Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
22455/16.1T8LSB-A.L1-4
Relator: CELINA NÓBREGA
Descritores: ISENÇÃO DE CUSTAS
ÃMBITO DE APLICAÇÃO
IPSS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2017
Votação: MAIORIA COM UM VOTO VENCIDO
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1.-De acordo com a al. f), do nº 1 do artigo 4º do RCP, as pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos estão isentas de custas “quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respectivos estatutos ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.

2.-Actua fora das condições referidas na al. f) do nº 1 do artigo 4º do RCP, a Ré, Instituição Particular de Solidariedade Social, no âmbito de uma acção em que é demandada para pagar diferenças salariais e uma indemnização por danos morais em virtude de contrato de trabalho alegadamente existente entre a Autora e a Ré.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


AAA, devidamente identificada nos autos, intentou contra BBB, a presente acção sob a forma de processo comum, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe diversas quantias que ascendem, à data da propositura da acção, ao valor dado de 381.838,76 €.

Invocou como fundamentos a existência de um contrato de trabalho em que presta a actividade de professora para a Ré e a existência de créditos laborais vencidos e não pagos, bem como danos não patrimoniais.

A Ré contestou, pedindo a sua absolvição do pedido e a condenação da Autora como litigante de má fé em €10.000,00 de indemnização. Mais invocou a sua qualidade de Instituição particular de Solidariedade Social e que se encontra, a seu ver, subjectivamente isenta do pagamento de custas judiciais.

O Tribunal a quo proferiu, então, o seguinte despacho (na parte que releva):

"III–Isenção de Custas (Ré)
A presente acção versa sobre diferenças salariais e sobre danos morais no âmbito de um contrato de trabalho alegadamente existente entre a Autora e a Ré, e sobre pretensão daquela de que esta lhe pague as reclamadas diferenças salariais e uma indemnização por danos morais.
A Ré tem como fins estatutários aqueles que constam de fls. 687 a 703 dos autos (art. 4º do Estatutos).
Nos termos da alínea f) do nº 1 do art. 4º do R.C.Processuais, estão isentas de pagamento de custas «As pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável». Esta isenção não é geral, tendo sim um carácter condicionado: a pessoa colectiva privada sem fins lucrativos tem que estar a actuar em juízo exclusivamente no âmbito das suas atribuições ou para defender os interesses conferidos por estatuto ou por lei.
Ora, o objecto da presente acção não consubstancia uma actuação exclusiva da Ré no âmbito de qualquer dos supra referidos seus fins e interesses estatutários tal como não consubstancia uma actuação exclusiva de defesa desses interesses: o objecto da presente acção versa sobre um litígio relativamente a um contrato de trabalho que a Ré celebrou como qualquer outra pessoa jurídica celebra, não estando a celebração deste contrato directa e exclusivamente com o âmbito daquilo que são as suas específicas funções e atribuições legais como «pessoa colectiva». É evidentemente que, a final, toda a actividade da Ré terá (ou, pelo menos, deverá) estar relacionada com as suas funções e atribuições, mas entender-se que este litígio contratual se insere no «âmbito exclusivo das suas especiais atribuições» é, pura e simplesmente, deixar sem qualquer conteúdo toda a 2ª parte do referido preceito legal (o Legislador deveria então ter consagrado apenas o seguinte texto legal: estão isentas de pagamento de custas «As pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos»).
Por conseguinte, em nosso entender, não estando a Ré a litigar no âmbito das suas especiais atribuições ou a defender especiais interesses estatutários, a presente acção não se insere no âmbito da previsão do art. 4º/1f) do R.C.Processuais.
Foi também este o entendimento sufragado pelo Ac. da RC de 13/12/2011, «A isenção mencionada no artº 4º/1 – f) do RCJ (Regulamento das Custas Judiciais) não abrange as acções interpostas contra instituições particulares de solidariedade social em que estas defendam interesses conexos com relação laboral estabelecida com uma trabalhadora. Não cabem na previsão normativa em causa as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que essas entidades celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições».
Face ao exposto e sem necessidade de outras considerações, indefere-se a pretensão da Ré no sentido de lhe ser reconhecida o direito à isenção de custas e, consequentemente, determina-se a sua notificação para, no prazo de 5 dias, comprovar nos autos o pagamento da respectiva taxa de justiça, sob pena de, não o fazendo, serem-lhe aplicadas as respectivas consequências legais".

