Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26903/13.4T2SNT.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
DOCUMENTO
FACTOS CONCLUSIVOS
NULIDADE PROCESSUAL
REMISSÃO
GARANTIA BANCÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/15/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – A alegação dos factos essenciais que integram a causa de pedir apenas se poderá fazer por remissão para documentos, na perspetiva da estrita “complementação” do alegado na petição inicial, e assim desde que não redunde tal remissão, atenta a extensão e, ou, complexidade dos ditos documentos, na subalternização da petição inicial, enquanto lugar primeiro de exposição da factualidade que fundamenta a ação. II - O convite ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada é, no domínio do novo Código de Processo Civil, uma incumbência do juiz, isto é, um seu dever. III - A utilização de conceitos de direito ou conclusivos nos articulados, mais do que ser um problema de imprecisão na exposição dos factos, é um dos mais fortes indícios da insuficiência (latente) da articulação dos factos. IV – A omissão do convite ao aperfeiçoamento redunda em nulidade processual.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na secção (cível) deste Tribunal da Relação


I - A, requereu providência cautelar não especificada contra B, C, e D, pedindo:
a) que os primeiros requeridos, B e C, se abstenham de prosseguir com o pedido de pagamento do montante de € 22 000,00, ou do pagamento das prestações que garante, por via do acionamento da garantia bancária n.º 125-02-1355310, emitida em pelo D segundo requerido, até trânsito em julgado da ação que a requerente irá intentar contra os ora requeridos;
b) que o segundo requerido D, se abstenha de pagar aos primeiros requeridos, o montante de 22 200,00 €, ou do pagamento das prestações que garante, em virtude do acionamento da identificada garantia bancária até trânsito em julgado da ação que a requerente irá intentar contra os ora requeridos".
Alegando, para, que celebrou em 23 de Junho de 2008, com os dois primeiros Requeridos, na qualidade de senhorios, um contrato de arrendamento comercial do armazém n.º 12 do Bloco Um do prédio sito no concelho de …, que identifica.
Para garantia do pontual pagamento das rendas devidas pela inquilina no âmbito de tal contrato, o D prestou fiança bancária nos termos do documento denominado Garantia Bancária n.º 125-02-1355310, a qual começou a vigorar em 23 de Junho de 2008, obrigando-se a A como principal pagador e sendo o valor total da garantia até ao montante de €22.200,00.
Vindo a Requerente a proceder à denúncia do aludido contrato de arrendamento, nos termos contratualmente previstos, para produzir efeitos em 30-11-2013, através das comunicações enviadas aos primeiros requeridos, por de cartas datadas de 2 de Agosto de 2013 e de 13 de Setembro de 2013, registadas com aviso de receção.
Ao que os Requeridos contrapuseram que a denúncia da requerente "só produz efeitos a partir do termo da renovação em curso, ou seja, que são devidas as rendas que se vencerem até ao fim da renovação, isto é, em 22 de Junho de 2014.".
Entretanto comunicou a requerente a situação igualmente ao D, através de cartas datadas de 4 de Outubro de 2013, 16 de Outubro de 2013 e 6 de Novembro de 2013, solicitando, concomitantemente, a suspensão/ extinção da garantia prestada no âmbito do contrato de arrendamento em questão.
E “26º A Requerente tem fundado receio que os primeiros requeridos,
beneficiários da garantia, accionem a mesma, e que a instituição bancária
garante proceda ao pagamento das prestações que garante.

27º Pelo que é notório para a requerente a aparência da existência de um
direito; fundado na denúncia do contrato de arrendamento; pelo que, consequentemente, extingue-se
ipso iure a garantia bancária;
28º Sendo legítimo o fundado receio da requerente de que esse direito - a
ver denunciado o contrato de arrendamento e extinta da garantia - sofra
lesão grave e de difícil reparação
(periculum in mora) em consequência do
pagamento pela entidade garante de valores pecuniários através a garantia bancária em questão;

29° Razão que leva a requerente a recorrer ao presente procedimento a
fim de evitar uma lesão gravíssima na sua esfera patrimonial, bem como o
de ver o seu direito a ver denunciado o contrato e extinta a garantia
acautelado.”.


Citados os Requeridos, deduziram os dois primeiros oposição.
Impugnando o direito de a Requerente denunciar o contrato de arrendamento respetivo nos termos em que o fez, e sustentando a ausência de alegação, no requerimento inicial, de factos “dos quais decorra a invocada
lesão grave, o que implica a impossibilidade de prova de um dos requisitos da providência. E tal impõe o indeferimento.”.

