Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1837/11.0GACSC.L2-9
Relator: RAQUEL LIMA
Descritores: NOTIFICAÇÃO DA ACUSAÇÃO
TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
IRREGULARIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
SANAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Tendo sido constituído arguido num processo e prestado TIR e havendo, posteriormente, apensação de outros inquéritos no âmbito dos quais o arguido não foi ouvido, por desconhecimento do seu paradeiro, não pode considerar-se que, com o envio de carta para a morada do TIR, o arguido esteja formalmente notificado da acusação.
II. O arguido desconhece os factos pelos quais foi acusado. A falta de notificação constitui uma irregularidade que o Juiz do tribunal a quo pode conhecer oficiosamente ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 123.º do CPP na medida em que tal omissão pode vir a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores e não se mostra sanada.
III. O recebimento da acusação no pressuposto de que foi devidamente notificada e a designação de data para julgamento com envio, mais uma vez, de carta simples para a morada do TIR, redundaria, como aconteceu, na realização de uma audiência à margem do arguido, sem culpa deste. Neste caso, estamos perante uma nulidade insanável sendo declarado nulo o julgamento e a sentença, se a houver.
IV. Começando por sanar a irregularidade, há que determinar a notificação (nos termos legais) da acusação e seguindo o processo em função do que for requerido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO

ACÓRDÃO
A uma vez notificado do Acórdão que o condenou  pela prática de  1 crime de roubo p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 e 2, com ref.ª ao art.º 204, n.º 2, al. e) CP (nuipc 1837/11.0gacsc, na pena de 6 (seis) anos de prisão; (iii) 1 crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204.º, n.º 2 al. e) CP, (nuipc 630/15.6gacsc), na pena de 3 (três) anos de prisão (iv) 1 crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204.º, n.º 2 al. e) CP, em co-autoria com o arguido Belarmino nos nuipcs 1457/15.0pbcsc, 1555/15.0pbcsc, a pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão; (v) 1 crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 2 do DC 2/98, de 3.01, a pena de 7 (sete) meses de prisão; (…) e em cúmulo jurídico na pena de 8 anos de prisão  e não se conformando com o mesmo vem interpor recurso.

