Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
475/08.0TAAGH.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Quando o juiz rejeita a acusação por manifestamente infundada considerando que os factos não constituem crime mediante uma interpretação divergente de quem deduziu essa acusação viola o princípio acusatório.
II - Face a este princípio, ao proferir o despacho a que alude o art. 311º, nº 2 CPP , o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituirem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada.
III - Uma opinião divergente, como a manifestada pelo Mmo. Juiz recorrido, apoiada numa análise do contexto em que ocorreram os factos, por muito válida que seja, não assegura o princípio do acusatório, conduzindo a uma manifesta interferência no âmbito das competências da entidade a quem cabe acusar, por quem está incumbido do poder de julgar, pois traduz-se na formulação de um pré-juízo pelo juiz de julgamento sobre o mérito da acusação.
IV - Sendo descritos na acusação factos susceptíveis de ofender a honra e consideração da assistente (diz-se que o arguido a considerou “destemperada, de manipular a filha, de não tratar bem a filha e de a coisificar, e bem assim de ser causadora de conflitos”), não pode afirmar-se de forma inequívoca que os factos que dela constam não constituem crime
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Iº 1. No Processo Comum (Tribunal Singular) nº475/08.0TAAGH, a assistente M…, deduziu acusação, a que aderiu o Ministério Público, contra P…, imputando a este a prática de um crime de injúria, p.p., pelo art.181, do Código Penal.
Remetidos os autos para julgamento, pelo Mmo. Juiz foi proferido despacho de rejeição da acusação, com o seguinte teor:
“...
1. Nos termos do disposto no artigo 311º, do Código de Processo Penal:
nº 2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(..)
nº3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
(…)
d) Se os factos não constituírem crime.
*
Da acusação particular, de fls. 37, imputa a assistente M… ao arguido P… a prática, em autoria material, de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, do Código Penal, porquanto:
"1. Por requerimento datado de 16.07.2008 e junto ao processo de regulação de poder paternal nº 461/05.1TBAGH-B, que corre termos pelo primeiro juízo deste Tribunal, o arguido fez as seguintes afirmações relativamente à assistente e por força de se ter ausentado para Espanha com a filha de ambos:
a) «(...) acredito que até sair uma sentença, não só eu como também a L…, iríamos ter de enfrentar os destemperos da mãe da L… que faria a minha vida literalmente um inferno (...)»
b) «(...) A L… tem sofrido uma manipulação por parte da mãe dela, não é bem tratada por ela e a mãe da L… nunca deixou de coisificar a filha, sempre procurando o conflito».

2. Ou seja, o arguido acusa a assistente de destemperada, de manipular a filha, de não tratar bem a filha e de a coisificar, e bem assim de ser causadora de conflitos.
3. Tais factos são uma afronta à honra, dignidade e consideração que são devidas à assistente.
4. O arguido teve o nítido propósito de ofender a honra, a dignidade e consideração que são devidas à assistente.
5. Ao fazê-lo quis e conseguiu causar uma profunda humilhação à assistente, sem qualquer justificação, bem como atingi-la na sua honra, dignidade e consideração.
6. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o intuito conseguido de ofender a assistente na sua honra, dignidade e consideração, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, sem nada ter feito para a evitar."

II. Dispõe o artigo 181, nº1, do Código Penal, que "quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido ( ..) ".
Ora, injúria, em termos penais, "é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém" sendo o bem jurídico lesado o da chamada honra subjectiva, ou seja, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal (vd. Leal Henriques e Simas Santos, in, "O Código Penal de 1982", 2º vol.).
A lei não exige como elemento do tipo criminal um dano ou uma lesão efectiva da honra e da consideração. Basta, para o efeito, o perigo de que aquele dano possa verificar-se. Trata-se, portanto, de um crime de perigo.
Ora, toda esta apreciação deve ser efectuada tendo por base o contexto onde se manifestaram as declarações imputadas ao agente.
De facto, uma mesma palavra ou conjunto de palavras pode ter um significado ou um significado completamente diferente consoante estejamos perante um contexto ou perante um outro contexto diferente.
No caso em análise, estamos perante declarações constantes de peças processuais proferidas num processo de regulação do exercício do poder paternal.
Em processos desta natureza o clima moral vivenciado pelos progenitores é, não raras vezes, muito intenso e conflituoso. Este é um desses casos, em que ambos os progenitores se dão mal e ambos querem ter a filha à sua guarda.
Este é, também, um daqueles processos em que o relacionamento dos pais assenta numa relação de conflito mal resolvida (ou não resolvida de todo).
Expressões como aquela que a assistente imputa ao arguido são expressões que todos os dias ouvimos e lemos nos processos que passam pelas nossas mãos e nas conferências que diariamente realizamos.
Importa, pois, saber integrá-las devidamente, sob pena de cada processo de regulação das responsabilidades parentais dar origem a dois processos crime (por dois serem os progenitores que se acusam mutuamente).
As expressões utilizadas, apesar da sua carga negativa, no contexto em que foram proferidas são, ainda, socialmente aceitáveis, não bulindo com as honra e a dignidade do seu destinatário, pois quem as ler ou ouvir deve fazer a competente ressalva dos ânimos exaltados pelo melindre da questão (os "direitos" sobre um filho; isto, independentemente do acerto da perspectiva adoptada sobre a questão em apreço).
Por tudo isto, entendemos que os factos em análise não constituem a prática de um crime de injúria ou de qualquer outro, impondo-se a rejeição da acusação particular.
….”.