Inconformada, a Ré interpôs apelação deste despacho, com subida imediata e em separado, em que conclui:

I.-A Recorrente é uma Instituição Particular de Solidariedade Social de cujos estatutos resulta que a fundação, manutenção e direção de Jardins Escolas e da Escola Superior de Educação João de Deus constituem alguns dos seus objetivos principais, das suas especiais atribuições.
II.-Nos presentes autos a Recorrente atua no âmbito das suas especiais atribuições e para defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto, designadamente a manutenção da Escola Superior de Educação João de Deus.
III.-Estando, assim, claramente enquadrada no normativo ínsito no art. 4º, nº 1, al. f), do RCP, pelo que se impõe a isenção de pagamento de custas judiciais.
IV.-Ao decidir como decidiu, o douto despacho recorrido errou na interpretação e na aplicação das competentes normas legais, designadamente, violando o disposto no artigo 4º, nº 1, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
V.-Como facilmente se depreende, não é possível à R. realizar esta sua especial atribuição de manutenção da Escola Superior de Educação João de Deus sem contratar professores, como sucedeu em relação à A., que havia sido contratada no âmbito das referidas actividades principais da Recorrente e, por isso, no âmbito das suas específicas atribuições, assim se preenchendo a norma constante do art. 4º, nº 1, alª f) do RCP.
VI.-Tudo o que respeite aos seus recursos humanos qualificados, sejam eles professores, educadores ou outros, não pode ser considerado como meros aspetos de organização interna passíveis de exclusão da referida isenção subjetiva, mas antes como instrumentos indispensáveis para se atingirem as referidas atribuições especiais da Recorrente.
VII.-A Recorrente não tem qualquer forma de realizar os seus fins estatutários sem contratar professores e educadores, enquanto conditio sine qua non da sua obrigação de fundar, dirigir e manter em funcionamento a Escola Superior de Educação e os Jardins Escolas, nos termos injuntivamente fixados nos seus estatutos.
VIII.-Se o entendimento do douto despacho sub judice merecer provimento, esta alínea f) do nº 1 do art. 4º do RCP, pura e simplesmente, fica sem qualquer conteúdo pois, se a R. não beneficiar de isenção do pagamento de custas neste tipo de ações, não se vê quais as ações em que atue "exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto", e possa usufruir deste benefício.
IX.-A interpretação operada pelo despacho sub judice do art.º 4º, nº 1, al. f), do RCP está em violação manifesta do art.º 63º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, sendo inconstitucionalmente restritiva e ilegítima, porquanto recusa o preceituado apoio do Estado no âmbito da prossecução de finalidades que a própria CRP elege.
X.-Estão verificados os requisitos para a aplicação da isenção de custas prevista no referido artigo 4º, nº 1, al. f), do RCP, pois é manifesto que a Recorrente atua exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições e para defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto e nos termos de legislação que lhe é aplicável.
XI.-A situação sub judice constitui uma decorrência natural do actuar da R. na prossecução das suas atribuições e interesses estatutariamente definidos, nos termos consignados no acórdão da Relação de Guimarães anteriormente referido.
XII.-Deve assim o douto despacho sub judice ser substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos com a dispensa do pagamento de custas pela Recorrente, por aplicação do disposto na al. f) do nº 1 do art. 4º do RCP.
Finaliza pedindo a procedência do recurso.

Não houve contra-alegações.

O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu parecer, defendendo a improcedência do recurso.

Notificadas as partes do mencionado parecer, não responderam.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso.
Sendo sabido que o âmbito do recurso é limitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º nº 4 e 639º do NCPC, ex vi do nº 1 do artigo 87º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608º nº 2 do CPC), no presente recurso a única questão a decidir consiste em saber se a Ré beneficia de isenção de custas.

Fundamentação de facto.
Os factos com interesse para a apreciação da questão suscitada no recurso são os que constam do relatório supra, para o qual se remete.

