Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5/08.3TMLSB.L1-2
Relator: GABRIELA CUNHA RODRIGUES
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – O regime uniforme da Convenção de Bruxelas de 1924 alude a danos de perda ou avaria causados às mercadorias (artigos 3.º, n.ºs 5 e 6, 4.º, n.ºs 1, 2, proémio, 3 e 4, e 7.º) ou que lhes digam respeito (artigos 3.º, n.º 8, e 4.º, n.º 5), abrangendo os casos de entrega tardia, os quais podem desde logo ser reconduzidos à preterição pelo transportador do seu dever de proceder de modo apropriado e diligente ao transporte (artigo 3.º, n.º 2).
II – Para que a Ré demonstrasse a diligência do armador por si contratado, prevista no artigo 4.º, n.º 1, da Convenção de Bruxelas de 1924, não era imperativa a demonstração das concretas avarias da máquina principal do navio.
III – As duas avarias no motor principal do navio e a sanação das mesmas não foram marcadas pela falta de diligência do armador subcontratado pela Ré, sendo que o tempo de reparação do motor revelou-se perfeitamente compatível com as vicissitudes associadas à procura e à montagem dos componentes de motores marítimos em portos cuja escala foi forçada/imprevista e estão localizados fora do circuito logístico tradicional.
IV – No âmbito da litigância de má-fé, a condenação em multa não apresenta diferenças de regime relativamente à indemnização peticionada pelas partes, designadamente no que concerne ao  princípio do contraditório plasmado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, que determina que seja observada uma estrutura dialética, exceto nos casos de manifesta desnecessidade.
V – A circunstância de não se ter dado como provada uma versão factual não é  suficiente para fundar a condenação da parte como litigante de má-fé, sem outros elementos claros e concisos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório

1. Peninsular – B..., Ltd. interpôs recurso de apelação da sentença proferida na ação intentada contra T..., Lda., a qual julgou improcedente a ação.
2. Peninsular – B..., Ltd. intentou contra T..., Lda. ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, na qual formulou o pedido de condenação da Ré no pagamento de todos os danos que sofreu ou venha a sofrer como consequência dos factos alegados e cujo valor calculou, provisoriamente, na importância de 573. 164,25 €, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, a contar desde a data da citação até efetivo pagamento, a calcular na sentença final e na posterior execução desta, à taxa legal aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais.
Alegou, para tal, que:
- Celebrou com a Ré um contrato nos termos do qual esta se obrigou a efetuar as operações necessárias para que os veículos e equipamentos adquiridos em Portugal pela Autora fossem transportados por via marítima para Angola, mais concretamente que a Ré executasse em seu nome todas as formalidades necessárias ao processo de exportação em Portugal dos bens em apreço (nomeadamente, formalidades alfandegárias) e efetuasse ainda o transporte dos mesmos desde Leixões até ao porto de Luanda, devendo aqui entregá-los à Autora;
- A mercadoria a transportar foi embarcada pela Ré no dia 15 de agosto de 2006, tendo sido emitidos 18 conhecimentos de embarque e esta comprometeu-se a efetuar a entrega dos bens deslocados dentro do prazo de 15 dias a contar da sua expedição;
- Pelos serviços contratados, pagou à Ré a quantia global de $ 97 956 USD;
- A mercadoria em apreço deveria ter sido entregue em meados de setembro de 2006, sendo essa a data que a Autora contava para recebê-la;
- Por motivos desconhecidos, mas imputáveis à Ré, os equipamentos apenas chegaram ao porto de Luanda, começaram a ser desembarcados e foram colocados à disposição da Autora a partir de finais do mês de janeiro de 2007, ou seja, muito para além da data devida;
- A entrega tardia da mercadoria, a qual se destinava a ser utilizada em diversas empreitadas que estavam em curso em Angola, implicaram o aluguer de equipamentos de substituição desde meados de setembro de 2006 até janeiro de 2007, por forma a que a Autora conseguisse honrar os compromissos e prazos assumidos para com os donos das obras, mantivesse o seu pessoal em atividade, concorresse a mais empreitadas ou aceitasse outras obras –, o que representou uma despesa diária de 5 072,25 € e global de 573 164,25 €;
- A Autora, mesmo com o aluguer dos bens de substituição, acabou por deixar de cumprir obrigações com terceiros relativamente à execução das obras contratadas, sendo que tal facto poderá determinar a sua responsabilidade, a qual ainda não é possível computar.
3. A Ré apresentou contestação, na qual produziu a seguinte argumentação:
- Confirmou ser uma empresa transitária que a Autora contratou para tratar de todas as operações para o transporte por via marítima de Leixões para Luanda dos equipamentos descritos nos documentos juntos com a petição inicial;
- Aduziu que tais bens foram entregues ao agente de navegação I..., Lda. – já que o mesmo tinha o primeiro navio a apresentar-se com destino a Luanda a carregar em Portugal – e que o contrato correspondentemente celebrado ficou sujeito ao regime preconizado pela Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimentos, assinada em Bruxelas a 25 de Agosto de 1924 (designada abreviadamente por Convenção de Bruxelas);
- Precisou que o tempo de viagem entre Leixões e Luanda é de 25 dias;
- Excecionou a caducidade do direito de ação da Autora ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 6, da Convenção de Bruxelas, aplicável por força do artigo 15.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 255/99, de 7.7, porquanto a mercadoria ficou boa para despacho em Luanda no dia 9.10.2006 e a ação foi intentada muito para além do prazo de um ano a que se refere o primeiro inciso legal citado;
- Adiantou que nos primeiros dias de janeiro de 2007 (no máximo até dia 7 desse mês) todas as mercadorias já tinham sido entregues aos destinatários, pelo que ainda assim teria caducado o direito de ação da Autora, já que a ação foi intentada no dia 14 de janeiro de 2008;
- Excecionou a prescrição do crédito da Autora por se mostrar ultrapassado o prazo a que se refere o artigo 16.º do D.L. n.º 255/99;
- Excecionou a compensação do alegado crédito na petição inicial com aqueloutro que a Ré detém sobre a Autora por conta dos 32 fretes com origem em Leça da Palmeira e destino a Luanda que ainda não foram pagos e cifram-se na quantia global de 218.974,10 €, acrescida dos juros de mora vencidos no montante de 26 308,33 €;
- Excecionou a ilegitimidade da Autora para demandar, caso a venda das mercadorias transportadas tenha sido sujeita ao Incoterm tipo CIF;
- Excecionou o limite da sua responsabilidade nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 5, da Convenção de Bruxelas, fixando-a no montante máximo de 4200 libras esterlinas;
- Excecionou a exclusão da sua responsabilidade porquanto o alegado atraso na entrega da mercadoria ficou a dever-se ao estado de inavegabilidade do navio transportador, mostrando-se assim preenchida a previsão do artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, da Convenção de Bruxelas;
- Invocou que jamais convencionou com a Autora qualquer prazo de transporte, que aquela sabe bem que as deslocações por via marítima para Angola chegam a demorar meses e as mercadorias a aguardar outro tanto estacionadas no cais de Luanda antes de serem levantadas e que caso soubesse que havia uma dilação para a entrega da carga teria feito um seguro que previsse tal eventualidade ou, pura e simplesmente, não teria celebrado qualquer negócio com a Autora;
- Impugnou que a Autora tenha alugado material ou efetuado qualquer obra nas quais tenha usado máquinas como as transportadas;
- Refutou o custo diário dos alugueres alegadamente efetuados bem como a existência de pessoal contratado ou obras em curso à espera da mercadoria transportada e que esta apenas foi entregue à Autora em janeiro de 2007;
- Alegou a insuficiência factual que está na base da dedução do pedido genérico.
Requereu a intervenção acessória da I..., Lda. por ter sido com esta que a Ré, por sua conta e ordem, celebrou os contratos de transporte marítimo das mercadorias ajuizadas.
Terminou pedindo a procedência das exceções articuladas e a absolvição da Ré da instância ou do pedido, conforme aquelas sejam dilatórias ou perentórias, a improcedência da ação e consequente absolvição da Ré do pedido e a intervenção acessória da I..., Lda..
4. A Autora replicou contrapondo que o negócio dos autos é um contrato misto de expedição e de transporte, tendo a Ré recorrido a um terceiro para efetuar a deslocação por via marítima da mercadoria, sendo que esta apenas foi entregue à Autora em diferentes datas, a partir de finais do mês de janeiro de 2007, razão pela qual não decorreu o prazo a que se refere o artigo 3.º, n.º 6, da Convenção de Bruxelas, já que a ação foi intentada no dia 14 de janeiro de 2008.
Acrescentou que não tem aplicação ao caso o prazo de prescrição mencionado no artigo 16.º do DL n.º 255/99, pois as partes apenas convencionaram a efetivação de um único contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias.
Sem prescindir, aduziu que antes e após a entrega das mercadorias, a Autora efetuou diversas reclamações do incumprimento pela Ré do contrato de transporte, o que determinou a suspensão do prazo de prescrição, o qual assim permaneceu já que a demandada nunca comunicou à demandante que não reconhecia qualquer responsabilidade da sua parte, para além de que não se encontra integralmente pago o preço do transporte.
Afirmou ainda que o prazo de caducidade a que se refere o artigo 3.º, n.º 6, da Convenção de Bruxelas reporta-se apenas aos casos de perdas e danos da mercadoria, no decurso do transporte, e não abrange a responsabilidade por cumprimento defeituoso do contrato, pelo que o direito da Autora está sujeito ao prazo de prescrição de 20 anos.
Esclareceu que, em face da mora na entrega dos bens transportados, a Autora interpelou a Ré pretendendo saber a localização daqueles bem como a data em que os receberia, sendo que os representantes da demandada nunca souberam indicar o local exato da carga e iam fazendo sucessivas promessas quanto ao momento da sua entrega.
Asseverou que a Ré terá demonstrado compreensão pelos problemas relatados, admitindo a existência do atraso e dos danos que este estava a causar à Autora e prometeu repará-la, facto que levou os representantes desta a acreditar que a sua representada seria compensada pelos prejuízos sofridos, sem necessidade de recurso aos tribunais.
Concluiu que a caducidade excecionada não pode operar porquanto a Ré convenceu a Autora da desnecessidade de recurso à ação judicial, valendo nesta sede o disposto nos artigos 331.º, n.º 2 (impedimento da caducidade por reconhecimento do direito pela contraparte), e 334.º (abuso do direito na modalidade venire contra factum proprium), ambos do Código Civil.
Ripostou que, à luz da relação material controvertida – incumprimento pela Ré de um contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias celebrado com a Autora, a quem aquela faturou o frete correspondente –, a demandante tem legitimidade para figurar como parte na presente ação.
Sustentou que o limite indemnizatório a que se refere o artigo 4.º, n.º 5, da Convenção de Bruxelas não se aplica às situações – como a dos autos – de cumprimento defeituoso do serviço de transporte convencionado (mora na entrega da mercadoria) entre as partes, sendo que em todo o caso a Autora deu a conhecer à Ré os concretos bens a transportar e era facilmente determinável o respetivo valor comercial.
Opôs a exceção do não cumprimento do contrato relativamente a parte dos montantes que a Ré pretende compensar nos autos, dado que os mesmos referem-se ao frete do transporte ajuizado, o qual foi cumprido defeituosamente, e, sendo assim, a Autora não está obrigada a pagá-los, pois a Ré não a compensou dos prejuízos sofridos em consequência da mora do serviço prestado. Ademais, o crédito a compensar não é exigível, razão pela qual não deve ser admitido pelo Tribunal.
Esclareceu que, sem prejuízo da sua inexigibilidade, o valor das faturas juntas pela Ré aos autos não é de 218 974,14 €, mas sim 168 608,67 €, e que o mesmo não contempla uma nota de crédito de 330 €, emitida em 26.9.2006. Acrescentou que para pagamento de tais faturas foram emitidas diversas letras, das quais consta como sacadora a Ré, no valor global de 123 304,20 €, as quais têm vindo a ser reformadas até à presente data, encontrando-se atualmente por pagar a quantia de 79 312 €, sendo que a Autora cessou o respetivo pagamento em 31.12.2007.
Finalmente, nada opôs à requerida intervenção da I..., Lda..
5. A Ré treplicou que cumpriu o contrato ajuizado, pois não foi acordada nem estipulada entre as partes qualquer data para a entrega das mercadorias transportadas, tanto mais que no transporte marítimo apenas se podem dar estimativas (que no caso foi de 25 dias) e na situação particular do porto de Luanda os navios chegam a estar 30 a 60 dias para acostar ao cais.
Argumentou ainda que a aceitação de letras à Ré traduz o reconhecimento pela Autora das dívidas que as mesmas titulam, bem como a assunção de todos os encargos ou despesas decorrentes da emissão de tais títulos, os quais sofreram um incremento de 84 272,12 € desde a contestação e, por isso, também devem ser considerados para efeitos de compensação.
Arguiu a litigância de má-fé da Autora, porquanto a mesma alegou na réplica que deixou de proceder a quaisquer pagamentos no dia 31.12.2007 e no dia 24.1.2008, MaP... remeteu um cheque seu à Ré no montante de 12 196 €, justamente para solver as contas da Autora.
Terminou pedindo, além do mais, a improcedência da exceção de não cumprimento articulada na réplica e a condenação da Autora como litigante de má-fé.
6. A Autora ripostou que não ampliou a causa de pedir na réplica, razão pela qual não é admissível a tréplica apresentada pela Ré.
Negou litigar com má-fé e que o pagamento efetuado em 24.1.2008 traduziu-se apenas numa outra amortização parcial, a somar às demais que foram alegadas na réplica. Contrapôs que a Ré é que litiga com má-fé, pois deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, tendo ainda efetuado um uso reprovável dos meios processuais.
Terminou pugnando pela inadmissibilidade da tréplica na parte não referente à litigância de má-fé, na improcedência do pedido de condenação da Autora como litigante de má-fé e na condenação da Ré como litigante de má-fé em multa de pelo menos 15 UC e indemnização a favor da Autora não inferior a 12 500 €.
7. A Ré retorquiu que a Autora não podia responder à tréplica, pelo que devia ser desentranhada a resposta àquele articulado da demandada. Mais pediu que a Autora fosse convidada para juntar a resposta ao pedido de condenação como litigante de má-fé que não respondesse à tréplica.
8. Foi proferido despacho que admitiu a intervenção acessória provocada da I..., Lda. e determinou a sua citação para contestar a ação com o estatuto de assistente.
9. Regularmente citada, a interveniente acessória I..., Lda. apresentou a sua defesa.
Contestou que não é e nunca foi o transportador nem tem nem explora navios, atuando apenas como agente de navegação em nome, por conta e ordem dos armadores que representa, pelo que carece de legitimidade, mesmo como chamada, para os termos da presente ação.
Excecionou ainda a limitação da sua responsabilidade e a caducidade do direito de ação, atenta a disciplina fixada pela Convenção de Bruxelas e o Decreto-Lei n.º 352/86, de 21.10.
Terminou pugnando pelo indeferimento do chamamento ou, caso assim não se entenda, pela declaração da ilegitimidade da Interveniente e consequente absolvição.
10. Procedeu-se ao saneamento dos autos, tendo sido julgada improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade processual da Autora.
11. Em sede de condensação do processo, fixou-se a matéria de facto assente e a seleção da base instrutória, sem que tenha havido qualquer reclamação.
12. Foram apresentados os requerimentos probatórios e, uma vez instruídos os autos, teve lugar a audiência final, a qual decorreu com a observância do rito legal.
Entretanto, e na sequência da resposta da Autora ao requerimento probatório da Ré, veio esta requerer novamente a condenação daquela como litigante de má-fé com o fundamento de que, ao invés do alegado nos autos, a demandante não tinha quaisquer obras públicas adjudicadas com o Estado angolano, entre março de 2006 e janeiro de 2007, com prazos de conclusão, e apenas possuía pessoal fixo para tarefas administrativas. Pediu a condenação da Autora em valor não inferior a 200.000 €.
A Autora ripostou que deduziu a sua pretensão usando os meios que a lei lhe faculta para a defesa do seu direito, razão pela qual não litiga de má-fé e, consequentemente, deve ser desatendida a pretensão da Ré.
