar as rendas enquanto a loja estiver encerrada;
c) carta enviada pela requerente em 14/04/2020, cuja cópia consta de fls. 56 a 58 e se dá por reproduzida, na qual discorre sobre a situação extraordinária de forte crise económica, da forte exposição do estabelecimento ao sector do turismo e onde propõe, nomeadamente, um desconto de 50% das rendas desde a data em que seja possível reabrir o estabelecimento e até ao final do ano de 2020;
d) carta enviada pelo 2.º requerido em 23/04/2020, cuja cópia consta de fls. 59 e 60 e se dá por reproduzida, na qual recusa tal proposta, solicita o pagamento das rendas vencidas desde 01.04.2020 ou o envio de urgente comunicação sobre a eventual aplicação do regime leal de diferimento de pagamento de rendas, caso a requerente entenda que o mesmo lhe é aplicável;
e) carta enviada pela requerente em 30/04/2020, cuja cópia consta de fls. 61 a 63 e se dá por reproduzida, na qual comunica a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento, com cessação de efeitos a partir da data de 31/10/2020, e solicita ao 2.º requerido que proceda ao cancelamento da garantia bancária emitida;
f) carta enviada pelo 2.º requerido em 06/05/2020, cuja cópia consta de fls. 64 a 65 e se dá por reproduzida, na qual declara a aceitação da extinção do contrato de arrendamento, mas para a data de 31/10/2021, em face da cláusula 3.ª do contrato;
g) carta enviada pela requerente em 04/06/2020, cuja cópia consta de fls. 66 a 69 e se dá por reproduzida, pela qual reitera a sua carta de 30/04/2020;
h) carta enviada pelo 2.º requerido em 05/06/2020, cuja cópia consta de fls. 70 a 71e se dá por reproduzida, na qual reitera a sua carta de 06.05.2020;
i) carta enviada pela requerente ao 2.º requerido em 07/08/2020, cuja cópia consta de fls. 71-A a 75 e se dá por reproduzida, na qual informa das quebras de vendas nos meses de Março a Julho de 2020, apresenta uma proposta de isenção e redução dos valores das rendas e concede o prazo de 8 dias ao 2.º requerido para aceitar essa proposta, sob pena de invocar o direito de resolver o contrato nos termos do ar. 437.º do CC, com efeitos reportados ao final do mês de Agosto de 2020, data em que entregará o locado livre de pessoas e bens;
j) carta enviada pelo 2.º requerido à requerente em 12/08/2020, cuja cópia consta de fls. 76 a 78 e se dá por reproduzida, na qual refere não aceitar a proposta da requerente e apresenta uma outra proposta;
k) carta enviada pela requerente ao 2.º requerido em 17/08/2020, cuja cópia consta de fls. 79 e 83 e se dá por reproduzida, na qual rejeita a proposta do 2.º requerido, comunica que procede à resolução do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 437.º do Código Civil, com efeitos reportados a 31/08/2020, e junta comprovativo de pagamento dos valores das rendas devidas até à data de 31/08/2020;
l) carta enviada pelo 2.º requerido à requerente em 19/08/2020, cuja cópia consta de fls. 84 a 85 e se dá por reproduzida, na qual considera que não se verificam os pressupostos de alteração anormal das circunstâncias, pelo que deverá a requerente manter o cumprimento integral do contrato até ao seu termo, isto é, 31.10.2021;
m) carta enviada pela requerente ao 2.º requerido, em 01/09/2020, cuja cópia consta de fls. 86 e 87 e se dá por reproduzida, pela qual procede à entrega das chaves da loja e refere que o local arrendado está livre de pessoas e bens.
17. A Requerente procedeu à desocupação do local referido no n.º 3, deixando-o totalmente livre de pessoas e bens, no final do mês do Agosto de 2020;
18.A cláusula 3.ª do contrato de arrendamento referido no n.º 3 dispõe que:
«3 - Nenhuma das partes poderá denunciar ou resolver o presente contrato durante os primeiros sete anos de vigência do mesmo, os quais são, assim, de duração efectiva.
4 – No caso da Arrendatária proceder à denúncia ou resolução do contrato nos primeiros sete anos de vigência ficará obrigado a pagar à Senhoria o valor das rendas que se venceriam até final do referido prazo».
19. De acordo com dados retirados da internet, a despesa média diária por turista aumentou de € 33,90, em 2014, para € 48,60 em 2019;
20. Em Agosto de 2019, foi anunciado num artigo publicado na internet que “o número de turistas a visitar Portugal aumentou para 12,1 milhões” e que as “receitas com o turismo totalizaram 1,78 mil milhões de euros”;
21. A cláusula 5.ª do contrato de arrendamento referido no n.º 3 dispõe que:
«1 – A Arrendatária obriga-se a pagar à Senhoria uma renda mensal, que s evence no primeiro dia útil do mês anterior a que disser respeito (…)»;
22. A requerente não remeteu qualquer comunicação ao 2.º requerido nos termos do e para os efeitos da Lei n.º 4-C/2020, de 06/04, que estabeleceu um regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, atendendo à situação epidemiológica;
23. A requerente pagou as rendas referentes aos meses de Abril a Agosto de 2020, no dia 17.08.2020.
24. A requerente possui uma rede de 35 lojas.
Foi considerado “não provado” o seguinte:
a) que a requerente tenha como atividade comercial a venda ao público de malas e artigos de viagem de todas as marcas do Grupo (...), enquanto distribuidora exclusiva desta marca;
b) que o 2.º requerido tenha como desígnio comercial a valorização crescente do capital e obtenção de um rendimento estável, através da constituição e gestão de uma carteira de valores predominantemente imobiliários;
c) que as vendas TaxFree a que se alude no n.º 14 representassem cerca de 40%. do volume de vendas da loja referida no n.º 3 dos factos provados;
d) que, no período compreendido entre Março e Julho de 2020, a requerente tenha registado perdas acentuadas superiores a 85% em comparação com o período homólogo do ano de 2019;
e) que as vendas registadas pela requerente entre o período de Março e Julho de 2020 e reconduzíveis ao imóvel locado se cifrem no valor de 25.113,00 €;
f) que o valor das vendas facturadas pela requerente não cheguem sequer para cobrir 1/5 dos custos mínimos da sua actividade.
III-O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, as questões que importa apreciar são as seguintes:
A-Reapreciação da decisão sobre a matéria de facto
B--Verificação dos pressupostos da requerida providência cautelar
A-A Apelante impugna a decisão de dar como não provado que “a)a requerente tenha como atividade comercial a venda ao público de malas e artigos de viagem de todas as marcas do Grupo (...), enquanto distribuidora exclusiva desta marca”.