Depois de ter exposto previamente uma questão relativa à data da notificação do Acórdão, arguido recorrente apresenta a motivação do recurso, seguida das CONCLUSÕES:
I. O ora recorrente foi condenado a uma pena de 8 (oito) anos de prisão efectiva, nos seguintes termos: - 1 (um) crime de Roubo p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 e 2, com ref.ª ao art.º 204, n.º 2, al. e) CP (nuipc 1837/11.0gacsc, na pena de 6 (seis) anos de prisão; - 1 (um) crime de furto qualificado p. e p. pelo art.º 204.º, n.º 2 al. e) CP, (nuipc 630/15.6gacsc), na pena de 3 (três) anos de prisão - 1 (um) crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204.º, n.º 2 al. e) CP, em co-autoria com o arguido Belarmino nos nuipcs 1457/15.0pbcsc, 1555/15.0pbcsc, a pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão - 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 2 do DC 2/98, de 3.01, a pena de 7 (sete) meses de prisão
II. Sucede que o tribunal a quo andou mal, ao permitir, que em momento anterior ao proferimento da decisão em referência, o processo corresse normalmente os seus termos, apesar das patentes e censuráveis violações dos direitos de defesa do ora recorrente.
III. Pois que o recorrente não foi regular e validamente notificado da acusação deduzida pelo MP, bem como do despacho que designou a data para realização da Audiência de Julgamento, nem das audiências subsequentes.
IV. Sendo certo que o ora recorrente apenas foi constituído arguido em 2 (dois) processos, em concreto nos processos n.º 1457/15.0pbcsc, e 1555/15.0pbcsc, não o tendo sido nos demais NUIPCs 1837/11.0GACSC, 1456/15.2PBCSC 630/15.6GACSC e 1458/15.9PBCSC
V. Não tendo por essa razão o recorrente, para além dessa omissão e em virtude da mesma, prestado TIR nos processos e sido interrogado em sede de inquérito, actos obrigatórios no quadro da Lei penal!
VI. Tal informação é confirmada nos autos do processo principal, NUIPCs 1837/11.0GACSC, (23.03.2018), a Fls. 214, razão pela qual o ora recorrente jamais se poderia considerar válida e regularmente notificado da Acusação do MP, de Maio de 2018, nem do despacho que designou a data da Audiência de Julgamento, de 2019!
VII. Neste conspecto, o Tribunal a quo, deveria ter actuado de forma diversa, perante esta situação, em obediência ao art.º 335, n.º 1 do CPP, desencadeando a notificação por éditos nos termos legais e decretando, nessa sequência, se necessário, a Contumácia do arguido nos processos.
VIII. Ora, não o tendo feito verifica-se que foram violadas inúmeras disposições legais, desde logo, para além da sobredita norma, os artigos 57, n.º 1 e 58.º n.ºs 2 a 4, bem como dos artigos 113, n.º 10, e os artigos 335.º, n.ºs 1, 3 e 4, art.º 311.º, n.º 1, 312.º, n.º 1, 313.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPP, o que se invoca de forma expressa!
IX. Foram ainda violados, direitos de defesa com protecção constitucional, como seja o artigo 32, n.º 1 e 7 da CRP, o que se invoca de igual modo, para todos os efeitos legais!
X. Face ao exposto, o ora recorrente vem arguir para todos os efeitos legais, a nulidade absoluta (insanável) da notificação do despacho de Acusação, bem como do despacho que designou a data da Audiência de Julgamento, o que faz de forma expressa, com fundamento no artigo 119.º, al. C), do CPP!
XI. Veja-se a tal respeito, o entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no quadro da falta de notificação de uma Acusação, como se transcreve (…)” E a consequência da falta cometida só pode ser a da nulidade absoluta, tendo que se efectuar a notificação da acusação e seguir, depois, os demais trâmites, pois, de facto, estamos perante um vício capital, a qualificar como nulidade insanável, a prevista no artº 119º, al. c) do citado Código, tanto mais que, como se sabe, a falta de notificação da acusação implica a impossibilidade do mais elementar direito dos arguidos, o de defesa, com consagração constitucional.(…)” In Tribunal da Relação de Guimarães, 18.09.2006, proc n.º 1055706-1, Relator Anselmo Lopes
Mais se refere, no mesmo aresto, de forma lapidar, que (…) ”Com efeito, há violações da lei processual muito mais graves que as nulidades insanáveis, quais são aquelas que constituem uma omissão de fundo constitucional e que, por isso, mais que nulas, são afectadas de inconstitucionalidade. V – Esses vícios não estão - nem poderiam estar - incluídos no elenco das nulidades (insanáveis ou dependentes de arguição) e das irregularidades, pois são vícios maiores, que dizem respeito à própria substância dos direitos constitucionais. (…)”
XII. Face a todo o exposto claro se evidencia que nunca se poderia ter afirmado, isto é, como consta do processo e de algumas actas das sessões de Julgamento, que o arguido fora válida e regularmente notificado, (cfr. fls 312, e Fls. 320, processo principal)
XIII. Tal como também não se poderia ter afirmado, como se afirmou, a fls 281, (verso) do processo principal, que se mantém o estatuto coactivo do recorrente, não se vislumbrando como tal seria possível, ao saber-se que em 4 dos processos não foi efectuada sequer prévia constituição de arguido não sendo por isso possível fixar TIR ou qualquer outra medida de coacção! TIR (192, n.º 1 CPP)
XIV. Pois sem constituição de arguido não pode haver TIR e sem TIR não há morada, sendo óbvio que sem esta não pode haver notificação válida e regular!
XV. Entende-se pois que perante esta ilegalidade, traduzida na omissão da notificação da Acusação e despacho que designou a data da audiência de julgamento está em causa uma nulidade absoluta e, portanto, insanável!
XVI. Acresce que ainda que se viesse a entender, o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, embora sem conceder, que o ora recorrente foi válida e regularmente notificado, sempre se poderia invocar, que os autos enfermam de outras ilegalidades gritantes caucionadas de igual modo pelo Tribunal a quo as quais conduziriam à nulidade constante do art.º 119 al C) do CPP!
XVII. Como seja a que deriva da falta de notificação do ora recorrente para todas as Audiências de Julgamento!
XVIII. Também neste plano e ainda que igualmente se considerasse, por absurdo, com estrito fundamento na informação vertida nas actas de Julgamento, reproduzidas a fls. 332 e 385 dos autos, que o recorrente apenas não foi notificado para comparecer nas Audiências de Julgamento de 28.05.2019 e de 11.06.2019, tal constituiria em qualquer caso uma ilegalidade gravíssima e apta para inquinar a legalidade do processo de forma irremediável!
XIX. Se não vejamos o entendimento expresso na decisão proferida pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 17.12.2020, proc. 503/16.5PBLRA.C1, relatora Olga Maurício, na qual se doutamente se determinou (…) ”A Audiência de Julgamento pode iniciar-se, decorrer e terminar na ausência do arguido, mas tudo desde que o mesmo esteja notificado das datas de cada uma sessão, nos termos do n.º 10 do art.º 113, n.º 10 do CPP, em respeito pelos princípios da Audiência e presença, consignados na Lei!(…)”
XX. Para de seguida, se concluir, no mesmo aresto, de forma clara, como se reproduz (…)”2. Em consequência, por não ter sido determinada a notificação do arguido para a última sessão da audiência, verifica-se a nulidade do art.º 119, n.º 1, al. c) do CPP, a qual determina a anulação de todos os actos subsequentes nos termos do art.º 122, n.º 1 e 2, ainda deste diploma.”(…) (negrito, itálico e sublinhado, nossos)
XXI. Tal entendimento, de que se verifica a nulidade insanável arguida pelo ora recorrente afigura-se consensual, na jurisprudência, podendo citar-se outros arestos no mesmo sentido, como sejam as decisões proferidas nos processos da Relação de Guimarães, de 26 de Abril de 2021, Relator Paulo Serafim, Processo 229/17.2PBBRG.G1, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02/07/2019, Relatora Maria de Fátima Bernardes, processo 1812/17.1PBBRR.E1, entre outros
XXII. Veja-se ainda, por bastante sugestivo, quanto à importância dos direitos de defesa de qualquer arguido, o entendimento vertido no Acórdão-fundamento do Supremo Tribunal de Justiça, nº 9/2012 de 10-12-2012, em que se considerou que mesmo regularmente notificado para comparecer na Audiência de Julgamento, a falta do mesmo arguido pode conduzir à nulidade da Audiência de Julgamento por ausência do arguido desde que se não demonstre ter o Tribunal realizado todas as medidas legalmente admissíveis e necessárias, ao seu alcance para obter a comparência do mesmo
XXIII. Assim, dando o tribunal início à audiência, deveria ter tomado as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, uma vez que, como bem assinala a recorrente, 'a realização da audiência nos sobreditos termos contende com o exercício pleno do direito de defesa da arguida e princípio da procura da verdade material que se impõe ao julgador'.
XXIV. Mais se entendendo, no mesmo Acórdão, como se transcreve (…) ”Dispõe o artigo 118.º, n.º 1, do CPP que a violação ou inobservância das disposições da lei do Processo Penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei. Ora, o artigo 119.º estabelece que constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: 'c) A ausência do arguido [...] nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.' É o caso sub judicio, objecto do recurso, pois que se realizou o julgamento do arguido - do qual saiu condenado - na sua ausência, apesar de estar notificada da data da audiência e a esta ter faltado, sendo obrigatória a sua presença.” (…)
XXV. Veja-se no mesmo sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.5.2007, processo n.º 1018/07, 3.ª Secção que considerou como segue (…)” - É nula a audiência de julgamento - e a subsequente decisão - realizada na ausência da arguida que para esse acto fora notificada e faltou, sem que fossem tomadas as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência.”(…)
XXVI. Caso se entenda, sem conceder e apenas por mera cautela de patrocínio, não verificadas as supra indicadas nulidades insanáveis, pelas razões devidamente fundamentadas que o recorrente apresentou, deverá ser reduzida a medida da pena de 8 anos a que o mesmo foi condenado.
XXVII. Sendo certo que o ora recorrente tem consciência e assume, o desvalor das condutas descritas nos processos, apesar de não ter tido oportunidade de apresentar a sua defesa pelas razões já expostas,
XXVIII. Mas considerando que a condenação que lhe foi imposta é excessiva e desproporcionada
XXIX. Sendo certo que os problemas que o ora recorrente teve e ainda tem com este processo pendente, derivam das más escolhas que fez e de uma infância vivida num enquadramento familiar profundamente desestruturado,
XXX. Pois o pai do ora recorrente deixou a mãe quando este tinha 3 anos sendo certo que viu o progenitor pela última vez quando tinha 9 anos de idade.
XXXI. Entende ainda o Recorrente que os crimes descritos no processo principal não foram objecto de adequada valoração na decisão condenatória, porquanto nela não se distingue de forma adequada a gravidade relativa de cada um e as diferentes consequências para os ofendidos
XXXII. Do mesmo modo a decisão recorrida não equilibra, de forma justa e equitativa, a defesa das necessidades de prevenção geral consubstanciada na salvaguarda e reafirmação comunitária dos bens jurídicos violados, com a defesa dos valores de ressocialização inerentes à intervenção penal para recuperação do agente!
XXXIII. Sendo certo que o ora recorrente já esteve privado de liberdade na Alemanha, em depois   de se ter entregue voluntariamente para cumprimento de uma pena relativa a factos praticados entre 2012 2013, momento essencial para o mesmo poder interiorizar as consequências da sua conduta e o impacto concreto das mesmas na sua vida.
XXXIV. E ainda mais se olharmos a fundamentação do Tribunal a quo quando refere que a medida da pena é também analisada pela personalidade do arguido que nem ao trabalho se deu de comparecer (em Tribunal), denunciando assim o elevadíssimo grau de desinteresse em colaborar com a justiça ou acertas as contas de um passado que não abona a seu favor em termos de práticas de crimes (…) – negrito nosso
XXXV. Ora, como acima explanado, o arguido não teve conhecimento nem da Acusação, nem data de audiência, nem das audiências subsequentes(!), pelo que, não poderá a sua falta na Audiência, ser motivo para o agravamento da sanção aplicada,
XXXVI. Pelo que, ao não ser notificado da Audiência, o Tribunal a quo ficou privado da presença do arguido e da possibilidade do mesmo demonstrar em Tribunal que estava, naquela altura integrado na sociedade, pois que desde o fim do cumprimento da pena na Alemanha (em Outubro de 2017), o Recorrente passou a ser pai de família, trabalhando e vivendo uma vida regrada, totalmente afastada de qualquer prática ilegal.
XXXVII. Não se aceita, por isso, o entendimento do Tribunal a quo, sobre a medida da pena do arguido A quando refere que “(…) a falta de sinais inequívocos por parte dos arguidos de que estejam a fazer um esforço e investimento sério num processo integrativo para o futuro; (…) valora para uma sanção mais gravosa.
XXXVIII. Pelo exposto supra, tal entendimento, só por si, é motivo imperioso para que seja revista a sanção aplicada ao arguido.
XXXIX. Tendo o mesmo recorrente conhecido em 2013 a sua mulher numa altura difícil da sua vida em que teve de regressar a Portugal em 2014 tendo depois disso regressado à Alemanha em 2016 para se entregar e cumprir a referida pena, desde 27.05.2016 a Outubro de 2017 quando foi libertado!
XL. Pode, pois, dizer-se que desde essa altura a sua vida mudou com o apoio da sua mulher com quem casou, constituiu família tendo 2 filhas actualmente e mantendo a sua actividade profissional numa empresa em que colaborou e na qual apenas deixou de colaborar face à impossibilidade de renovar os seus documentos face à Declaração de contumácia que sobre ele pende noutro processo.
XLI. Tendo antes de ter cessado tal colaboração por esse motivo chegado a receber uma proposta para integrar o quadro permanente da empresa e estando de momento a trabalhar noutra empresa tal como prova documental agora junta!
XLII. Neste sentido Face a todo o exposto e na eventualidade de se entender não considerar verificadas as nulidades ora arguidas, sem conceder, no quadro do presente recurso, face aos motivos e razões invocadas, vem o recorrente requerer uma redução da pena que lhe foi aplicada para um limite não superior a 5 anos acompanhada da suspensão da execução da pena a determinar!
XLIII. Ainda que tal decisão seja acompanhada de obrigações destinadas a reparar as consequências originadas pelos factos constantes dos processos!
Nestes termos, e nos demais de direito, que serão doutamente supridos por Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, deverá ser o presente Recurso admitido e julgado procedente, e em consequência no âmbito dos 1837/11.0GACSC, 630/15.6GACSC, 1457/15.0PBCSC e 1555/15.0PBCSC, ser considerada verificada a nulidade arguida pelo ora recorrente nos termos do artigo 119, al. C) do CPP por falta de notificação da Acusação do MP, em virtude da omissão da constituição de arguido do ora recorrente em 4 dos processos bem como da falta de notificação do despacho que designou a data da Audiência, ou caso tal não se entenda o que apenas se admite por motivos de mera cautela de patrocínio, considerar-se em qualquer caso verificada a nulidade insanável prevista no mesmo art.º 119 al C) do CPP por falta de notificação da Audiência de Julgamento ou de pelo menos 2 das suas sessões, cfr, certificado nas actas de Julgamento respectivas, em concreto de nas sessões de 28.05.2019 e 18.06.2019 (Fls. 332 e 385 do processo principal) declarando-se nessa sequência e para os devidos efeitos legais a anulação de todo o processado a partir da Acusação, ou caso apenas se considere justificável a verificação da nulidade insanável por falta de notificação das sessões de julgamento, os actos praticados a partir de 28.05.2019, inclusive, com repetição do julgamento.
Caso V. Excelências, Venerandos Desembargadores entendam, não obstante não assistir razão ao ora Recorrente, em nenhuma das suas alegações e ilegalidades apontadas, e assim entendam escrutinar apenas a medida da pena aplicada o que apenas se concebe por razões de mera cautela e dever de patrocínio, deverá em qualquer caso a pena ser reduzida para um máximo não superior a 5 anos devendo nessa eventualidade ser a mesma pena suspensa na sua execução ainda que essa decisão seja acompanhada de outras obrigações a fixar de acordo com o superior critério do Tribunal, só assim se assegurando a costumada e devida Justiça!
*
A  Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância veio responder ao recurso:
1) Nulidade insanável da notificação da acusação e do despacho que designou data para julgamento e falta de notificação para o julgamento;
(…) No entanto, devidamente compulsados os autos, não se verifica qualquer nulidade nos termos invocados pelo recorrente.
Desde logo, não assiste qualquer razão ao recorrente ao invocar que o arguido teria de ser constituído nessa qualidade em fase de inquérito em todos e cada um dos NUIPC apensados, porque conexos entre si, verificados os pressupostos de apensação durante a investigação.
Vejamos, percorrendo os autos:
Logo em 11.09.2015, no âmbito do NUIPC 1457/15.0PBCSC o arguido A prestou TIR, indicando uma concreta morada sita em Alcabideche.
Teve desde logo conhecimento da pendência de um processo criminal contra si (até porque foi detido em flagrante delito no âmbito daquele inquérito).
Nessa mesma data foi interrogado no âmbito do mesmo NUIPC nas instalações do DIAP de Cascais, ali tendo prestado declarações acerca dos factos e indicando a mesma morada para notificações que já havia indicado o TIR (sita na Travessa ...).
No decurso dessa investigação, por despacho proferido pelo Procurador titular em 16.09.2015 no NUIPC 1457/15.0PBCSC, foi determinada a apensação àqueles
autos dos NUIPC conexos 1456/15.2PBCSC e 1458/15.9PBCSC.
Por seu turno, por despacho proferido pela Procuradora titular em 12.04.2016 no NUIPC 1837/11.0GACSC, foi determinada a apensação àqueles autos dos NUIPC 630/15.6GACSC e 1555/15.0PBCSC.
Posteriormente, por despacho proferido pela Procuradora titular em 30.05.2016 no NUIPC 1837/11.0GACSC, foi determinada a apensação àqueles autos do NUIPC 1457/15.0PBCSC (recorde-se, aquele onde o arguido já havia sido constituído na qualidade de arguido).
Em 23.03.2018, foi proferido despacho pelo Procurador titular no NUIPC 1837/11.0GACSC no seguinte sentido:
Compulsados os autos verifica-se que o arguido A apenas foi constituído arguido e interrogado nessa qualidade, relativamente aos factos denunciados nos NUIPC 1457/15.0PBCSC e 1555/15.0PBCSC, faltando ser interrogado relativamente aos demais. Assim, solicite à GNR a constituição de arguido e interrogatório do arguido A, com nova sujeição a TIR, relativamente aos factos denunciados nos NUIPC 1837/11.0GACSC, 630/15.6GACSC, 1456/15.2PBCSC, 1458/15.9PBCSC. Prazo: 30 dias.”
Em 08.06.2018, foi proferido despacho de acusação, também contra o arguido A, sendo ali ordenada a notificação do arguido e do seu Ilustre Defensor (referenciando-se o TIR prestado a fls. 21 do processo n.º 1457/15.0PBCSC).
Mencionou-se nessa sede, no despacho de arquivamento parcial ali também proferido, que o arguido A foi interrogado no âmbito do inquérito, não tendo desejado prestar declarações.
Em 15.05.2018 expediu-se notificação via postal simples com PD para a morada em causa. O arguido foi regularmente notificado e, decorrido o prazo legal, os autos foram remetidos à distribuição para julgamento em 17.01.2019.
Por douto despacho judicial de 23.01.2019, foi recebida a acusação pública deduzida contra o arguido e designada data para audiência de julgamento para os dias 09.04.2019 e 23.04.2019, determinando-se a notificação do arguido, nos termos do disposto nos artigos 313.º, n.º 2, 314.º, n.ºs 1 e 2 e 315.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal.
O arguido foi regularmente notificado desse despacho via postal simples com PD para a morada do TIR (conforme se retira da PD constante do histórico do citius em 08.03.2019).
Acresce que a DGRSP desenvolveu diligências junto do arguido A com vista à elaboração do relatório social, sem sucesso (conforme informação de 19.03.2019).
O julgamento iniciou-se em 09.04.2019, verificando-se a falta do arguido A, apesar de regularmente notificado para comparecer, nos moldes já vistos.
Foi então proferido douto despacho nessa audiência (conforme acta da mesma data), nos seguintes termos, que se transcrevem: “Atento a que o Arguido A está regularmente notificado e não comunicou qualquer impedimento ou impossibilidade de comparência, considera-se não justiçada a falta e condena-se o mesmo em multa equivalente a 2 UC – art.ºs 116º e 117º CPP. Tendo em conta a natureza dos factos e dos crimes imputados ao Arguido e por não se considerar indispensável a sua presença desde o início da audiência, procede- se ao início de julgamento na sua ausência – art.º 333º, nº 3 CPP. Notifique.”
Realizou-se então a audiência de julgamento na ausência do arguido A, interrompida para continuação no dia 23.04.2019, conforme despacho que havia designado para o efeito.
A audiência de julgamento continuou no dia 23.04.2019, verificando-se uma vez mais a falta do arguido A.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferido ainda o seguinte despacho, que se transcreve, na parte que respeita ao arguido A: “(…) Atento que o Arguido A está regularmente notificado e não comunicou qualquer impedimento, considera-se não justiçada a falta e condena-se o mesmo em multa equivalente a 2 UC. -
Interrompe-se a presente audiência para continuar na próxima data, já designada, dia 07 de Maio de 2019, às 16:00 horas. Notifique.”
Efectivamente, o julgamento continuou nessa data, tendo sido ainda proferido o seguinte despacho, nessa sede, que se transcreve no que concerne ao arguido:
Interrompe-se a presente audiência de julgamento para continuar dia 28 de Maio de 2019 às 14 horas para inquirição da testemunha faltosa. ---
Atento os motivos, e recuperando os fundamentos da douta promoção que antecede, que se reproduzem, passe mandados para comparência do Arguido A nessa mesma data. --Notifique”
O julgamento continuou nessa data, mas o arguido A não foi localizado em tempo útil para a sua apresentação no Tribunal, conforme ofício da PSP
de 28.05.2019.
Encerrou-se a audiência de julgamento nessa data e, como vimos, realizou-se a leitura do acórdão no dia 11.06.2019, também na ausência do arguido A, na presença da sua Ilustre Defensora.
Após, tendo sido julgado na ausência e diligenciando-se para apurar o seu paradeiro, o arguido foi notificado pessoalmente do douto acórdão via carta rogatória em 19.08.2022.

