Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8847/2003-1
Relator: ANA GRÁCIO
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
PENHORA
VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário: I – Não pode ser penhorado um veículo automóvel quando exista sobre ele reserva de propriedade, devidamente registada anteriormente, em nome do exequente, pois a nomeação de tal bem à penhora não inculca renúncia tácita à vantagem derivada daquela cláusula e também não basta declaração expressa de renúncia em requerimento apresentado na execução.
II – Assim, há que notificar o exequente, titular da reserva de propriedade, para documentar nos autos o cancelamento da inscrição registral, afim de prosseguir a execução quanto a esse veículo.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

1 - Tecnicrédito, S.A. (actualmente denominada Banco Mais, S.A.) instaurou, em 30-01-2001, acção executiva baseada na sentença proferida nos autos de acção declarativa de condenação, com processo sumário que correram termos sob o nº 1407/02 da 1ª Secção do 3º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, contra A…, a fim de haver dele a quantia de 1.100.220$00, acrescida de juros e do imposto de selo sobre os juros, tendo indicado para penhora, além do mais, o veículo automóvel… “que pode ser encontrado junto à residência do executado a quem pertence”.

2 – Tendo a Conservatória do Registo Automóvel enviado informação sobre a situação registral do referido veículo, em que consta a existência de uma reserva de propriedade a favor da exequente, o Mmº Juiz despachou no sentido de ser ordenada a sua notificação “para, em 10 dias, declarar se renuncia à reserva de propriedade e esclarecer a que título a mesma foi registada”.

3 – A exequente apresentou requerimento nos seguintes termos:
“(...)reafirma nos autos que o veículo que nomeou à penhora pertence ao executado, como logo o declarou na petição da presente execução, esclarecendo que a referida reserva de propriedade foi constituída precisamente à garantia do pagamento pelo executado à exequente no contrato de mútuo referido nos autos de acção declarativa apensa, declarando de qualquer forma para todos os efeitos que renuncia à reserva de propriedade que sobre o referido veículo se mostra registado”.

4 – Depois de a exequente ter esclarecido, na sequência de notificação para o efeito, que “...evidentemente a referida reserva de propriedade foi registada no único título admissível, ou seja numa base declaração de compra e venda com reserva de propriedade, em impresso próprio, subscrito pelo executado e pela exequente”, foi então proferido, em 14-03-2001, o seguinte despacho:
“Atenta a declaração de renúncia de fls. 17, notifique a Autora para, em 10 dias, demonstrar nos autos que fez cancelar a reserva de propriedade”.

5 - Inconformada com esta decisão, dela interpôs a exequente o presente recurso de agravo, tendo, nas suas alegações oportunamente apresentadas, formulado as seguintes conclusões:

“1. Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matrícula 71-39-BD, penhora que ainda não foi ordenada pelo Senhor Juiz a quo.
2. Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome da ora recorrente que é necessário que esta requeira e demonstre o cancelamento da dita reserva, não tendo, aliás, o Senhor Juiz a quo competência para proceder a tal notificação à exequente, ora recorrente
3. O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo de harmonia com o disposto no artigo 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.
4. No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, se deve agir de acordo com o que se prescreve no artigo 119º do Código do Registo Predial caso a penhora já tenha sido realizada.
5. Tendo a ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide – o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo -; tendo a exequente renunciado ao “domínio” sobre o bem – pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido -; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no artigo 119º do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que no despacho recorrido, se errou e decidiu incorrectamente.
6. No despacho recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu e ao claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto no artigo 888º do Código de Processo Civil, violou também o disposto nos artigos 5º, nº1, alínea b) e 29º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, artigos 7º e 119º do Código do Registo Predial e artigos 408º, 409º, nº1, 601º e 879º, alínea a), todos do Código Civil”.
Termina, pedindo a revogação do despacho recorrido.

6 – Não foram produzidas contra-alegações, tendo sido proferido despacho de sustentação.

Colhidos os vistos legais, e tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

II – AS QUESTÕES DO RECURSO

Como resulta do disposto nos artigos 684.º nº3 e 690º nº1 do CPC e vem sendo orientação da jurisprudência, o objecto do recurso é balizado pelas conclusões, sem embargo de haver outras questões que sejam de conhecimento oficioso – o que não acontece no presente caso.

Assim, a questão decidenda mostra-se circunscrita à seguinte questão essencial:

- tendo a exequente nomeado à penhora um veículo automóvel sobre o qual é titular de reserva de propriedade e tendo renunciado expressamente a tal reserva, é ou não legal a sua notificação para demonstrar nos autos o cancelamento dessa inscrição registral?

III – APRECIAÇÃO

Os elementos pertinentes à decisão deste recurso já ficaram expostos na exposição constante do relatório deste acórdão e, assim, a eles nos reportaremos.
Analisemos, então, a questão supra enunciada.

1 - Como refere o art 409º nº1 do CC, “nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”.
Assim, o efeito translativo do contrato fica subordinado a uma condição suspensiva ou a um termo inicial (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol I, pag 376; Luís Lima Pinheiro, “A Cláusula de Reserva de Propriedade”, pag 93 e Ac. do STJ de 1-2-95, BMJ 444, pag 609), o que quer dizer que a transmissão do direito de propriedade fica suspensa até à verificação de um evento futuro e incerto, como é o caso do pagamento do preço ou de um evento futuro e certo, designadamente de um termo inicial.
No caso sob análise, encontramos uma situação algo anómala pois que, tendo a reserva de propriedade sido pensada pelo legislador para contratos de compra e venda, a condição suspensiva em causa foi estabelecida para garantia de cumprimento de prestações pecuniárias decorrentes de um contrato de mútuo.
Sendo a hipoteca o adequado direito real de garantia incidente sobre um veículo automóvel para salvaguarda do cumprimento das prestações pecuniárias decorrentes do contrato de mútuo instrumental em relação ao pagamento do preço correspondente ao contrato de compra e venda (art 686º nº1 do CC), a verdade é que as partes optaram pela reserva de propriedade do veículo automóvel não a favor do vendedor, mas da mutuante (naturalmente por o primeiro haver recebido da segunda o respectivo preço).
No entanto, ambos os contratos, de compra e venda e de financiamento, podem considerar-se interdependentes, mais não constituindo o de financiamento que uma extensão do primeiro (Luís Lima Pinheiro, ob. cit., pags 33 e 34).
E, por isso, também neste caso se poderá chamar à colação o disposto nos arts 408º nº1 e 409º nº1 do CC, ou seja, a regra – consagrada pelo primeiro - de que a transferência dos direitos reais, maxime do direito de propriedade, se dá por mero efeito do contrato admite a excepção – prevista no segundo – de que, convencionalmente, se pode diferir tal efeito translativo, através do denominado pactum reservati dominii para o alienante, até ao cumprimento total ou parcial das obrigações – tradicionalmente, o pagamento do preço – ou até à verificação de qualquer outro evento – in casu, o pagamento das prestações objecto do financiamento acordado (cfr Ac. desta Relação de 11-12-97, CJ Ano XXII, Tomo 5, pag 120).
O que quer dizer que os efeitos legais da reserva de propriedade em causa, constituída a favor da mutuante ou financiadora, são exactamente os mesmos que derivariam de esta haver sido constituída a favor do vendedor do veículo automóvel nomeado à penhora.

2 - Sendo aplicáveis ao registo de automóveis, com as devidas adaptações, as disposições relativas ao registo predial - na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas na lei especial - (art 29º do Dec Lei 54/75, de 12-2) -, temos que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o direito o define (art 7º do Cod Registo Predial - CRP).
Assim, perante a referida presunção não ilidida, impõe-se considerar assente que o veículo automóvel nomeado à penhora na acção executiva foi adquirido pelo executado, mas com reserva de propriedade a favor da exequente, ou seja, que a agravante é titular do direito de propriedade sobre tal veículo automóvel, sendo o executado mero detentor em nome alheio.
E deter a posse do veículo não é, naturalmente, a mesma coisa que ser seu efectivo dono e proprietário, já que o executado não pode dispor dele livremente, alienando-o, por exemplo.
Mesmo na hipótese de prescrição do crédito do preço, nos casos de venda com reserva de propriedade, pode o vendedor, não obstante a prescrição, exigir a restituição da coisa quando o preço não seja pago – cfr art 304º nº3 do CC.
Ou seja, enquanto a reserva de propriedade a favor da exequente se mantiver, o executado é apenas mero detentor do veículo automóvel, sempre sujeito a que, se não pagar o devido, a dona efectiva do mesmo possa exigir a sua restituição, mesmo através do recurso à sua apreensão.

3 - A agravante entende que, tendo renunciado expressamente à reserva de propriedade, não lhe é exigível que proceda ao cancelamento da mesma para que seja efectuada a penhora.
Sem razão, contudo.
Como já foi referido, enquanto o registo de reserva se mantiver, a sua eficácia subsiste até ao cumprimento da obrigação, nos termos do citado art 490º do CC, mantendo-se o veículo na propriedade da exequente (cfr citado art 7º do CRP), que não pode dar à execução bens que lhe pertencem e de cuja propriedade não abdicou, pois que pelas dívidas do executado apenas respondem os seus bens ou os de terceiro afectos ao cumprimento da obrigação (cfr arts 601º do CC e 821º do CPC).
Ora, o executado não tem aqui a posição de terceiro e a exequente deu à penhora um bem que é seu, pois que instaurou execução sendo titular de registo de reserva de propriedade que não pretende cancelar.
Por outro lado, afigura-se-nos desadequado chamar à colação a disposição do art 119º do CRP, já que, no caso concreto, não existem dúvidas quanto à propriedade do veículo dado à execução, existindo o conhecimento exacto e sem controvérsia da titularidade do direito de propriedade sobre tal veículo: ele é propriedade da exequente.
Ora, esta circunstância, só por si, implica a conclusão da inexistência de fundamento legal, por absolutamente inútil, para que se ordenasse o cumprimento do disposto no nº1 do citado art 119º, cuja razão de ser visou solucionar a desactualização dos factos inscritos no registo para evitar o não prosseguimento das acções executivas por o bem penhorado estar indevidamente registado a favor de pessoa diversa do executado.
Também o disposto nos arts 888º do CPC e 824º nº2 do CC não tem a virtualidade de fundar a pretensão da agravante.
Se não, vejamos.
Refere o primeiro dos referidos normativos que, após o pagamento do preço devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam nos termos do nº2 do art 824º do CC, entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho.
Por outro lado, conforme resulta do segundo dos aludidos normativos, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente do registo.
Ora, esquece a exequente, ora agravante, que tendo a reserva de propriedade, direito real de gozo, registo anterior à penhora pretendida, não caduca com a venda judicial do veículo, nos termos do citado art 824º nº2 do CC, ao contrário do defendido nas conclusões de recurso.
Por isso, ainda que efectuada a penhora e realizada a venda do veículo automóvel, nunca poderia o tribunal, à luz do disposto no art 888º do CPC, ordenar o cancelamento da inscrição relativa à reserva de propriedade, tendo o adquirente de suportar aquele ónus.
Por isso, estando registada a reserva de propriedade sobre o veículo nomeado à penhora, a favor da exequente, não pode a execução prosseguir com a penhora e subsequente venda desse veículo, sem que aquela cancele o registo da reserva e comprove esse cancelamento com a junção ao processo da respectiva nota registral.
É certo que a exequente declarou expressamente renunciar a tal reserva de propriedade, mas tal declaração não possui qualquer relevância quando, afinal, aquela se recusa a proceder em conformidade cancelando o registo.
E isto porque, sem que seja cancelado o respectivo registo, estaríamos perante uma situação que não pode ser aceite: continuando a exequente a ser juridicamente a proprietária do veículo, a penhora deste seria pura e simplesmente um meio de coagir o executado ao pagamento extrajudicial para poder reaver novamente aquele bem.
E, se não houvesse pagamento extrajudicial e a execução prosseguisse para a venda, o adquirente iria comprar um veículo que, afinal, não é propriedade do executado e que, continuando registado a favor da exequente face à subsistente cláusula de reserva de propriedade, esta última poderia facilmente reivindicar.
Acresce que o CPC não permite a penhora de bens adquiridos com reserva de propriedade, permitindo, sim, a penhora de uma expectativa de aquisição: quem comprar, adquire essa expectativa que só passará a incidir sobre o próprio bem se a aquisição se consumar (cfr art 860º-A do CPC).
Neste quadro, ao invés do que a agravante entende, não basta renunciar expressamente à reserva de propriedade sobre o veículo automóvel dado à penhora, porque o que está em causa é o facto de o prosseguimento da acção executiva, com a penhora do veículo, depender do cancelamento daquele direito real de gozo nos serviços do registo automóvel por sua única diligência.
A circunstância de a reserva de propriedade sobre o veículo haver sido constituída com vista à garantia do direito de crédito da agravante derivado do contrato de mútuo não pode relevar no sentido do êxito da pretensão daquela agravante porque essa, não obstante se tratar de um direito real de gozo, é uma das suas funções em qualquer caso.
“...III - Não pode o tribunal permitir que prossiga uma execução em termos tais que, pela sua inacção, ele contribua para dar tutela a uma situação em que a aparência é desconforme à realidade: vender como bem do executado um bem sobre o qual o exequente mantém um registo que o tribunal não pode mandar cancelar e que obsta a que o adquirente adquira a propriedade.
IV - Desrespeitar-se-ia, assim, em grau elevado o princípio da confiança que num Estado de Direito pressupõe que os tribunais não são conscientemente coniventes com situações lesivas dos interesses daqueles que a eles recorrem de boa fé.
V - O tribunal não pode consentir aquilo que seria uma fraude à Lei (artigo 280º do Código Civil): proceder- se à alienação de veículo propriedade da entidade mutuante como se ela o pudesse fazer por dispor de uma propriedade resolúvel que lhe impõe a venda no caso de não pagamento pelo devedor fiduciante.
VI - Com efeito, permitindo-se o prosseguimento da execução estaria a permitir-se instrumentalizar o processo executivo para a realização coerciva de um direito real de garantia que a nossa Lei não reconhece: tal é o caso da alienação fiduciária em garantia” - Sumário do Acórdão desta Relação de 1-12-20022, relatado pelo Exmº Juiz Desembargador Salazar Casanova e disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf.
Concluindo: A penhora de veículo automóvel não pode ser efectuada quando exista sobre ele reserva de propriedade, devidamente registada anteriormente, em nome do exequente, pelo que, verificando-se essa circunstância, há que notificar o exequente, seu titular, para demonstrar nos autos o cancelamento da inscrição registral, afim de prosseguir a execução quanto a esse veículo.
Vd, neste sentido, Acs. desta Relação de 12-01-99, 21-02-2002, 11-04-2002,18-04-2002, 20-04-2002, 15-10-2002, 05-12-2002, 16-01-2003 e 20-03-2003 disponíveis em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf.
E foi isso o que ocorreu, no caso concreto, na medida em que o Mmº Juiz proferiu despacho no sentido de que a agravante deveria proceder ao cancelamento da reserva e comprovar nos autos o cancelamento daquele registo.
É evidente que o conteúdo do referido despacho, ao invés do que a agravante entende na sua conclusão 2ª, se inscreve na competência funcional de quem o proferiu (arts 265º, 279º nº1 parte final e 466º nº1 do CPC).
Assim, ao invés do que a agravante entendeu, não infringiu o despacho recorrido qualquer das normas por ela invocados.

IV – DECISÃO

Nesta conformidade, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao agravo, mantendo-se integralmente o despacho recorrido.

Custas pela agravante.

Lisboa, 13 de Janeiro de 2004.
Ana Grácio
Lopes Bento
Adriano Morais