Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9894/2006-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: CAUÇÃO
EXTINÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I - A prestação de caução corresponde a uma garantia destinada a assegurar o cumprimento de certa obrigação, só deixando de ter lugar a sua função, quando a obrigação se mostre cumprida (ou, por qualquer outra razão deixe de subsistir) ou quando o cumprimento da obrigação estiver assegurado por qualquer outra forma – o que não sucede pelo simples facto daquele que atempadamente a requereu passar a poder recorrer ao processo de execução.
II – Assim, ter sido proferida decisão definitiva na acção principal – confirmando a condenação proferida em 1ª instância – não determina a extinção do incidente de prestação de caução, em que já fora proferida decisão julgando procedente o pedido, por inutilidade superveniente da lide.
(M.J.M)
Decisão Texto Integral:
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Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - «O C I – Q C I H» intentou o presente incidente de prestação de caução contra «R C O F».
Tendo sido proferido despacho que declarou extinto o incidente por inutilidade superveniente do mesmo, desse despacho agravou a requerente, concluindo pela seguinte forma a respectiva alegação de recurso:
1 - O incidente de prestação de caução apenas se torna inútil com a extinção do crédito que a caução se destina a garantir,
2 - Mas não se torna inútil enquanto o crédito perdurar,
3 – O incidente de prestação de caução apenas resultaria inútil se os Tribunais de Recurso, nos recursos ordinários de apelação e de revista, tivessem decidido revogar a condenação da ora agravada, requerida no incidente, e absolver a mesma do pedido, o que não aconteceu, já que julgaram improcedentes ambos os recursos e mantiveram integralmente a decisão da primeira instância e o crédito ajuizado,
3 - Em processo de prestação de caução intentada pela autora na acção, dado que a sentença que condenou a ré-recorrente foi mantida e transitou em julgado, não pode o Tribunal julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide com fundamento no trânsito em julgado dessa sentença condenatória com a manutenção integral do crédito que é causa do pedido de prestação de caução,
4 - A sentença de 12 de Fevereiro de 2005 viola o disposto no nº 3 do artigo 693º e na alínea e) do artigo 287º, 986º, 987º, 988º e 990º, todos do Código de Processo Civil, e o disposto nos artigos 623º a 626º do Código Civil,
5 - Pelo que deve ser revogada e substituída por outra que ordene a apreensão e entrega em penhor à agravante dos bens da agravada que se encontrem no restaurante sito na Rua da Conceição da Glória, 25, em Lisboa, com ordem expressa de arrombamento das portas e/ou janelas de acesso ao mesmo ou a qualquer das suas dependências, caso se encontrem encerradas e que ordene o legal prosseguimento dos autos de incidente de prestação de caução, como é de Justiça!
Não foram apresentadas contra alegações.
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II - Tendo em conta que nos termos dos arts. 684, nº 3, 690, nº 1, e 660, nº 2, todos do CPC o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, a única questão que se coloca no presente agravo é a de se o facto de ter sido proferida decisão definitiva na acção principal – confirmando a condenação proferida em 1ª instância – determina a extinção do incidente de prestação de caução, no estado em que aquele se encontrava, por inutilidade superveniente da lide.
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III - São de salientar as seguintes ocorrências no âmbito do processo:
1 – Nos presentes autos pretendeu a requerente que a requerida fosse condenada a prestar a seu favor caução no valor de € 18.601,24 para garantir o pagamento das quantias que fora condenada a pagar-lhe por sentença proferida em 12-10-2002, nos autos de acção declarativa com processo comum ordinário com o nº 81/99, sentença de que a requerida interpusera recurso, admitido como apelação e com efeito suspensivo.
2 – Em 24-4-03 foi proferida decisão julgando procedente o pedido, sendo determinada a notificação da requerida para em 10 dias oferecer caução idónea, nos termos do estatuído no art. 983, nº 2 do CPC.
3 - Como a requerida não ofereceu caução no aludido prazo de 10 dias, falhadas outras diligências, solicitou a requerente que se diligenciasse pela apreensão e entrega em penhor dos bens que se encontrassem no restaurante da requerida o que foi determinado.
4 - A diligência não chegou a efectivar-se, sendo que por decisão de 24-2-2005, foi, entretanto, declarado extinto por inutilidade superveniente da lide o incidente de caução, uma vez que fora proferida decisão definitiva na acção principal, confirmando a condenação proferida em 1ª instância – despacho recorrido.
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IV - Nos termos do nº 2 do art. 693 do CPC – sendo de considerar a redacção então em vigor, anterior à introduzida pelo dl 38/2003, de 8 de Março – não querendo ou não podendo obter a execução provisória da sentença podia o apelado requerer que o apelante prestasse caução.
A caução consiste em «toda e qualquer garantia que, por lei, decisão judicial ou negócio jurídico, é imposta ou autorizada para assegurar o cumprimento de obrigações eventuais ou de amplitude indeterminada» (1).
É um meio pelo qual se assegura ou garante o cumprimento de uma obrigação (2).
Quando do requerimento inicial do incidente, bem como quando foi proferida a decisão que julgou procedente o pedido e determinou a prestação de caução pela requerida verificava-se o condicionalismo previsto no nº 2 do art. 693 do CPC que permitia à agora agravante requerer a prestação de caução. A prestação de caução constituía uma garantia destinada a assegurar o cumprimento pela requerida (apelante nos autos principais) da obrigação de pagamento das quantias que fora condenada a pagar pela sentença proferida em 12-10-2002 (de que fora interposta apelação com efeito suspensivo).
Ter, entretanto, sido proferida pelo tribunal superior a decisão definitiva (aberta, pois, a possibilidade de ser movida a correspondente execução) motivará a inutilidade da prestação de caução já ordenada?
Se a caução já houvesse sido prestada não se põe em dúvida que perduraria, não se extinguindo com o trânsito em julgado da decisão que fosse proferida pelo tribunal superior – a sua função permanecia enquanto o direito que visava acautelar não estivesse efectivamente protegido por outra forma. Isto, embora a requerente aqui agravante (apelada nos autos principais) pudesse, também, requerer então a execução: por essa simples razão a caução (já prestada) não se extinguiria.
Sendo a finalidade da caução a de assegurar o cumprimento de uma obrigação a sua função só deixaria de se justificar quando o cumprimento da obrigação estivesse efectivamente assegurado por outra garantia ou quando a obrigação se mostrasse extinta (ou, no caso dos autos, se a mesma deixasse de subsistir por via da revogação da condenação proferida no processo principal). O simples facto daquele que a requereu atempadamente poder executar a decisão não faz desaparecer o interesse que ele teria na sua prestação. Se a prestação de caução que houvesse tido lugar na oportunidade devida não seria prejudicada pelo trânsito em julgado da sentença dos autos principais, afigura-se que, igualmente, o pedido formulado e atendido pela decisão já proferida no incidente de caução não poderá ser prejudicado pela mesma situação, mantendo-se o interesse na prestação de caução(3). Saliente-se que até à concretização da penhora poderiam ser alienados bens necessários à satisfação do crédito da agravante.
Conclui-se, pois, que o trânsito em julgado da decisão condenatória no processo principal não tem a virtualidade de inutilizar o incidente de prestação de caução, com decisão já proferida desde 24-6-2003. Proferida aquela decisão só à requerente caberia avaliar do seu interesse em desistir, ou não, da caução requerida e ordenada. É certo que a obrigação a que a agravada está adstrita deixou de ser uma obrigação “eventual” – contudo, sendo-o no momento do requerimento inicial e da decisão que sobre ele versou, mantém-se a razão de ser da “garantia”, uma vez que continua a existir a obrigação, não podendo ser retirado à agravante o direito de fazer uso daquilo que através daquela decisão lhe foi concedido.
A função da caução, judicialmente ordenada, permanece enquanto o direito que ela visa acautelar não estiver efectivamente protegido por outra forma, sendo que não o está pelo simples facto de o requerente da caução já poder fazer uso do processo de execução, dando-lhe início. A prestação de caução corresponde a uma garantia destinada a assegurar o cumprimento de certa obrigação, só deixando de ter lugar a sua função, quando a obrigação se mostrasse cumprida (ou, por qualquer outra razão deixasse de subsistir) ou quando o cumprimento da obrigação estivesse assegurado por qualquer outra forma – o que não sucede pelo simples facto daquele que atempadamente a requereu passar a poder recorrer ao processo de execução (4).
Enquanto o direito da agravante não se mostrar satisfeito não há razão para julgar extinto – por inutilidade superveniente – o incidente de prestação de caução.
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V - Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo, determinando o prosseguimento do incidente processado nestes autos de caução.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Janeiro de 2007
Maria José Mouro
Neto Neves Isabel Canadas
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(1) Menezes Leitão, «Direito das Obrigações», vol. II, pags. 319-320.
(2) Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil Anotado», vol. II, pag. 141.
(3) Ver, a propósito de situação similar, o acórdão da Relação de Lisboa de 2-5-1980, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano V, tomo 3, pag. 155.
(4) Neste sentido, o acórdão da Relação do Porto de 20-1-2005, ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ , proc. 0437022.