2. Desta decisão recorre o Ministério Público, motivando o recurso com as seguintes conclusões:
2.1 Nos autos supra referidos, por decisão datada de 4 de Maio de 2010, constante de fls. 65-68, o tribunal a quo julgou manifestamente infundada, "ao abrigo do disposto no art.311, n°2, al. a) e n°3, al. d), do CPP”, a acusação deduzida pela assistente e pelo Ministério Público, porquanto, em seu entender, "os factos em análise não constituem a prática de um crime de injúria ou de qualquer outro".
2.2 Considera o tribunal a quo que as declarações do arguido escritas no âmbito de um processo de regulação do poder paternal são socialmente aceitáveis "não bulindo com a honra e a dignidade do seu destinatário, pois quem as ler ou ouvir deve fazer a competente ressalva dos ânimos exaltados pelo melindre da questão".
2.3 É desta decisão que se recorre, porquanto entendemos que o escrito dirigido ao tribunal pelo arguido para dar uma informação sobre uma decisão própria e não para requerer qualquer providência que carecesse de convencer o julgador de qualquer facto, formula juízos e atribui comportamentos à assistente que são atentatórios da consideração devida a qualquer mãe.
2.4 Acresce que a actividade cognitiva do julgador, nesta fase, não pode radicar em eventuais opiniões na apreciação que fizer de eventuais comportamentos reiterados noutros processos, mas aferir se os factos narrados são típicos do ilícito.
2.5 Na acusação em apreço descrevem-se com suficiência os factos constitutivos do crime imputado ao arguido, (escrito dirigido ao tribunal referindo que a assistente é destemperada, manipula a filha, não trata bem a filha, coisifica a filha), ainda que não indique correctamente a qualificação jurídica dos mesmos que correspondem ao crime de difamação e não ao crime de injúria, erro que o tribunal a quo tem o poder dever de corrigir.
2.6 Tais são indícios objectivos suficientes da verificação dos factos e bastantes para submeter o arguido a julgamento.
2.7 Os indícios do elemento subjectivo decorrem da simples análise externa do circunstancialismo que rodeou a acção injustificada do arguido, por operação lógica, induzindo a convicção necessária da realidade, à falta de uma confissão do autor dos factos ou de outros elementos factuais a ter em conta.
2.8 Não foi possível o interrogatório do arguido, contudo este conformou-se com a acusação, não requereu a abertura de instrução, sendo que só em julgamento se poderá conhecer o mérito sobre todos os factos e provas.
2.9 O despacho recorrido traduz um pré-julgamento, na medida em que ignorando a prova oferecida se exime à observação e discussão da mesma em audiência de julgamento.
2.10 As provas que o arguido queira produzir para rebater a acusação poderão oportunamente ser arroladas para o julgamento.
2.11 Ao decidir como o fez, o despacho recorrido violou as seguintes disposições: art.s180, n°s1 e 2 e 182, do Código Penal, e o art.311, n°2, a) e n°3, d), do Código de Processo Penal.
3. Não foi apresentada resposta, tendo o recurso sido admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-geral Adjunto, pronunciou-se pelo provimento do recurso.
5. Após os vistos legais, realizou-se a conferência.
6. O objecto do recurso, reconduz-se à questão de saber se estamos perante acusação manifestamente infundada.
*     *     *
IIº 1. A acusação, como refere o Prof. Germano Marques da Silva[1], é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, é o pressuposto indispensável da fase de julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento.
De acordo, com o nº3, do art.283, do CPP, a acusação contém, sob pena de nulidade, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o que se impõe por força do princípio do acusatório e como forma de assegurar ao arguido todas as garantias de defesa (art.32, nº1, da Constituição da República Portuguesa).
No caso, remetido o processo para julgamento, sem ter havido instrução, o juiz despachou no sentido de rejeitar a acusação, considerando-a manifestamente infundada (art.311, nº2, al.a), por entender “… que os factos em análise não constituem a prática de um crime de injúria ou de qualquer outro…”, fundamento que preenche a previsão da al.d, do nº3, daquele art.311.
Como é sabido, o nosso modelo processual penal vigente desde 1987 estrutura-se no princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, (estrutura acusatória mitigada pelo princípio da acusação, segundo artigo 2, nº2 ponto 4 da Lei 43/86 de 26 de Setembro, Lei de Autorização legislativa em matéria de processo penal), um dos seus traços estruturais radica exactamente na distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e se for caso disso sustenta uma acusação e uma outra entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação.
A reforma de 1998, introduzida pela Lei nº59/98 de 25Ago., veio efectuar algumas alterações que permitiram reforçar a clareza e a inequivocidade do modelo pretendido para o processo penal, nomeadamente explicitando as funções dos vários sujeitos processuais, afastando várias dúvidas e flexões jurisprudenciais, levando inclusive à caducidade do Assento do STJ nº4/93[2].
Nesse sentido, a Lei nº59/98, aditou ao art.311, o nº3, com o seguinte teor:
“…
3 — Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
…”.