13. Realizada a audiência final, proferiu-se sentença, da qual consta o seguinte dispositivo:
« Nestes termos, e com tais fundamentos, decido julgar improcedente, por não provada, a presente acção e, consequentemente, absolvo a Ré T..., Lda. do pedido formulado pela Autora Peninsular - B..., Ltd..
Mais condeno, como litigantes de má-fé, a Autora Peninsular-B..., Ltd. e a Ré T..., Lda. nas multas de 5 (cinco) UC e 20 (vinte) UC, respetivamente (…)».
14. É contra esta decisão que a Autora se insurge no presente recurso de apelação, apresentando as seguintes CONCLUSÕES [sem as notas de rodapé]:
«1.Com o devido respeito, entende a Recorrente que a sentença impugnada não logrou decidir com acerto algumas das questões centrais discutidas nesta demanda, não tendo feito uma interpretação e aplicação justa e adequada do direito, mais concretamente no que se reporta às questões referentes ao cumprimento defeituoso da Ré e medida da sua responsabilidade e litigância de má-fé da Autora.
DO INCUMPRIMENTO LATO SENSU DA RÉ – O ATRASO
2. Não obstante a douta decisão não ter considerado provado que a Ré se comprometeu a efectuar a entrega dos equipamentos e veículos no Porto de Luanda dentro do prazo de 15 dias a contar da sua expedição, dá-se por assente, que se verificou efectivamente, no caso, um atraso no transporte contratado,
3. Não havendo estipulação de um prazo específico, estabelece o art. 382º do Código Comercial que o transportador é obrigado a fazer a entrega dos objectos no prazo fixado “pelos usos comerciais, sob pena de pagar a competente indemnização”, sendo que esses usos comerciais se baseiam no tempo que normalmente gasta um barco ou veículo, conforme a respectiva velocidade, para chegar ao lugar do destino, que, no caso dos autos, era de 15-20 dias (al. u) dos factos provados).
4. Por outro lado, antes da entrega da mercadoria, a Autora instou por diversas vezes a Ré sobre a razão pela qual a mercadoria transportada não era entregue dentro do prazo expectável (al. u) dos factos provados), pelo que a Ré sempre se teria constituído em mora.
5. O transportador não ilidiu a presunção de responsabilidade pelo atraso, com base no preenchimento do pressuposto da razoável diligência a que se reporta o n.º 1 do art. 4º, não decorrendo da decisão a certeza de que o transportador agiu com essa diligência e que logrou, por conseguinte, afastar a presunção de responsabilidade pelo atraso verificado.
6. Nos termos do n.º 1 do art. 3º, o armador está obrigado, antes do início da viagem, a exercer uma razoável diligência para, designadamente, “pôr o navio em estado de navegabilidade”(a)), devendo essa diligência configurar uma diligência profissional e qualificada.
7. E, em todo o caso, cabe ao transportador a demonstração da exclusão da sua responsabilidade, para o que terá que alegar e provar a causa concreta do dano ou, no caso, do atraso, descrevendo especificamente a situação que deu causa para a perda ou avaria do bem e provando efectivamente a causa do dano excludente de sua responsabilidade.
8. A exclusão da culpa do transportador, fundou-se, no entendimento do Tribunal a quo, no n.º 1 do art. 4 º, contudo, a Ré não demonstrou ou provou a causa do dano excludente de sua responsabilidade, a concreta avaria da máquina do S... e as diligências específicas empregues, tendo-se o Tribunal a quo limitado a inferir e depreender as avarias e medidas diligentes tendentes a repará-las.
DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DA RÉ
9. Para além da questão da exoneração da responsabilidade, o Tribunal a quo entendeu aplicar ao caso a limitação de responsabilidade do transportador pelo atraso ocorrido, entendimento que não se concede ou aceita, pois o que reclama a Recorrente não é a indemnização de quaisquer perdas ou danos na mercadoria em si, mas antes uma indemnização por danos indirectos pelo facto de a mercadoria ter chegado com atraso, sendo certo que a Convenção de Bruxelas se refere no n.º 5 do art. 4º às “perdas e danos causados às mercadorias” e não aos prejuízos causados ao proprietário das mercadorias, como foi o caso.
10. Ainda que se possa conceber a aplicação do regime da Convenção de Bruxelas aos danos resultantes do atraso e à responsabilidade do transportador daí emergente, já não se pode aceitar a mesma aplicação para quantificação dos danos os danos resultantes da perda ou da avaria ou os limites indemnizatórios por perda ou avaria aos casos de demora na entrega das mercadorias, previstos na Convenção de Bruxelas, pois este texto internacional não deixa margem para o efeito.
11. Nestes termos, deverá aplicar-se, in casu, o regime do Código Civil português da responsabilidade civil contratual - art. 483º, nº 1, do Código Civil -, devendo a Recorrida indemnizar a Recorrente, verificados que se encontram os pressupostos legais subjacentes.
12. A douta sentença sindicada fez, assim, uma incorrecta aplicação do Direito aos factos e interpretação da Convenção de Bruxelas, pois (i) não deveria ter considerado excluída a responsabilidade do transportador, nos termos do art. 4º, n.º 1 da Convenção de Bruxelas, por inexistência de fundamento fáctico e legal para o efeito, e (ii) não deveria ter aplicado os limites indemnizatórios, previstos no art. 4º, n.º 5 da Convenção de Bruxelas para as perdas e danos causados às mercadorias, aos danos decorrentes do atraso na entrega das mercadorias.
DA CONDENAÇÃO EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ A) DA NULIDADE DA DECISÃO
13. A condenação da Recorrente em litigância de má-fé na decisão sindicada não assentou nos factos alegados pela Recorrida na sua tréplica e relativamente aos quais a Recorrente teve a oportunidade de exercer o contraditório, mas em factos que o tribunal a quo, ex novo e ex officio, apreciou e ponderou na sentença, sem que deles tenha previamente dado oportunidade à Recorrente para se pronunciar e defender.
14. Uma vez que, apenas na decisão ora sindicada, tomou a Recorrente conhecimento da imputação dos factos expendidos pelo Tribunal a quo que alicerçaram a sua condenação em litigante de má-fé, aquela configura objectiva e subjectivamente uma decisão surpresa.
15. Em momento algum foi notificada pelo Tribunal a quo para exercer o contraditório quanto à possibilidade de vir a ser condenada como litigante de má-fé, quer com base nos fundamentos expendidos pela Recorrida, quer com base em quaisquer outros.
16. A Recorrente jamais foi também notificada ou foi levado ao seu conhecimento pelo Tribunal a quo da possibilidade de vir a ser condenada como litigante de má-fé, por alegadamente apresentar uma conduta processual susceptível de dificultar a actividade do tribunal na busca da verdade material, consubstanciada na alegação da existência de um prazo acordado entre as partes para a realização do transporte adjudicado que era do seu conhecimento pessoal,
17. razão pela qual este segmento da decisão impugnada enferma de nulidade, por violação do princípio do contraditório.
18. Ora, considerando a relevância constitucional do direito de defesa e o conteúdo do direito fundamental de acesso aos tribunais ínsito no artigo 20.º da CRP, a jurisprudência do Tribunal Constitucional vem firmando o entendimento de que apenas será compaginável com o respeito da Constituição e daquele concreto aresto constitucional, uma interpretação do anterior 456.º do CPC revogado (atual 542.º do CPC), no sentido de condicionar o juízo de condenação em multa por litigância de má-fé à prévia notificação da parte para se poder pronunciar sobre a anunciada e previsível condenação, apenas se garantindo, dessa forma, a o exercício do contraditório.
19. Assim decidiu o Tribunal Constitucional, no Acórdão 289/2002, de 13 de Novembro de 2002, no sentido de que a condenação da parte como litigante de má-fé sem a prévia notificação da parte para se pronunciar viola o direito de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20.º da CRP e do Estado de Direito democrático, ínsito ao artigo 2.º da CRP.
20. Semelhante entendimento, de que se afigura indispensável uma notificação autónoma com a advertência da eventual condenação para que se encontre formalmente cumprido o princípio do contraditório (que nestes autos não se verificou) foi o perfilhado no Acórdão do Tribunal Constitucional 440/94, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.09.2012, proferido no âmbito do processo n.º 2326/11, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29.11.2004, proferido no âmbito do e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora29, de 14.12.2012, proferido no âmbito do processo n.º 731/09.
21. Por conseguinte, constituindo a falta de notificação da Recorrente, para se pronunciar sobre a eventual condenação em litigante de má-fé, uma omissão de uma formalidade que a lei impõe para que seja observado o princípio do contraditório, violando os art.s 3º, n.º 3 do CPC, 542º do CPC e 2º e 20º da CRP, a decisão sindicada enferma de nulidade, nos termos do art. 195.º do CPC, devendo ser revogada.
B) DA INEXISTÊNCIA DE DOLO OU CULPA GRAVE
22. Sem prescindir, sempre se dirá que não se fez prova nos autos de que a Recorrente tenha agido com má-fé e muito menos com dolo ou negligência grave, inexistindo, por isso, fundamento legal para a sua condenação em litigância de má-fé.
23. Não basta uma íntima convicção do julgador de que a parte actuou com má-fé para que aquela possa ser condenada como litigante de má-fé, como, de resto, foi o que se verificou nestes autos relativamente à conduta da Recorrente, antes se impondo ao Tribunal a quo realizar uma “objectivação ou tradução em factos” da conduta processual da Recorrente, de modo a poder qualificar essa conduta como “grave”.
24. A Recorrente limitou-se, tão-só e legitimamente, a alegar a existência de um prazo para a realização dos serviços de transporte adjudicados, pelo que, a questão prende-se essencialmente não com o foro da actuação do Recorrente, mas, apenas com um problema de prova que, no limite, apenas se resolveria contra a parte a quem o facto aproveitava, a Recorrente.
25. Assim, a actuação da Recorrente apenas se pode conjecturar como lícita e legítima, tendo a Recorrente alegado e agido convicta de que lhe assistia razão, e não poderia estar consciente de que não resultaria da audiência de julgamento prova cabal do que por si fora alegado.
26. Por outro lado, o instituto da litigância de má-fé não se basta com a existência de um comportamento doloso (que, de resto, não resulta da sentença sindicada) ou negligente, exigindo-se também que a negligência seja grave.
27. A este respeito, tem-se entendido que “a condenação por litigância de má fé não deve sancionar a simples circunstância de a parte não conseguir provar os factos que alegou; a resposta negativa a determinados quesitos não significa que se prove o contrário, apenas que a prova não resultou; e não obstante, um facto não provado pode ser verdadeiro” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.06.2002 (Rev. n.º 4130/02 – 6º, Sumários, 6/2002)).
28. Diferente entendimento resultaria, no limite, na condenação indiscriminada e arbitrária em litigância de má de toda a parte que “perde por não conseguir provar as suas asserções”.
29. Consequentemente, verificando-se a violação do art.º 542.º do CPC, não deverá condenar-se a Recorrente como litigante de má-fé, revogando-se, nessa parte, a decisão».
Pugna, assim, a Apelante pela revogação da sentença e sua substituição por outra que condene a Ré nos pedidos por si formulados.
15. A Recorrida apresentou alegações de resposta, com as seguintes CONCLUSÕES:
«(I) A recorrente não recorreu em matéria de facto pelo que a matéria dada como provada está assente.
(II) Foi dado como provado que não foi acordado um prazo de 15 dias para a entrega da mercadoria no destino,
(III) Foi dado como provado que o navio S... avariou depois de sair de Leixões, ficou em estado de inavegabilidade, foi tentada a sua reparação em alto mar e depois num porto do norte de África.
(IV) Sendo a causa de pedir que fora acordado um prazo de 15 dias ao não ser esta causa de pedir dada como provada deveria ter sido a acção considerada improcedente.
(V) Mas mesmo não o sendo, ao ser dado como provado que o armador e consequentemente a aqui recorrida tudo fizeram para obviar à sua inavegabilidade, como consta no facto o) dado como provado, o ónus da recorrida em provar que tudo fez, encontra-se verificado.
(VI) Se este ónus foi cumprido é afastada a culpa da recorrida e, destarte, a sua responsabilidade em pagar seja o que for à recorrente.
 (VII) Por outro lado, esta limitação e exclusão deve ser a que se encontra prevista na Convenção de Bruxelas no seu artº 4º, com as exclusões aí previstas, aplicando-se aqui a exclusão de a demanda e demais intervenientes tudo terem feito para repor a navigabilidade e antes de partir o navio estar em condições de navigabilidade.
(VIII) A matéria dada como assente não foi objecto de recurso pela recorrente e assim sendo as diligências que a recorrida devia ter feito, foram feitas, foi isso dado como provado e da douta sentença é motivado porque é tal considerado,
(IX) A douta convicção do Juiz julgador que fundamenta a alínea o) dos factos assentes baseia-se na experiência comum e nos dados do conhecimento do Tribunal, pelo que a recorrente não responde nem pode responder por esse atraso.
(X) A Convenção de Hamburgo não é aqui aplicável, nunca foi referida antes pela recorrente e não foi ratificada por Portugal nem consta nos documentos juntos aos autos a sua referência.
(XI) O alegado atraso da mercadoria ficou a dever-se ao estado de inavegabilidade do navio transportador, mostrando-se assim preenchida a previsão do artigo 4º, nºs 1 e 2 da Convenção de Bruxelas.
(XII) A Convenção é explícita e refere que nem o armador nem o navio serão responsáveis por perdas ou danos provenientes ou resultantes do estado de inavegabilidade.
(XIII) O armador tomou todas as diligências em virtude da reparação do navio, ilidindo assim a presunção de responsabilidade pelo atraso.
(XIV) A douta sentença pronunciou-se sobre tudo aquilo que devia ter-se pronunciado.
(XV) A recorrente litigou de má fé porque disse ter convencionado um prazo de 15 dias o que não é verdade.
(XVI) A condenação resulta numa multa por má fé a favor do Estado e não da parte contrária, pelo que é admissível esta condenação.
(XVII) Todos os requisitos da litigância de má fé se encontram de facto reunidos no que se refere à evocação de um prazo de entrega que a recorrente bem sabia nunca ter sido acordado.
(XVIII) Termos em que a douta sentença deve ser mantida nos seus precisos termos.
(XIX) A recorrente recorreu da sua condenação em sede de litigância por razões meramente dilatórias, pelo que persiste em tal litigância de má fé».
*
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II - Âmbito do recurso de apelação

Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões da Recorrente (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:

i) Do cumprimento defeituoso do contrato celebrado entre ambas as partes, pelo atraso na entrega das mercadorias transportadas, e da medida da responsabilidade da Ré;
ii) Da condenação em litigância de má-fé da Autora.
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III - Fundamentação

Fundamentação de facto

A) Factos considerados provados na sentença recorrida [alteramos a grafia para o novo acordo ortográfico]:

a)  A Autora P... B..., Ltd., é uma sociedade comercial legalmente constituída, com sede em rua R..., n.º …, na cidade de Luanda, em Angola, que tem como objeto a construção civil e obras públicas [al. a) da matéria de facto assente].
b) A Ré é uma sociedade comercial que exerce a atividade de transitário e operador de transporte [al. b) da matéria de facto assente].
c) No exercício da sua atividade a Autora adquiriu em Portugal os seguintes equipamentos e veículos destinados à sua atividade em Angola:
1. Um veículo usado, marca Volvo, modelo N7, com a matrícula ..-..-..;
2. Uma cisterna de alcatrão de 10 000Lts;
3. Uma máquina motoniveladora usada, marca Champion, modelo 740 A;
4. Um veículo usado, marca DAF, MODELO AS47WS, com a matrícula ..-..-..;
5. Uma cisterna de alcatrão, marca OAM, de 8000 Lts;
6. Um veículo usado, marca MAN, modelo 19463FGLT-2, com a matrícula ..-..-..;
7. Um semi-reboque, usado, marca Robuste, modelo SSB35K;
8. Um bulldozer, marca Komatsu, modelo D65E-740239;
9. Uma retroescavadora, marca Komatsu, modelo WB93R5;
10. Uma máquina motoniveladora usada, marca Komatsu, modelo GD605;
11. Um veículo cisterna usado, marca Volvo, modelo FL7, matrícula ..-..-..;
12. Uma escavadora de rastos usada, marca Komatsu, modelo PC240;
13. Um veículo novo marca MAN, modelo TG-A 26.350, com o Chassis W...;
14. Um cilindro usado, marca Dinapac, modelo CC21;
15. Uma pá carregadora usada, marca Volvo, modelo L90;
16. Um veículo novo, marca MAN, modelo TG-A 26 350, com o Chassis WM...;
17. Um regador de emulsão de marca Cimertex com o n.° de série C...;
18. Um regador de emulsão de marca Cimertex com o n.° de série C1...;
19. Um regador de emulsão de marca Cimertex com o n.° de série C10...;
20. Um regador de emulsão de marca Cimertex com o n.° de série ...;
21. Um compressor novo de marca Kaeser, modelo M20, com o n.° de série …;
22. Um compressor novo de marca Kaeser, modelo M20, com o n.° de Série …;
23. Um compressor novo de marca Kaeser, modelo M20, com o n.° de Série 1004;
24. Um veículo novo, marca MAN, modelo TG-A 26 350, com o Chassis …;
25. Cinco volumes de madeira de cofragem;
26. Um veículo novo, marca MAN, modelo TG-A 26 350, com o Chassis …;
27. Cinco volumes de madeira de cofragem;
28. Um veículo novo, marca MAN, modelo TG-A 26 350, com o Chassis …;
29. Um gerador usado, marca Deutz, 30 Kwa, Série …;
30. Um gerador usado, marca Deutz, 25 Kwa, Série …;
31. Um gerador usado, marca Igeapl, 20 Kwa, Série …;
32. Um gerador usado, marca Igeapl, 20 Kwa, Série …;
33. Um gerador usado, marca Mosa, 10 Kwa, Série …;
34. Um gerador usado, marca Mosa, 10 Kwa, Série …;
35. Um veículo novo, marca MAN, modelo TG-A 26 350, com o Chassis …;
36. Uma pá carregadora de rastos, marca Komatsu, Mod. D57S, Série …;
37. Um veículo novo marca MAN, modelo TG-A 26 350, com o Chassis …;
38. Um cilindro novo, marca Lebrero, modelo VTA-202, Série …;
39. Um cilindro novo, marca Lebrero, modelo VTA-202, Série …;
40. Uma máquina usada (cilindro dois rolos), marca MBU, modo DV 60, série …;
41. Um veículo usado marca Nissan, modelo CVNULEFD22UQN, com a matrícula ..-..-…;
42. Uma pá carregadora nova, marca Komatsu, modelo WA320, Chassis … [al. c) da matéria de facto assente].
d) A Autora solicitou à Ré as "operações" necessárias por forma a que o referido equipamento chegasse ao seu destino: o porto de Luanda em Angola [al. d) da matéria de facto assente].
e) A Ré forneceu a cotação do seu preço para a execução de todas as formalidades legais necessárias ao processo de exportação e o transporte das mercadorias supra referidas, preço este que foi aceite pela Autora no início do mês de Agosto de 2006 [al. e) da matéria de facto assente].
f) A mercadoria adquirida pela Autora foi embarcada no navio S… no dia 15 de agosto de 2006, na sequência de prévia entrega pela Ré à I..., Lda. [al. f) da matéria de facto assente].
g) Em 15-08-2006, foram emitidos os certificados de embarque (bill of lading) com os n.ºs

…,…,…,…,
…,…,…,…,
…,…,…,…,
…, …,…,…,

… e  …, cujo teor das cópias juntas como documentos n.ºs 1 a 18 da petição inicial aqui se dá por integralmente reproduzido [al. g) da matéria de facto assente].
h) Pelos serviços prestados pela Ré à Autora, a solicitação desta, a Ré faturou à Autora P... B..., Ltd. o respetivo preço no montante global de $ 97 956 USD, que corresponde ao contravalor em Euros de 62 994,21 € [al. h) da matéria de facto assente].
i)   Pela prestação desses serviços, a Ré emitiu as seguintes faturas:
1. Fatura n.º …, com vencimento a 18-04-2006, no montante de 4 455 € (quatro mil quatrocentos e cinquenta e cinco euros);
2. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 7 532 € (sete mil quinhentos e trinta e dois euros);
3. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 9 498 € (Nove mil quatrocentos e noventa e oito euros);
4. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 4 158 € (quatro mil cento e cinquenta e oito euros);
5. Fatura n.º 7419, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 3 685 € (três mil seiscentos e oitenta e cinco euros);
6. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 4 459 € (quatro mil quatrocentos e cinquenta e nove euros);
7. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 1 550 € (mil quinhentos e cinquenta euros);
8. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 5 222 € (cinco mil duzentos e vinte e dois euros);
9. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 5 072 € (cinco mil e setenta e dois euros);
10. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 5 072 € (cinco mil e setenta e dois euros);
11. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 5 372 € (cinco mil trezentos e setenta e dois euros);
12. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 3 455 € (três mil quatrocentos e cinquenta e cinco euros);
13. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 5 072 € (cinco mil e setenta e dois euros);
14. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 6 156 € (seis mil cento e cinquenta e seis euros);
15. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 5 137 € (cinco mil cento e trinta e sete euros);
16. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 5 072 € (cinco mil e setenta e dois euros);
17. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 4 834 € (quatro mil oitocentos e trinta e quatro euros);
18. Fatura n.º …, com vencimento a 29-09-2006, no montante de 3 981 € (três mil novecentos e oitenta e um euros);
19. Fatura n.º …, com vencimento a 29-09-2006, no montante de 8 951,30 € (oito mil novecentos e cinquenta e um euros e trinta cêntimos);
20. Fatura n.º …, com vencimento a 29-09-2006, no montante de 4 578 € (quatro mil quinhentos e setenta e oito euros);
21. Fatura n.º …, com vencimento a 29-09-2006, no montante de 16 956 € (dezasseis mil novecentos e cinquenta e seis euros);
22. Fatura n.º …, com vencimento a 31-10-2006, no montante de 3 979 € (três mil novecentos e setenta e nove euros);
23. Fatura n° …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 5 417 € (cinco mil quatrocentos e dezassete euros);
24. Fatura n.º 7585, com vencimento a 31-10-2006, no montante de 3 416,50 € (três mil quatrocentos e dezasseis euros e cinquenta cêntimos);
25. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 7 139 € (sete mil cento e trinta e nove euros);
26. Fatura n.º …, com vencimento a 30-08-2006, no montante de 4 054 € (quatro mil e cinquenta e quatro euros);
27. Fatura n.º …, com vencimento a 14-09-2006, no montante de 690 € (seiscentos e noventa euros);
28. Fatura n.º …, com vencimento a 29-09-2006, no montante de 8 137 € (oito mil cento e trinta e sete euros);
29. Fatura n.º …, com vencimento a 29-09-2006, no montante de € 4334 (quatro mil trezentos e trinta e quatro euros);
30. Fatura n.º …, com vencimento a 31-10-2006, no montante de 3 381,50 € (três mil trezentos e oitenta e um euros e cinquenta cêntimos) [al. i) da matéria de facto assente].
j) Em 26 de setembro de 2006, a Ré emitiu nota de crédito n.º 9.30, no montante de 330 €, que não foi deduzida [al. j) da matéria de facto assente].
k) Em janeiro de 2007, a Autora, por transferência bancária, fez transferir para a esfera patrimonial da Ré o montante de  45 304,43 € (quarenta e cinco mil trezentos e quatro euros e quarenta e três cêntimos) [al. k) da matéria de facto assente].
l) Para pagamento dos valores descritos nas faturas juntas pela Ré e descritas na conta corrente n.º 211 000 427 foram ainda emitidas cinco letras de câmbio, onde consta como sacador a Ré, no valor global de 123 304,20 €, a saber:
1. Letra n.º …, com vencimento em 30-02-2007, com a importância de 24 660,84 €;
2. Letra n.º …, com vencimento em 30-03-2007, com a importância de 24 660,84 €;
3. Letra n.º com vencimento em 30-04-2007, com a importância de 24 660,84 €;
4. Letra n.º …, com vencimento em 30-05-2007, com a importância de 24 660,84 €;
5. Letra n.º …, com vencimento em 30-06-2007, com a importância de 24 660,84 € [al. l) da matéria de facto assente].
m) Tais letras foram objeto de diversos pagamentos e reformas, sendo que em 30-11­-2007 se procedeu a nova reforma nos termos seguintes:
1. Letra n.º …, emitida em 30-11-2007, com vencimento em 31-12-2007, com a importância de 2 332 €;
2. Letra n.º …, emitida em 30-11-2007, com vencimento em 31-12-2007, com a importância de 2 466 €;
3. Letra n.º …, emitida em 30-11-2007, com vencimento em 31-12-2007, com a importância de 4 932 €;
4. Letra n.º …, emitida em 30-11-2007, com vencimento em 31-12-2007, com a importância de 7 398 €;
5. Letra n.º …, emitida em 30-11-2007, com vencimento em 31-12-2007, com a importância de 9 864 € [al. m) da matéria de facto assente].
n) Encontram-se por regularizar os seguintes montantes:
1. Amortizações das letras indicadas referentes ao mês de agosto, no montante de 12 330 €;
2. Amortizações das letras indicadas referentes ao mês de setembro, no montante de 12 330 €;
3. Amortizações das letras indicadas no art. 116.º referentes ao mês de Outubro, no montante de 12 330 €;
4. Amortizações das letras indicadas no art. 116.º referentes ao mês de Dezembro, no montante de 12 330 € [al. n) da matéria de facto assente].
o) Em consequência da avaria do motor principal do S..., a qual ditou a imobilização do navio para reparação em duas ocasiões ao largo da costa marroquina e a retoma da viagem depois do dia 15 de dezembro de 2006, os veículos e equipamentos transportados apenas chegaram ao porto de Luanda e foram desembarcados da referida nave e colocados à disposição da Autora P... B..., Ltd, em diferentes datas, depois do dia 18 de janeiro de 2007 (resposta dada ao art. 2.º da base instrutória).
p) A Autora adquiriu os bens descritos em C) para fazer face a um grande volume de obras que lhe tinham sido adjudicadas, nomeadamente pela República de Angola e alguns particulares (resposta art. 3.º da base instrutória).
q) Na falta de tais veículos e equipamentos, os quais eram necessários à realização das referidas obras e ao cumprimento dos prazos assumidos contratualmente, desde meados de setembro de 2006 até finais do mês de janeiro de 2007, a Autora alugou os seguintes equipamentos/viaturas para substituição parcial dos que foram objeto do transporte:

