Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6664/08.0TCLRS.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) O abuso de direito pressupõe a existência de um direito (subjectivo ou mero poder legal) e o excesso no seu exercício: utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de interesse que exorbita do seu fim ou do contexto em que deve ser exercido.
II) O abuso de direito implica que o exercício abusivo ocorra em termos que ofendam clamorosamente a justiça.
III) A confiança na conduta de outrem é tutelada pela ordem jurídica nomeadamente pelo instituto do abuso de direito.
IV) A conduta do Autor ao demandar o Réu para lhe pagar a contrapartida acordada entre ambos pela utilização de um armazém, quando havia concordado em que esse pagamento fosse efectuado por terceiro, constitui abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprio, improcedendo por isso a pretensão.
(AAC)
Decisão Texto Parcial:Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa

    MC… demandou TD…, pedindo que fosse decretada a resolução do contrato promessa de arrendamento e a condenação do réu a pagar-lhe as contrapartidas pela ocupação do armazém, já vencidas, no valor de    € 16.000,00, restituir-lhe o prédio, no estado em que se encontrava quando foi ocupado, pagar os juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde a data da citação e até efectivo pagamento e ainda nos juros, a título de sanção pecuniária, à taxa de 5%, ao ano, a contar da data em que a sentença de condenação transitar em julgado e até efectivo pagamento da indemnização.

   Alegou ser dono e legítimo possuidor do armazém identificado pela letra “J”, sito na Estrada Nacional nº …-H, B…, M….

Por contrato-promessa de arrendamento celebrado, em 20/2/2005, para começar a vigorar, em 1/3/2005, o autor prometeu dar de arrendamento o armazém ao réu.

O contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, automaticamente renovável, tendo sido convencionada uma retribuição mensal, pela ocupação do armazém, de € 500,00, pagável até ao 1º dia útil do mês a que respeitasse, montante esse que corresponderia à renda mensal, do contrato definitivo.

O réu passou a ocupar o armazém, como “oficina de artesanato”, logo no dia 1/3/2005, pagando a retribuição respectiva, até ao dia 31/1/2006, inclusive.

Deixou de efectuar o pagamento das retribuições desde 1/2/2006, até hoje, não obstante interpelado, várias vezes para o fazer.

Encontra-se em dívida, à data da propositura da acção no montante de € 16.000,00, sendo que a falta de pagamento da contrapartida devida acarreta a resolução do contrato-promessa em questão, com a consequente entrega do imóvel.

Na contestação, o réu concluiu pela intervenção provocada de seu pai – JH… – e pela sua absolvição do pedido.

Impugnou o alegado pelo autor sustentando, em suma, que foi quem assinou o contrato-promessa, em 20/2/2005, tendo-o feito a pedido de seu pai, por conta e no interesse deste.

Nunca ocupou ou utilizou o armazém, nunca pagou qualquer retribuição ao autor e jamais foi interpelado para o fazer.

Era o seu pai quem pagava a retribuição e utilizava/ocupava o armazém.

Foi por isso, falta de pagamento da retribuição, que o autor e o seu pai celebraram, em 27/1/2007, o acordo de pagamento da dívida.

O autor não só tinha pleno conhecimento destes factos como acordou com o pai do réu no sentido de ser o réu a apor a sua assinatura no contrato-promessa.

Replicou o autor, impugnando o alegado pelo réu, insurgindo-se contra a intervenção principal provocada de JH… (pai do réu), concluindo como na p.i.

Foi indeferida a intervenção principal provocada.

Após julgamento foi prolatada sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decretou a resolução do contrato-promessa de arrendamento, condenou o réu a restituir ao autor o imóvel no estado em que se encontrava e absolveu o réu no mais.

Apelou o autor formulando as conclusões que se transcrevem:

1ª. O Tribunal a quo não retira consequências de o réu ter outorgado o contrato-promessa de arrendamento.

2ª. A fazer escola esta decisão, se, pai (a testemunha JH…) e o filho (o réu) combinarem que será o filho a outorgar um determinado contrato, nenhuma consequência poderá ser assacada ao filho (o réu), que bastará afirmar (como o faz expressamente na contestação) que o fez por conta e no interesse daquele.

3ª. Ora, salvo melhor opinião, a outorga do contrato-promessa de arrendamento pelo réu, por conta e no interesse do pai, apenas lhe poderá conferir o direito de regresso das quantias que vier a liquidar por conta do referido contrato.

4ª. A alegação de que outorgou o contrato por conta e no interesse do pai, não afasta os direitos e obrigações a que o réu se vinculou com a outorga do referido contrato e configura um manifesto abuso do direito.

5ª. Assim, salvo melhor opinião, esta decisão do tribunal a quo, violou os mais elementares princípios do direito e, nomeadamente, o princípio da confiança.

6ª. O Tribunal a quo violou ainda, as normas constantes dos arts. 227, 334 e 405 CC.