Fundamentação de Direito.
Apreciemos, então, se a Ré beneficia de isenção de custas.
Nesta sede, defende a Recorrente, em resumo, que, nos presentes autos, actua no âmbito das suas especiais atribuições e para defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto, designadamente a manutenção da Escola Superior de Educação João de Deus, que não é possível à Ré realizar esta sua especial atribuição de manutenção da Escola Superior de Educação João de Deus sem contratar professores, como sucedeu em relação à Autora, que havia sido contratada no âmbito das referidas actividades principais da Recorrente e, por isso, no âmbito das suas específicas atribuições estando, assim, enquadrada no normativo ínsito no art. 4º, nº 1, al. f), do RCP, se o entendimento do despacho recorrido merecer provimento, esta alínea f) do nº 1 do art. 4º do RCP, pura e simplesmente, fica sem qualquer conteúdo pois, se a Ré não beneficiar de isenção do pagamento de custas neste tipo de acções, não se vê quais as acções em que actue "exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto", e possa usufruir deste benefício e que e a interpretação operada pelo despacho sub judice do art.º 4º, nº 1, al. f), do RCP está em violação manifesta do art.º 63º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, sendo inconstitucionalmente restritiva e ilegítima, porquanto recusa o preceituado apoio do Estado no âmbito da prossecução de finalidades que a própria CRP elege.

Vejamos:
Estabelece o artigo 4º nº 1 al.f) do RCP que estão isentos de custas “As pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.

Sobre esta alínea, escreve Salvador da Costa, in “Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado”, pags.143 e 146 “ Prevê a alínea f) do nº 1 as pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou em defesa dos interesses que lhe estejam especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos da legislação que lhes seja aplicável e estatui que gozam de isenção de custas.
(…)
A isenção em apreço é motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, o que à comunidade aproveita e ao Estado incumbe facilitar.
Trata-se, porém, de uma isenção subjectiva de custas que aproveita às referidas pessoas colectivas, condicionada às circunstâncias de não terem fins lucrativos e de actuarem no âmbito das suas especiais competências ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos.
(…)
Mas trata-se de uma isenção de custas condicional, na medida em que só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo seu estatuto ou pela própria lei.
Nesta perspectiva, pode parecer que esta isenção não abrange as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que essas pessoas celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições.
Todavia, se o objecto de tais acções for instrumental em relação aos fins estatutários dessas entidades, propendemos a considerar serem abrangidas pela isenção de custas.
Esta isenção está, porém, limitada pelo que se prescreve nos nºs 5 e 6 deste artigo”

Atenta a sua pertinência para a questão, chamamos à colação o que se escreve no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.09.2013, in www.dgsi.pt:“As especiais atribuições das pessoas colectivas são os fins ou as finalidades para a realização das quais foi formada a pessoa colectiva e que lhe conferem identidade e que as distinguem de outras pessoas no mundo das pessoas colectivas”. (…)

E de acordo com o mesmo aresto, cujo entendimento perfilhamos, ”O artigo 4º do RCP estabelece o elenco e o regime de isenções de custas processuais.