Em primeiro lugar, diremos que constitui uma evidência que o arguido A não foi constituído na qualidade de arguido nem interrogado em todos os NUIPC apensos aos autos principais e supra mencionados.
Contudo, existindo uma situação de conexão de processos com a determinação da apensação de todos eles em fase de inquérito, quando já havia sido constituído na qualidade de arguido pelo menos num deles, não se impõe a repetição daquele acto processual para aquisição da qualidade de arguido em todos os subsequentes inquéritos, apensos num só, como vimos.
O arguido A adquiriu a qualidade de arguido, com os deveres e os direitos inerentes e conserva-a para os ulteriores trâmites dos autos, incluindo todas as subsequentes apensações (cfr. artigo 57.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) – até porque a razão de ser da própria apensação é a identidade em todos eles do mesmo
agente do crime, verificando-se os pressupostos previstos nos artigos 25.º, 25.º, 28.ºe
29.º, do Código de Processo Penal.
Diferentemente, é verdade que se impõe a realização de interrogatório do arguido, sendo um acto legalmente obrigatório, cuja falta implica a verificação de uma nulidade – sendo certo que cumpre esclarecer quanto muito estará em causa uma nulidade sanável nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal e não uma nulidade insanável, conforme alegado elo recorrente.
Assim, nos termos do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Penal: “Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, é obrigatório interroga-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la”.
O que a lei impõe não é a realização de um interrogatório por cada processo apenso (visão meramente formalista e que implicaria a realização de actos inúteis, multiplicando autos de interrogatório), mas o confronto com todos os concretos factos/episódios imputados ao arguido e objecto da investigação (o que até podia ter sido levado a cabo num único interrogatório no final da investigação).
Todavia, nos presentes autos o conhecimento dos múltiplos factos/episódios ilícitos perpetrados pelo arguido e que originaram múltiplos NUIPCs foi sendo paulatinamente adquirido no processo principal, como é natural (pois a cada notícia de crime, o OPC vai atribuindo um novo NUIPC, só depois se averiguando quais os processos pendentes do mesmo agente de crime). E assim, os processos conexos foram sendo sucessivamente objecto de apensação aos autos principais; apensando-se uns enquanto noutros o arguido até já havia sido interrogado.
 Impondo-se assim a realização de interrogatório para o confronto de todos os factos. Nesse sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.03.2022, Rel. Des. Isabel Valongo, P. n.º 168/18.0GAACB-A.C1, disponível em www.dgsi.pt: “Revelando-se, na decorrência da apensação de um inquérito a outro, novos factos indiciadores de crimes sobre os quais o arguido não foi confrontado, podendo sê-lo, as acusações subsequentes (pública e particular), englobando tais factos, são (parcialmente) nulas, por ter sido omitido acto legalmente obrigatório, qual seja, o interrogatório do arguido sobre a dita factualidade.”
Precisamente, in casu, ainda no decurso da investigação, o arguido A foi interrogado quanto a factos praticados/notícia de crime nos NUIPC 1457/15.0PBCSC e 1555/15.0PBCSC mas já não assim quanto a outros NUIPC
incorporados nos autos principais.
Mas não porque não se diligenciou no sentido da concretização da diligência legalmente obrigatória que é o interrogatório e confronto do arguido com todos os factos que lhe são imputados e resultam da investigação.
Pelo contrário, como vimos, em 23.03.2018, foi proferido despacho pelo Procurador titular no NUIPC 1837/11.0GACSC no seguinte sentido:
Compulsados os autos verifica-se que o arguido A apenas foi constituído arguido e interrogado nessa qualidade, relativamente aos factos denunciados nos NUIPC 1457/15.0PBCSC e 1555/15.0PBCSC, faltando ser interrogado relativamente aos demais.
Assim, solicite à GNR a constituição de arguido e interrogatório do arguido A, com nova sujeição a TIR, relativamente aos factos denunciados nos NUIPC 1837/11.0GACSC, 630/15.6GACSC, 1456/15.2PBCSC, 1458/15.9PBCSC.
Prazo: 30 dias.”
Ora, cumprido o aludido despacho e realizadas diligências pelo OPC no sentido determinado pelo Ministério Público, e até no decurso de toda a investigação, delegada que foi no OPC a competência para a mesma, constatou-se que as mesmas diligências resultaram frustradas, não tendo sido possível a realização daquele interrogatório complementar.
A verdade é que não obstante ter prestado TIR e ter sido até interrogado numa fase embrionária da investigação quanto a alguns dos factos que lhe foram imputados, a dada altura do processo crime que o arguido sabia perfeitamente correr termos contra si, o arguido desinteressou-se completamente e, se mudou de morada nessa altura, nem sequer teve o cuidado de informar os autos, como era seu dever, nos termos do disposto no artigo 196.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal (como aliás até se veio a verificar quando o seu paradeiro acabou por ser encontrado no estrangeiro numa fase bem mais avançada dos autos).
E assim, não obstante as diligências realizadas, já não foi possível fazer comparecer o arguido em sede de interrogatório complementar, já numa fase final da investigação. Numa situação como esta, em que a ausência de interrogatório quanto a todos os factos imputados ao arguido não ocorre por falta de diligências tendentes à sua concretização, entende-se que não se verifica falta de qualquer acto legalmente obrigatório e, por conseguinte, não cumpre conhecer de qualquer nulidade, conforme invoca o recorrente.
Pelo contrário, os autos prosseguem, nos termos do disposto no artigo 272.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal, na esteira da jurisprudência constante do AUJ do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2006, publicado no DR n.º 1, I-A, págs. 10 a 14, pois que se mostraram esgotadas todas as diligências com vista à concretização daquele interrogatório, sem que tenha sido possível realizá-lo, apesar da morada indicada e TIR prestado pelo arguido.
Concluindo nesta parte, não se verifica a nulidade invocada pelo recorrente.

Por outro lado, tendo o arguido prestado validamente TIR nos autos, indicado uma concreta morada em território nacional, é essa morada que se mantém para efeitos de notificações enquanto não vier indicar morada diversa, como aludido supra.
Ora, nessa senda, o arguido foi regularmente notificado do despacho de acusação e do despacho que designou data para julgamento via postal simples com prova de depósito, como tinha de o ser, pois que havia prestado TIR válido – cfr. artigos 113.º, n.º 1, alínea c) e n.º 10 e 196.º, ambos do Código de Processo Penal.
Também nesta parte, não se verifica qualquer nulidade, contrariamente ao alegado pelo recorrente.
Já no que concerne à falta de notificação do arguido para duas datas designadas para a audiência de julgamento, diremos que, uma vez mais, encontrando-se regularmente notificado para comparecer nas duas primeiras datas da audiência de julgamento, o arguido faltou e não justificou a sua falta, sendo julgado na ausência, nos termos do disposto no artigo 333.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
Foram também emitidos mandados de detenção e condução do arguido nos termos do disposto no artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. E ainda assim, realizadas diligências pelo OPC, não foi apurado o seu paradeiro nem foi possível fazê-lo comparecer na última data designada para o julgamento.
Nessa medida, não existe falta de notificação do arguido para a última data do julgamento, mas sim a falta injustificada do arguido que determinou a aplicação dos mecanismos legais para assegurar a sua comparência em data posterior, nos termos
do disposto no artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Em síntese, tal como mencionado no douto acórdão condenatório, ao longo da tramitação dos autos, culminando na fase de julgamento, foi patente o desinteresse do arguido pelo desfecho do presente processo – ora mudando de residência sem disso dar nota ao processo, incumprindo as suas obrigações decorrentes do TIR, ora faltando à audiência de julgamento sem apresentar qualquer justificação ou, sequer, sem autorizar que o julgamento se realizasse na sua ausência.
Vir, por isso, em sede de recurso, alegar que não se realizou o seu interrogatório quanto a todos os processos apensos, que não foi notificado do despacho de acusação e do despacho que designou data para o julgamento e nem tampouco foi notificado para a última sessão de julgamento quando se tentou inclusivamente fazê-lo comparecer coercivamente antes as sucessivas faltas, são argumentos que colidem frontalmente com uma análise cuidada de todo o processado.
E assim, pelos motivos expostos, entendemos que o recurso apresentado deverá improceder nesta parte.
2) Medida da Pena
Verificamos que a pena foi ajustada quer à gravidade dos actos praticados (alguns com consequências bem nefastas ao nível da integridade física de um dos ofendidos), quer à intensidade do dolo com que actuou, bem como aos antecedentes criminais registados precisamente pela prática de crimes da mesma natureza, que se constatam devidamente ponderada no douto acórdão condenatório, contrariamente ao alegado pelo recorrente.
E assim, conforme se retira desde logo da mera leitura do douto acórdão recorrido e contrariamente ao pretendido nas suas conclusões das alegações de recurso apresentadas, o douto Tribunal a quo ponderou devidamente e em conjunto, bem como de modo fundamentado, os factos e a personalidade do arguido recorrente (reflectida na sua postura de desinteresse).
Pelo exposto, entendemos que também nesta parte, no que concerne à medida
da pena, não merece provimento o recurso interposto.
Termos em que, e nos mais que V. Exas. Doutamente suprirão, não deverá ser
dado provimento ao recurso interposto pelo arguido A.
*
Já nesta Relação o Ex. Sr. Procurador Geral Adjunto considerou que a Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, elencando argumentos de facto e de direito, equacionando de forma bem estruturada a matéria a resolver e defendendo a improcedência do mesmo. Mais referiu que “As questões suscitadas no recurso foram adequadas e sustentadamente analisadas e rebatidas, e que aqui se dão por reproduzidas.  Sufragamos os argumentos constantes da resposta apresentada pelo Ministério Público na primeira instância que, por merecerem o nosso acolhimento, nos dispensam, por desnecessário de mais desenvolvidos considerandos.
*
Cumprido o art.º 417º, nº 2, do CPP. não houve resposta ao Parecer.
*
Colhidos os vistos, o processo foi presente à Conferência, sendo o lugar onde o recurso deve ser decidido, de harmonia com o preceituado no art.º 419º, nº 3, al. c), do diploma citado.