- Sete camiões basculantes, cujo aluguer representou um custo diário de $ 450 USD que corresponde ao contravalor em euros de 309,70 €;
       -   Duas retroescavadoras, cujo aluguer representou um custo diário de $ 550 USD que corresponde ao contravalor em euros de 378,53 €;
- Três pás carregadoras, cujo aluguer representou um custo diário de $ 720 USD que corresponde ao contravalor em euros de 495,53 €;
-   Duas motoniveladoras, cujo aluguer representou um custo diário de $ 900 USD que corresponde ao contravalor em euros de 619,41 €;
-   Dois cilindros, cujo aluguer representou um custo diário de $ 400 USD que corresponde ao contravalor em euros de 275,29 €;
-      Dois cilindros (pequena dimensão), cujo aluguer representou um custo diário de $ 300 USD que corresponde ao contravalor em euros de 206,47 €;
-   Uma máquina giratória, cujo aluguer representou um custo diário de $ 800 USD que corresponde ao contravalor em euros de 550,58 €;
-    Uma cisterna de água, cujo aluguer representou um custo diário de $ 450 USD que corresponde ao contravalor em euros de 309,70 €;
-   Duas cisternas de alcatrão, cujo aluguer representou um custo diário de $ 600 USD que corresponde ao contravalor em euros de 412,94 €;
-   Três compressores, cujo aluguer representou um custo diário de $ 200 USD que corresponde ao contravalor em euros de 137,65 €;
-   Um bulldozer, cujo aluguer representou um custo diário de $ 1000 USD que corresponde ao contravalor em euros de 688,23 €;
-   Um conjunto porta-máquinas, cujo aluguer representou um custo diário de $ 750 USD que corresponde ao contravalor em euros de 516,17 €;
-   Seis geradores, cujo aluguer representou um custo diário de $ 150 USD que corresponde ao contravalor em euros de 103,23 €;
-   Três regadores de emulsão, cujo aluguer representou um custo diário de $ 100 USD que corresponde ao contravalor em euros de 68,82 € (resposta dada aos arts. 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 8.º da base instrutória).

r) Com o aluguer destes veículos e equipamentos, a Autora impediu que grande parte do pessoal ao seu serviço (cerca de 130 trabalhadores) ficasse inativa e obstou a muitos atrasos na conclusão de obras contratualizadas, os quais, a verificarem-se, teriam dado lugar ao pagamento de indemnizações por não cumprimento do prazo ajustado para as empreitadas que lhe foram adjudicadas (resposta dada ao art. 9.º da base instrutória).
s) (...) bem como a impossibilidade de concorrer a outras empreitadas e/ou aceitar /executar outras obras que entretanto lhe fossem solicitadas (resposta dada ao art. 10.º da base instrutória).
t) O aluguer daqueles equipamentos/veículos manteve-se durante cerca de cento e treze dias, à razão diária de 5 072,25 €, tendo a Autora despendido a quantia global de $ 832 810 USD, correspondente ao contravalor de 573 164,25 € (resposta dada ao art. 11.º da base instrutória).
u) Antes da entrega da mercadoria, a Autora instou por diversas vezes a Ré sobre a razão pela qual a mercadoria transportada não era entregue dentro do prazo expetável, correspondente ao transit time da viagem Leixões – Luanda (15-20 dias), acrescido do tempo de espera de cais no destino (resposta dada ao art. 12.º da base instrutória).
v) Após a entrega da mercadoria, a Autora efetuou diversas reclamações à Ré em virtude de a mercadoria não ter sido entregue dentro do prazo estipulado (continuação da resposta dada ao art. 12.º da base instrutória).
w) Antes de janeiro de 2007, a Ré, admitindo que a Autora tivesse suportado custos consideráveis com o aluguer dos veículos e equipamentos de substituição, pediu aos representantes da Autora para aguardarem pacientemente pelo pagamento da compensação devida por tais despesas (resposta dada ao art. 13.º da base instrutória).
x) A partir de 31-12-2007, a Autora não mais entregou qualquer meio de pagamento à Ré tendente a regularizar a contra corrente-existente entre as partes, encontrando-se por liquidar o valor global das letras referidas em M) (26 992 €), acrescido da importância atinente às amortizações por regularizar mencionadas em N) (no montante global de 49 320 €) (resposta dada ao art. 14.º da base instrutória).
y) A Ré suportou despesas bancárias e imposto de selo com as sucessivas reformas das letras que recebeu para amortização das quantias devidas pela Autora a título de fretes (resposta dada aos arts. 15.º e 16.º da base instrutória).
z) Em dezembro de 2007, MaP... entregou a Ré um cheque pré-datado para o dia 24-01-2008, no montante de 12 196 €, para amortização do montante a pagar pela Ré à Autora (resposta dada ao art. 17.º da base instrutória).

B) Factos considerados não provados na sentença recorrida [alteramos a grafia para o novo acordo ortográfico]

1. A Ré comprometeu-se a efetuar a entrega dos equipamentos e veículos no Porto de Luanda dentro do prazo de 15 dias a contar da sua expedição (art. 1.º da base instrutória).
2. Para além das despesas em montante correspondente à omissão de regularização das letras referidas na al. L), a Ré suportou despesas bancárias com a aceitação das letras nos montantes seguintes:
-  Valor da amortização das letras de janeiro/2008 – 7 398 €;
-  Valor da amortização das letras de fevereiro/2008 –  4 932 €;
- Valor da liquidação da letra de março/2008 – 2 466 € (art. 15.º da base instrutória).
3. E ainda:
- Despesas bancárias das letras (Notas de débito) – 18 083,12 €;
- Parte da Fatura n.º … – 663 €;
- Fatura n.º … –  830 €;
- Fatura n.º … –  580 € (art. 16.º  da base instrutória).
4. As mercadorias foram colocadas à disposição da destinatária no início do mês de janeiro de 2007, tendo sido todas entregues até ao dia 7 do mesmo mês (art. 18.º da base instrutória).
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Ainda sobre a factualidade provada:
a) A Recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, limitando-se a afirmar, em sede de conclusões, que cabe ao transportador a demonstração da exclusão da sua responsabilidade, para o que este teria que alegar e provar a causa concreta do dano ou, no caso, do atraso, descrevendo especificamente a situação que deu causa para a perda ou avaria do bem e provando efetivamente a causa do dano excludente de sua responsabilidade. Mais remata que, quanto à exclusão da culpa do transportador, a Ré não demonstrou a causa do dano excludente de sua responsabilidade, a concreta avaria da máquina do S... e as diligências específicas empregues, tendo-se o Tribunal a quo limitado a inferir e a depreender as avarias e medidas diligentes tendentes a repará-las.
No que respeita aos factos relacionados com a responsabilidade imputada à Ré, é tudo.
Nada mais é dito pela Apelante neste particular.
Não refuta os juízos probatórios formulados ou a argumentação fáctica expendida ao longo da sentença recorrida.
Ora, o legislador de 2013 não “impõe” uma «reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, a desencadear, de modo irrestrito e a título oficioso; continua a visar, tão-somente, a deteção e correção de pontuais e concretos erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso, bem como ainda a indicação da decisão e, no seu entender, deverá ser proferida sobre as decisões de facto impugnadas» - artigo 640.º do CPC, n.º 1, alíneas a), b) e c), do CPC (cf. Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, Coimbra: Almedina, 2013, p. 463).
Como diz Ferreira de Almeida, «não se trata, pois de conferir às partes um direito (potestativo/processual) a uma reapreciação global (total) da matéria de facto já dada como assente em 1.ª instância» (ob. citada, p. 463).
Decorre da análise do artigo 640.º do CPC que foram recusadas soluções que pudessem reconduzir a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte dos recorrentes.
Ora, compulsada a matéria de facto supra elencada, verifica-se que foi dado como provado na alínea o) que, em consequência da avaria do motor principal do S..., a qual ditou a imobilização do navio para reparação em duas ocasiões ao largo da costa marroquina e a retoma da viagem depois do dia 15 de dezembro de 2006, os veículos e equipamentos transportados apenas chegaram ao porto de Luanda e foram desembarcados da referida nave e colocados à disposição da Autora P... B..., Ltd, em diferentes datas, depois do dia 18 de janeiro de 2007 (resposta dada ao art. 2.º da base instrutória).
Da análise da sentença ressalta, porém, que, na apreciação da responsabilidade da Ré, o Tribunal a quo faz considerações factuais fora desse elenco dos factos.
Sendo esta técnica no mínimo questionável, cumpre verificar se compromete ou obstaculiza a apreciação do caso.

b) Emerge do disposto no artigo 5.º do CPC de 2013 (imediatamente aplicável ex vi do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26.6) que a sentença deverá conter, para além dos factos essenciais alegados pelas partes, os seguintes factos:
. factos notórios  - artigos 5.º, n.º 2, alínea c) e 412.º, n.º 1, do CPC;
. factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções - artigos 5.º, n.º 2, alínea c), e 412.º, n.º 2, do CPC;
. factos reveladores de uso reprovável do processo - artigo 612.º do CPC;
. factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa (artigo 5.º, n.º 2, alínea a);
. factos complementares ou concretizadores de outros que as partes tenham oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que às partes tenha sido dada a oportunidade de sobre eles se pronunciarem - artigo 5º, n.º 2, alínea b).
Em comparação com o anterior Código, assinala-se um maior pendor inquisitório, designadamente no que concerne aos factos complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados.
Assim, as partes têm a possibilidade de alegar os factos complementares nos articulados, mantendo-se, no entanto, a porta aberta ao convite ao aperfeiçoamento dos articulados.
Se não ingressarem por esta via, o seu aditamento pode ocorrer na fase da instrução.
Nesta última hipótese, e esta é a novidade, tais factos serão carreados para a causa por iniciativa judicial, independentemente da vontade da parte a quem o facto aproveita.
Com este modelo, ampliaram-se os poderes de cognição do juiz e estreitou-se o princípio da auto‑responsabilidade das partes na conformação da matéria de facto, em nome de uma maior "publicização" do processo civil.
Os factos concretizadores esgotam-se naquelas afirmações que especificam ou clarificam conceitos ou expressões jurídicas ou conclusivas utilizadas pelas partes nos articulados.
Os factos complementares serão aqueles que, na economia de uma fattispecie normativa complexa, desempenham claramente uma função secundária ou acessória relativamente ao núcleo essencial da causa de pedir ou da defesa, podendo tratar-se de factos circunstanciais negativos ou de factos que, na normalidade das situações da vida e segundo as regras de experiência, já fluem de outros (cf. acórdão do STJ de 24.4.2013, proferido no p. 403/08.2TBFAF.G1.S1, in www.dgsi.pt).
O artigo 412.º do CPC colocou fora das malhas do princípio do dispositivo tanto os factos notórios (n.º 1), como os do conhecimento do juiz no exercício das suas funções (n.º 2).
Os factos notórios são os factos do conhecimento geral, isto é, conhecidos ou facilmente cognoscíveis pela generalidade das pessoas normalmente informadas de determinado espaço geográfico, de tal modo que não haja razão para duvidar da sua ocorrência (cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, p. 209).
Dos factos notórios devem distinguir-se as máximas da experiência, as quais, «sendo necessárias ao raciocínio dedutivo que caracteriza a presunção, revestem natureza geral, ao passo que o facto notório é um facto concreto de conhecimento geral; no entanto, estão sujeitas ao regime do facto notório no que se refere à dispensabilidade da prova e à inadmissibilidade de prova contrária. Mas, tal como o facto notório, a máxima de experiência só fica ao abrigo da prova contrária quando é geralmente conhecida sem contestação, pois de outro modo, “atenta a heterogeneidade das máximas e a diversidade dos fundamentos cognoscitivos das mesmas, poderá a parte discutir a generalidade e certeza da mesma ou, inversamente, pode a parte pretender convencer o juiz de que aquela é a sequência natural das coisas” (LUÍS FILIPE PEREIRA DE SOUSA, Prova por presunção no direito civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 84» (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. citada, p. 210).
O tribunal está legitimado a recorrer a presunções judiciais, retirando de um facto conhecido (fonte da presunção) a ilação de um facto desconhecido (artigo 349.º do Código Civil). Estas presunções judiciais não estão previstas na lei, sendo edificadas no caso concreto (salvo nos casos em que a lei veda a sua utilização – cf. artigo 351.º do Código Civil).
Segundo Michele Taruffo o «meio que consente a formulação desta inferência pode ser representado por uma máxima de experiência segundo a qual, perante a circunstância X, se pode colocar a hipótese da existência da circunstância Y (...)» (Considerazioni sulle massime d'esperienza, Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Junho 2009, pp. 560 e 561.). É o chamado "raciocínio de Sherlock Holmes" (cf. Maria José Capelo, in Os factos notórios e a prova dos danos não patrimoniais (Março-Abril 2014, Ano 143.º, p. 301).

c) Revertendo à situação sub judice, há que atentar nos factos instrumentais e complementares relevantes para a apreciação da causa.
Faz-se apenas um parêntesis para assinalar que se desconsideraram aqui outros factos relatados pelo Tribunal a quo fora do elenco da sentença, designadamente os que se revestem de uma notoriedade aparente (como bem salienta Maria José Capelo, «O facto notório é evidente, mas nem todas as evidências gozam de notoriedade. Esta máxima da experiência deverá guiar a Justiça» - ob. citada, p. 304).
Volvendo ao caso em apreço, na motivação da decisão da matéria de facto, o Tribunal a quo fez constar os seguintes factos complementares e instrumentais [os quais sublinhamos]:
Fls. 21 da sentença:
O facto provado na al. o) e o facto não provado n.º 4 radicaram nos e-mails de fls. 333-334 (demonstrativos de que no dia 30-11-2006 a Chamada comunicou à Ré a informação prestada pelo armador no dia 27-11-2006 sobre os problemas que estavam a afectar o navio) [facto instrumental], na declaração do armador de fls. 335 (reveladora de que o S..., em 21-11-2006, quando ainda se encontrava ao largo de Marrocos foi afetado por graves problemas de motor, o que determinou a interrupção da viagem [facto instrumental]; o facto de tal mensagem estar datada de novembro permitiu inferir que aquelas contrariedades não foram a primeira avaria que o navio sofreu, pois Marrocos é um destino que fica a menos de uma semana de navegação de Leixões) [facto instrumental], a informação prestada pela Chamada – e não impugnada – a fls. 421 (denunciadora de que as avarias foram graves e determinaram a intervenção de mão-de-obra qualificada e distante do local onde o navio arribou) [facto complementar ] (…).
Na fundamentação de direito da sentença, constam os seguintes factos complementares [os quais sublinhamos]:
Fls. 30 da sentença:
«Porém, afigura-se seguro que a Ré logrou demonstrar que a apontada demora não procedeu de culpa sua (nem do armador por si subcontratado).
Efectivamente, está assente que a dada altura da viagem, quando se encontrava ao largo da costa marroquina, o navio transportador sofreu duas avarias sucessivas na máquina principal.
É bom notar que até então o navio tinha registado um desempenho normal, não havendo notícia de quaisquer anomalias ou deficiências durante a sua escala no porto de Leixões.[facto complementar]
A reparação de avarias dos navios é sempre uma tarefa delicada, pois os motores marítimos utilizam peças e tecnologias próprias e requerem sempre a intervenção de mão-de-obra altamente qualificada que raramente existe a bordo. Acresce que as peças ou componentes dos propulsores dos navios – especialmente, as mais importantes, como o bloco, cilindros, êmbolos, volantes bimassa, turbocompressores, etc... – pesam sempre várias toneladas, o que significa que o seu transporte requer a utilização de veículos pesados e morosos, a sua movimentação o uso de meios de elevação industriais e a sua montagem mão-de-obra especializada. [factos complementares]
Embora no caso vertente não tenha sido alegada nem demonstrada a concreta avaria da máquina do S..., o tempo de imobilização do navio [seguramente desde o fim do mês de Agosto de 2006 – se se atentar ao período razoável de navegação desde Leixões até à costa magrebina – até ao dia 15 de Dezembro de 2006 – data que o armador anunciou para o navio retomar a sua viagem (fls. 335)], aliado ao facto de ter havido duas pannes, inculcam a ideia firme de a tripulação tentou num primeiro momento proceder à reparação da falha mecânica que afectava o motor, mas não foi bem sucedida, já que o mesmo acabou por falhar catastroficamente, o que determinou a arribada forçada num porto marroquino, a sequente reparação do S... em estaleiro ou (simplesmente) em cais e quiçá ainda o envio de várias peças para um local distante e sujeito a trâmites alfandegários a fim de aí serem restauradas e posteriormente devolvidas.[presunção judicial extraída de factos essenciais constantes das alíneas o) e u) da factualidade provada]
Na fundamentação de direito da sentença, o juiz a quo fez constar os seguintes factos complementares [os quais sublinhamos]:
Fls. 51 da sentença:
Abre-se nesta sede um parêntesis para salientar que o transbordo da mercadoria da Autora no porto onde o S... arribou forçadamente jamais seria uma solução; antes representaria uma complicação.
Com efeito, resultou da prova produzida em audiência que à data dos factos havia um grande movimento de cargas para Angola, país que então se encontrava numa fase de forte pujança económica e demanda elevada de produtos importados, que absorvia por completo os meios de transporte de linha regular, assim se explicando que a deslocação da carga da Autora tenha sido efetuada com recurso a um navio tramp. [facto complementar]
Ademais, e como era notório quer no meio marítimo, quer no seio das empresas que operavam em Angola e dependiam de fornecimentos externos, Luanda não estava dotada de uma infra-estrutura portuária que lhe permitisse acolher em simultâneo todos os navios que escalavam o seu porto, o que ditava frequentemente elevados tempos de espera ao largo antes de as naves desembarcarem as suas cargas. [facto complementar]
A presente ação foi intentada à luz do Código de Processo Civil de 1961 (em 2008).
A aplicabilidade imediata dos artigos 5.º e 607.º, n.º 4, do CPC de 2013 (cf. artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013), designadamente no que concerne aos factos complementares e às presunções judiciais, implicaria uma decisão da matéria de facto menos espartilhada pelos quesitos e uma técnica mais depurada no que concerne à separação entre fundamentação de facto e fundamentação de direito.
Sem embargo, tais factos não foram objeto de impugnação nem existe, como supra referido, a faculdade de desencadear uma reapreciação dos factos de modo irrestrito e a título oficioso.
De igual modo, não foi colocada em crise a característica da generalidade e certeza das máximas de experiência referenciadas, nem os juízos probatórios formulados acerca da “sequência natural das coisas”.
Pelo exposto, a factualidade descrita será considerada na apreciação do enquadramento jurídico do caso.