Vejamos se a prova produzida impunha que devesse ser dada como “indiciariamente provada” tal matéria. Com efeito, não podemos perder de vista que estamos no âmbito de um procedimento cautelar e que “decorre da própria natureza do procedimento cautelar que toda a prova produzida é meramente indiciária, seja a produzida pelo requerente, seja a produzida pelo requerido, em sede de oposição, pelo que não se exige a prova segura do facto, como sucede no processo declarativo, bastando o juízo de mera probabilidade”. [1]
Ora, desde logo e apesar de não estar junta aos autos a certidão do registo comercial do qual conste o objecto social da Requerente, a verdade é que tal facto não sofreu contestação por parte das Requeridas, sendo certo que do teor das cartas que constituem os documentos n.º5, 6, 7, 9, 11 e 17, juntos com o requerimento inicial, se verifica que a Requerente usa no seu papel timbrado utilizado na correspondência mantida com a (...), entre outros elementos identificativos, o seguinte: “(...) 1970 Distribuidor Exclusivo (...)”.
O mesmo facto é confirmado pela testemunha …, contabilista da (...), desde 1988, ao referir-se a tal qualidade na seguinte passagem do seu depoimento: “ (…)o acordo de distribuição de uma marca (...), acordo esse que tem imensos anos, quase desde a existência da (...)(…)”( ao minuto 01:05:37).
E acrescentou ao minuto 01: 06:52:
“ (…) anualmente, a M.. tem que enviar à (...) a existência de não-dívidas à Segurança Social (…) de bom cumprimento com a banca, não pode existir contencioso nenhum. Qualquer contencioso que exista é situação negativa para retirar a concessão.”.
Ora, atenta a natureza indiciária da prova, o facto de essa qualidade de representante exclusivo da (...) não ser o objecto do processo e nunca ter sido suscitada qualquer dúvida sobre a mesma, afigura-se-nos que os elementos probatórios supra referidos são mais do que suficientes para que deva ser considerado indiciariamente provado que:
“A Requerente tem como actividade comercial a venda ao público de malas e artigos de viagem, sendo distribuidora exclusiva da marca (...)”.
Quanto ao facto indicado na alínea c) dos factos não provados e que se refere às vendas Taxfree representarem cerca de 40% do volume de vendas da loja referida em 3 dos factos provados, cumpre referir o seguinte:
Tendo em conta o depoimento da testemunha …, que depôs na qualidade de supervisor e coordenador das lojas da Autora e que depôs de forma isenta e objectiva, mostrando perfeito conhecimento dos factos, disse: “O nosso público-alvo também era para turismo fora da comunidade europeia, em que 40, 50% das vendas eram feitas a turismo angolano, brasileiro, americano e chinês...” vide minuto 00:05:00 a 00:06).
Claramente não é exacto aquilo que consta da motivação da decisão de facto, na sentença recorrida: “ al. c) para além do depoimento testemunha …, que não referiu os valores percentuais alegados, não foi feita qualquer prova dos factos em causa”. A testemunha referiu os valores percentuais.
Afigura-se-nos, pois, que face aos princípios supra enunciados sobre a exigência de uma prova meramente indiciária, o depoimento da referida testemunha é suficiente para fundamentar uma convicção minimamente segura de que:
“as vendas TaxFree a que se alude no n.º 14 representavam cerca de 40%. do volume de vendas da loja referida no n.º 3 dos factos provados”.
Foi ainda dado como não provado que “d)no período compreendido entre Março e Julho de 2020, a requerente tenha registado perdas acentuadas superiores a 85% em comparação com o período homólogo do ano de 2019”.
Ora, também neste ponto a Requerente produziu a seguinte prova:
A testemunha…, demonstrando conhecimento dos factos, como é normal atentas as funções exercidas de coordenador e supervisor da loja em causa, e evidenciando estar perfeitamente documentado de forma a dar toda a credibilidade ao seu depoimento referiu, claramente, o seguinte: Em março de 2020, a quebra de facturação, relativamente ao mês homólogo do ano anterior foi de 73% (passou de €32862,00 para € 8.834,00). Em Abril de 2020, a quebra foi de 100%, visto que a loja esteve fechada por imposição governamental, em consequência do estado de emergência. Em Maio de 2020, a quebra na facturação foi de 94%. Passou de €47683,00, no ano anterior, para €2578,00. Em Junho de 2020, a quebra de facturação foi de 92%. Passou de €45.079,00 em Junho de 2019 para € 3493,00 em Junho de 2020. Em Julho de 2020, a quebra de facturação foi de 83%, passando de €60988,00,em Julho de 2019, para €10.208,00, no mês homólogo de 2020.
Ora, efectuando a média dos cinco meses, obtém-se uma quebra de faturação de 88,4% ou seja, um valor superior a 85%.
Tais valores extraem-se igualmente do teor do documento referido no ponto n.º15, da matéria de facto dada como assente. Este ponto foi dado como provado “ com base no documento de fls. 48, não impugnado pela Ré e cujo teor foi confirmado pela testemunha … que o subscreveu”, conforme se pode ler na motivação da decisão de facto, constante da sentença recorrida.
Note-se que a média do decréscimo da facturação nesses meses, superior a 85% não é equivalente ao valor referido no documento mencionado no ponto 15.º, pois aqui fala-se do “acumulado anual”, à data de 31 de Julho que inclui necessariamente Janeiro e Fevereiro, meses anteriores à pandemia o que explica o valor de 65% ali referido.
Fundamenta o Tribunal recorrido quanto à decisão da alínea d) que “a factualidade em causa não decorre do documento de fls. 48, sendo certo que nele não se refere qualquer valor percentual relativo a quebras de venda do mês de Julho de 2020”. É certo que o documento não refere o mês de Julho, mas tal não é motivo suficiente para não ser considerado em relação aos meses que nele são mencionados nem impede que se considere o depoimento da testemunha e até outros documentos que confirmam o mesmo facto, como o documento n.º 13 junto com a petição inicial. Neste documento que é uma carta dirigida à locadora, a Requerente relata esses mesmos valores.
Deste modo, face ao teor desse documento que, no dizer da sentença recorrida, foi confirmado pela testemunha que o subscreveu, a decisão de dar como não provada a matéria da alínea d), encerra mesmo uma contradição relativamente àquilo que se deu anteriormente como provado.
Cremos, pois, que a prova indiciária produzida permite dar como provado que:
“No período compreendido entre Março e Julho de 2020, a requerente registou perdas acentuadas superiores a 85% em comparação com o período homólogo do ano de 2019”.
E com base na mesma prova, está igualmente indiciariamente demonstrado que
“as vendas registadas pela requerente entre o período de Março e Julho de 2020 e reconduzíveis ao imóvel locado atingiram o valor de 25.113,00 €”( correspondente à alínea e) dos factos dados como “não provados”.
Com efeito, a esse valor se chega efectuando a soma dos valores facturados, nos meses de Março, (€8.834,00) Abril (€0,00), Maio (€2578,00), Junho (3.493,00) e Julho (€10.208,00), segundo os depoimentos da testemunha …..