2. Fundamentação
A) Delimitação do Objecto do Recurso
Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, são as seguintes as questões a apreciar:
- se o arguido foi notificado da acusação e, no caso de resposta negativa, saber se tal omissão constitui uma nulidade insanável
- se o arguido foi notificado do despacho que designou data para julgamento e das sucessivas sessões de julgamento e, em caso de resposta negativa, saber se tal omissão constitui uma nulidade insanável.
- da medida da pena
      
C) APRECIAÇÃO DA QUESTÃO EM RECURSO.

Nestes autos a discordância do recorrente prende-se e contende com a tramitação do processado, desde o inquérito e com omissões que consubstanciariam nulidades.
Para conseguirmos analisar de forma precisa os argumentos do arguido vemo-nos na contingência de fazer uma descrição cronológica dos actos praticados no processo.
Assim:
- O presente processo 1837/11.0GACSC iniciou-se com um auto de denúncia com data de 17.11.2011.
- Houve recolha de vestígios para inspecção lofoscópica, com resultados positivos, mas, não tendo sido possível estabelecer a ligação a ninguém em concreto, foram os autos arquivados, sem prejuízo do disposto no art.º 277º nº 2 CPP.
- A 14.10.2015 é autuado o inquérito 630/15.6GACSC na sequência de um auto de notícia  relativo a furto em estabelecimento comercial. Foi junto o relatório de inspecção judiciária, foram recolhidos vestígios biológicos e lofoscópicos com resultados positivos, mas não permitindo identificar, por comparação, o autor dos mesmos.
- A 22 de Outubro de 2015 é dado conhecimento ao processo que os vestígios lofoscópicos coincidem com os de um indivíduo identificado na Polícia Judiciária como A.
- Seguiram-se mais diligências, designadamente a tentativa de inquirição do, então, suspeito, A, sem sucesso, referindo-se que sobre o mesmo indivíduo recaem suspeitas de ter praticado os factos relativos a outro processo crime – 1837/11.0GACSC.
- A 11.09.2015 no inquérito 1457/15.0PBCSC é dado conhecimento que A foi detido.
- Nessa mesma data – cfr. fls. 21 do citado inquérito prestou TIR
- A fls. 60 do que constituía o inquérito 1457/15.0PBCSC foi A constituído arguido, foi ouvido nessa qualidade e indicou como morada para efeitos de notificação a Travessa ....
- O arguido foi ouvido relativamente aos factos respeitantes a um furto num estabelecimento sito na Rua ... e uma viatura.
No inquérito 1555/15.0PBCSC foi solicitada à GNR a notificação de A para ser ouvido como arguido, sendo que a fls. 37 do que constituía esse apenso é dito “não reside na morada desde Novembro de 2015”
- Ao inquérito 1837/11.0GACSC foram apensados os inquéritos 630/15.6 GACSC, 1457/15.0PBCSC, 1555/15.0PBCSC, 1465/15.2PBCSC e 1458/15.9PBCSC
- Em 23.03.2018, foi proferido despacho pelo Procurador titular no NUIPC 1837/11.0GACSC no seguinte sentido: “Compulsados os autos verifica-se que o arguido A apenas foi constituído arguido e interrogado nessa qualidade, relativamente aos factos denunciados nos NUIPC 1457/15.0PBCSC e 1555/15.0PBCSC ( apesar de ser dito ao longo dos autos que A foi constituído arguido no âmbito do processo nº 1555/15 e prestou TIR, o certo é que, da nossa análise do processo, resulta que aquele não foi ouvido no âmbito daquele inquérito), faltando ser interrogado relativamente aos demais.
Assim, solicite à GNR a constituição de arguido e interrogatório do arguido A, com nova sujeição a TIR, relativamente aos factos denunciados nos NUIPC 1837/11.0GACSC, 630/15.6GACSC, 1456/15.2PBCSC, 1458/15.9PBCSC.
Prazo: 30 dias.”
- Em 08.06.2018, foi proferido despacho de acusação, também contra o arguido A, sendo ali ordenada a notificação do arguido e do seu Ilustre Defensor (referenciando-se o TIR prestado a fls. 21 do processo n.º 1457/15.0PBCSC).
- Em 15.05.2018 expediu-se notificação via postal simples com PD para a morada em causa.
- Decorrido o prazo legal, os autos foram remetidos à distribuição para julgamento em 17.01.2019.
- Por despacho de 23.01.2019 foi recebida a acusação pública deduzida contra o arguido e designada data para audiência de julgamento para os dias 09.04.2019 e 23.04.2019, determinando-se a notificação do arguido, nos termos do disposto nos artigos 313.º, n.º 2, 314.º, n.ºs 1 e 2 e 315.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
- Esse despacho foi enviado via postal simples com PD para a morada do TIR (conforme se retira da PD constante do histórico do citius em 08.03.2019).
- A DGRSP desenvolveu diligências junto do arguido A com vista à elaboração do relatório social, sem sucesso (conforme informação de 19.03.2019).
- O julgamento iniciou-se em 09.04.2019, verificando-se a falta do arguido A.
- Nessa audiência foi proferido o seguinte despacho (conforme acta da mesma data): “Atento a que o Arguido A está regularmente notificado e não comunicou qualquer impedimento ou impossibilidade de comparência, considera-se não justiçada a falta e condena-se o mesmo em multa equivalente a 2 UC – art.ºs 116º e 117º CPP. Tendo em conta a natureza dos factos e dos crimes imputados ao Arguido e por não se considerar indispensável a sua presença desde o início da audiência, procede- se ao início de julgamento na sua ausência – artº 333º, nº 3 CPP. Notifique.”
- Realizou-se então a audiência de julgamento na ausência do arguido A, interrompida para continuação no dia 23.04.2019.
- A audiência de julgamento continuou no dia 23.04.2019, verificando-se uma vez mais a falta do arguido A.
-Realizada a audiência de julgamento, foi proferido o seguinte despacho “(…) Atento que o Arguido A está regularmente notificado e não comunicou qualquer impedimento, considera-se não justiçada a falta e condena-se o mesmo em multa equivalente a 2 UC.-
Interrompe-se a presente audiência para continuar na próxima data, já designada, dia 07 de Maio de 2019, às 16:00 horas. Notifique.”
-No dia 07 de Maio foi proferido o seguinte despacho: “Interrompe-se a presente audiência de julgamento para continuar dia 28 de Maio de 2019 às 14 horas para inquirição da testemunha faltosa. Atentos os motivos, e recuperando os fundamentos da douta promoção que antecede, que se reproduzem, passe mandados para comparência do Arguido A nessa mesma data. Notifique”
- O julgamento continuou nessa data, mas o arguido A não foi localizado em tempo útil para a sua apresentação no Tribunal, conforme ofício da PSP de 28.05.2019.
- Encerrou-se a audiência de julgamento nessa data e realizou-se a leitura do acórdão no dia 11.06.2019, também na ausência do arguido A, na presença da sua Defensora.
- O arguido foi notificado pessoalmente do Acórdão via carta rogatória em 19.08.2022.