Enquadramento jurídico

i) Do cumprimento defeituoso do contrato celebrado entre ambas as partes pela Ré, pelo atraso na entrega das mercadorias transportadas

Da análise da matéria de facto provada resulta que as partes celebraram entre si um contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias, nos termos do qual a Ré se obrigou a fazer deslocar – por si ou através de terceiros –, entre dois portos situados em países distintos, determinadas mercadorias da Autora, mediante uma retribuição (cf. fls. 32 da sentença recorrida).
Os conhecimentos de embarque que titulam os transportes ajustados foram emitidos em Portugal e, tendo o contrato na sua base uma relação jurídica plurilocalizada, está submetido à regulamentação instituída pela Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimentos, denominada Convenção de Bruxelas de 1924, a qual mereceu a adesão de Portugal, através da Carta subscrita em 3 de dezembro de 1993 e depositada nos arquivos do Governo Belga em 24 de dezembro de 1931.
A mercadoria a deslocar do porto de Leixões para o porto de Luanda embarcou no navio transportador no dia 15 de janeiro de 2006 (alínea f) dos Factos Provados), mas só desembarcou depois do dia 18 de janeiro de 2007 (alínea o) dos Factos Provados).
Verifica-se, pois, que a duração do transporte excedeu largamente aquele que habitualmente correspondia ao transit time de viagem Leixões – Luanda (15-20 dias), acrescido de tempo de espera de cais no destino (alínea u) dos Factos Provados).
Como os bens transportados se destinavam a fazer face à exigência provocada pelo grande volume de obras públicas que a Autora tinha em curso, esta viu-se na necessidade de alugar diversos equipamentos de substituição por forma a, por um lado, honrar os compromissos contratuais assumidos e evitar a responsabilização decorrente de arasos perantes os donos das obras e, por outro, manter ocupada a sua massa operária e, finalmente, poder concorrer ou aceitar mais empreitadas (alíneas p), q), r) e s) dos Factos Provados).
Ao recorrer a tais equipamentos de substituição enquanto os seus não lhe foram entregues pela Ré, a Autora acabou por desembolsar a quantia de $ 832 810 USD (alínea f) dos Factos Provados), que peticiona nestes autos.
Como bem se salienta na sentença recorrida, no contrato de transporte de mercadorias é fundamental a entrega destas nas condições em que o transportador a recebeu.
Segundo o disposto no artigo 382.º do Código Comercial, «O transportador é obrigado a fazer a entrega dos objectos no prazo fixado por convenção ou pelos regulamentos especiais do transportador e, na sua falta, pelos usos comerciais, sob pena de pagar a competente indemnização».
Não havendo prazo acordado, mas tendo sido excedida largamente a estimativa do tempo do transporte, é inteiramente acertada a sentença recorrida na sua conclusão pelo atraso no transporte da mercadoria.
A Convenção de Bruxelas de 1924 consagra um regime inspirado pelos princípios da responsabilidade do transportador e da limitação da responsabilidade, os quais parecem informar uma disciplina normativa imbuída do desígnio de proteger razoavelmente o carregador e, por outro lado, permitem antever a situação dos transportadores, perante a qual se havia entendido que era mister assegurar-lhe uma proteção normativa (o que também sucede com os diplomas normativos nacionais).
Assim, não é alheia às escolhas normativas uniformes, a consideração de que o carregador  perde todo o contacto físico com a mercadoria, sem contar com a distância (física e científica) que o separa dos meios empregues na aventura marítima e das dificuldades que nela surja, meios e problemas que, além disso, não consegue dominar, ou sequer compreender completamente.
O princípio da responsabilidade manifesta-se nas regras de distribuição do onus probandi (cf. artigos 3.º e 4.º da Convenção de Bruxelas), enquanto reflexo de uma particular distribuição de riscos.
Com ele nos deparamos ainda na exigência da diligência de um bonus paterfamilias, atentos os usos, as especificidades e os padrões normais da profissão exercida, ou de uma due diligence (n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º e n.º 1 do artigo 4.º da Convenção de Bruxelas) que sobre o transportador impende quanto a aspetos náuticos e comerciais.
O princípio da limitação da responsabilidade do transportador patenteia-se na previsão convencional de um limite indemnizatório, em benefício do transportador, isto é, do responsável por danos ocorridos nas mercadorias (cf. n.º 5 do artigo 4.º). Para além de já se acautelar a arriscada atividade do transportador pela determinação de uma exoneração de responsabilidade do transportador, sempre que os danos sofridos pela mercadoria se devam a certas causas descritas na Convenção.
Assim se afina um equilíbrio anelado pela disciplina uniforme.
É o que se explicita a fls. 48 e 49 da sentença recorrida, a cuja fundamentação aderimos.
Com efeito, por um lado, a Convenção de Bruxelas estabelece uma presunção de responsabilidade do transportador marítimo pelos danos sofridos pela carga (ou sua perda) durante o período coberto pelo contrato de transporte - artigo. 2.º, 3.º, n.ºs 1, 2 e 8, e 4.º da Convenção.
Esta presunção radica na circunstância dupla de o contrato de transporte impor ao transportador uma obrigação de resultado e de os interessados na carga (carregador/expedidor ou destinatário)  não terem qualquer controlo físico da aventura marítima e do emprego do navio.
Acresce que o texto internacional faz impender sobre o transportador o ónus da prova dos factos exoneratórios da sua responsabilidade presumida relativamente aos factos especificados nas alíneas a) a p) do n.º 2 do artigo 4.º da Convenção.
Ou seja, parte-se de uma particular presunção de responsabilidade do transportador pelos danos provados, ficando, assim e à partida, invertido o onus probandi, não cabendo ao interessado na carga provar o nexo de causalidade entre o dano e o comportamento culposo do transportador.
Sem embargo, tratando-se de uma presunção juris tantum, poderá o transportador ilidi-la, demonstrando que o dano ocorrido resultou da inavegabilidade do navio (não obstante ter atuado com a diligência razoável) ou de outros factos excludentes da sua responsabilidade (ligados aos perigos inerentes da aventura marítima ou a circunstâncias que não lhe são imputáveis, como o defeito da mercadoria ou da embalagem e os atos do próprio carregador ou terceiros –, os quais revertem a presunção de responsabilidade que o onerava e espoletam uma nova presunção, desta feita, de não responsabilidade do transportador, conquanto esta possa ser afastada pelo autor, devendo para tanto este provar que houve culpa daquele (culpa pessoal do transportador ou culpa comercial dos seus auxiliares).
Seja como for, como bem se refere na sentença recorrida, parece indiscutível que a responsabilidade (presumida) de pleno direito do transportador significa que este deve indemnizar quando, em consequência do incumprimento das suas obrigações, causa danos – sejam eles quais forem – à mercadoria ou ao interessado na carga.
Por outro lado, a Convenção de Bruxelas preconiza uma responsabilidade por perdas ou avarias de mercadorias sem especificar qual a natureza do dano concernente.
Efetivamente, o regime uniforme jamais se refere a danos físicos ou danos de perda ou avaria sofridos pelas mercadorias. Diversamente, alude a danos de perda ou avaria causados às mercadorias (artigos 3.º, n.ºs 5 e 6, 4.º, n.ºs 1, 2, proémio, 3 e 4, e 7.º da Convenção) ou que lhes digam respeito ou sejam concernentes (artigos 3.º, n.º 8, e 4.º, n.º 5, da Convenção), abrangendo desta forma os casos de entrega tardia, os quais, aliás, podem desde logo ser reconduzidos à preterição pelo transportador do seu dever de proceder de modo apropriado e diligente ao transporte (artigo 3.º, n.º 2, da Convenção de Bruxelas).
Regressando ao caso em apreço, à luz dos princípios e normas citadas, constata-se que a sentença recorrida decidiu dentro dos seus parâmetros e cânones.
Como é facilmente percetível, a navegabilidade do navio é um elemento essencial do contrato de transporte marítimo, uma vez que resulta impossível conceber a execução do contrato de transporte marítimo de mercadorias sem que exista um navio.
Nas palavras de Hugo Ramos Alves (Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, Almedina, 2008, pp. 71 e 72), «(…) a navegabilidade deve ser absoluta, isto é, respeitante às boas condições do navio, e relativa, ou seja, adequada à carga que deve receber e à viagem que deve empreender».
Será que a Ré logrou demonstrar que a apontada demora não procedeu de culpa sua (nem do armador por si subcontratado)? Que agiu com a diligência devida?
Está provado que, a dada altura da viagem, quando se encontrava ao largo da costa marroquina, o navio transportador sofreu duas avarias sucessivas na máquina principal, o que se traduz na verificação do requisito de previsto no artigo 4.º, n.º 1, da Convenção e Bruxelas de 1924.
Lê-se na sentença que o navio tinha registado um desempenho normal, não havendo notícia de quaisquer anomalias ou deficiências durante a sua escala no porto de Leixões. E que a reparação de avarias dos navios é sempre uma tarefa delicada, pois os motores marítimos utilizam peças e tecnologias próprias e requerem sempre a intervenção de mão-de-obra altamente qualificada que raramente existe a bordo. Acresce – continua a ler-se na sentença - que as peças ou componentes dos propulsores dos navios – especialmente, as mais importantes, como o bloco, cilindros, êmbolos, volantes bimassa, turbocompressores, etc... – pesam sempre várias toneladas, o que significa que o seu transporte requer a utilização de veículos pesados e morosos, a sua movimentação o uso de meios de elevação industriais e a sua montagem mão-de-obra especializada.
Decorre desta argumentação fáctica que para demonstrar a diligência do transportador ou armador por si contratado, não era necessária a demonstração da concreta avaria da máquina do S..., como anuncia a Autora.
Não podemos deixar de concordar com a sentença recorrida quando pondera que o tempo de imobilização do navio [seguramente desde o fim do mês de Agosto de 2006 – se se atentar ao período razoável de navegação desde Leixões até à costa magrebina – até ao dia 15 de Dezembro de 2006 – data que o armador anunciou para o navio retomar a sua viagem (fls. 335)] e o facto de ter havido duas avarias, «inculcam a ideia firme de que a tripulação tentou num primeiro momento proceder à reparação da falha mecânica que afectava o motor, mas não foi bem sucedida, já que o mesmo acabou por falhar catastroficamente, o que determinou a arribada forçada num porto marroquino, a sequente reparação do S... em estaleiro ou (simplesmente) em cais e quiçá ainda o envio de várias peças para um local distante e sujeito a trâmites alfandegários a fim de aí serem restauradas e posteriormente devolvidas» (fls. 50 da sentença).
Mais: resultou da prova produzida em audiência que, à data dos factos, havia um grande movimento de cargas para Angola, país que então se encontrava numa fase de forte pujança económica e demanda elevada de produtos importados, que absorvia por completo os meios de transporte de linha regular, assim se explicando que a deslocação da carga da Autora tenha sido efetuada com recurso a um navio tramp.
Acresce que Luanda não estava dotada de uma infra-estrutura portuária que lhe permitisse acolher em simultâneo todos os navios que escalavam o seu porto, o que ditava frequentemente elevados tempos de espera ao largo antes de as naves desembarcarem as suas cargas.
Neste circunstancialismo, consideramos que não houve qualquer erro de julgamento na subsunção jurídica dos factos, pelo que «parece indiscutível que a avaria do S... e a sanação da mesma não foram marcadas por qualquer falta de diligência do armador subcontratado pela Ré e que o tempo de reparação do motor revelou-se perfeitamente compatível com as vicissitudes que estão sempre sempre associadas à procura e montagem dos componentes de motores marítimos em portos cuja escala foi forçada/imprevista e estão localizados fora do circuito logístico tradicional (Europa, América do Norte e Sudeste Asiático)» (fls. 50 da sentença).
Logo,  por se encontrar preenchida a previsão do artigo 4.º, n.º 1, da Convenção de Bruxelas, não pode a Ré ser responsabilizada pelos danos decorrentes do atraso na entrega da mercadoria que lhe foi confiada para transporte, pelo que deve ser mantida a sentença que determinou a absolvição da Ré da instância.
Estabelece o artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Em face dos preceitos citados, há que concluir que a questão da aplicação dos limites da responsabilidade da transportadora ficou totalmente prejudicada pela confirmação da decisão que exclui a responsabilidade da Ré.