Mais pretendendo demonstrar inexistir uma possibilidade de lesão grave que decorra do mero facto de os requeridos fazerem funcionar a garantia.
Rematando com o indeferimento da providência.

Por decisão reproduzida a folhas 84 a 96, foi julgado “improcedente o presente procedimento cautelar”.

Inconformada recorreu a Requerente, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
“1º Flui de todo o teor da providência que existe abuso da requerida em querer continuar a receber rendas por um locado que foi validamente denunciado e do qual já recebeu as chaves respectivas;
2º Concomitantemente, subiste abuso de direito por parte da primeira requerida, e devendo, consequentemente, admitir-se a providência cautelar, urgente e provisória, em sede judicial, destinada a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, uma vez que a recorrente considera que apresentou prova líquida -mais do que indiciária - da extinção aludido arrendamento comercial;
3º Dúvidas não restam, acerca da verificação de lesão do direito da requerente e também que tal lesão reveste foros de gravidade, visto que o valor económico em causa evidencia, objectivamente, que poderemos estar perante uma lesão grave e dificilmente reparável.
4º Bastando a alegação do elevadíssimo prejuízo conjugada com o acionamento da garantia de € 22 000,000 associada à denúncia e extinção do arrendamento, acrescida dos elementos juntos aos autos, maxime referir-se a incapacidade da requerente para pagar a aludida renda caso o contrato de arrendamento permanecesse, para fazer cair por terra o argumento da referida omissão do periculum in mora.
5º A prova de periculum in mora, flui implícito do contrato de arrendamento comercial e da garantia a ele associada, e in casu da denúncia operada e do pedido de reconhecimento do seu direito de não ser obrigado a pagar rendas por um locado já entregue e que não usufrui.
6º Sendo a actuação dos 1ºs requeridos abusiva.
7º Encontrando-se não só preenchidos todos os requisitos legais conducentes ao decretamento da providência requerida, bem como provado o periculum in mora.
8º A recorrente considera que a deficiência apontada pela Mmª Juíza não comporta um juízo de manifesta e evidente improcedência da pretensão jurídica formulada, nomeadamente, quanto ao requisito do periculum in mora, não se justificando o indeferimento.
9º Antes se impõe, em cumprimento dos princípios da economia processual, do inquisitório e cooperação (todos do CPC), a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição a fim de a Requerente concretizar os factos tendentes à demonstração mais cabal do prejuízo que redundará na esfera económica.
10º A recorrente face a todo o exposto clama para que seja proferido um despacho de aperfeiçoamento, em ordem a corrigir a apontada deficiência de alegação, uma vez que em rigor estamos perante insuficiência ou imprecisão de alegação quanto ao mencionado requisito (periculum in mora), a carecer de melhor concretização.”.

Propugna a revogação da decisão recorrida, mandando-se “prosseguir os termos do procedimento, ou caso assim se não entenda seja determinado o aperfeiçoamento da peça processual.”.

Contra-alegou o Recorrido B, pugnando pela improcedência do recurso.

II – Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 635º, n.º 3, 639º, n.º 3, 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, do novo Código de Processo Civil – são questões propostas à resolução deste Tribunal:
- se a requerente alegou factos suscetíveis de fundamentar o periculum in mora;
- a não ser assim, se se impunha a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial.
*
Julgou-se indiciariamente assente, na decisão recorrida:
“1. Por escrito intitulado CONTRATO DE ARRENDAMENTO COMERCIAL, datado de 23/06/2008, B e C, na qualidade de senhorios, e A, na qualidade de inquilina, ajustaram entre si o arrendamento da fracção autónoma designada pela letra “L”, correspondente ao armazém com o n.º 12 do Bloco 1 do prédio sito no Lugar …, com destino à actividade de comércio e distribuição de produtos alimentares e ingredientes para a indústria alimentar, pela renda mensal de € 1.850,00, a pagar por transferência bancária para a conta dos primeiros outorgantes, pelo prazo de um ano, com início em 23/06/2008, renovável automaticamente por iguais períodos caso não fosse denunciado por qualquer das partes – cf. documento de fls. 50 a 53 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
2. Da cláusula 4ª do escrito referido no ponto antecedente consta O arrendamento é celebrado pelo prazo de um ano, com início em 23 de Junho de 2008, renovando-se automaticamente por iguais períodos se não for denunciado por qualquer das partes nos termos em que a lei permita a denúncia. Querendo a inquilina operar a denúncia deverá fazê-lo com antecedência não inferior a sessenta dias relativamente ao prazo inicial ou ao prazo da renovação que estiver em curso. (…) – cf. documento de fls. 50 a 53 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
3. Da cláusula 9ª do escrito referido no ponto 1. consta Para garantia do pontual pagamento das rendas devidas pela inquilina no âmbito deste contrato o … prestou fiança bancária nos termos do documento denominado Garantia Bancária n.º 125-02-1355310, que fica anexo ao presente contrato, a qual começa a vigorar em 23 de Junho de 2008, conforme “fax daquele Banco, de 04.07.2008, que igualmente fica anexo. A inquilina reconhece que a existência da fiança bancária é condição essencial deste contrato de arrendamento e da sua manutenção, e, daí, se a garantia prestada se extinguir, seja qual for a razão, a inquilina obriga-se a constituir, no prazo de trinta dias a contar da extinção, nova garantia bancária, sob pena de o contrato de arrendamento se extinguir automaticamente. – cf. documento de fls. 50 a 53 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
4. O Banco …. emitiu, em 20/05/2008, o escrito intitulado GARANTIA BANCÁRIA NRº 125-02-1355310, que ficou anexo ao acordo descrito no ponto 1., com o seguinte teor: Em nome e a pedido de A., (…), o Banco … S.A. (…) vem declarar que oferece uma garantia bancária no valor de EUR 22.200,00 (…) referente ao contrato de arrendamento do (…) Armazém 12, …, pelo que se obriga como principal pagador, a fazer as entregas de quaisquer importâncias que se tornem necessárias, até àquele limite, se A. o não fizer em devido tempo. O valor total da presente garantia é pois de EUR 22.200,00 (…) – cf. documento a fls. 15 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
5. A partir de 23/06/2008, o escrito referido no ponto antecedente passou a ter a seguinte redacção: Em nome e a pedido de A, (…), o Banco …, S.A. (…) vem declarar que oferece uma garantia bancária no valor de EUR 22.200,00 (…) referente ao contrato de arrendamento do (…) Armazém 12, … pelo que se obriga como principal pagador, a fazer as entregas de quaisquer importâncias que se tornem necessárias, até àquele limite, se A. o não fizer em devido tempo. O valor total da presente garantia é pois de EUR 22.200,00 (…) e é válida pelo período de 12 meses, a contar desta data, sendo sucessiva e automaticamente renovável por iguais períodos. O prazo de interpelação para o pagamento de quaisquer quantias devidas pelo …., por força desta garantia, expira no momento em que esta, ou qualquer das suas renovações, deixar de estar em vigor, pelo que não poderá ser atendido qualquer pedido entrado nos serviços deste Banco depois desse momento – cf. documento a fls. 16 e 17 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
6. A requerente enviou aos 1ºs requeridos uma carta datada de 02/08/2013, sob o assunto “Cancelamento do arrendamento da fracção L, armazém 12, sito no …, celebrado em 05/04/2006”, com o seguinte teor: A vossa inquilina há mais de cinco anos e havendo sempre cumprido com o dever do pagamento da renda, vejo-me forçada a tomar decisões inerentes à gestão da A que passam pela necessidade de redução de gastos que não podem ser comportado nessa actual situação de perdas em vendas nos últimos anos. E é assim que me vejo forçada a resolver o contrato de arrendamento com vossas excelências, uma vez que face a actual situação, e pretendendo sempre cumprir, não gostaria de entrar em incumprimento. Pelo que venho propor a vossas excelências a entrega do local até ao final do mês de Setembro e concomitantemente, proceder ao pagamento das duas rendas. (…) – cf. Documento a fls. 18 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