Apreciando.
Como diz a Digna Magistrada do MP, é uma evidência que A não foi constituído arguido, nem foi ouvido, nessa qualidade, em todos os NUIPC apensados ao processo principal.

No entender da mesma Magistrada “existindo uma situação de conexão de processos com a determinação da apensação de todos eles em fase de inquérito, quando já havia sido constituído na qualidade de arguido pelo menos num deles, não se impõe a repetição daquele acto processual para aquisição da qualidade de arguido em todos os subsequentes inquéritos, apensos num só, como vimos.
O arguido A adquiriu a qualidade de arguido, com os deveres e os direitos inerentes e conserva-a para os ulteriores trâmites dos autos, incluindo todas as subsequentes apensações (cfr. artigo 57.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) – até porque a razão de ser da própria apensação é a identidade em todos eles do mesmo agente do crime, verificando-se os pressupostos previstos nos artigos 25.º, 25.º, 28.º e  29.º, do Código de Processo Penal.”.
      
A questão essencial não é tanto o acto formal de constituição como arguido.
Necessário se torna, porém, que o arguido tenha conhecimento das apensações e, consequentemente dos factos constantes de cada processo/inquérito, sendo certo que sempre seria constituído arguido com a notificação da acusação – art.º 57º nº 1 do CPP

O Ac do STJ nº 1/2006, de 23/11/2005 firmou doutrina obrigatória no sentido de que “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui nulidade prevista no art.º 120, nº 2, al d) do CPP”.
Decorre do processado que logo após ter prestado declarações no âmbito do inquérito NUIPC 1457/15.0PBCSC e aí ter prestado TIR, nunca mais se conseguiu localizar o arguido.
Veja-se a fls. 215 a 216 dos autos principais as diligências efectuadas no sentido da localização do arguido após o despacho proferido em 23.03.2018, pela Ex. Procurador titular do processo.
Aliás, a fls. 218 verso está escrito pelo agente da GNR que “o indivíduo em referência apenas residiu 1 semana na morada indicada, sabendo apenas que o mesmo se encontra emigrado na Alemanha há 2 anos. Informações prestadas pela proprietária Denise”.
Desta feita e só por esse motivo (porque não foi possível notificar o arguido) afastamos a nulidade prevista no citado art.º 120, nº 2, al d) do CPP.
        
Aqui chegados, levanta-se a primeira questão colocada pelo recorrente:
- foi o arguido validamente notificado da acusação?
      
Esta foi enviada para a morada do TIR que o arguido havia prestado num dos inquéritos.
Esta atitude pareceu-nos temerária.
Depois do Sr. Procurador titular do inquérito ter considerado que  era necessária a constituição e prestação de TIR, por parte do arguido, relativamente aos inquéritos onde tal não ocorreu – cfr. despacho de 23.03.2018 citado supra – não se compreende que, em face das informações que constam dos autos – designadamente que o arguido estava emigrado – tenha entendido notifica-lo da acusação por via  postal simples para a morada do TIR.
Constituindo a acusação, a este tempo, uma peça que agrega vários comportamentos susceptíveis de serem considerados crime e que vão muito além do que foi transmitido ao arguido aquando do seu único interrogatório, não temos dúvida em considerar que o arguido não foi devidamente notificado da acusação.
Coisa diferente aconteceria se, sabendo o arguido do processo crime (na sua totalidade) que corre contra si e tendo prestado TIR tendo em conta essa realidade, se tenha desinteressado do processo, alterando a morada sem ter tido o cuidado de informar os autos. Aliás, por força da medida de coacção prestada TIR, impunha-se-lhe essa comunicação – cfr. art 196.º, n.º 3, alínea c) do CPP
Como se escreveu num Acórdão desta Relação de 08-09-2020 in www.dgsi.pt. “O Juiz do tribunal a quo pode conhecer oficiosamente da irregularidade relativa à falta de notificação da acusação, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 123.º do CPP na medida em que tal omissão pode vir a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores e não se mostra sanada. – Encontrando-se os autos sujeitos à apreciação do juiz para designar data para julgamento, e sendo este competente para apreciar a irregularidade de notificação da acusação aos arguidos, é também da competência do juiz a ordem de suprimento da irregularidade detectada, a qual apenas poderá ser cumprida pelos serviços administrativos que lhe devem obediência, não podendo ser executada pelos serviços do MºPº, os quais são autónomos em razão do princípio constitucional da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz”

