Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8465/06.0TBMTS-C.L1-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
IMPEDIMENTO DE ADVOGADO
PROVA TESTEMUNHAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE/DECISÃO REVOGADA
Sumário: 1. O caso julgado formal consubstancia-se na mera irrevogabilidade do acto, ou decisão judicial, que serve de base a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento e apenas se forma no que se reporta às questões concretamente apreciadas pelo despacho recorrido.

II. O Advogado constituído no processo está impedido de nele depor como testemunha, mesmo depois de substabelecer sem reserva ou de renunciar ao mandato.

III. Este impedimento, não consagrado expressamente na lei, está implícito e decorre dos normativos aplicáveis à prestação de prova testemunhal e aos normativos que regem a relação cliente/advogado (definidos nos artºs 97 e segs. do E.O.A.), incompatíveis entre si e que obstam a que o advogado de uma das partes assuma ao mesmo tempo o papel de testemunha, dessa ou da parte contrária.

IV. Este regime de impedimentos deveria obstar à constituição como advogado no processo, de quem, em representação do exequente, outorgou procuração nos autos a favor de outro advogado, foi o autor das assinaturas apostas no cheque em representação do exequente e do endossante e interveio na relação causal invocada nos autos.

V. Sendo invocado, como fundamento de oposição numa execução para pagamento de quantia titulada por cheque, a irregularidade do endosso e factos integradores do disposto no artº 22 da Lei Uniforme Relativa aos Cheques, deve ser admitido a intervir como testemunha, o seu alegado autor, que à data não era sequer advogado.

SUMÁRIO: (elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:

           
Pela recorrida S. SA, foi interposta em 17/10/06, execução contra AP para pagamento de quantia constante de um cheque, que liquidou, no requerimento executivo, em € 5.231,25.

Pelo recorrente AP foi deduzida oposição à execução, alegando, em síntese que:
-o cheque dado à execução não foi endossado à exequente pelo seu beneficiário inicial;
-a exequente, ao adquirir tal cheque, procedeu conscientemente em detrimento do executado, pois sabia que o mesmo nada devia ao beneficiário inicial;
-o contrato que este último e o executado pretendiam celebrar entre si, em garantia do qual foi emitido o cheque, não chegou a ser celebrado;
-o executado revogou, por isso, o cheque, facto de que deu logo conhecimento ao representante legal da exequente, antes de ter sido feito o endosso.
Indicou como meio de prova de prova o depoimento da exequente, a prestar por AA, aos factos que indicou nesse requerimento.
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A exequente contestou, concluindo pela improcedência da oposição.
Pediu ainda a condenação do executado em multa e em indemnização, por litigar de má fé, ao que o executado respondeu, refutando tal responsabilidade, e acusando a exequente, por sua vez, de litigar de má fé, pelo que pediu a condenação da mesma em multa e em indemnização.           
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Com data de 01/07/2011, pelo executado opoente foi apresentado rol de testemunhas, tendo sido indicado como testemunha, AA e requerida prova pericial para exame grafológico das assinaturas apostas no verso do cheque apresentado à execução, afim de apurar se são estas da autoria de AA, admitido por despacho de 26/09/11, tendo sido deferida a perícia por despacho de 16/12/15.
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Com data de 12/10/17, foi proferido o seguinte despacho:
“Da análise dos autos do processo de execução, verifica-se que a exequente foi patrocinada pelo Exmo. Sr. Dr. AA, encontrando-se junta procuração forense datada de 28 de abril de 2010. Entretanto, por instrumento datado de 9 de setembro de 2015, junto aos autos de execução,na mesma data, o referido advogado substabeleceu, sem reserva, os seus poderes forenses aos advogados Dr. VG e SR. Por outro lado, a contestação à oposição à execução, apresentada em 30 de setembro de 2010, foi igualmente subscrita pelo advogado Dr. AA, que juntou, entretanto, procuração forense com poderes especiais, datada de 25 de maio de 2011, na diligência da tentativa de conciliação, realizada, no âmbito dos presentes autos, em 26 de maio de 2011, e na qual teve intervenção. Finalmente, o aludido substabelecimento também foi junto aos presentes autos, na mesma data.
Ora, constata-se que o executado arrolou como testemunha, no seu requerimento probatório de 1 de julho de 2011, o Exmo. Sr. Dr. AA, então mandatário constituído pela exequente. Salvo melhor entendimento, o referido advogado não pode depor nos presentes autos na qualidade de testemunha, irrelevando que, entretanto, tenha substabelecido, sem reserva, os seus poderes forenses. Com efeito, constituiu jurisprudência e doutrina relativamente consensuais que a prestação de depoimento, nas circunstâncias descritas, seria completa subversão do próprio sistema processual civil, em que o advogado, entre nós, se não pode confundir simultaneamente com a testemunha. Assim, embora inexista preceito legal expresso que estabeleça impedimento a que o advogado, que já interveio no processo como mandatário de uma das partes, preste depoimento testemunhal nesse processo, a inadmissibilidade de tal depoimento decorre não só do princípio da não promiscuidade dos intervenientes processuais, mas também de interesses de ordem pública. Como escreveu Augusto Lopes Cardoso, Do Segredo Profissional na Advocacia, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, pp. 82-83, “[d]everá deixar-se bem claro que é inaceitável
autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja constituído. É que, embora não haja disposição expressa que o proíba, afigura-se-nos que isso seria completa subversão do próprio sistema processual, em que o Advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria outrossim altamente desprestigiante para a Advocacia. Quer isso, pois, dizer que ao Advogado incumbe ponderar e prever, antes de propor a ação, as principais condicionantes do seu decurso. Se o seu depoimento veio a tornar-se necessário, muito mal estruturou o seu trabalho e não pode já emendar a mão. A absoluta necessidade não pode resultar, nesse caso, do modo como foi proposta a ação e antes deve ser aferida objetivamente. Isso também se aplica a outro tipo de situações que na essência não diferem da que analisámos. Referimo-nos a que não será lícito obter dispensa para depor ao Advogado que, tendo iniciado o processo com procuração aí junta, trata de substabelecer depois sem reserva para esse efeito. Seria incompreensível a todas as luzes que ele pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que em antes ocupara. Igual solução merece o caso de a pretensão de depor incidir apenas em apenso da ação principal, ainda que iniciado só depois do substabelecimento (em providência cautelar, embargos, incidente da instância, etc.)” (itálico da nossa autoria).
Pela nossa parte, não vemos razões válidas para nos afastarmos da jurisprudência e doutrina expostas, pelo que se impõe
indeferir agora o depoimento do Exmo. Sr. Dr. A...F...A...P....
Decisão: pelo exposto, não se admite o requerido depoimento testemunhal por parte do Exmo. Sr. Dr. AA.
Notifique-se.”
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Não se conformando com a decisão, dela apelou o opoente AP, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
3. Conclusões
3.1- A decisão recorrida viola o disposto no nº1 do art.620º do Código do Processo Civil (art.672º na versão pregressa do CPC)
3.2- Efectivamente, o rol de testemunhas do Oponente foi admitido e transitou em julgado no ano de 2011.
3.3- O simples facto de uma testemunha ser advogado e de ter sido constituído advogado num processo não constitui impedimento para que o mesmo seja nele ouvido como testemunha.
3.4- Efectivamente, os factos em análise nos presentes autos passaram-se no ano de 2006, tendo a testemunha AA tido intervenção directa nos referidos factos, mas não como advogado, que não era em 2006;
3.5- Só no ano de 2010 é que a testemunha se inscreveu na Ordem dos Advogados como Advogado-Estagiário;
3.6- Só no ano de 2013 é que a testemunha passou a estar inscrita na Ordem dos Advogados como Advogado;
3.7- Tais factos, não estão, por conseguinte, sujeitos a segredo profissional;
3.8- A testemunha nunca invocou o segredo profissional;
3.10- O despacho ora em crise viola, portanto, o disposto no art.417º do Código do Processo Civil (art.519º da versão pregressa do CPC)
3.11- Viola o disposto no art.92º do Estatuto da Ordem dos Advogados,
3.12- Violando também o disposto no art.411º do Código do Processo Civil (anterior art.265º,
nº3)
3.13- Inexiste qualquer norma legal, processual ou de qualquer outra ordem, que permitisse ao Tribunal ter proferido o despacho que proferiu.”