O n.º 1 prevê as isenções subjectivas. Note-se que não se trata de isenções subjectivas puras, visto que não são estabelecidas exclusivamente em função das entidades que são partes nos processos. O n.º 1 isenta certas entidades do pagamento das custas, mas condiciona a isenção à natureza das questões, dos direitos e dos interesses ou da relação material que é objecto do processo.
O n.º 2 prevê, por seu turno, as isenções objectivas, ou seja, os processos que não estão sujeitos a custas. Constitui um desvio à regra geral enunciada no artigo 1º, n.º 1 do RCP, segundo a qual “todos os processos estão sujeitos a custas…”.
Considerando a dicotomia acabada de fazer, a alínea f) do n.º 1 do artigo 4º estabelece uma isenção subjectiva de custas. Isenção que é estabelecida a favor das “pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos”.
(…)
Sucede que, nos termos da citada alínea, as pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos estão isentas de custas “quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respectivos estatutos ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.
Vê-se da norma acabada de transcrever que o benefício da isenção é reconhecido às pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos desde que:
1.-Actuem, no processo, exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições; ou
2.-Actuem, no processo, “para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respectivos estatutos ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.
Qualquer actuação no processo fora destas condições não beneficia da isenção de custas.
O que está em causa no presente recurso é saber se a ré actua no presente processo “exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições.
(…)
Como é sabido, a toda a constituição de pessoas colectivas preside um fim [artigos 167º, n.º 1 e 186º, n.º 1, ambos do Código Civil]. Como escreve António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2ª Edição, 2007, Almedina, página 628, o fim tende a “ser considerado o seu factor fundamental”, pois é o fim da pessoa colectiva que vai determinar: “a sua idoneidade e, sendo o caso, o seu reconhecimento”; “a sua capacidade, em função do princípio da especialidade”; “o eventual reconhecimento da utilidade pública”; “o tipo de actuação requerido aos titulares dos seus órgãos”; as coordenadas de interpretação dos estatutos”.
Ora, as atribuições de uma pessoa colectiva são precisamente os fins ou as finalidades por ela prosseguidas. As especiais atribuições são os fins ou as finalidades para a realização das quais foi formada a pessoa colectiva e que lhe conferem identidade e que as distinguem de outras pessoas no mundo das pessoas colectivas. É com este sentido, por exemplo, que o artigo 51º, n.º 1, alínea a), e n.º 2 da Lei n.º 24/2012, de 9 de Julho, que aprovou a Lei-Quadro das Fundações, fala das “atribuições” das fundações públicas.
Logo, as atribuições da ré são as finalidades que ela prossegue; as especiais atribuições são as finalidades que levaram à sua formação; são os objectivos que lhe conferem identidade e que concorrem para a distinguir de outras pessoas colectivas.
(…)
Uma das linhas de orientação da reforma das custas processuais efectuada pelo RPC aprovado pelo Decreto-lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro consistiu na “reavaliação do sistema de isenção de custas”. Com o novo regime procurou-se, para utilizarmos as palavras do preâmbulo do diploma atrás citado, “proceder-se a uma drástica redução das isenções, identificando-se os vários casos de normas dispersas que atribuem o benefício da isenção de custas para, mediante uma rigorosa avaliação da necessidade de manutenção do mesmo, passar a regular-se de modo unificado todos os casos de isenções”.
Ora, em relação às instituições particulares de segurança social, basta compararmos o regime anterior ao RCP com o regime saído deste Regulamento para se concluir que houve uma redução do âmbito da isenção de custas. Com efeito, no domínio do Código das Custas Judiciais anterior ao RCP [Código das Custas Judiciais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro de 2003], estava prevista expressamente a isenção de custas para as instituições particulares de solidariedade social [artigo 2º, n.º 1, alínea c)]. E estava prevista sem quaisquer condições. E assim, qualquer que fosse a questão que estivesse em discussão no processo, as instituições particulares de segurança social estavam isentas de custas. Na passagem do CCJ para o RCP, a lei, além de integrar a isenção de custas em benefício das IPSS nas isenções previstas para pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, deixou de definir a isenção de custas destas pessoas em função de um critério exclusivamente subjectivo. A isenção das custas passou a estar dependente da relação do objecto do litígio com as “especiais atribuições” da pessoa colectiva ou com “a defesa dos interesses que lhe são especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.
Foi por objecto do litígio não respeitar às “especiais atribuições” da pessoa colectiva que:
1.-O acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Janeiro de 2013, publicado no sítio www.dgsi.pt, proferido no processo n.º 1140/11.6TTMTS decidiu que a isenção de custas prevista na alínea f), do n.º 1 do artigo 4º do Regulamento das Custas processuais não abrangia as acções declarativas emergentes de contrato de trabalho interpostas contra uma IPSS com vista ao reconhecimento de créditos decorrentes da relação laboral que existiu entre ela e uma trabalhadora (A.)
2.-O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-12-2011, proferido no processo n.º 68/08.1TTCBR, publicado no mesmo sítio, decidiu que a isenção prevista na alínea f), do n.º 1 do artigo 4º do RCP estava condicionada à actuação no âmbito das especiais atribuições da pessoa colectiva em causa ou da defesa dos seus interesses estatutários, pelo que a isenção “só funcionava em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo seu estatuto ou pela lei” (ídem) e que não cabiam, assim, na previsão normativa “as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que essas pessoas celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições”.
3.-O acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28-12-2012 proferido no processo n.º 3892/11.4TBPTM publicado no mesmo sítio decidiu que a isenção não se verificava quando, em concreto, a Instituição pretende impugnar as coimas que lhe foram aplicadas pela prática de contra-ordenações ambientais, se os interesses subjacentes à protecção dessas contra-ordenações não constam dos seus estatutos ou da lei.
E foi por o objecto do litígio não estar relacionado com “a defesa dos interesses que lhe são especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável” que o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 14-03-2013, no processo n.º 01166/12, uniformizou a jurisprudência no sentido de que “de acordo com as disposições articuladas das alíneas f) e h) do artigo 4º do Regulamento das Custas Processuais e do artigo 310º/3 do Regime do Contrato de Trabalho na Função Pública, aprovado pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, os sindicatos, quando litigam em defesa colectiva dos direitos individuais dos seus associados, só estão isentos de custas se prestarem serviço jurídico gratuito ao trabalhador e se o rendimento ilíquido deste não for superior a 200 UC.”