Impediu-se, deste modo, entre outras situações, que o juiz quando profere o despacho a que se refere o artigo 311, tenha um papel equivalente ao sujeito processual “Ministério Público” fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida, explicitando, de modo claro e taxativo, os quatro motivos que podem levar à conclusão de se estar perante acusação manifestamente infundada.
No caso em apreço está em causa a al.c, para cuja verificação, o tribunal recorrido, analisando os factos descritos na acusação, considerou:
“….
De facto, uma mesma palavra ou conjunto de palavras pode ter um significado ou um significado completamente diferente consoante estejamos perante um contexto ou perante um outro contexto diferente.

As expressões utilizadas, apesar da sua carga negativa, no contexto em que foram proferidas são, ainda, socialmente aceitáveis, não bulindo com as honra e a dignidade do seu destinatário, pois quem as ler ou ouvir deve fazer a competente ressalva dos ânimos exaltados pelo melindre da questão (os "direitos" sobre um filho; isto, independentemente do acerto da perspectiva adoptada sobre a questão em apreço).
Por tudo isto, entendemos que os factos em análise não constituem a prática de um crime …”.

O Mmo. Juiz não diz que as expressões constantes da acusação como tendo sido proferidas pelo arguido, não possam constituir crime, mas antes que “…no contexto em que foram proferidas são, ainda, socialmente aceitáveis…”.
Ou seja, o Mmo. Juiz faz uma interpretação divergente de quem deduziu acusação, sobre os factos imputados e que resultam do inquérito, deste modo violando o princípio do acusatório.
Face a este princípio, nesta fase, o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituirem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada.
Uma opinião divergente, como a manifestada pelo Mmo. Juiz recorrido, apoiada numa análise do contexto em que ocorreram os factos, por muito válida que seja, não assegura o princípio do acusatório, conduzindo a uma manifesta interferência no âmbito das competências da entidade a quem cabe acusar, por quem está incumbido do poder de julgar, pois traduz-se na formulação de um pré-juízo pelo juiz de julgamento sobre o mérito da acusação.
Sendo descritos na acusação factos susceptíveis de ofender a honra e consideração da assistente (diz-se que o arguido a considerou “destemperada, de manipular a filha, de não tratar bem a filha e de a coisificar, e bem assim de ser causadora de conflitos”), não pode afirmar-se de forma inequívoca que os factos que dela constam não constituem crime[3].
A acusação pode vir a improceder, mas esse será um juízo que o tribunal fará na fase própria, o julgamento, devendo o Mmo Juiz, neste momento, limitar-se a marcar data para o efeito, pois face ao texto da acusação não é possível afirmar que os factos nela descritos não constituem crime[4].
Assim, o despacho recorrido deve ser substituído por outro que não considere a acusação manifestamente infundada e que designe dia, hora e local para audiência (arts.311 e 312, do C.P.P.), se não se verificarem outras circunstâncias que o impeçam.
*     *     *

IIIº DECISÃO:
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, acordam em dar provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que dê seguimento aos termos do processo.
Sem tributação.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2010

Vieira Lamim
Ricardo Cardoso
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[1] Curso de Processo Penal, III, pág.113.
[2] O S.T.J. por acórdão de 17Fev.93, publicado no DR nº72, Iª S, de 26Mar.93, fixou a seguinte jurisprudência: “A alínea a, do nº2, do art.311, do CPP inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária”.
[3] Como refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed., pág.790) “…o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação…”.
[4] Como decidiu o Ac. da Rel. Lisboa de 25Nov.09 (Pº nº 742/08.2GCMFR.S1.L1, 3ªSecção, Relator Telo Lucas, sumário acessível em www.pgdl.pt):
 “I. A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na al.d) do nº3 do artº 311º do CPP, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime.
II. Esse pressuposto não se verifica nos casos em que o juiz, no despacho saneador, fazendo um juízo sobre a relevância criminal dos factos, escorado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, opta por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, outra, ou outras, seriam possíveis. Ou seja: a previsão da al.d) do nº3 do artº 311º não pode valer para os casos em que só o entendimento doutrinal ou jurisprudencial adoptado, quando outro diverso se poderia colocar, sustentou a não qualificação dos factos como penalmente relevantes.
…”.
No mesmo sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 25Mar.10 (Relator Mouraz Lopes, acessível em www.dgsi.pt) “… Só quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la”.