Não constam interpostas contra-alegações de recurso.
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QUESTÕES A DECIDIR.

Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.
Tendo este preceito em mente, as questões a decidir versam sobre a:
a)- formação e alcance do caso julgado formal;
b)- admissibilidade de depoimento, como testemunha, de advogado constituído nos autos pela parte contrária.
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MATÉRIA DE FACTO.

A matéria de facto a considerar, para decisão da presente questão, é a seguinte:

1 Pela recorrida S. SA, foi interposta em 17/10/06, execução contra AP para pagamento de quantia que liquidou no requerimento executivo em € 5.231,25, sendo junta procuração datada de 31/05/2006, outorgada por AA, na qualidade de administrador da recorrida.

2 Nesta execução, veio a exequente juntar nova procuração, datada de 28/04/2010, a favor do Exmº Sr. Dr. AA, advogado estagiário.

3 Com data de 08/06/2010, veio o executado AP deduzir oposição à execução, nele formulando o seguinte requerimento:

Prova:
Requerer depoimento do Administrador Ùnico da Exequente, no período intercorrente entre 30.09.2002 e 19.06.2006, Dr. AA, solteiro, maior, residente na Rua S, em Matosinhos, à matéria alegada nos art.ºs 20, 21, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 47 e 48 desta oposição. (…)”

4 A exequente deduziu contestação à oposição à execução, em 30/09/2010, tendo esta sido subscrita (assinatura electrónica) por AA, Advogado.

5 Com data de 25/05/2011, foi junta, pelo exequente, procuração a estes autos, declarando constituir como seus procuradores “a Sociedade de Advogados A, L e Associados, o Dr. AA e a Drª SA, Advogados Estagiários, (…)” conferindo-lhes “poderes especiais para desistir, confessar e transigir em qualquer acção judicial.”

6 Em 26/05/2011, realizou-se tentativa de conciliação, na qual interveio como mandatário do exequente, o Dr. AA.

7 Com data de 01/07/2011, pelo executado opoente, foi apresentado rol de testemunhas, tendo sido indicado como testemunha, AA -e requerida prova pericial para exame grafológico das assinaturas apostas no verso do cheque apresentado à execução, afim de se apurar se são da autoria de AA.

8 Por despacho proferido em 26/09/2011, foi admitido o rol de testemunhas apresentado pelo recorrente.

9 Em 09/09/2015, foi junto aos autos, substabelecimento sem reserva dos poderes conferidos pela exequente, pelo Dr. AA, a favor do Dr. VG e SR

10 Por despacho proferido em 16 de Dezembro de 2015 foi deferida a requerida perícia limitada ao quesito 1º indicado pelo opoente, ou seja, “Foi AA que apôs a sua rubrica no verso do cheque dado à execução, por baixo do carimbo de S & R, LIMITED?”

11 Com data de 10/12/2017, foi proferida sentença nos autos de que este é apenso, nos seguintes termos:
“As questões essenciais decidendas são as de saber se o endosso do cheque exequendo enferma de algum vício que obste à sua validade e eficácia, bem como se o executado pode opor à exequente os meios de defesa fundados na relação que o mesmo estabeleceu com o beneficiário inicial daquele cheque.

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

Fundamentação de facto

Está provada, consoante decisão anteriormente proferida, a factualidade seguinte:
1. S, Lda instaurou, em 17 de outubro de 2006, execução contra AP, para pagamento da quantia, que liquidou no requerimento executivo, no montante de €5.231,25 (cinco mil duzentos e trinta e um euros e vinte e cinco cêntimos).
2. A exequente alegou, no requerimento executivo, que o executado emitiu o cheque n.º 6431131275, sobre o BPN, no montante de €5.000,00 (cinco mil euros), com data de 1 de Maio de 2006, o qual foi endossado à exequente, sendo que, apresentado por si a pagamento, dentro do prazo legal, foi recusado o pagamento, por falta ou vicio na formação da vontade, não tendo o executado pago a respetiva importância, apesar de notificado para o efeito.
3. A exequente juntou, com o requerimento executivo, cheque com o n.º 6431131275, do Banco H, dele constando o valor de €5.000,00 (cinco mil euros), em algarismos e por extenso, a data de 1 de maio de 2006, e o beneficiário “R., Group
4. Do verso do referido cheque consta escrita autógrafa, por baixo de um carimbo com os dizeres “S R, Limited In United Kingdom Registration Number 05158140”.
5. Após a referida escrita autógrafa, consta um carimbo com os dizeres “A Administração”, por baixo do qual figura escrita autógrafa.
6. Do verso do cheque consta um carimbo com os dizeres “APRES. NA COMPENSAÇÃO 02-05-2006 VAL. REC. CRÉDITO CONTA DO BENEF. Banco T”.
7. Do verso do cheque consta um carimbo com os dizeres “DEVOLVIDA NA COMPENSAÇÃO 03 MAIO 2006 MOTIVO: falta vício na formação da vontade POR MANDATO DO BANCO SACADO BANCO T”.
8. AA foi designado para o cargo de administrador único da exequente para os triénios de 2002 a 2004 e de 2005 a 2007, tendo sido designada outra pessoa para tal cargo, por deliberação de 19 de junho de 2006, para o período compreendido entre Junho de 2006 a Junho de 2009.
9. A escrita autógrafa aposta por baixo do carimbo mencionado em 5) – cinco – é da autoria de AA.
10. Por escrito datado 13 de fevereiro de 2006, denominado “Protocolo «PAPARAZZOZOOM», em cuja última página figuram duas assinaturas, uma da autoria do executado, que figura como segundo outorgante, e outra da autoria de AA, por baixo de um carimbo com os dizeres “S & R, Limited Company Incorporated In United Kingdom Registration Number 05158140”, empresa que figura como primeiro outorgante, declarou-se o seguinte: “Considerando que:
A) É do interesse dos outorgantes a realização, produção e edição de um suplemento temático com o nome/marca «Paparazzo zoom» a ser inserido na publicação mensal da revista Mais Zoom propriedade do segundo outorgante.
B) A marca «Paparazzo zoom» é propriedade da Ribeirian’s, registada junto do INPI – Paris
como Marca Comunitária, entre outras, na classe correspondente as edições gráficas.
C) O suplemento usara o nome comercial de PAPARAZZO ZOOM – Casting / Magazine, da forma que os
outorgantes do presente protocolo acordarem em posterior contrato definitivo.

Cláusula Primeira
1. A Ribeirian’s compromete-se a celebrar um contrato de licença de Utilização da sua marca PAPARAZZO ZOOM com AMP [designação abreviada do segundo outorgante].
2. A Licença terá uma validade mínima de UM ano e máxima de DOIS anos, renováveis de acordo com as cláusulas do contrato a celebrar.
3. AMP pagará a Ribeirian’s pelo Licenciamento um valor de 5.000€ (cinco mil euros) ano, nos primeiros DOIS anos, caso celebre um contrato por DOIS anos.

Cláusula Segunda
O contrato definitivo deverá celebrar-se numa data nunca posterior a 30 de abril do corrente ano de 2006
a)- Ambas as partes devem minutar um acordo de interação de ambos, para anexar ao contrato Licença, em que as intenções de ambas as partes estão de mútuo acordo para investir o know-how para concretizar esta edição gráfica. Estas minutas devem ser em conjunto analisadas, para se encontrar a que mais convém aos interessados anexar ao contrato.
b)- Na data da assinatura do contrato (13 de fevereiro de 2006), AMP entregará à Ribeirian’s um cheque, com data de 1 de maio de 2006, do valor total dos direitos de Licença acordados na cláusula anterior (€5.000,00 – Cinco mil euros).
c)- O primeiro contraente compromete-se a só apresentar o dito cheque a pagamento na data nele inscrita caso, até lá, se concretizem todas as disposições previstas neste documento.

Cláusula Terceira
A Ribeirian’s compromete-se a realizar e produzir um casting nacional, que irá divulgar a marca «Paparazzozoom” e promover a mesma por todo o País, utilizando todos os meios disponíveis ao seu alcance, incluindo spots de rádios locais e nacionais, Suporte de Imprensa cariada Regional e Nacional, bem como também um Canal de TV como Partner, entre outros meios a definir…
1.a)- A Ribeirian’s celebrará um outro contrato com AMP, em complemento do negócio anteriormente descrito nas cláusulas precedentes, onde se compromete a utilizar os serviços deste para a realização desse casting nacional.
a.1)- os serviços a utilizar serão:
SOM
LUZ
CAMIÃO PALCO
a.2)- A Ribeirian’s assume, desde a data de assinatura do presente PROTOCOLO os custos referentes à utilização desses serviços, designadamente:
GASÓLEO
PORTAGENS
CACHET DOS TÉCNICOS E STAFF
ALIMENTAÇÃO E ALOJAMENTO DOS MESMOS
a.3)- O valor do aluguer do SOM, da LUZ e do CAMIÃO PALCO, bem como a percentagem de lucro a cobrar pelo AMP, será determinado em contrato, a celebrar depois de posterior negociação entre as partes.
a.4)- A Ribeirian’s assegura a utilização mínima desses serviços, que corresponderá a acções semanais (1 vez por semana) em, pelo menos, uma cidade por cada distrito de Portugal Continental.

Cláusula Quarta
A Ribeirian’s compromete-se a desenvolver comercialmente, em colaboração com AMP o projeto “SOM NAS PRAIAS DE PORTUGAL”, criado por AMP, que consiste, em termos genéricos, na realização de eventos nas praias de Portugal, a partir do Verão de 2006.
1. A Ribeirian’s compromete-se a promover reuniões para apresentação, análise e negociação do projeto com Marcas Nacionais como a «OLÁ», «RÁDIO POPULAR» ou outras.
2. Os valores a receber pela Ribeirian’s em caso de sucesso nas negociações com as marcas, serão alvo de uma posterior negociação entre AMP e a Ribeirian’s, antes ainda da realização das ditas reuniões com os potenciais interessados.
3. A Ribeirian’s compromete-se a empenhar todo o seu know-how para o bom desenrolar das negociações com os potenciais patrocinadores, e efetiva realização do projeto.

Cláusula Quinta
No ato da assinatura do presente PROTOCOLO, AMP entregará a Ribeirian’s o Cheque n.º 6431131275 do Banco BPN no Valor de CINCO MIL EUROS (5000€), com data de 1 de maio de 2006. Correspondente ao valor a pagar pela utilização da Marca no primeiro ano, conforme expressamente acordado entre as partes”.

11. Por escrito denominado “Procuração” declarou-se o seguinte: “Nós, Company Names UK Limited, Administradora devidamente autorizada e com poderes para o ato, por deliberação emitida em 24 de junho de 2004, concedemos por este meio, em nome e representação da sociedade S., LIMITED«a sociedade» - uma procuração a favor de HR(…), de acordo com os seguintes poderes:
Controlar a sociedade sem qualquer restrição ou limitação, relativamente aos atos de administração simples, assim como em atos diretos de decisões societárias; para executar ou levar a cabo contratos ou atos de qualquer tipo ou descrição, em nome e representação da sociedade, e mais especificamente, mas não limitado aos poderes a seguir concedidos:
Receber ou emprestar dinheiros, com ou sem garantias, comprar todo o tipo de produtos, mercadoria, títulos, stoks, bens móveis ou imóveis, a dinheiro ou a crédito; abrir filiais ou sucursais da sociedade em qualquer parte do mundo; contrair empréstimos; contratar alugueres, leasings; ceder, trocar, entregar, onerar, comprar e vender qualquer bem móvel ou imóvel da sociedade; onerar, receber, e cobrar dinheiros, produtos, ou qualquer outra coisa que possam vir a ser devidas à sociedade, e emitir os respetivos recibos; abrir contas bancárias em nome da sociedade em qualquer banco ou instituição financeira a nível nacional ou internacional, efetuar levantamentos sobre as mesmas; nomear outra pessoa ou pessoas para, conjunta ou individualmente, movimentarem tais contas; estabelecer tais regras para a movimentação das contas; depositar fundos nessas contas, e endossar cheques emitidos em nome da sociedade; comprar ou alugar cofres bancários em toda e qualquer instituição que tenha tal serviço, para o uso da sociedade, e em conformidade com as regras e regulamentos de tal serviço, para o uso da sociedade e, do mesmo modo, ter acesso a cada um e/ou a todos os cofres bancários que estejam em nome da sociedade; receber e emitir letras, notas promissórias, e títulos de dívida; resolver ou submeter a arbitragem ou processo judicial, qualquer controvérsia ou litígio em que a sociedade possa estar envolvida; nomear, delegar e constituir todo o tipo de agentes, advogados, solicitadores e procuradores, para, de forma geral ou específica, no todo ou em parte, delegar os poderes que venha a entender como convenientes; e revogar tais poderes, delegações ou procurações. E pelo presente é decidido que a presente procuração concede ao procurador nomeado acima identificado, os poderes parar comprar ações, quotas ou participações de capital de sociedades já existentes e/ou a constituir, bem como o poder de vender tais quotas, ações ou participações em qualquer companhia em que a sociedade detenha capital no seu todo ou parte, de desempenhar qualquer ato que um Administrador ou Gerente da sociedade, por Lei, poderia executar, de Substabelecer esta Procuração e os seus direitos e poderes acima concedidos, a uma terceira parte, por endosse escrito, e o de destituir qualquer gerente ou diretor da sociedade, desde que com notificação por escrito para a sociedade.
A procuração agora concedida pode ser usada e exercitada pelo procurador HR em qualquer parte do mundo, incluindo país,
colónia, província, município, ou subdivisão política de qualquer país.
A procuração agora concedida será válida até 22 de junho de 2009.”