Regressando ao caso, constata-se que de acordo com o artigo 4º dos Estatutos da Ré esta tem como objectivos principais:
a.-Fundar, dirigir e manter Jardins Escolas e centros infantis;
b.-Realizar um modelo português de escola infantil e primário segundo o espírito e doutrina do Método João de Deus para abrigo, educação e ensino de crianças.
c.-Fundar, dirigir e manter uma Escola Superior de Educação, herdeira dos Cursos de Magistério Infantil e Primário criada em 1920 segundo o espírito e doutrina do Método de João de Deus.
d.-Realizar formação inicial, contínua e especializada de docentes.
e.-Conservar o Museu João de Deus como centro de irradiação literária, pedagógica e artística para guarda e consulta de todos os livros, jornais, revistas, manuscritos, documentos e objetos, de que se compõe o recheio do mesmo Museu.
f.-Manter e atualizar o Museu João de Deus, Bibliográfico, Pedagógico e Artístico.
g.-Manter, dirigir e atualizar a Casa Museu João de Deus, sita na Rua João de Deus nº 9, 1.º em Lisboa.
h.-Facultar aos investigadores, eruditos e estudantes, a leitura e consulta das obras existentes na biblioteca do Museu.
i-Fundar, dirigir e manter Centros de Alfabetização, herdeiros das missões de alfabetização iniciadas em 1882.
j.-Fundar, manter e dirigir centros visando o apoio e abrigo de membros das comunidades mais carenciadas.
k.-Manter um Centro de Recursos Educativos.
l.-Outras atividades de âmbito cultural e pedagógico.

2.-Secundariamente, a Associação propõe-se desenvolver os seguintes objetivos:
a.-Apoiar social e pedagogicamente grupos de risco.
b.-Realizar Conferências, Seminários e Congressos.
c.-Prestar serviços de avaliação, auditoria e consultoria nas áreas do objeto social.
d.-Realizar intercâmbio/protocolo cultural, científico e técnico com instituições congéneres nacionais e estrangeiras.
e.-Realizar formação técnica/profissional em áreas definidas pelos seus órgãos competentes.

Ora, as partes não contestam a afirmação do Tribunal a quo de que “A presente acção versa sobre diferenças salariais e sobre danos morais no âmbito de um contrato de trabalho alegadamente existente entre a Autora e a Ré, e sobre pretensão daquela de que esta lhe pague as reclamadas diferenças salariais e uma indemnização por danos morais”, do que resulta que a presente acção tem por objecto obrigações decorrentes de contrato de trabalho que a Ré celebrou com a Autora com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições.

Assim, o âmago da presente acção são as obrigações decorrentes desse contrato que a Autora entende não terem sido cumpridas e que não respeitam às finalidades que justificaram a formação da pessoa colectiva pelo que, considerando o sentido e o alcance do artigo 4º nº 1 al.f) do RCP, acima expostos, não podemos concluir que a Ré, na presente acção, está a actuar exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições, nem para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhe seja aplicável.

Na verdade, e como refere a decisão recorrida, o objecto da presente acção versa sobre um litígio relativamente a um contrato que a Ré celebrou, como qualquer outra pessoa jurídica celebra, do que decorre que, no âmbito da presente acção, a Recorrente está a actuar como qualquer pessoa jurídica actuaria, caso tivesse celebrado um contrato de trabalho ou de outra natureza com a Autora e por ela fosse demandada, não resultando a sua actuação do âmbito exclusivo das suas atribuições, ou da defesa dos seus interesses fixados pelo estatuto ou pela lei.