Impugna a Apelante também a decisão de dar como “não provado” que “f)o valor das vendas facturadas pela requerente não chegam sequer para cobrir 1/5 dos custos mínimos da sua actividade”.
Ora, quer a testemunha …, quer a testemunha … depuseram de forma bastante clara e objectiva, concretizando que os custos fixos mensais da loja em causa atingem o valor de € 26.200,00. (vide minuto 00:57). Só o custo da renda (20.567,00) e os salários( (4.250,00), atingem o valor de € 24.250,00. Acrescem outros custos relacionados com transportes, comunicação, segurança, etc,
Ora, perante estes valores, é por demais evidente que o valor facturado, em cinco meses, não cobre os custos da loja, num só mês.
Impõe-se dar como provado que:
“o valor das vendas facturadas pela requerente, nos meses de Março a Julho, não chegam sequer para cobrir 1/5 dos custos mínimos da sua actividade”.
A Apelante pretende ainda que sejam incluídos no elenco da factualidade indiciariamente provada os seguintes pontos alegados sob os números 61 a 64, 66, 75, 92, 94 a 97, 98 a 104 da petição inicial.
Vejamos:
Nos números 61 a 64 a Apelante alega o seguinte:
“(…)61. Tornam evidente que a receita da loja não é sequer suficiente para pagar a renda do locado , quanto mais os demais encargos com funcionários, luz, água, obrigações contributivas e fiscais, etc.
62.E em estreita ligação com a disrupção total do sector do turismo, cuja recuperação se aponta venha a suceder apenas em 2022.
63-Nem pela relevância negativa da causa virtual se afastaria o preenchimento desta causalidade, porquanto, jamais se poderá dizer que não tivesse ocorrido a pandemia e a Requerente teria, com toda a probabilidade, enfrentado igualmente o prejuízo com que agora se confronta.
64-Dito de outra forma e nos termos do que vem melhor exposto supra, a crise existente não tornou o cumprimento pontual do contrato “mais difícil”, para requerente, mas antes impossível de suportar, tal é a discrepância entre o valor das escassas vendas realizadas e o valor dos custos mínimos da actividade.”
Como se verifica da leitura dos números transcritos, a matéria em causa encerra juízos conclusivos e não factos, pelo que não poderão tais alegações ser aditados ao elenco da factualidade provada. De qualquer modo, a matéria em causa já está contemplada na alínea f) dos factos “não provados” e que supra se decidiu passar a incluir matéria provada.
No ponto 66.º alega-se que “ (…) o cumprimento do contrato implica que uma das partes se sujeite à ruína económica e financeira apenas para poder pagar a renda acordada.”
Mais uma vez, estamos perante uma conclusão e não um facto pelo que também neste caso, improcede a pretensão da Apelante.
O que consta do art.º 75.º da p.i também já está comtemplado na factualidade dada como provada.
No ponto 92.º da p.i. alega a Apelante: “ E a verdade é que resulta das cartas remetidas pelo 2.º requerido que este se recusa a devolver a garantia prestada apesar de para tanto solicitado, anunciando a sua intenção de desconsiderar a resolução operada e de se pagar das rendas vincendas pelo montante inscrito na garantia.”
Ora, também este ponto encerra um juízo conclusivo que não tem cabimento no elenco dos factos provados, sendo certo que o teor da correspondência trocada entre as partes está reproduzida na factualidade apurada, devendo o Tribunal retirar as competentes conclusões da análise desses documentos, em sede de fundamentação jurídica e não nesta sede de fixação da matéria de facto.
Alega a Apelante no ponto 94.º o seguinte:
“Torna-se por demais evidente que o acionamento da garantia bancária colocará a Requerente numa situação financeira terminal, atentando perigosamente e de uma forma irreparável à sua capacidade de sobreviver e ultrapassar a crise,”
95-Colocando inclusivamente em causa o cumprimento integral dos seus compromissos face a trabalhadores e fornecedores.
96-E colocando-a numa situação de insolvência por se ver confrontada com a exigência de uma quantia que não tem condições de pagar no imediato.”
Mais ma vez estamos perante alegações conclusivas que não poderão ser levadas ao elenco dos factos provados, tanto mais que da factualidade dada por assente já existem factos idóneos para permitir ao Tribunal concluir sobre a matéria em causa.
O mesmo se diga relativamente ao que consta dos pontos 98.º a 104.º da petição inicial que contêm alegações de cariz argumentativo e não fáctico.
Assim e em suma, procedem parcialmente as conclusões da Apelante, quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto e aditam-se ao elenco dos factos provados os seguintes, numerados da forma que segue:
25-A Requerente tem como actividade comercial a venda ao público de malas e artigos de viagem, sendo distribuidora exclusiva da marca (...).
26-As vendas TaxFree a que se alude no n.º 14 representavam cerca de 40% do volume de vendas da loja referida no n.º 3 dos factos provados.
27-No período compreendido entre Março e Julho de 2020, a requerente registou perdas acentuadas superiores a 85% em comparação com o período homólogo do ano de 2019.
28-As vendas registadas pela requerente no período de Março a Julho de 2020 e reconduzíveis ao imóvel locado, atingiram o valor de 25.113,00 €”.
29-O valor das vendas facturadas pela requerente, nos meses de Março a Julho, não chegam sequer para cobrir 1/5 dos custos mínimos da sua actividade”.
B-Após a fixação da matéria de facto pertinente, importa agora analisar a questão da verificação ou não dos pressupostos da requerida providência cautelar.
1-O presente procedimento cautelar foi intentado ao abrigo do disposto no art.º 362.º do Código de Processo Civil que estipula: «sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado».
À luz do referido preceito legal, são, pois, requisitos essenciais para o decretamento de providências cautelares não especificadas, os seguintes:
a) a titularidade de um direito ou de um interesse legalmente protegido, sendo certo que, para tanto, basta que, sumariamente, se conclua pela séria probabilidade da existência desses direito ou interesse invocados ("fumus bonis iuris");
b) o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito próprio, ou seja, o justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação ("periculum in mora").
Importa, pois, analisar se, no caso sub judice e à luz da factualidade indiciariamente provada, se mostram verificados os sobreditos requisitos.
Está em causa o pagamento ou a execução de uma garantia bancária autónoma, prestada pelo 1.º Requerido, sendo beneficiária a 2.ª Requerida, por conta e a pedido da Requerente.
Ora, como se refere na sentença recorrida e bem, “a garantia bancária é o contrato (unilateral e não sinalagmático) pelo qual o banco caucionante se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro no caso de invocada inexecução ou má execução do contrato-base, sem poder alegar quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato.
Assim, o garante assegura ao beneficiário certo resultado – o recebimento de certa quantia em dinheiro – e terá de proporcionar-lhe esse resultado desde que o beneficiário invoque a verificação do evento garantido, sem que o garante possa discutir essa alegação, nomeadamente, invocando excepções de que poderia prevalecer-se o garantido.
Trata-se, pois, de uma garantia exequível mediante simples, imotivada ou potestativa comunicação, pelo beneficiário, do incumprimento da obrigação do mandante.
Com a prestação dessa garantia visa-se colocar o beneficiário ao abrigo do risco de incumprimento do contrato de base, proibindo o garante de invocar excepções relativamente a esse contrato.
É, por isso, muito usada na prática comercial para as hipóteses de incumprimento ou cumprimento defeituoso de contratos, pretendendo-se evitar a demora, os custos e a complexidade do recurso aos Tribunais.
O contraente, que não quer ver-se envolvido neste tipo de dificuldades, exige que um banco garanta, de forma automática, a perfeita execução do contrato, assumindo a obrigação de pagar logo que tal pagamento lhe seja exigido, independentemente da validade e subsistência da relação subjacente.
Por isso, se denomina de garantia autónoma, automática, à primeira solicitação, “on first demand” ou “upon first demand”.
No caso em apreço estamos, efectivamente perante uma garantia deste tipo.
Não há dúvida de que, apesar do regime jurídico da garantia bancária “on first demand” que lhe imprime as características da autonomia e literalidade, a Doutrina e a Jurisprudência têm admitido que, em casos excepcionais, possa ocorrer o recurso a procedimentos cautelares destinados a impedir o banco emitente de pagar, no caso de ter em seu poder prova líquida e inequívoca de fraude evidente ou má-fé patente[2]
Não obstante, por via da autonomia, o garante à primeira solicitação dever pagar, não podendo reportar-se ao contrato base para recusar o pagamento, casos há, excepcionais em que o poderá fazer, como ensina Menezes Leitão[3]:
“ Em qualquer caso, verificados os pressupostos da garantia, o garante terá que satisfazer imediatamente a correspondente obrigação, sendo extremamente limitadas as excepções que pode invocar, que praticamente se reconduzem à extinção da garantia por cumprimento, resolução ou caducidade, e ainda à existência de fraude manifesta e abuso de direito por parte do credor”[4].
L. Miguel Pestana de Vasconcelos[5] escreve sobre o “levantamento da autonomia”:
“Por isso entendemos que aqueles casos em que se admite que o garante pode, e deve, recusar o pagamento devem ser restritos. Tem que se tratar de casos de abuso do direito por parte do beneficiário ou de fraude por banda deste. Esse aspecto é relativamente pacífico na doutrina. Mas mais do que isso: na linha de Almeida Costa e Pinto Monteiro, entendemos que é necessário que os casos de abuso ou de fraude sejam verdadeiramente “inequívocos”.[6]
E também de acordo com Galvão Teles[7]”o banco pode recusar o pagamento no caso de o beneficiário, ao reclamar o pagamento, agir em desconformidade com os termos do título de garantia ou proceder com manifesta má-fé.”
A questão está, pois, em saber se, no caso que ora nos ocupa, a exigência do pagamento da garantia bancária de que o Requerido (...) é beneficiário, integra um desses casos excepcionais em que se admite que o Banco possa e até deva recusar satisfazer tal exigência, designadamente por ser de entender como inequivocamente abusiva a exigência da beneficiária.
Argumentou a este propósito a sentença recorrida:
«No caso dos autos, a requerente limita-se a extrair os referidos abuso, fraude ou má - fé da beneficiária da garantia do facto de o contrato de arrendamento, no âmbito do qual foi prestada, se encontrar findo, por resolução, estando, desta forma, extinta a obrigação garantida.
Sucede que a referida extinção do contrato decorreu da vontade e acto da própria requerente, que considerou que estavam reunidos os pressupostos da alteração das circunstâncias, previstos no artigo 437.º do Código Civil.
Tendo sido a requerente a tomar a iniciativa de resolver o contrato de arrendamento, sem sequer tentar convencer, judicialmente, o 2.º requerido da licitude da sua posição, muito dificilmente poderia entender-se que o accionamento de garantia bancária é subsumível a qualquer actuação fraudulenta ou abusiva do 2.º requerido, no sentido supra mencionado.
Com efeito, e tal como bem argumenta o 2.º requerido, mal seria que qualquer garantia bancária pudesse deixar de ser accionada pelo mero facto de o garantido proceder à resolução do contrato, transferindo para o beneficiário, que pretendesse prevalecer-se da garantia, o ónus de instaurar, previamente, uma acção tendente a demonstrar a ilicitude dessa resolução. Tal entendimento frustraria, como é bom de ver, a finalidade da garantia e geraria a insegurança e incerteza do comércio jurídico que, com ela, se pretendeu evitar.
A requerente optou por resolver, unilateral e extrajudicialmente, o contrato de arrendamento, pelo que, independentemente da licitude ou ilicitude desta resolução, tem de suportar as consequências daí advindas.
Saliente-se que não cabe, neste lugar, apreciar da licitude da resolução do contrato por banda da requerente, averiguando, nomeadamente, se se encontravam preenchidos os pressupostos da resolução por alteração anormal das circunstâncias, pois que tal equivaleria, precisamente, a discutir excepções fundadas na relação subjacente, violando o princípio da autonomia destas garantias. Trata-se, apenas, de analisar se o acionamento da garantia é, clamorosamente, abusivo, fraudulento ou atentatório da boa - fé.»
Quid juris?
Adiantamos desde já que discordamos deste raciocínio elaborado na sentença recorrida.
Desde logo, essa discordância visa a afirmação segundo a qual “não cabe, neste lugar, apreciar da licitude da resolução do contrato por banda da requerente, averiguando, nomeadamente, se se encontravam preenchidos os pressupostos da resolução por alteração anormal das circunstâncias(…)”
Pelo contrário, não concebemos que seja possível apreciar a questão fulcral deste processo, ou seja, a existência de um comportamento abusivo, por parte da Beneficiária da garantia bancária, sem avaliar da existência dos pressupostos da resolução por alteração anormal das circunstâncias. Esta questão, de resto, é o nó górdio de toda esta problemática. Na verdade, se chegarmos à conclusão de que foi lícita a resolução do contrato de arrendamento, nos termos do disposto no art.º 437.º do Código Civil, então a Requerente nada deve à Requerida e, por conseguinte, a exigência do pagamento da garantia bancária é inequivocamente abusiva.
Dir-se-á, como afirmou a sentença recorrida que a discutir essa questão equivale a discutir “ excepções fundadas na relação subjacente, violando o princípio da autonomia destas garantias”. Assim não o entendemos, pois esse raciocínio é válido para situações normais e regulares do comércio jurídico. Porém, sucede que não nos situamos no plano normal e corrente do funcionamento das relações jurídicas. Situamo-nos num plano absolutamente excepcional que, por isso mesmo, exige uma adaptação do raciocínio jurídico, em conformidade, face ao caracter excepcional da situação concreta.
E situações excepcionais exigem soluções excepcionais, como o nosso Direito Civil sabiamente previu na subsecção VII, sob a epígrafe “resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias”, estipulando no art.º 437.º:
“Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidos afecte gravemente os princípios da boa- fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.”
Conforme está provado, em 17/08/2020, a requerente enviou ao 2.º Requerido uma carta, na qual comunica que procede à resolução do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 437.º do Código Civil, com efeitos reportados a 31/08/2020, e junta comprovativo de pagamento dos valores das rendas devidas até à data de 31/08/2020.
2-Importa, colocar a questão de saber se a Requerente poderia proceder à resolução do contrato, por alteração anormal das circunstâncias, extrajudicialmente?
Tal como resulta dos factos provados, em 17/08/2020, a Requerente envia para ao 2.º Requerido, uma carta registada com aviso de recepção, na sequência de variada correspondência anteriormente trocada entre as partes, na qual procede à resolução do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 437.º do Código Civil, com efeitos reportados a 31/08/2020, e junta comprovativo de pagamento dos valores das rendas devidas até à data de 31/08/2020.
A questão de saber se a resolução tem que ser exercida judicialmente ou se pode ser feita por mera declaração à outra parte, tal como correu no presente caso, tem evidente relevância prática nas situações como é aquela que ora nos ocupa, em que não há acordo entre as partes quanto à cessação ou não do contrato
Claro que se ambas as partes quiserem resolver o contrato, não se vislumbra que algum impedimento possa existir para que o façam extrajudicialmente,
A questão coloca-se sobretudo, como se compreende, no caso de inexistência de acordo, como é o caso presente. Será que, nesse caso, o artigo437.º do Código Civil exige que a parte que pretende socorrer-se da resolução contratual com fundamento na alteração anormal das circunstâncias, tenha que recorrer a juízo?
A doutrina portuguesa é divergente quanto à questão.
Almeida Costa afirma que “ a resolução ou modificação do contrato tem de ser requerida em juízo”[8] Baseia-se no argumento literal, referindo-se à expressão constante do art.º 437.º n.º2 “ requerida a resolução”.
Neste mesmo sentido, Pessoa Jorge defende igualmente que “o art.º 437.º não autoriza pura e simplesmente o devedor a não cumprir (subsiste a ilicitude do não cumprimento), mas concede-lhe o direito de obter a modificação ou resolução do contrato”.[9]
Porém, Galvão Teles defende que a parte que se considerar lesada com a alteração anormal das circunstâncias pode provocar a resolução dos contratos mediante declaração (extrajudicial) dirigida à outra parte[10].
Também Calvão da Silva expressa tal entendimento[11], bem como Menezes Leitão[12].
Também na Jurisprudência a questão não tem sido tratada de forma unânime.
Se bem que existam acórdãos que decidiram no sentido de a resolução do contrato com base em alteração anormal das circunstâncias não se poder efectuar extrajudicialmente[13], a jurisprudência mais recente orienta-se no sentido oposto. Assim, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-04-2002[14], podemos verificar que nunca se pôs em causa o modo como a parte usou a faculdade de resolver o contrato por alteração das circunstâncias que estiveram na base da decisão de contratar, sendo certo que também ali “(…) a ré enviou aos autores uma carta em que exprime a intenção de resolver parcialmente o contrato promessa(…)”. No acórdão, apenas se apreciou se a factualidade apurada justificava ou não a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias.
Também no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-05-2005[15] se diz expressamente que “é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção (artigo 432º do Código Civil) e a resolução a que alude o artigo 437º do Código Civil tem por base a lei; dito isto não se extrai da lei que o destinatário, que não respondeu à declaração extrajudicial de resolução, deva ser fulminado com a cominação de se considerarem, por tal inércia, imediatamente indiscutíveis as razões invocadas para sustentar a resolução tanto na sua expressão de facto como nas suas consequências jurídicas.” Claramente, reconhece como admissível a declaração extrajudicial de resolução, nos termos do art.º 437.º do CC.
Na verdade, sendo esta uma modalidade de resolução, regulada imediatamente na sequência dos artigos 432.º a 436.º que regulam a resolução do contrato em geral, não se vê por que motivo não poderá fazer-se mediante declaração à outra parte, tal como previsto para a resolução por incumprimento, nos termos do art.º 436.º. Perguntar-se-á se não será indício de que o legislador pretendeu um regime diferente dado que o art.º 437.º surge numa subsecção diferente também. “A resolução prevista no art.º 437.º não está incluída na mesma subsecção porque a alteração das circunstâncias pode levar também à modificação do contrato, nos termos previstos na própria epígrafe. Mas isso não impede que, quando a parte contrária não aceitar a modificação, se realize uma resolução verdadeira e própria.”[16]
Aderimos, pois, ao entendimento segundo o qual a resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias se pode operar por declaração extrajudicial à outra parte contratante, dado que está sujeita ao regime geral da categoria em que se integra.
3-Importa ainda saber se a resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias poderá ser aplicado ao contrato de arrendamento comercial que é o caso dos autos.
Em sentido negativo se pronunciou o acórdão do STJ de 25-05-1982[17]onde se pode ler que  «I-O artigo 437 do Código Civil que estabelece as condições de admissibilidade para a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstancias, não pode aplicar-se a resolução do contrato de arrendamento, pela simples razão de que este contrato, dada a sua natureza e as restrições que a lei impõe a faculdade geral da sua resolução, não poderá, em caso algum ser resolvido ou modificado por alteração das circunstâncias, designadamente em quaisquer outros casos que não sejam os taxativamente enumerados no artigo 1093.º do Código Civil.
II - O direito de resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias, se acaso existisse, poderia fazer-se valer através da acção especial de despejo, a luz do artigo 971.º do Código de Processo Civil que determina o emprego da acção de despejo para todos os casos de pedido de resolução do contrato de arrendamento, tanto mais que determinando a lei o emprego de um processo especial, não poderá usar-se de qualquer outro.»
Já o recentíssimo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 15-10-2020[18] que apreciou um caso de resolução de um contrato de arrendamento comercial por parte de uma entidade bancária, como arrendatária, considerou que no caso apreciado não se verificavam as circunstâncias a que alude o art.º 437.º do Código Civil, apenas porque “para poder ser aplicado o instituto referido é necessário que a alteração anormal seja objectiva, e não subjectiva, ou seja, que atinja as circunstâncias em que ambas as partes fundaram a decisão de contratar, atingindo o próprio contrato, e não que apenas atinja uma das partes contratuais”. Por conseguinte, nenhum obstáculo viu na aplicação do instituto a um contrato de arrendamento comercial. E, na verdade, também não o vemos. O instituto da resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias é uma figura jurídica de carácter geral cuja razão de ser e justificação se aplica a qualquer relação contratual, não se vislumbrando qualquer razão para excluir o contrato de arrendamento do respectivo âmbito de aplicação.
4-Tratadas as questões que poderiam constituir obstáculo à apreciação da verificação dos pressupostos da resolução do contrato por alteração das circunstâncias, passamos a debruçarmo-nos sobre tais pressupostos a fim de aferir se os mesmos ocorrem no caso em apreço.
O cerne do problema que nos ocupa consiste precisamente em saber se a factualidade apurada justifica ou não a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, tal como previsto no art.º 437.º do Código Civil.
Como já referido, o artigo 437.º do C. Civil determina no seu nº 1 que se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa -fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
E no seu n.º 2 estipula-se que “requerida a resolução, a parte contrária pode opôr-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior (n. 2).
“É, assim, possível ao contraente lesado resolver ou modificar o contrato se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, que não seja desenvolvimento ou consequência da situação já conhecida à data do contrato, por forma a que a exigência do cumprimento da obrigação ofenda o princípio da boa fé. O princípio da estabilidade dos contratos imposto pela necessidade de segurança do comércio jurídico, não tem um valor absoluto. Para evitar ou minorar situações de injustiça, abandonou-se o princípio da estabilidade ou intangibilidade das relações contratuais, admitindo-se, sem necessidade de acordo dos contraentes a modificação ou resolução dos contratos, com base na alteração das circunstâncias vigentes à data da conclusão dos mesmos.
A realidade da vida traz por vezes alterações tão sérias aos negócios jurídicos já celebrados que, se uma das partes houvesse previsto as modificações ou alterações ocorridas, não teria celebrado o negócio ou, pelo menos, não o teria concluído nos termos em que o fez.
O artigo 437.º referido permite, por isso, a modificação ou resolução de um contrato no caso de alteração da chamada base negocial. Pode tratar-se de circunstâncias presentes nas representações ou previsões das partes, porventura implícitas no fim que o contrato visa atingir e estar-se-á perante a designada base negocial subjectiva ou pode tratar-se de circunstâncias sobre as quais as partes não pensaram em concreto, mas que são imprescindíveis para que através do contrato se atinjam os fins visados pelos contraentes e tais circunstâncias constituirão a base negocial objectiva. Perspectivada num ou noutro sentido a base negocial é constituída por circunstâncias essenciais "para que o contrato possa desenvolver-se com regularidade, permitindo às partes atingir os objectivos que tinham em vista" - Prof. Antunes Varela - CJ VII, Tomo 2, págs. 7/17.
Há-de tratar-se de circunstâncias tais, que se o contraente interessado na subsistência delas houvesse previsto a sua possível alteração e tivesse proposto à contraparte que o negócio ficasse condicionado à perduração da situação proposta, tal condicionamento teria sido aceite ou, de acordo com os ditames da boa- fé, deveria tê-lo sido - Prof. Vaz Serra - Rev. Legislação e Jurisprudência, Ano 113, pág. 378; Prof. Mota Pinto - "Teoria Geral do Direito Civil", 3ª ed., págs. 397/604; Prof. Menezes Leitão - "Direito das Obrigações" II, págs. 130/135.”[19]
Dificilmente se encontrará na Doutrina ou na Jurisprudência um exemplo mais evidente de alteração da base negocial, ou de alteração anormal das circunstâncias que presidiram à realização do contrato do que a situação que deu origem ao presente litígio: o deflagrar de uma pandemia, a nível planetário, que paralisou o mundo inteiro, não só Portugal.
Com efeito, conforme se provou e de resto, constitui mesmo um facto notório: “no dia 11.03.2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o estado de pandemia em face do impacto causado pelo surto pandémico de COVID-19 à escala global”(ponto 8 da matéria de facto). O Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18.03, declarou o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública (ponto 9) e nessa sequência, o Decreto da Presidência do Conselho de Ministros n.º 2-A/2020, de 20/03, que entrou em vigor no dia 22.03.2020, determinou a suspensão de atividades no âmbito do comércio a retalho, com exceção daquelas que disponibilizem bens de primeira necessidade ou outros bens considerados essenciais na presente conjuntura e que constam em anexo, não se aplicando essa suspensão aos estabelecimentos de comércio por grosso nem aos estabelecimentos que pretendam manter a respetiva atividade exclusivamente para efeitos de entrega ao domicílio ou disponibilização dos bens à porta do estabelecimento ou ao postigo, estando neste caso interdito o acesso ao interior do estabelecimento pelo público;
Por sua vez, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30/04, que produziu efeitos a partir das 00:00h do dia 03.05.2020, decretou o levantamento da suspensão de acesso ao interior do estabelecimento pelo público, para os estabelecimentos de comércio a retalho com a área igual ou inferior a 200m2 e uma entrada autónoma e independente pelo exterior.
O Despacho n.º 3427-A/2020, de 18/03, interditou o tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal de todos os voos de e para países que não integram a União Europeia, com algumas excepções, com efeitos a partir das 24 horas do dia 18.03.2020, o que foi, posterior e sucessivamente, prorrogado.
E provou-se ainda que as vendas realizadas a turistas representavam, pelo menos, 70% do volume de vendas registadas na loja aqui em apreço.
Mais se provou que “27-No período compreendido entre Março e Julho de 2020, a requerente registou perdas acentuadas superiores a 85% em comparação com o período homólogo do ano de 2019.
28-As vendas registadas pela requerente no período de Março a Julho de 2020 e reconduzíveis ao imóvel locado, atingiram o valor de 25.113,00 €”.
29-O valor das vendas facturadas pela requerente, nos meses de Março a Julho, não chegam sequer para cobrir 1/5 dos custos mínimos da sua actividade”.
Ou seja, por força do estado de emergência que foi decretado no seguimento da declaração da pandemia, o estabelecimento comercial da Requerente foi encerrado. Ficou, assim, impedido de laborar desde 22 de março até 2 de Maio. Sucede que mesmo depois de ser autorizada a reabertura do estabelecimento, as vendas diminuíram drasticamente, pois não havia clientes. Como é facto notório, ainda hoje, passado um ano, a situação de pandemia mantém-se e a cidade de Lisboa continua como ficou em Março, Abril, Maio, Junho e Julho de 2020: vazia de turistas. Vazia de pessoas em geral. Ora, as vendas realizadas a turistas representavam pelo menos 70% do volume de vendas registadas na loja aqui em apreço. E por isso, a Requerente registou no período compreendido entre Março e Julho de 2020, perdas acentuadas nas vendas, superiores a 85%, em comparação com o período homólogo de 2019.
De tal modo que o valor das vendas facturadas pela Requerente, em cinco meses, (Março a Julho de 2020) não chegaram sequer para cobrir 1/5 das despesas da loja. Parece-nos por demais evidente que a manutenção do contrato de arrendamento nas condições descritas, constituía uma situação absolutamente ruinosa para a Requerente. Não é razoável exigir a um empresário que mantenha uma loja aberta ao público, nas condições descritas, ou seja, apenas para ter prejuízo, sem hipótese de cobrir sequer os custos do funcionamento da loja, designadamente o valor da renda mensal que ascende a cerca de € 20.000,00.
É por demais óbvio que o circunstancialismo em que ambas as partes assentaram a intenção de contratar sofreu uma alteração absolutamente anormal e imprevisível, provocando um grave dano a uma das partes, dada a insustentabilidade económica de manter uma loja aberta ao público, nas condições descritas. O equilíbrio das prestações contratuais que subjaz à realização de qualquer contrato está radicalmente afectado, pelo que exigir à locatária, ora Apelante, que mantivesse o pagamento integral do valor da renda até 31/10/2021, depois de verificar que durante 5 meses não conseguiu facturar sequer o valor necessário para pagar essa renda, seria absolutamente atentatório dos princípios da boa-fé. Na verdade, exigir a manutenção do contrato em tais condições, seria apenas acumular uma dívida de rendas, sem previsibilidade de qualquer retorno de facturação com viabilidade para cobrir essa dívida. Como se verifica, passado um ano – estamos em Abril de 2021, a situação mantém-se, a pandemia permanece e continuamos e estado de emergência, com os estabelecimentos fechados, à excepção daqueles que fornecem bens essenciais. O que demonstra que a previsão do Apelante foi acertada e adequada à situação vivida no momento em que foi tomada a decisão.
É certo que “o equilíbrio da balança da Justiça significa que a justa medida é constituída pelo justo meio.
Pelo que a repercussão jurídica do Covid 19 deve ser repartida de harmonia com um princípio de igualdade. Nos contratos com prestações recíprocas a cargo de ambas as partes, realizar-se-á, no limite, a razão da metade aritmética no sacrifício (50% para cada uma). Nos contratos de fim comum, a participação nas perdas implicará uma medida de proporcionalidade atendendo ao contributo de cada um”.[20] Quererá isto dizer que este princípio da repartição do risco do contrato, por ambas as partes, prejudicará aquilo que se acabou de dizer? A resposta terá de ser negativa, pois como o Autor acabado de citar refere também: “ a cada tipo de contrato corresponde uma estrutura de distribuição de risco que carece de ser considerada”. Na verdade, “ a ideia regulativa (ou o valor) da igualdade não pode nem deve ser entendida em termos formais.
Impede-o a regra objectiva da “equidade”, à qual se encontra subordinada, por determinação legal, a intervenção do juiz em sede de alteração das circunstâncias. (…) Uma grande alteração das circunstâncias como a que o Covil -19 provocou, pode atingir em termos muito diversos as partes num contrato. Pelo que as soluções jurídicas para uma situação como a presente serão inevitavelmente diversas, consoante essas repercussões e as circunstâncias particulares dos sujeitos envolvidos.”[21]
Ora, cotejando essa repercussões na situação jurídica de ambas as partes numa perspectiva de repartição do risco, verificamos que a alternativa se situa entre remeter a locatária para uma situação ruinosa de insustentabilidade económica, acumulando dívida e prejuízo, ou perante a resolução do contrato, a locadora ficar eventualmente sem receber renda, durante algum tempo. Contudo, esta situação, embora desfavorável em termos económicos, não pode qualificar-se de ruinosa ou insustentável, tanto mais que ficando a locadora com a disponibilidade da loja, sempre poderá arrendá-la de novo. Na verdade, tal como referiu em audiência de julgamento, a testemunha …, analista de investimento, que trabalha para o 2.º Requerido, apesar da situação de crise motivada pela crise pandémica, “continua a haver procura”, referindo-se ao mercado de arrendamento na Avenida … e continua a haver interessados que, ao verem a loja desocupada, “perguntam se podem ocupar o espaço”. Compreende-se que assim seja, tratando-se de uma zona premium como é a Avenida …, centro da cidade de Lisboa. Resulta do exposto, por conseguinte, que mesmo numa perspectiva de divisão do risco de uma forma equitativa, se impõe concluir que a resolução do contrato é a solução que melhor garante o equilíbrio da situação jurídica de ambas as partes, ou seja, a locatária liberta-se de uma situação ruinosa e insustentável de acumulação de dívida e o locador recupera o seu activo imobiliário que pode rentabilizar através de um arrendamento mais resistente aos efeitos da crise pandémica.
Importa ainda acentuar que a alteração das circunstâncias ocorrida na sequência da deflagração da crise pandémica está longe de estar abrangida pelos riscos próprios do contrato, como é por demais óbvio. Risco próprios do contrato são um maior ou menor êxito do negócio, cíclicas crises que geram abrandamentos do mercado, não uma pandemia que paralisa o mundo inteiro.
Não existe, assim, margem para dúvida de que se verificam todos os requisitos exigidos pelo art.º 437.º do Código Civil para a resolução do contrato.
Não podemos deixar ainda de clarificar que as faculdades previstas no Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de Março, Decreto-Lei n.º 26/2020, de 16 de Junho, que estabelecem moratórias no pagamento de créditos bancários, com vista à protecção dos créditos das famílias, empresas, instituições particulares de solidariedade social e demais entidades da economia social, ou o disposto no art.º 4.º n.º 3 do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de Março que promoveu a extensão do prazo de pagamento de capital, rendas, juros, comissões e demais encargos não prejudicam a argumentação exposta. Vejamos:
Toda a legislação que foi publicada no período pandémico destinada a “apoiar a recuperação económica das empresas”, como se pode ler nos preâmbulos dessa legislação, por um lado, não revogaram o art.º 437.º do Código Civil, por isso, não impedem a respectiva aplicabilidade, quando for o caso. Por outro lado, estabelecendo normas que se destinam a “apoiar”, por natureza e definição não podem entender-se como vinculativas, no sentido da obrigatoriedade para as empresas de recorrerem a tais “apoios”. Assim, às empresas terá de ser reconhecida a autonomia para avaliar da pertinência e utilidade da recorrer a tais apoios. Pode suceder que, por exemplo, o regime das moratórias não sirva á empresa porque isso implica apenas adiar a dívida, para um período em que a empresa, longe de ter recuperado ainda se encontra num período mais difícil, face ao acumulado de dívida e prejuízo. Ora, a empresa tem de poder fazer essa avaliação antes de decidir aceitar o “apoio” que lhe foi dado, mediante a supra mencionada legislação. Tem de ter a liberdade de não aceitar o apoio, se verificar que o mesmo não contribui para a sua recuperação, mas antes ainda poderá agravar a situação de endividamento.
Ora, “se cabe à esfera política responder, mediante actos legislativos adequados, aos problemas que a epidemia causa, tomando para o efeito, as correspondentes decisões estratégicas de orientação e conformação económico-social, aos tribunais compete assegurar, no plano de cada contrato, que essas decisões não deturpem grosseiramente a justiça perante a realidade a que se vão aplicar(…)”[22]
5-Aqui chegados, cumpre analisar, por fim, se estão verificados os requisitos da requerida providência cautelar.