12. O referido escrito contém, na parte final, várias assinaturas, ilegíveis, e selo do Notário Público de Birmingham, constando do verso “Apostilha (Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961)”, “Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte”, “Este documento público foi assinado por J M G Fea”, “Na qualidade de Notário Público”, “Contém o selo branco e carimbo do Referido Notário Público”, “Em Londres”, “Certificado em 13 de julho de 2004”, “Pelo Secretário Geral de Estado para os Assuntos Externos e Comunidade Britânica, de Sua Majestade”, “Número G462372”, figurando ainda um carimbo e uma assinatura de A. Bantim, “Pelo Secretário de Estado”.

13. Por escrito denominado “Substabelecimento”, datado de 16 de fevereiro de 2006, subscrito por H...A...R...R..., com reconhecimento notarial da assinatura, datado de 16 de fevereiro de 2006, declarou-se o seguinte: “HR(…) substabeleço, com reserva, em Dr. AA(…), os poderes que me foram conferidos por procuração pela sociedade mandante S., Limited outorgada em Cartório no Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte, com Apostilha de 13 de julho de 2004 devidamente traduzida”.

14. O executado enviou carta dirigida a “Ribeirian’s Group, Shoushanian § Ribeirian Holdings” e a AA, “na qualidade de procurador da Ribeirian’s Group, Shoushanian & Ribeirian Holdings”, datada de 27 de abril de 2006, com o seguinte teor: “Exmos. Srs. Em virtude de não se terem ainda cumprido, nem existir a hipótese de serem cumpridas em tempo útil, todas as cláusulas do protocolo assinado a 13 de fevereiro de 2006, entre AP (…) e Ribeirian’s Group, Shoushanian & Ribeirian Holdings (…), na figura de AA (…), nomeadamente, as Cláusulas Terceira e Quarta, e ainda não ter dado entrada nos nossos serviços a Procuração que fornece poderes de representação a AA, conforme combinado telefonicamente, solicitamos que:
a)- Não seja colocado a pagamento o cheque n.º 6431131275, do BPN, datado para 01/05/2006, no valor de 5000 euros e que o mesmo seja devolvido para que, mediante a assinatura de novo contrato, seja substituído por outro com data a definir”.

15. Na sequência da outorga do escrito referido em 10), e no ato em que procedeu à sua assinatura, o executado preencheu, assinou e entregou a AA o cheque acima referido.

16. A escrita autógrafa aposta por baixo do carimbo mencionado em 4) – quatro – é da autoria de Hugo Alexandre Ramalho Ribeiro.
17. HRsubscreveu o escrito referido em 13) para que AAinterviesse na outorga do escrito referido em 10) e recebesse o cheque acima referido.
18. Após a celebração do acordo referido em 10) não foi celebrado qualquer novo acordo entre a empresa “S & R, Limited” e o executado.

Fundamentação de direito.

Os presentes autos reportam-se à defesa oposta à execução para pagamento de quantia certa, fundada em cheque emitido pelo executado.

É relativamente consensual que um cheque completamente preenchido, designadamente quanto ao seu montante e à data de vencimento, pode servir de base à instauração imediata de ação
executiva para pagamento de quantia certa, na medida em que estamos perante documento que importa, por si só, constituição ou reconhecimento, por parte de quem nele apôs a respectiva assinatura, de obrigação pecuniária, cujo montante é determinado. Quer dizer, a lei considera que um cheque, naquelas condições, serve, direta e imediatamente, de prova suficiente da existência de uma obrigação pecuniária, a cargo do subscritor, certa, exigível e líquida, mais concretamente, a obrigação de pagamento da quantia nele aposta, na data do vencimento respetivo. Daí que o portador do cheque, que pretenda dá-lo à execução, esteja apenas onerado com a respectiva apresentação com o requerimento executivo, nada tendo que alegar nem provar em complemento do documento. Esta solução legal decorre, hoje, claramente, do disposto no artigo 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC/2013, que tem sido considerado, na doutrina e jurisprudência, como norma interpretativa do regime pretérito.

Contudo, e como é sabido, a emissão de um título de crédito, como sucede com o cheque, pode ter na sua origem uma relação comummente designada por fundamental, causal ou subjacente, isto é, um outro negócio jurídico – distinto do negócio jurídico unilateral consistente na subscrição daquele título –, celebrado entre os respetivos portador e subscritor. E, quando tal sucede, importa determinar a função então pretendida atribuir por aqueles ao referido título, pois que dela depende, desde logo, os meios de defesa que o subscritor pode opor ao portador. Na verdade, além dos meios de defesa derivados da própria relação dita cambiária, o subscritor do título pode ainda opor ao seu portador aqueles que lhe assistam com base na relação fundamental, mormente tendo em conta a ligação que as partes quiseram estabelecer entre as duas relações, em que a primeira se pode destinar apenas à liquidação da segunda. Neste caso, a medida da responsabilidade do subscritor perante o portador será parametrizada, justamente, pela relação dita causal, pelo que o subscritor demandado na execução pode opor ao portador demandante toda a defesa baseada nessa relação.