7ª. Deverá ser dada como não provada a matéria constante das alíneas I, J e K, com as demais consequências legais.

8ª. Por um lado, a referida matéria foi dada como provada com base no depoimento do pai do réu e não consolidada com qualquer outro elemento de prova.

9ª. Por outro lado, porque não decorre das regras de experiência comum que se o autor tivesse conhecimento que o pai do réu tinha sido declarado insolvente, que aceitaria que a retribuição mensal devida pela ocupação do armazém fosse paga pelo pai do réu.

10ª. Por último, e fazendo referência ao depoimento do pai do réu acima transcrito, nunca o Tribunal a quo o poderia considerar credível e coerente, tanto mais que afirma que o contrato-promessa de arrendamento serviu, única e exclusivamente, para celebrar os contratos com a EDP e os SMAS, e existe no processo uma carta de

outra entidade (a I…), dirigida ao réu e para a morada do armazém, que descredibiliza totalmente o depoimento do pai do réu.

11ª. Assim, deve a sentença ser revogada e substituída por outra que condene o recorrido no pagamento ao recorrente da quantia peticionada.

Não foram deduzidas contra-alegações. 

Colhidos os vistos, cabe decidir.

São estes os factos que a 1ª instância deu como provados:

A – Por contrato-promessa de arrendamento celebrado, em 20/2/2005, o autor prometeu dar de arrendamento ao réu, o armazém identificado pela letra “J”, sito na Estrada Nacional nº … H, B…, M….

B – O contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, automaticamente renovável, com início, em 1 de Março de 2005.

C – Tendo sido convencionada a retribuição mensal pela ocupação do armazém de € 500,00.

D – Tal quantia corresponderia à renda devida quando fosse celebrado o contrato de arrendamento.

E – O montante de € 500,00 devidos pela ocupação do armazém referido em A) seria paga até ao primeiro dia útil do mês anterior a que dissesse respeito.

 F – A retribuição que se venceu no dia 1/2/2006, bem como as que se venceram posteriormente, não foram pagas.

G – O réu assinou o contrato referido em A), a pedido de seu pai, JH….

H – O réu não ocupou ou utilizou o armazém referido em A).

I – O facto referido em G) mereceu o acordo do autor.

J – Em consequência, o autor concordou que o pai do réu é que utilizava o armazém referido em A).

K – O autor concordou que a retribuição mensal devida pela ocupação do armazém fosse paga pelo pai do réu.

       Atentas as conclusões da apelante que delimitam, como é regra, o objecto do recurso – arts. 684/3 e 685-B CPC – as questões que cabe decidir consistem em saber se há lugar à alteração da decisão de facto (I, J e K) e se há lugar à condenação do réu no pagamento ao autor das quantias peticionadas a título de retribuição, juros e sanção legal pecuniária compulsória.

Vejamos, então:

a) Questão da modificabilidade da matéria de facto

    O Tribunal da Relação pode alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto se do processo constarem todos os elementos

de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 685-A, a decisão com base neles proferida – art. 712 a) CPC.

    Importa desde já referir que a garantia do duplo grau de jurisdição, no que concerne à matéria de facto, não desvirtua, nem subverte, o princípio da liberdade de julgamento, ou seja, o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – art. 655 CPC.

    No entanto, esta liberdade de julgamento não se traduz num poder arbitrário do juiz, encontra-se vinculada a uma análise crítica das provas, bem como à especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção – art. 653 CPC.

     Por isso, os acrescidos poderes do Tribunal da Relação sobre a modificabilidade da matéria de facto, em resultado da gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas em julgamento, não atentam contra a liberdade de julgamento do juiz da 1ª instância, permitindo apenas sindicar a correcção da análise das provas, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência, prevenindo o erro do julgador e corrigindo-o, se for caso disso.(…)

b) Pagamento ao autor das quantias peticionadas – rendas, juros e sanção legal pecuniária compulsória

Pretende o apelante a condenação do réu nas quantias por ele peticionadas relativas às rendas não pagas, juros de mora e juros a título de sanção legal compulsória.

Não obstante se ter apurado que a outorga do contrato-promessa de arrendamento teve lugar entre autor e réu, certo é que

também se apurou que quem ocupava o armazém e o utilizava para a realização de trabalhos de serralharia artística era o pai do réu.

A assinatura do contrato por parte do réu deveu-se ao pedido de seu pai, com a anuência do autor.

Apurado também ficou que o autor e o pai do réu acordaram que o pagamento das rendas devidas pela respectiva utilização/ocupação do armazém recairia não sobre o réu mas sim sobre o seu pai.

Destarte, nenhuma responsabilidade pode ser assacada ao réu pelo não cumprimento da obrigação de pagamento das rendas, sob pena de abuso do direito não por parte do apelado, como pretende o apelante mas, ao invés, por parte deste último, na modalidade de venire contra factum proprium.