Posição mais radical é defendida no Acórdão da Relação de Guimarães de 18.09.2006 in www.dgsi.pt  onde se pode ler: “I – Sendo um arguido apenas notificado por via postal simples para a morada constante do TIR, ali incluída sem indícios de culpa sua, e havendo nos autos, e no próprio TIR, a morada do local de trabalho e bem assim três números de telefone, há que tentar todos os meios para se lhe dar conhecimento da acusação e facultar-lhe a respectiva defesa. II – Quando no art.º 196º, nº 2 do C.P.Penal se diz que para o efeito de ser notificado mediante via posta simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha quis o legislador facilitar as tarefas das notificações, pelo que caberia a quem de direito alcançar o sentido e finalidades da lei, nomeadamente tendo em conta a gravidade do acto a realizar e das suas consequências. III – E a consequência da falta cometida só pode ser a da nulidade absoluta, tendo que se efectuar a notificação da acusação e seguir, depois, os demais trâmites, pois, de facto, estamos perante um vício capital, a qualificar como nulidade insanável, a prevista no art.º 119º, al. c) do citado Código, tanto mais que, como se sabe, a falta de notificação da acusação implica a impossibilidade do mais elementar direito dos arguidos, o de defesa, com consagração constitucional. IV – Com efeito, há violações da lei processual muito mais graves que as nulidades insanáveis, quais são aquelas que constituem uma omissão de fundo constitucional e que, por isso, mais que nulas, são afectadas de inconstitucionalidade. V – Esses vícios não estão - nem poderiam estar - incluídos no elenco das nulidades (insanáveis ou dependentes de arguição) e das irregularidades, pois são vícios maiores, que dizem respeito à própria substância dos direitos constitucionais. VI – Aliás, nem fazia sentido que fosse possível arguir-se, e demonstrar-se, uma violação de natureza constitucional, vindo o acto (ou a omissão) a ser como tal declarado e anulado, se pela via dos vícios processuais apenas se descobrisse uma nulidade relativa ou uma mera irregularidade. Ou, por outras palavras, um vício que era considerado como ferido de inconstitucionalidade passaria a ser considerado, pelas regras do processo penal, como uma nulidade sanável ou como um vício menor! VII – Também não faz o mínimo sentido que se continue a aceitar que a ausência do defensor integre a nulidade insanável prevista na citada al. c) do art.º 119º e o mesmo se não aceite para a ausência do próprio arguido, afinal, aquele em nome de quem os direitos são proclamados. VIII – A ausência prevista no art.º 119º, nº 1, al. c) não pode ser por falta - falta voluntária ou involuntária - do arguido pois nesse caso funcionam as regras das faltas e, por isso, nem sequer há nulidade ou irregularidade. IX – A ausência dos assistentes ou das partes civis, por falta de notificação, é cominada com a nulidade relativa, como se vê do art.º 120º, nº 2, al. b). X – Assim, e sabendo-se da maior gravidade da ausência dos arguidos, face à necessidade de maior protecção de direitos, tem todo o sentido que a sua ausência (não presença), por razões que se lhe não possam imputar, seja cominada com nulidade mais severa. XI – Acresce, e decisivamente, crê-se, que se a ausência (isto é, a não presença) do Ministério Público é qualificada como nulidade insanável - cit. art.º 119º b), 2ª parte -, o mesmo tem que se reconhecer para a ausência dos arguidos. XII – Assim, e até por maioria de razão, a não notificação da acusação ao arguido, quando possível, e sobretudo quando tal falta lhe não é imputável, tem que ser entendida como ferida de nulidade insanável.”

Embora percebendo o “sentimento” subjacente a esta decisão, parece-nos que a mesma não tem acolhimento legal nos termos em que foi defendida.
Obviamente que o desconhecimento, por parte do arguido, da matéria concreta que lhe é imputada na acusação constitui uma flagrante violação da Constituição.

Voltamos a socorrer-nos do Acórdão desta Relação supra citado “ In casu, tendo sido notificada da acusação, por via postal, para uma morada diferente daquela morada que no Termo de Identidade e Residência havia indicado para efeito de notificações, nenhuma dúvida subsiste que foi praticado um acto processual à revelia do estatuído no nº 6, do citado artigo 283º, impondo-se, assim, em primeiro lugar, que se qualifique juridicamente aquele vício, para num segundo momento, uma vez que foi detectado, determinar os seus efeitos.
Para tanto, há que verificar se a incorrecção da notificação da acusação aos arguidos é cominada pela lei como nulidade e não o sendo, estaremos em face de uma mera irregularidade.
Dispõe o art.º 119.º do Código de Processo Penal (…):
Da simples leitura do art.º 119º logo se extrai que a notificação da acusação a um arguido para uma morada diversa daquela que o mesmo havia indicado no TIR não integra qualquer uma das nulidades ali expressamente previstas, mormente a da alínea c).
É certo que o art.º 119º c) do CPP comina de nulidade insanável “a ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência”.
Todavia, diversamente do que ocorre, por exemplo, nos casos em que a audiência de julgamento figura como uma das situações em que é obrigatória a comparência do arguido (cfr. 332º nº 1 e 64º nº 3 a), ambos do CPP), já no que respeita ao acto de notificação da acusação o mesmo, para ser válido, não exige a presença ou comparência do arguido, ou seja, a validade do acto de notificação da acusação não depende, nem pressupõe a presença do arguido.
Por outro lado, percorrendo todo o Código de Processo Penal, não descortinamos um qualquer normativo que comine com o vício da nulidade insanável (nem sequer com o vício da nulidade sanável ou dependente de arguição) quando um arguido seja notificado da acusação para uma morada diversa daquela que no TIR havia indicado para o efeito de receber notificações. Por isso, apesar da notificação da acusação ter sido efectuada para uma morada diversa daquela que no TIR havia sido indicada para efeitos de notificações, jamais se está perante qualquer nulidade insanável.
Acresce também referir que aquela incorrecta notificação também não se enquadra no leque das nulidades relativas ou dependentes de arguição a que alude o art.º 120º do CPP.
Nessa decorrência apenas estaremos, então, perante o vício da irregularidade. (..)
Há que ponderar, na verdade, que “a existência de uma fase de instrução subordinada ao princípio do contraditório é, decerto, uma garantia de defesa, na medida em que permite ao arguido, ainda antes do julgamento, corrigir, questionar e até contrariar a prova indiciária que fundamentou a acusação, e evitar assim que haja de ser sujeito a um julgamento por factos que não praticou. Ora, segundo o nº 1, do artigo 32º, da CRP, o processo penal tem de assegurar todas as garantias de defesa.
Todavia, esta disposição constitucional, como tantas outras em matéria processual penal, tem de ser interpretada à luz do princípio da proporcionalidade. Assim, quando se fala em “garantias de defesa” há-de se entender as garantias necessárias e adequadas a um eficaz exercício do direito de defesa. (Ac. T. C de 02/04/92).
Por outro lado, “a Constituição não estabelece qualquer direito aos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação de existência de razões que indiciem a sua presumível condenação, pelo que o simples factos de se ser submetido a julgamento não pode constituir, só por si, no nosso ordenamento jurídico, um atentado de bom nome e reputação” (Ac. T. C, de 28/06/94).
Esta posição do Tribunal Constitucional – exposta, embora, para situações diferentes – inculcam que a solução antes encontrada é conforme a Constituição.

E assim – afastada a aplicação, ao caso dos autos, do regime de nulidades insanáveis – reverte-se à categoria das nulidades e irregularidades, “dependentes de arguição” - artigo 120º e seguintes do CPP.
Após a revisão do Código de Processo Penal de 1998, pronunciou-se, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 31 de Janeiro de 2007 (Proc. 0417372, sendo relator Joaquim Gomes, in www.dgsi.pt) naquele mesmo sentido: “A falta de notificação da acusação ao arguido constitui mera irregularidade, a ser tratada nos termos do nº 1 do art.º 123º do CPP”.
Trata-se por isso de uma mera irregularidade e esta, segundo o art.º 123.º, n.º só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tivessem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele a que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado”.
(…)
Tudo isto para dizer que, não prevendo os artigos 119º e 120º do CPP a forma incorrecta como foi realizada a comunicação da acusação ao arguido como uma nulidade, estamos perante uma irregularidade a seguir o regime imposto pelo artigo 123º, do Código de Processo Penal.
Desse modo, a falta de notificação da acusação do Ministério Público aos arguidos constitui uma irregularidade que tem de ser arguida pelos interessados no prazo de 3 (três) dias, não sendo de conhecimento oficioso (neste sentido, cfr. o acórdão do TR de Évora, de 14 de Abril de 2009, in Colª Jur.ª. Ano XXXI, tomo II. pág. 294).
Tendo tribunal a quo, oficiosamente, detectado essa irregularidade isso não impede que a sua reparação possa ter lugar no âmbito do nº 2 do art.º 123º do CPP, reparação essa que poderia ser realizada pelos próprios serviços do tribunal, sem necessidade de dar sem efeito a distribuição e de ordenar a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para reparar tal irregularidade, reduzindo o âmbito do recurso ao conhecimento de quem seria a entidade competente para tal suprimento, sendo esta a questão suscitada pelas conclusões do recorrente que delimitam o âmbito do recurso.
Vejam-se também os Acórdão do TR de Lisboa de 26 de Fevereiro de 2013, e de 5 de Junho de 2014, in Colª Jur.ª, Ano 2014, Tomo 3, pág. 158: “I.- A entidade que conhecer uma irregularidade deve ordenar as providências necessárias com vista á sua reparação que terão de ser cumpridas pelos respectivos serviços. II.- O juiz não pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que seja sanada uma irregularidade, uma vez que tal decisão afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público.”
E o Ac. do TR de Lisboa, de 21 de Novembro de 2013, relatado por Maria Guilhermina Freitas: “I- A omissão da notificação do despacho de arquivamento/acusação ao mandatário do denunciante configura uma irregularidade (art.º 118.º, n.º 2, do CPP), com reflexos no exercício de direitos do denunciante, afectando dessa forma a validade de todos os actos processuais posteriores. II- Tal irregularidade é de conhecimento oficioso, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 123.º do CPP, dado que não se mostra sanada. III- Deverá, porém, a Sr.ª Juíza do tribunal a quo ordenar a reparação da irregularidade em causa, da qual conheceu oficiosamente, pelos seus próprios serviços e não ordenar a remessa dos autos aos serviços do MP, como o fez, com essa finalidade, dando sem efeito a distribuição, decisão essa que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.”
(…)
Como refere Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal Anotado”, 7.ª edição, pág. 253, em anotação ao art.º 123.º, com o qual se concorda “Apesar das irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na vida real se podem deparar impõe que se não exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais. Daí a grande margem de apreciação que se dá ao julgador, nos n.ºs 1 e 2, que vai desde o considerar a irregularidade inócua e inoperante até à invalidade do acto inquinado pela irregularidade e dos subsequentes que possa afectar, passando-se pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente pelo julgador.”

Neste caso em concreto, parece-nos que a questão da competência para a notificação está claramente prejudicada, uma vez que a acusação foi recebida, tendo havido julgamento e Acórdão.
Em suma, quer considerando uma nulidade, quer considerando uma irregularidade - falta de notificação da acusação ao abrigo do disposto no art.º 123º nº 2 do CPP (nesta última hipótese esta irregularidade teria/devia ter sido conhecida pelo juiz que recebeu a acusação e designou data para julgamento) - o resultado final acabará por ser idêntico.
Se consideramos existir uma nulidade insanável a questão levantada no recurso termina por aqui, julgando-se o mesmo procedente e declarando nulo todo o processo que ocorreu após a prática daquele acto, incluindo julgamento e Acórdão.
A consideramos que se trata de uma irregularidade e que a mesma não foi suprida quando os autos foram sujeitos à apreciação do juiz para designar data para julgamento, teremos um efeito “bola de neve” na medida em que tal omissão vai a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores.
O recebimento da acusação no pressuposto de que foi devidamente notificada e a designação de data para julgamento com envio, mais uma vez, de carta simples para a morada do TIR, redundaria, como aconteceu, na realização de uma audiência à margem do arguido, sem culpa deste.
Tal significava que haveria uma nulidade insanável – art.º 119º al. c) do CPP – que, tal tsunami, afectaria todos os actos subsequentes a essa mesma notificação.

Não podemos deixar de  dizer que não se compreende a posição tomada pela Digna Magistrada do Ministério Público (pressupondo a regular notificação do arguido) quando, referindo-se à falta de notificação do arguido para as duas últimas datas de julgamento (notificação essa que, de facto, não existe), afirma que  “não existe falta de notificação do arguido para a última data do julgamento mas sim a falta injustificada do arguido que determinou a aplicação dos mecanismos legais para assegurar a sua comparência em data posterior, nos termos do disposto no artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Em síntese, tal como mencionado no douto acórdão condenatório, ao longo da tramitação dos autos, culminando na fase de julgamento, foi patente o desinteresse do arguido pelo desfecho do presente processo – ora mudando de residência sem disso dar nota ao processo, incumprindo as suas obrigações decorrentes do TIR, ora faltando à audiência de julgamento sem apresentar qualquer justificação ou, sequer, sem autorizar que o julgamento se realizasse na sua ausência. “
A este propósito limitamo-nos a citar o Acórdão da Relação de Évora de 02.07.2019 in www.dgsi.ptI - A realização da audiência de julgamento, na ausência do arguido, pressupõe sempre que este esteja regular e devidamente notificado para nela comparecer. Tal decorre, desde logo, do direito que o arguido tem de estar presente em todos os actos processuais que directamente lhe disserem respeito e de prestar declarações até ao encerramento da audiência. II - Na situação em que o julgamento tenha inicio na ausência do arguido, na data para que foi notificado, nos termos previstos no n.º 2, do artigo 333º do CPP, caso seja(m) designada(s) nova(s) data(s) para a sua continuação, o arguido tem de ser notificado dessa(s) nova(s) data(s), sem o que, se impediria, na prática, a materialização, daqueles direitos. III – Não tendo o arguido sido convocado para as sessões da audiência em que foram produzidas alegações orais e se procedeu à leitura da sentença, foi cometida uma nulidade insanável.”

Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2022 in www.dgsi.ptI - De acordo com o princípio da tipicidade consagrado no art.º 118.º, n.º 1, do CPP, a violação ou inobservância das disposições da lei de processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que – n.º 2 da norma –, nos casos em que a lei não comina a nulidade, o acto ilegal é irregular.
II - As nulidades insanáveis são, por definição, insusceptíveis de reparação, podendo ser conhecidas a todo o tempo na pendência do procedimento, oficiosamente ou a pedido. Não podem, porém, ser declaradas após a formação de caso julgado sobre a decisão final que, neste aspecto, actua como forma de sanação. III - A regra geral é a de que as nulidades relativas e as irregularidades ficam sanadas se não forem acusadas nos prazos legais de arguição. IV - Tais prazos, quanto às nulidades, são o geral de 10 dias previsto no art.º 105.º, n.º 1 e os específicos previstos nos art.ºs 120.º, n.º 3. Podendo a sanação ocorrer, ainda, por via da assunção das atitudes tipificadas no art.º 121º. V - As irregularidades, essas, haverão de ser arguidas no próprio acto em que tiveram ocorrido, isso estando os interessados presentes. Não tendo assistido ao acto, devem os interessados suscitá-las «nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado» – art.º 123.º n.º 1. Podendo, ainda, reparar-se oficiosamente a irregularidade que possa afectar o valor do acto praticado no momento em que dela se tomar conhecimento. Desde que ainda não sanada, sob risco de, a admitir-se reparação de irregularidades já sanadas, se introduzir grave entorse no sistema qual seja a de, relativamente ao menos solene dos vícios formais se admitir, afinal, um regime de reparação não só mais permissivo do que o das nulidades relativas, como equiparável, até, ao das nulidades insanáveis.

Assim, regressando às questões a tratar neste acórdão, podemos afirmar que, no caso, o arguido não foi notificado da acusação, sendo que este vício constitui uma irregularidade (e não uma nulidade sanável ou insanável), impondo uma reparação oficiosa da irregularidade porquanto o acto inquinado (no caso, a ausência dele) inquinaria também, como aconteceu, todos os actos subsequentes.
Estamos perante uma nulidade insanável no que toca à ausência da notificação (cumprindo os termos da Lei) do despacho que designou data para julgamento e das sucessivas sessões de julgamento.

Atentas estas conclusões, fica obviamente prejudicada a questão levantada a propósito da medida da pena.

3. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
- Declarar nulo todo o processado a partir do recebimento da acusação, incluindo o julgamento e Acórdão no que respeita ao arguido recorrente.
- Determinar, com vista à reparação da irregularidade em causa, a notificação da acusação ao arguido, seguindo-se os regulares termos do processo em função do que vier, ou não, a ser requerido na sequência da notificação em falta.
Sem custas.
DN

Lisboa, 23 de fevereiro de 2023
(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelas signatárias e com assinatura digital de todos)
Raquel Correia Lima
Micaela Pires Rodrigues
Madalena Caldeira