Este regime já não vale, porém, quando o subscritor é demandado por portador com quem não estabeleceu qualquer relação fundamental. Agora, os meios de defesa fundados nesta relação, porque alheia ao portador demandante, não lhe podem, em princípio, ser opostos, nos termos gerais de direito, confirmados, de resto, pelo artigo 22.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque. Esta disposição legal exceciona, porém, as situações em que o portador, ao adquirir o cheque, tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor, caso em que este pode opor-lhe os mesmos meios de defesa que lhe assistissem contra o credor inicial, derivados da relação causal mantida com o mesmo.

No caso, o executado, além de invocar irregularidades no endosso do cheque à exequente, pretende valer-se do referido regime excecional, alegando que a exequente, ao adquirir, por endosso, o cheque exequendo, sabia perfeitamente que a quantia por ele titulada não era devida, por aquele, à sociedade que lho endossou.

Ora, e salvo melhor entendimento, o endosso efetuado à exequente não parece enfermar de vício impeditivo da sua validade e eficácia. Com efeito, provou-se que tal endosso foi feito mediante a aposição de assinatura no verso do cheque, da autoria de pessoa física com poderes bastantes para o efeito, conferidos pela sociedade estrangeira beneficiária, através de procuração, a qual também não se vislumbra padecer de qualquer espécie irregularidade que lhe retire validade e eficácia. Não se deteta, pois, que algo possa obstar, no caso, ao exercício, pela exequente, do seu direito de ação contra o executado, fundado no cheque dado à execução.

Da factualidade provada resulta ainda que foi AA, então administrador único da exequente, que recebeu tal cheque e assinou o acordo que esteve na origem da sua emissão e entrega, sendo que se previa em tal acordo, além do mais, a celebração futura, entre a sociedade estrangeira e o executado, de um negócio relativo à utilização de marca comercial detida pela primeira.

Contudo, ficou por demonstrar que: após a entrega do cheque, o executado contactou, por diversas vezes, o representante legal da exequente, para ser celebrado tal contrato definitivo; que nessas ocasiões, AA respondia sempre que não tinha procuração nem instruções da sociedade para celebrar o referido contrato; que o executado, ao aperceber-se que não iria celebrar aquele contrato, comunicou a AA que iria revogar o cheque com justa causa, porque o negócio com a sociedade estrangeira não se tinha realizado e, consequentemente, inexistia causa para pagamento do cheque; que o executado deu conhecimento imediato a AAda revogação do cheque; que em resposta, AA comunicou ao executado que iria endossar o cheque à exequente, pois que assim esta última poderia receber o cheque e o executado teria que o pagar; que AA apresentou-se ao executado na qualidade de representante da sociedade estrangeira e propôs, nessa qualidade, a celebração do acordo que esteve na origem da emissão e entrega do cheque; que AA, ao receber o cheque e ao assiná-lo no verso, por baixo do carimbo da exequente, tinha conhecimento da revogação do cheque e que o contrato definitivo não tinha chegado a ser celebrado; que AA atuou de modo a que a exequente apresentasse o cheque a pagamento e recebesse o respetivo montante, tendo consciência de que o executado ficaria privado de invocar, perante a sociedade estrangeira, a falta de celebração do contrato definitivo, e de evitar o pagamento do cheque.

Ora, era sobre o executado que recaía, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, o ónus da prova da factualidade em questão, pelo que, não o tendo logrado cumprir, a consequência só poderá ser no sentido de que não lhe assiste o direito de opor à exequente a defesa que podia opor à sociedade beneficiária inicial do cheque exequendo, certo que não há como considerar preenchida a citada previsão legal do artigo 22.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, isto é, a consciência do portador, ao adquirir o cheque, de que procedia em detrimento do devedor.

Improcede, por isso, a oposição deduzida à execução.

Os autos não evidenciam a existência de indícios suficientes no sentido de que qualquer uma das partes adotou, com dolo ou negligência grave, algum dos comportamentos processuais tipificados na lei como geradores de responsabilidade por litigância de má fé, certo ainda que estamos perante figura jurídica que assume natureza excecional, face à tutela constitucional do direito de ação e de defesa. Como tal, não se justifica responsabilizar o executado nem a exequente como litigantes de má fé.
Dispositivo
Pelo exposto, julga-se improcedente a presente oposição à execução.
Não se responsabiliza qualquer uma das partes como litigante de má fé.
Custas a cargo do executado, porque vencido.
Registe-se, notifique-se e comunique-se”
*

DO DIREITO.

Alega o recorrente que o despacho em apreço viola o caso julgado, por o tribunal ter proferido despacho de admissão do rol de testemunhas apresentado nos autos e ainda que os factos em causa ocorreram e foram praticados pela referida testemunha, em 2006, data em que este não era ainda advogado, mas antes administrador da exequente, não existindo qualquer impedimento legal a que preste depoimento nos autos, não estando sequer estes factos abrangidos pelo sigilo profissional.

Decidindo

a)- da violação de caso julgado formal.

Entende o recorrente que o despacho recorrido violou o caso julgado formal pois que, por decisão proferida em 26/09/2011, fora já admitido o rol de testemunhas apresentado pelo opoente, onde constava arrolada a referida testemunha.

Dispõe o artº 620 do C.P.C. que “1-As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.”

Assim, o caso julgado enquanto pressuposto processual, conforma um efeito negativo que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão. É o princípio do ne bis in idem, consagrado como garantia fundamental pelo art. 29°, n° 5, da Constituição da República Portuguesa.

O conceito de caso julgado formal refere-se à inimpugnabilidade de uma decisão no âmbito do mesmo processo (efeito conclusivo) e converge com o efeito da exequibilidade da sentença (efeito executivo).

O caso julgado formal consubstancia-se, assim, na mera irrevogabilidade do acto, ou decisão judicial, que serve de base a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, uma inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo processo (Castro Mendes, "Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil", pág. 16.)

Para Damião da Cunha (Caso Julgado Parcial pag 143) os conceitos de «efeito de vinculação intraprocessual» e de «preclusão» - referidos ao âmbito intrínseco da actividade jurisdicional - querem significar que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no procedimento).

Posto isto, é jurisprudência e doutrina unânime que o caso julgado formal apenas se forma no que se reporta às questões concretamente apreciadas. ( a título de exemplo e sobre a mesma questão, vidé o Ac. da Relação do Porto de 30/01/2017 relator Carlos Gil, 881/13.8TYVNG-A.P1)

Não tendo sido indicado no rol, nem que a testemunha em causa fosse advogado (estagiário ou não), nem que fosse a mesma pessoa que a constante da procuração apresentada pela exequente, a questão ora em discussão não foi apreciada nesse despacho, que se limitou a aferir da tempestividade e admissibilidade geral deste rol.

Não existe assim qualquer caso julgado formal nos autos quanto à admissibilidade de depoimento do advogado (ainda que à data da sua indicação estagiário) da exequente (denote-se que nos termos do artº 32 nº2 do C.P.C., na redacção anterior à Lei 41/2013, mesmo em caso de patrocínio obrigatório, os advogados estagiários podiam intervir nos autos, mediante requerimentos em que se não colocassem questões de direito).

Não existindo caso julgado formal sobre esta concreta questão, nada obsta, por essa via, a que posteriormente seja suscitada, ainda que oficiosamente, a inadmissibilidade de prestação de depoimento por advogado constituído nos autos pela exequente.
  
b)- admissibilidade de depoimento, como testemunha, de advogado constituído nos autos pela parte contrária;

A este respeito, insurge-se a recorrente contra a posição defendida no despacho sob recurso, alegando que o simples facto de uma testemunha ser advogado e de ter sido constituído advogado num processo, não constitui impedimento para que o mesmo seja nele ouvido como testemunha, alegando ainda que o indicado como testemunha, não era advogado à data da prática dos factos, só se tendo inscrito na O.A. em 2010, como advogado estagiário e em 2013, como advogado.

Considera, por último, que o despacho recorrido viola o disposto no art.417º do Código do Processo Civil, o art.92º do Estatuto da Ordem dos Advogado e o art.411º do Código do Processo Civil.

Diga-se desde já que, embora não exista norma expressa que consagre expressamente, como impedimento a este depoimento (vg. artºs 495 e 496 do C.P.C. e artºs 82 e 83 do E.O.A.), o facto de o indicado ser, ou ter sido, advogado de uma das partes, a inadmissibilidade deste depoimento tem sido defendida de forma unânime, quer pela própria Ordem dos Advogados, quando solicitada a tal (veja-se Pareceres emitidos quer pelo Conselho Distrital da O.A. do Porto, Pareceres Nº 35/PP/2015-P, quer do Conselho Geral nº E-950, disponíveis para consulta no respectivo site), quer pela doutrina, quer pela jurisprudência.

Assim, conforme referido na decisão recorrida, pelo Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados A...L...C..., em obra intitulada “Do Segredo Profissional na Advocacia”, editada pelo Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, páginas 82 e 83, (1998), a este respeito foi defendido o seguinte:
Deverá deixar-se bem claro que é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja constituído. É que, embora não haja disposição expressa que o proíba, afigura-se-nos que isso seria completa subversão do próprio sistema processual, em que o Advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria outrossim altamente desprestigiante para a Advocacia.
Quer isso, pois, dizer que ao Advogado incumbe ponderar e prever, antes de propor a acção, as principais condicionantes do seu decurso. Se o seu depoimento veio a tornar-se necessário, muito mal estruturou o seu trabalho e não pode já emendar a mão. A absoluta necessidade não pode resultar, nesse caso, do modo como foi proposta a acção e antes deve ser aferida objectivamente. Isso também se aplica a outro tipo de situações que na essência não diferem da que analisámos. Referimo-nos a que não será lícito obter dispensa para depor ao Advogado que, tendo iniciado o processo com procuração aí junta, trata de substabelecer depois sem reserva para esse efeito. Seria incompreensível a todas as luzes que ele pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que em antes ocupara. Igual solução merece o caso de a pretensão de depor incidir apenas em apenso da acção principal, ainda que iniciado só depois do substabelecimento (em providência cautelar, embargos, incidente da instância, etc.).”


A propósito desta mesma situação, já na vigência do EOA aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro, defendeu Orlando Guedes da Costa, no seu “Direito Profissional do Advogado”, Almedina, 3ª edição, 2005, a p. 342: “Cumpre salientar que nunca pode ser autorizado o depoimento de Advogado em processo principal ou em processo apenso, em que esteja ou tenha sido constituído mandatário judicial, mesmo depois de substabelecer sem reserva ou de renunciar ao mandato, pois quem é ou foi participante na administração da Justiça, como decorre do art. 6.º - nº 1 da LOFTJ, em determinado processo, não pode nele ser testemunha, como igualmente não pode o advogado aceitar mandato em processo em que já tenha intervindo em outra qualidade, como impõe o art. 94.º - nº 1 do EOA.”

Na doutrina, refere ainda Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova Testemunhal, Almedina, 2013, págs. 259, que “O que está arredada é a hipótese de o advogado prestar depoimento em processo no qual esteja ainda constituído como advogado.”, parecendo defender a admissibilidade deste depoimento, quando já o não esteja.

Na jurisprudência, tem sido defendida de forma unânime a inadmissibilidade deste depoimento, nomeadamente nos Acs. da Relação do Porto de 07 de fevereiro de 2007, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXII, Tomo I, páginas 205 a 209; da Relação do Porto, de 07 de outubro de 2009, proferido no processo nº 874/08.7TAVCD-A.P1; da Relação do Porto de 30/01/2017 relator Carlos Gil, Proc. nº 881/13.8TYVNG-A.P1; da Relação de Lisboa, de 07 de março de 2013, proferido no processo nº 2042/09.1IDLSB-A.L1-9, disponível para consulta in www.dgsi.pt. (embora proferidos no âmbito penal).

Posto isto, este impedimento, não consagrado expressamente na lei, está implícito e decorre dos normativos aplicáveis à prestação de prova testemunhal e aos normativos que regem a relação cliente/advogado (definidos nos artºs 97 e segs. do referido E.O.A.), incompatíveis entre si e que obstam a que o advogado de uma das partes assuma ao mesmo tempo o papel de testemunha, dessa ou da parte contrária.

Diga-se ainda que a descoberta da verdade material, por si só, não se assume como princípio absoluto reconhecendo o legislador que poderá ceder face a valores em confronto como sucede no caso das testemunhas indicadas nas diversas alíneas do nº1 do artigo 497º do CPC, que podem legitimamente recusar-se a depor.  

Questão diversa é se o mesmo impedimento se aplica aos casos em que o advogado deixou de o ser à data em que este depoimento haveria de ser prestado, por entretanto ter substabelecido os poderes que lhe foram conferidos, ou ter renunciado ao mandato.

Entendemos, conforme o defende igualmente a O.A., nos pareceres acima citados e o defendeu o seu Bastonário, que independentemente de o advogado substabelecer os poderes que lhe foram cometidos ou renunciar ao mandato, continuam válidas as razões que impedem este depoimento, sob pena de ser facilmente contornável este impedimento - bastaria o advogado que pretendesse prestar depoimento, substabelecer os seus poderes, no momento em que houvesse de os prestar.

Por outro lado, dispõe o artigo 83º nº1 do E.O.A., a propósito dos impedimentos dos advogados que estes “diminuem a amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica, tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa ou por inconciliável disponibilidade para a profissão.”

Neste caso, sendo inconciliáveis estas posições de advogado/testemunha, é o exercício da advocacia que deve ceder, incumbindo ao advogado ajuizar, previamente, se deve aceitar o patrocínio de determinada causa.

No entanto, sendo inadmissível a cumulação de posições processuais, advogado e testemunha, não contornável a nosso ver com o substabelecimento de poderes do advogado com vista a este depoimento, situação diversa ocorre nestes autos e que justifica uma outra abordagem.

À data da prática destes factos, não era o indicado como testemunha advogado, nem o era à data da interposição da execução, sendo pelo contrário outorgante da procuração junta aos autos, na qualidade de legal representante do exequente.

É igualmente o alegado autor das assinaturas apostas no cheque, sobre as quais incidiu prova pericial e igualmente autor, por si e na qualidade de representante do exequente e do endossante, dos factos invocados pelo oponente, como integradores do artº 22 da Lei Uniforme Relativa aos Cheques.

Todos estes factos que a sentença considerou não provados, por o oponente não ter logrado efectuar esta prova, são imputados ao indicado como testemunha AA, à data administrador da exequente e, alegadamente, procurador da endossante.

Tais factos deveriam ter obstado à sua constituição no processo como advogado da parte, da qual fora administrador e outorgante da procuração junta aos autos a favor de outro advogado, por se integrar nos impedimentos previstos no artº 83 do respectivo Estatuto e não podem impedir o seu depoimento, sob pena de, facilmente se coarctar o direito à prova por parte do oponente, inviabilizado pelo facto de o imputado autor destes factos, ter-se constituído advogado nos autos.

Por outro lado, não faria qualquer sentido que, sendo admitida a prova pericial a incidir sobre a autoria das assinaturas imputadas ao referido advogado e realizada esta, não fosse este admitido a intervir como testemunha, quer para confirmar, quer para infirmar, quer a imputada autoria, quer as circunstâncias em que tal endosso surgiu.

Trata-se pois de uma circunstância excepcional que, devendo ter obstado à constituição do Sr. Advogado nos autos, não pode, todavia, obstar ao seu depoimento. 
*
 
DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido e, em consequência:
-admite-se a depor como testemunha indicada pelo opoente, AA;
-anulam-se os posteriores actos praticados incluindo a sentença final, com salvaguarda dos depoimentos já prestados nos autos, objecto de gravação.
Sem custas do recurso.



Lisboa 15 de Fevereiro de 2018


                                  
(Cristina Neves)                                  
(Manuel Rodrigues )                                  
(Ana Paula A.A. Carvalho)