ii) Da condenação em litigância de má-fé da Autora

Na sentença recorrida, a Autora/Apelante foi condenada, como litigante de má-fé, no pagamento de multa no valor de 5 UC.
Preceitua o artigo 542.º, n.º 1, do CPC que «Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta o pedir».
Os comportamentos que a lei tipifica no n.º 2 do citado artigo 542.º, como integrando má-fé, são os seguintes:
a) Dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento, de facto ou de direito, a parte não devia ignorar, ou seja, a parte deve ponderar a razoabilidade da pretensão, evitando‑a se não houver fundamento sério para ela;
b) Alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa, v.g., mentira da parte, negação de factos pessoais que se provam, apresentação de versão de acidente que a parte sabia ser falsa;
c) Omissão grave do dever de cooperação;
d) Instrumentalização manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com vista a impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (artigo 542.º, n.º 2, do CPC).
Em suma, é a violação do dever geral de probidade, consagrado no artigo 8.º do CPC, enquanto conduta ilícita, praticada de forma dolosa (lide dolosa) ou gravemente negligente (lide temerária), que configura a litigância de má-fé.
A negligência grave deve ser entendida como «imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um» (cf. acórdão do STJ de 6.12.2001, p. 01A3692, in www.dgsi.pt).
Não deve confundir-se a litigância de má-fé com as situações seguintes:
(i) a mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento;
(ii) a eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
(iii) discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos ou
(iv) com a defesa convicta e séria de uma posição, sem contudo a lograr convencer - cf. acórdão do TRP de 2.3.2010, p. 6145/09, in www.dgsi.pt.
Como escreveu Paula Costa e Silva, a «parte atuará ilicitamente se souber ou se devia saber que a sua pretensão, quer atendendo aos aspetos de facto, integradores da potencial causa de pedir, quer atendendo aos efeitos que deles são retirados, através da formulação de um pedido, não é compatível com aquilo que o sistema dita» (A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, p. 392.
Basta que à parte seja exigível esse conhecimento, cabendo-lhe indagar se a sua pretensão era fundamentada, no plano de facto e do direito, no caso concreto.
A exigibilidade do conhecimento quanto à falta de fundamentação constitui realidade diversa do conhecimento efetivo, sendo que a exigência deste «equivaleria a inviabilizar praticamente o funcionamento da regra» (ob. citada, p. 393).
Na síntese de Paula Costa e Silva, o parâmetro de aferição do dever de diligência da parte consubstancia-se deste modo:
«A generalidade das pessoas ou todas as pessoas, pertencentes à categoria social e intelectual da parte real, colocadas naquela situação em concreto, ter-se-iam abstido de litigar, uma vez que, cumprindo os seus deveres de indagação, teriam concluído não terem, quer a pretensão, quer a defesa, fundamento. Só um sujeito extraordinariamente desleixado age como agiu a parte» (ob. citada, p. 395).
Revertendo ao caso sub judice, a Apelante objeta que a sua condenação não assentou nos factos alegados pela Recorrida na sua tréplica, relativamente aos quais a Recorrente teve a oportunidade de exercer o contraditório, mas em factos que o tribunal a quo, ex novo e ex officio, apreciou e ponderou na sentença, sem que deles tenha previamente dado oportunidade à Recorrente para se pronunciar e defender.
Mais argui que em momento algum foi notificada para exercer o contraditório quanto à possibilidade de vir a ser condenada como litigante de má-fé, quer com base nos fundamentos expendidos pela Recorrida, quer com base em quaisquer outros.
Razão por que conclui que este segmento da sentença impugnada enferma de nulidade, por violação do princípio do contraditório e do direto de acesso aos tribunais, com relevância constitucional plasmada no artigo 20.º da Constituição da República. (neste sentido, invoca o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 289/2002, de 13.11.2002).
Conclui pela nulidade da decisão sindicada, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 3, e 542.º do CPC e 2.º e 20.º da CRP, nos termos do artigo 195.º do CPC.
Em sede de tréplica, a Ré arguiu a litigância de má-fé da Autora, com o argumento de que esta alegou na réplica que deixou de proceder a quaisquer pagamentos no dia 31.12.2007 e no dia 24.1.2008, sendo que MaP... remeteu um cheque seu à Ré no montante de 12 196 €, justamente para solver as contas da Autora.
A Autora foi notificada da tréplica. Caso pretendesse responder ao pedido de condenação como litigante de má-fé, bastaria apresentar um requerimento autónomo e não o fez. Assim, quanto aos factos que lhe são imputados pela Ré, o contraditório foi cumprido.
O mesmo não se pode afirmar quanto ao fundamento da condenação por litigância de má-fé constante da sentença recorrida, na qual se escreveu o seguinte:
«(…) o certo é que se tornou evidente no decurso da acção que em momento algum a demandada acordou no estabelecimento de um prazo para a realização do transporte adjudicado, tendo em conta a relativa incerteza das viagens marítimas dos navios tramp bem como os condicionamentos sobejamente conhecidos do porto de Luanda no que concerne à existência de cais disponíveis a todo o tempo a fim de as naves acostarem e desembarcarem as suas cargas. Esta realidade, na medida em que era do conhecimento pessoal da Autora (tanto mais que estava sedeada em Angola), não podia ser por si ignorada. Logo, ao alegar a sobredita factualidade contrária e dificultar a actividade do tribunal na busca da verdade material, a Autora alterou ousadamente a exactidão dos factos que bem dominava, impondo-se, assim, a sua condenação como litigante de má-fé».
Parece-nos irrefutável que, no âmbito da litigância de má-fé, a condenação em multa não apresenta diferenças de regime relativamente à indemnização peticionada pelas partes, no que aos princípios basilares do processo civil concerne.
Tratando-se de questão de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, deve‑se  observar o princípio do contraditório plasmado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, que determina que seja observada uma estrutura dialética, exceto nos casos de manifesta desnecessidade.
Ora, o Tribunal a quo condenou a Recorrente como litigante de má fé sem que previamente a tivesse ouvido, pelo que estamos perante a nulidade prevista no artigo 195.º do CPC.
Porém, pensamos ser desnecessária a anulação da sentença nesta parte, pelo argumento que se expõe de seguida.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 28.5.2009 (p. 09B0681, in www.dgsi.pt), «A simples circunstância de se ter dado como provada uma versão factual contrária à alegada pela outra parte, sobretudo quando tal prova se alicerça em depoimentos testemunhais que se confrontam com outros de sentido contrário, não nos parece suficiente para fundar e fundamentar a condenação da parte que viu triunfar a versão da parte contrária, como litigante de má-fé».
Ora, se bem atentarmos no elenco da factualidade provada, o Tribunal a quo nem sequer considerou provado que não houve qualquer acordo quanto ao prazo de entrega das mercadorias
A Autora alega que não se fez prova nos autos de que a Recorrente tenha agido com má‑fé e muito menos com dolo ou negligência grave, inexistindo, por isso, fundamento legal para a sua condenação em litigância de má-fé.
Aqui também lhe assiste razão.
Acresce que não é assim tão descabida a sua tese “falhada”, pois decorre da matéria de facto descrita na alínea u) que havia um transit time da viagem Leixões – Luanda entre 15-20 dias, acrescido do tempo de espera de cais no destino (alínea u) dos factos provados).
Assim, não se pode concluir que a Autora, por não ter logrado provar a existência de um prazo acordado de 15 dias, agiu com negligência grosseira.
Consequentemente, verificando-se que não está demonstrada a litigância de má fé da Autora, deve ser revogada, nessa parte, a sentença.
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Em face dos fundamentos de facto e de Direito supra explanados, a apelação da Recorrente deve improceder no que concerne à absolvição da Ré do pedido e proceder quanto à condenação da Autora como litigante de má-fé.
Uma vez que a Recorrente ficou vencida na causa, com exceção da questão da litigância de má-fé, é responsável pelo pagamento das custas do recurso, na proporção do decaimento – cf. artigos 527.º e 607.º, n.º 6, do CPC.
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IV - Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes desta 2.ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência
a) confirmar a sentença recorrida no que concerne à absolvição da Ré do pedido;
b) revogar a sentença recorrida no segmento em que condenou a Autora, como litigante de má-fé, no pagamento da multa de 5 UC.
Mais se condena a Recorrente nas custas do recurso, na proporção do decaimento.
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Lisboa, 21 de fevereiro de 2019

Gabriela Cunha Rodrigues
António Moreira
Magda Geraldes