Assim, entendemos que, perante o objecto do presente processo e não obstante a natureza da Ré, resulta claro que a mesma não actua, nem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições que estão expressas no respectivo estatuto, nem está em juízo em defesa dos interesses que lhe estão por esse mesmo estatuto, ou por lei, especialmente conferidos, sendo certo, também, que o objecto desta acção não se traduz num meio instrumental em relação aos seus fins estatutários; discutem-se obrigações insusceptíveis de bolir com as finalidades que a Ré prossegue e com “os objectivos que lhe conferem e que concorrem para a distinguir de outras pessoas colectivas”.

Com efeito, a discussão da natureza do contrato da Autora e os créditos laborais que peticiona, não constituem, a existirem, obrigações necessárias ou sequer instrumentais à prossecução dos seus fins

Mas ainda entende a Recorrente que a interpretação que o Tribunal a quo faz do art.º 4º, nº 1, al. f), do RCP está em violação manifesta do art.º 63º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, sendo inconstitucionalmente restritiva e ilegítima, porquanto recusa o preceituado apoio do Estado no âmbito da prossecução de finalidades que a própria CRP elege.

De acordo com o nº 5 do artigo 63º da CRP” O Estado apoia e fiscaliza, nos termos da lei, a actividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objectivos de solidariedade social consignados, nomeadamente, neste artigo, na alínea b) do n.º 2 do artigo 67.º, no artigo 69.º, na alínea e) do n.º 1 do artigo 70.º e nos artigos 71.º e 72.º”

Ora, não se vislumbra como é que a interpretação feita pelo Tribunal a quo da al.f) do artigo 4º do RCP viola a citada norma constitucional, na medida em que a isenção de custas relativamente às pessoas colectivas como a Ré está, agora, condicionada, por opção do legislador, a que o objecto do litígio se prenda com “as especiais atribuições da pessoa colectiva” ou com “a defesa dos interesses que lhe são especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos da legislação que lhes seja aplicável”, o que não sucede no caso em apreço.

Por conseguinte, o despacho recorrido, ao não isentar a Recorrente do pagamento das custas, não violou as normas invocadas pela recorrente, pelo que deve ser mantido.
Tendo decaído no recurso, as custas são da responsabilidade da recorrente (art.527º nºs 1 e 2 do CPC).

Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal e Secção em julgar improcedente o recurso e confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.


Lisboa, 22 de Março de 2017



CELINA NÓBREGA
PAULA SANTOS

SERGIO ALMEIDA
vencido. Daria provimento ao recurso, pelas razões que enunciei enquanto relator inicial:

Importa ter presente o sentido da isenção concedida pelo art.º 4/1/f do Regulamento das Custas Judiciais. Salvador da Costa, in  Regulamento das Custas Processuais, 5ª ed., Almedina, 2013, pag. 159. refere que esta “É uma isenção de custas restrita, na medida em que só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo respectivo estatuto, ou pela própria lei, que coincidam com o bem comum”.
Como referiu o acórdão da Relação de Guimarães proferido no processo nº 192/14.1TTVRL.G1 (relat. Antero Veiga), "com a isenção pretende-se o estímulo e facilitação na prossecução de fins de interesse público, de tarefas que interessam à comunidade em geral, por entes privados e de forma desinteressada. Como resulta do normativo esta isenção subjetiva apresenta duas caraterísticas peculiares: é limitada e condicionada. Limitada porque não depende apenas da qualidade do sujeito, dependendo ainda dos concretos contornos da ação para a qual se pretende a mesma. Estão abrangidas as ações em que a pessoa coletiva defenda interesses relacionados exclusivamente com as suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável. Estaremos a falar de direitos e/ou obrigações necessárias e decorrentes ao normal atuar da pessoa, tendo em vista alcançar os fins de interesse público em razão dos quais foi erigida. Condicionada, porque pode a final vir a suportar custas, nos termos do nº 5 e 6 do normativo".

É sabido que esta isenção não abrange as acções que não tenham por fim directo a defesa dos interesses que lhe estão especialmente confiados pela lei ou pelos seus estatutos” - Salvador da Costa, op. cit., 160 -, e nem, acrescente-se, os interesses relacionados exclusivamente com as suas especiais atribuições.

Há isenção, pois, apenas em dois casos.

O ponto está em efetuar a interpretação da previsão concernente a estas duas situações, de modo a apurar se são abrangidas apenas as situações em que diretamente esteja em causa aquelas especiais atribuições e interesses, ou se algo mais pode ser abrangido, sob pena de não se atingir o desiderato da norma.

Como exarou o citado acórdão da R. Guimarães: "Uma interpretação estritamente literal, admitindo a inserção apenas quando as ações tenham a ver diretamente com as especiais atribuições ou sejam para defender os interesses especialmente conferidos à pessoa coletiva, não nos parece a mais conforme com os objetivos da concessão da isenção, com a ratio da norma. Contudo, falar-se simplesmente de uma “instrumentalidade”, como bastante, implicará colocar na norma aquilo que o legislador não pretendeu aí colocar. Tratando-se de pessoa coletiva que não distribui lucros, facilmente se encaixaria todo o tipo de ações nos pressupostos necessários à isenção, inutilizando o caráter limitado prescrito na norma. Se o legislador assim o tivesse pretendido, bastaria conceder a isenção subjetiva tout court. Importará caso a caso verificar se o assunto sub judice é “decorrência natural” do atuar da pessoa na prossecução daquelas atribuições e/ou interesses, quer porque, a jusante, decorrentes dessa prossecução; quer porque, a montante, necessário à mesma. Assim, uma festa tendo em vista angariar fundos, para usar o exemplo dado no Ac. RP de 14/1/2014, processo nº 1026/12.7TVPRT.P1, não se encaixará nos pressupostos, conquanto seja instrumental, não é necessária ao objetivo nem decorre da prossecução do mesmo. Uma demanda laboral poderá ou não encaixar-se. Encaixar-se-á uma demanda por exemplo de uma cozinheira de uma instituição que serve refeições gratuitas,  a demanda é decorrência da prossecução do objetivo, a cozinheira foi contratada para o efeito de prosseguir naquele. O caso concretamente analisado no acórdão acima referido, conquanto não decorra da prossecução do objetivo, poderá encaixar-se como demanda necessária à prossecução daquele. Não se encaixarão aquelas que não decorrem da prossecução daquelas atribuições, nem são necessárias à mesma".

Concordamos: um entendimento puramente literal praticamente excluirá, em grande medida, a aplicabilidade desta norma. Senão vejamos: quando é que uma entidade como a recorrente atua em defesa dos interesses que lhe são confiados? Excluído tudo o que anda em derredor do core ou núcleo mais central dos interesses em causa, o que fica? Será que pode litigar à cerca dos programas e metodologias de ensino?

Cremos que existem assuntos que decorrem naturalmente, a montante ou jusante, daqueles interesses, e que são ainda necessários à prossecução dos interesses da entidade particular de solidariedade social. No caso, o que concerne à contratação de professores e às suas instalações. No primeiro poderemos ter o que se prende com os contratos de trabalho dos professores, elementos sem os quais a R. não funciona; o segundo com a defesa do local onde presta a sua atividade (vg uma defesa contra uma ocupação indevida por terceiros das instalações onde são dadas aulas).

É que em ambos a pessoa age ainda necessariamente para a prossecução dos objetivos que justificam a isenção.

O reconhecimento da isenção há de ver-se do resultado da posição de ambas as partes.

Isto acarreta o reconhecimento porventura precário da isenção, dado que mais adiante poder-se-á apurar que aquela situação não se enquadra (vg aquele professor foi contratado para lecionar algo que nada tem a ver com os fins para que foi reconhecida a utilidade à instituição). Nesse caso, terá de suportar afinal as custas. Mas a possibilidade de se concluir adiante que não tem isenção já a lei consagra apertis verbis nos n.º 5 e 6 do referido art.º 4, quando estipula que "5 - Nos casos previstos nas alíneas b), f) e x) do n.º 1 e na alínea b) do n.º 2, a parte isenta é responsável pelo pagamento das custas, nos termos gerais, quando se conclua pela manifesta improcedência do pedido. 6 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, nos casos previstos nas alíneas b), f), g), h), s), t) e x) do n.º 1 e na alínea b) do n.º 2, a parte isenta é responsável, a final, pelos encargos a que deu origem no processo, quando a respetiva pretensão for totalmente vencida", normas estas que são aplicáveis verificados os respetivos pressupostos (o que tem toda a razão de ser, dado que se, por hipótese, a R. empregadora precipita a litigiosidade deixando de cumprir as obrigações a que está obrigada, levando os trabalhadores a demandarem-na, está fora das razões que levaram a lei a admitir a isenção subjetiva, pelo que deve pagar por inteiro as custas a que deu azo).