Retomando aquilo que supra já ficou referido, são requisitos essenciais para o decretamento de providências cautelares não especificadas, os seguintes:
a) a titularidade de um direito ou de um interesse legalmente protegido, sendo certo que, para tanto, basta que, sumariamente, se conclua pela séria probabilidade da existência desses direito ou interesse invocados ("fumus bonis iuris");
b) o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito próprio, ou seja, o justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação ("periculum in mora").
Importa, pois, analisar se, no caso sub judice e à luz da factualidade indiciariamente provada, se mostram verificados os sobreditos requisitos.
Da exposição supra, já se verificou que foi legítima a resolução do contrato de arrendamento por alteração das circunstâncias ao abrigo do disposto no art.º 437.º do C.C. Tanto mais que o Locador se mostrou inflexível na aceitação de qualquer outra proposta apresentada pela Requerente, através de longa troca de correspondência, ocorrida desde a primeira carta enviada, em 11 de Março de 2020. Logo nessa data, a ora Requerente/Apelante chamou a atenção para o facto de “no pior cenário, da situação actual se prolongar por várias semanas/meses, pode inclusivamente colocar em causa a viabilidade da nossa empresa”.
Por carta datada de 25-03-2020, a Requerente já referiu “teremos de em conjunto encontrar um equilíbrio no montante das rendas a pagar, pois a realidade comercial que se avizinha será muito diferente do que era a anterior a esta crise.”
Por carta datada de 14-04-2020, a Requerente lança novo apelo à Locadora dando conta de que “ a situação actual é extremamente grave, cabe-nos enquanto gestores responsáveis garantirmos a sobrevivência da nossa empresa tendo a consciência que teremos um «longo deserto económico» pela frente”. E por isso adiantava: “ Pode a quebra de vendas ser de tal maneira grande que mesmo com 50% de desconto não existam condições de permanência neste local. Nessa altura em conjunto tentaremos encontrar a melhor solução para ambas as partes.”
Como resposta a Requerente teve aquela que consta da carta datada de 23-04-2020 onde se pode ler: “(…) o Fundo não aceita as propostas de alteração às obrigações decorrentes do contrato de arrendamento”.
Como resulta da análise da correspondência que continuou a ser trocada entre as partes até Agosto de 2020, a única solução que o Locador aceitou foi uma moratória no pagamento das rendas o que para a Requerente era insustentável, dado que adiar o pagamento em nada resolvia, antes piorava a situação económica face ao acumular da dívida e do prejuízo.
A Apelante procedeu ao pagamento de todas as rendas devidas pelo período em que ocupou o locado, tendo entregue o mesmo no final do mês de Agosto, pagando todas as rendas desde Março a Agosto, em 17-08. Nada sendo devido ao Locador, por via do contrato de arrendamento, o acionamento da garantia bancária por parte do respectivo beneficiário sempre se terá de considerar abusiva. Está, assim, suficientemente indiciada a titularidade do direito do Requerente, ou seja, o “fumus bonis iuris”.
E quanto à verificação do “periculum in mora”?
Cremos que da factualidade apurada e de tudo o que supra ficou dito se impõe concluir pelo fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito do Requerente. O direito da Requerente é precisamente o direito à defesa da sua viabilidade económica e em preservar as condições necessárias para se manter a laborar no mercado. A Requerente logrou demonstrar que a quebra de facturação foi tal que “O valor das vendas facturadas pela requerente, nos meses de Março a Julho, não chegam sequer para cobrir 1/5 dos custos mínimos da sua actividade”. Nenhuma empresa pode responsavelmente prever uma evolução economicamente viável, nestas condições.
Por conseguinte, sujeitar a Requerente à execução da garantia bancária em causa, pelo valor de € 240.000,00, nas condições já descritas, pode colocar em causa a capacidade de a Requerente sobreviver e ultrapassar a grave crise económica que afecta a Requerente, à semelhança do que se passa com grande parte das empresas .
Cremos, assim, demonstrado o segundo requisito do decretamento da providência cautelar.
Julgamos procedentes as conclusões de recurso da Apelante.

IV-DECISÃO
Em face do exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e consequentemente, revogando a decisão recorrida, condenam-se os Requeridos no pedido, ou seja:
(i)O 1.º Requerido a abster-se de pagar qualquer quantia ao 2.º Requerido, ao abrigo da garantia bancária on first demand emitida a pedido da Requerente no âmbito do contrato de arrendamento resolvido, até ao trânsito em julgado da ação principal;
(ii)O 2.º Requerido a abster-se de acionar a garantia bancária on first demand prestada pela Requerente no âmbito do contrato de arrendamento resolvido, até ao trânsito em julgado da ação principal.
Custas pelos Requeridos.
           
Lisboa, 8 de Abril de 2021
Maria de Deus Correia
Maria Teresa Pardal
Anabela Calafate
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[1] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19-12-2006, Processo 2169/06-2, disponível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido Acórdão do STJ de 09-07-1998, Processo n.º 98ª453, também disponível em sumário em www.dgsi.pt.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-03-2012, disponível em www.dgsi.pt
[3] In “Garantias das Obrigações”, p.153.
[4] Sublinhado nosso.
[5] In “Direito das Garantias”,  Almedina, 2013,p.p.132-133..
[6] Sublinhado nosso.
[7] “Garantia Bancária Autónoma “, p.289-290.
[8]“Direito das Obrigações”, 10.ª edição , p.347, nota 3
[9] APUD Ana Miguel Gonçalves Carvalho, Resolução do contrato por alteração das circunstâncias: Judicial ou extrajudicial?, Dissertação de Mestrado em ciências jurídico- privatísticas, faculdade de Direito da Universidade do Porto, Porto, 2011, disponível em https://core.ac.uk.
[10] “Manual dos Contratos em Geral, p.345, nota 314.
[11] “Estudos de Direito Civil e Processo Civil, Coimbra, Almedina, 1996, p. 181.
[12] “Direito das Obrigações, p. 143.
[13] Vide Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1996, Processo 96A470, disponível em www.dgsi.pt e de 18-05-1993, CJSTJ, Ano I, Tomo II, p.111.
[14] Disponível em www.dgsi.pt.
[15] Também disponível em www.dgsi.pt.
[16] Tal como defende Miguel Teixeira de Sousa in Parecer (inédito) para o Processo n.º 1913/08-2 , Tribunal da Relação do Porto, 2.ª secção, p. 37 (inédito), APUD Ana Miguel Gonçalves Carvalho, ob.cit.
[17] Sumariado em www.dgsi.pt
[18] Processo n.º 1119/15.7T8GMR.G2, disponível em www.dgsi.pt.
[19] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-04-2002, disponível em www.dgsi.pt. já citado.
[20] Manuel Carneiro da Frada, Alteração das Circunstâncias à Luz do Covid-19  Teses e reflexões para um diálogo, in https://portal.oa.pt.
[21] Manuel Carneiro da Frada, ob.cit..
[22] Manuel Carneiro da Frada, ob cit. Cfr. ainda Oliveira Ascensão, O Direito/ Introdução e Teoria Geral, 13.ª ed., 2005, p.498.