Na verdade, como é comummente reconhecido, os princípios consagrados na lei relativos à segurança da vida jurídica e da certeza do direito não podem impor-se com sacrifício das elementares exigências do justo.

  A boa-fé é um princípio subjacente aos contratos, quer na sua negociação (art. 227 CC), integração (239 CC), alteração (art. 437 CC) e cumprimento (art. 762 CC), sendo certo que, se estes forem violados de modo manifesto, podem vir a tornar ilegítimo o exercício do direito assegurado contratualmente – art. 334 CC.

A boa-fé está ligada a ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança no cumprimento dos negócios jurídicos e impõe às partes, quer nas negociações preliminares, quer na

formação das cláusulas definitivas, quer no cumprimento das obrigações, que ajam sem dolo e sem embuste.

O abuso do direito pressupõe que, no exercício do direito, a parte aja com excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito – art. 334 CC.

Para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade; no respeitante ao fim social e económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei.

O abuso do direito pressupõe a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto onde ele deve ser exercido – cfr. Castanheira Neves, “Questão de Facto, Questão de Direito”, I-513 e sgs., Cunha de Sá, “Abuso do Direito”, Lisboa, 1973-451 e sgs., A. Varela, “Abuso do Direito”, Rio, 1982 e CC Anot., vol. I, 3ª ed. - art. 334 CC, Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, 3ª ed. – 6.

O titular do direito invocado há-de propor-se exercê-lo em termos clamorosamente ofensivos da justiça.

O abuso de direito tem todas as consequências de um acto ilegítimo.

O princípio da confiança, como ensinava Baptista Machado, é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo, não podendo a ordem jurídica deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem; poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens; esse poder confiar é logo condição básica da própria possibilidade da comunicação dirigida ao entendimento, ao consenso e à cooperação, logo, da paz jurídica.

Toda a conduta, todo o agir ou interagir comunicativo, além de carrear uma pretensão de verdade ou de autenticidade (de fidelidade à própria identidade pessoal), desperta nos outros expectativas quanto à futura conduta do agente, pois todo o agir comunicativo implica uma autovinculação (cf. Obra Dispersa, vol. I, págs. 352 e 353). 

   São quatro os pressupostos da protecção de confiança, ao abrigo da figura venire contra factum proprium: 1 – Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé da própria pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2 – Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação necessários; 3 – Um investimento de confiança, traduzido o facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa clara injustiça; 4 – Uma imputação de confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de modo algum

recondutível – Meneses Cordeiro, in Ver. Ordem Advogados, ano 58, Julho de 1998 – 964.

Uma das funções essenciais do direito é, também, a de assegurar expectativas.

A tutela das expectativas das pessoas é essencial a uma ordenação que pretenda ter como efeito a estabilidade e a previsibilidade das acções.

A confiança é um poderoso meio de redução de complexidade social, limitando a quantidade e a variedade de informação que tem de ser elaborada pela pessoa na sua vida social, e desempenhando uma função de desoneração da formação de expectativas.

No venire contra factum proprium deparamos com uma relação especial entre o agente o confiante, sendo a especial configuração dessa relação (com uma conduta que agora se pretende

contrariar) que, por definição, leva à proibição do comportamento contraditório.

Para estarmos perante uma hipótese de venire contra factum proprium – e não apenas de qualquer outra forma de tutela da confiança -, terá de se poder afirmar a contrariedade directa entre o anterior e o actual comportamento.

Será o caso, designadamente, quando a confiança foi dirigida a uma determinada situação jurídica - por exemplo, à validade ou eficácia de uma vinculação negocial ou à sua não invocação - ou a uma conduta futura do agente (uma realização de uma prestação,

celebração de um contrato), que vem a ser contrariada pela sua posterior atitude.

Para que haja abuso do direito, é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito – A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 6ª ed., 516.

A violação do princípio da confiança, revela normalmente um comportamento com que, razoavelmente, não se contava face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou - venire contra factum proprium – que se reconduz à expressão legal “manifesto excesso”  - cfr. Ac. RP de 16/12/2009, relator Filipe Caroço, in www.dgsi.pt.

In casu, apurado ficou que o réu assinou um contrato-promessa de arrendamento, a pedido de seu pai, relativo a um armazém cuja utilização/ocupação era feita por este.

Fê-lo com o conhecimento a anuência do senhorio/autor que aceitou celebrar o contrato nestas condições, tendo o autor acordado com o pai do réu que as rendas/armazém seriam suportadas por este último.

Face a estes factos o autor ao ter demandado o réu agiu cm abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

Assim, falece a sua pretensão.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente confirma-se a sentença.

Custas pelo apelante.

Lisboa, 14 de Novembro de 2013

(Carla Mendes)

(Octávia Viegas)

(Rui da Ponte Gomes)

Decisão Texto Integral: