Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2565/09.2TBALM-C.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: ESCUSA
PARTICIPAÇÃO CRIMINAL
IMPARCIALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA - ART. 119.º CPC
Decisão: INDEFERIDA
Sumário: A posição que uma parte entenda observar relativamente a decisão do julgador, incluindo a formulação de participação que deu origem a inquérito criminal que corre termos relativamente ao julgador, não poderá, por si só, determinar o deferimento da escusa requerida, com o consequente afastamento para a tramitação do processo onde tal parte tenha intervenção, se nenhuma outra circunstância se denota no sentido de que possa ficar maculada a imparcialidade do julgador relativamente à tramitação e à decisão do processo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: A Sra. Juíza de Direito, “AA”, a exercer funções no Juízo de Família e Menores de Almada – Juiz (…), veio requerer, ao abrigo do estabelecido no artigo 119.º do CPC, seja dispensada de intervir no Processo nº. 2565/09.2TBALM (ação de divórcio) e seus apensos A (inventário) e B (providência cautelar).
Para tanto, invoca a Sra. Juíza que, “BB” – que figura, nas mencionadas ações, na posição de ré, requerida e requerente, respetivamente – participou criminalmente contra si, correndo termos inquérito junto da Procuradoria-Geral Regional de Lisboa – Secção Única, por causa de atos praticados no exercício das suas funções de magistrada judicial no âmbito das mencionadas ações.
Considera a Sra. Juíza que, nestas circunstâncias, existe concreta razão para que seja lançada suspeita sobre a sua imparcialidade na tramitação e decisão de tais causas.
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Vejamos:
Pretende a requerente ser dispensada de intervir nos autos identificados, através do presente pedido de escusa.
Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República proclama que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”. Assim se consagra, como uma das garantias do processo, o princípio do juiz natural ou legal, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e justa.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efetivamente, não se discute se o juiz irá ou não manter a sua imparcialidade, mas, visa-se, antes, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento
(n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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Dos autos e sua tramitação decorre a seguinte factualidade:
1) Em 29-04-2009 foi instaurada ação de divórcio, que deu origem aos autos principais, na qual, em 28-04-2010 veio a ser proferida decisão que decretou o divórcio entre as partes, o autor “CC” e a ré “BB”;
2) Em 19-10-2010, pelo referido autor foi formulado requerimento para se proceder a inventário, que deu origem ao apenso A aos referidos autos, o qual ainda se encontra pendente;
3) Nos autos referidos em 2), a Sra. Juíza proferiu despachos em 25-11-2022, 20-12-2022, 27-01-2023, 07-04-2023, 20-11-2023, 16-01-2024 e 26-02-2024;
4) Em 25-01-2023, “BB” apresentou em juízo requerimento inicial de providência cautelar, dando origem ao apenso B, onde, conforme decisão de 27-01-2023, a Sra. Juíza veio a considerar inepto o requerimento inicial, absolvendo o requerido da instância;
5) Da decisão referida em 4), a requerente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, vindo este a proferir acórdão, datado de 25-05-2023, decidindo “julgar o recurso improcedente, mantendo, com fundamentos diversos, a decisão recorrida”;
6) Em 08-05-2023 foi junta ao apenso A comunicação eletrónica, datada de 02-05-2023, de “BB” endereçada à Sra. Juíza, à Procuradora-Geral da República, ao Diretor Nacional da Polícia Judiciária, à Procuradora-Geral Regional de Lisboa, ao DIAP da Comarca de Lisboa, ao Juiz-Secretário do Conselho Superior da Magistratura, com conhecimento ao mandatário da contraparte, com o assunto: “1. Contraditório/ reclamação referente ao Despacho/ Prolação, com data de 07-04-2023 – com referência CITIUS (…)61 – assinado pela sra funcionária, “AA”, funcionária titular do Processo nº 2565/09.2TBALM-A e Processo nº (…)3/10...”.
7) Corre termos na Procuradoria-Geral Regional de Lisboa – Secção Única inquérito criminal “iniciado com base em denúncia da cidadã “BB””, apresentada contra a Sra. Juíza.
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No caso em apreço, a Sra. Juíza vem referir que uma das partes das causas que identifica participou criminalmente contra si, correndo termos inquérito criminal, por causa de atos praticados no exercício das suas funções de magistrada judicial no âmbito das mencionadas causas.
E, de facto, conforme decorre do email – datado de 02-05-2023– junto aos autos pela mencionada “BB”, a mesma deu conta à Sra. Juíza – e a diversas outras entidades – de que visava participar criminalmente contra a Sra. Juíza, em razão de circunstâncias sobre que discorre ao longo de 73 páginas.
Chegados aqui e anotando e ponderando as razões expendidas pela requerente, louva-se a atitude tomada pela Sra. Juíza encarregue de julgar o processo de inventário que ainda pende (apenso A) – sendo certo que, quer os autos de divórcio, quer os de providência cautelar, já se encontram findos – de manifestar que, perante tal participação criminal, poderá colocar-se em causa a sua imparcialidade.
Contudo, verificando-se que está, única e exclusivamente, em causa a intervenção da Sra. Juíza relativamente ao presente processo, sem qualquer conduta ou comportamento que não advenha do exercício da função jurisdicional e que, esta ocorre - tendo a Sra. Juíza intervenção no processo - pelo menos, desde 2022 – sem que isso tenha suscitado, durante longo tempo de tramitação processual, alguma reação da parte interveniente no processo que deduziu a referida participação criminal, pensamos não existir fundamento para que fique maculada a imparcialidade da Sra. Juíza relativamente à tramitação e à decisão do processo que se encontra pendente.
É isso, aliás, o que transparece do cuidado que foi incutido na redação da pretensão que se ajuíza, formulada pela Sra. Juíza.
Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais em que pode questionar-se sobre a imparcialidade devida ao julgador, o que, em face do referido, entendemos não se patentear no caso.
Conforme se sublinhou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-04-2023 (Pº 16/23.9YFLSB-A, rel. MARIA DO CARMO SILVA DIAS), “as queixas-crime ou mesmo, por exemplo, participações ao CSM, só por si não constituem fundamento bastante de (…) pedido de escusa. Se assim fosse, então estaria descoberto um expediente para remover qualquer juiz e suscitar a questão da sua imparcialidade, assim se perturbando a atividade dos tribunais, dando cobertura ao uso indevido do processo e contornando as regras da competência e o princípio do juiz natural”.
Ou seja: Ainda que se reconheça a delicadeza da situação e a posição menos cómoda e até algo desagradável em que se encontram a Sra. Juíza e a parte queixosa, não se vê em que medida está posta em causa a imparcialidade da Sra. Juíza e que estejamos perante uma situação em que deva ser preterido o princípio do juiz natural (em idêntico sentido, em paralela situação, vd. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17-02-2016, Pº 109/12.8TACNT-A.C1, rel. LUÍS RAMOS).
A posição que uma parte entenda observar relativamente a decisão do julgador, incluindo a formulação de participação que deu origem a inquérito criminal que corre termos relativamente ao julgador, não poderá, por si só, determinar o deferimento da escusa requerida, com o consequente afastamento para a tramitação do processo onde tal parte tenha intervenção, se nenhuma outra circunstância se denota no sentido de que possa ficar maculada a imparcialidade do julgador relativamente à tramitação e à decisão do processo.
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Pelo exposto, desatende-se a pretensão de escusa formulada pela Sra. Juíza de Direito, “AA”.
Sem custas.
Notifique.
Baixem os autos.

Lisboa, 11-03-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente com poderes delegados).