7. Os 1ºs requeridos responderam à requerente, através de carta datada de 16/08/2013, que a mesma recebeu, com o seguinte teor: (…) O contrato renovou-se em 23 de Junho do corrente ano. Portanto a denúncia de vossas excelências só produz efeitos a partir do termo da renovação em curso. Consequentemente são devidas as rendas que se vencerem até ao fim da renovação, isto é até 22 de Junho de 2014. (…) – cf. documento a fls. 24 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
8. A requerente enviou aos 1ºs requeridos uma carta registada com aviso de recepção, que os mesmos receberam em 23/09/2013, sob o assunto “correcção e aditamento da nossa carta de 2 de Agosto de 2013”, com o seguinte teor: Vimos pela presente proceder à correcção do teor da nossa comunicação de 2 de Agosto de 2013, porquanto nessa carta escreveu-se que a denúncia produziria os seus efeitos em 30 de Setembro de 2013, quando na realidade produzirá os seus efeitos em 30 de Novembro de 2013, data em que o locado (…) será entregue a V. Exas. livre e devoluto de pessoas e coisas. Inexiste, assim, fundamento legal para a pretensão expressa na Vossa carta datada de 16 de Agosto de 2013, no sentido de que a nossa denúncia só seria susceptível de produzir os seus efeitos em 22 de Junho de 2013. (…) – cf. documentos de fls. 19 a 22 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
9. Os 1ºs requeridos responderam à requerente, através de carta registada com aviso de recepção, datada de 25/09/2013, que a mesma recebeu, com o seguinte teor: (…) nada temos a alterar à nossa comunicação anterior. E, portanto, a denúncia de V. Exas. só pode operar no final do prazo da renovação que está em curso. (…) – cf. documento a fls. 25 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
10. Os 1ºs requeridos enviaram à requerente uma carta registada com aviso de recepção, datada de 10/10/2013, que a mesma recebeu, com o seguinte teor: (…) Acusamos a recepção da vossa carta de 30 de Setembro de 2013. Nada temos a acrescentar ao que antes vos transmitimos. De todo o modo queremos fazê-los crentes de que se as rendas que se vencerem até final da renovação em curso não forem pontualmente pagas accionaremos a garantia bancária.. (…) – cf. documento a fls. 26 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
11. A requerente enviou ao 2º requerido uma carta registada com aviso de recepção, datada de 04/10/2013, sob o assunto “Extinção Garantia Bancária n.º 125-02-1355310”, com o seguinte teor: Termos em que se considera validamente denunciado o contrato de arrendamento em causa, e, concomitantemente, se requer ao D a extinção imediata da Garantia Bancária n.º (…), com os fundamentos invocados, e ordena-se o não pagamento de qualquer valor ao beneficiário face ao cumprimento da requerente, e tudo isto independentemente da devolução física do documento que incorpora a fiança por parte dos beneficiários, dado que a garantia em causa deixou de ter eficácia jurídica a partir deste momento (…) – cf. documento de fls. 28 a 33 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
12. A requerente enviou aos 1ºs requeridos uma carta registada com aviso de recepção, datada de 11/10/2013, que os mesmos receberam, sob o assunto “comunicação de solicitação de extinção de garantia”, com o seguinte teor: Reportando-nos às nossas anteriores comunicações, e reiterando que a denúncia do contrato (…) produzirá os seus efeitos a partir de 30 de Novembro de 2013, data a partir da qual nos consideramos desvinculados para com V. Ex.ªs de qualquer relação contratual no âmbito do arrendamento do armazém 12 (…). E, considerando ainda que mais nenhum valor pecuniário é devido (…), uma vez que se encontram pagas todas as rendas até ao fim do mês de Novembro de 2013, vimos comunicar o seguinte: - que por carta registada datada de 4 de Outubro de 2013 solicitámos ao Banco D que a garantia bancária (…) fosse considerada extinta a partir daquele momento, deixando de ter eficácia jurídica, bem como se ordenou o não pagamento de qualquer valor aos beneficiários. Em face do exposto, deverão (…) proceder à entrega do documento supra mencionado, que incorpora a fiança, ao D. (…) – cf. documento a fls. 27 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
13. A requerente enviou ao 2º requerido, através do seu mandatário, duas novas cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 19/10/2013 e de 06/11/2013, sob o assunto “Extinção Garantia Bancária n.º 125-02-1355310”, na qual reiterou a anterior comunicação – cf. documentos de fls. 34 a 43 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.”.
*
Vejamos.

II – 1 – Do periculum in mora.
1. Sob a epígrafe “Âmbito das providências cautelares não especificadas”, dispõe-se no art.º 362º do novo Código de Processo Civil – que mantém o regime constante do art.º 381º do Código de Processo Civil de 1961: “1 - Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão
grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conserva­tória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.”.

Sendo que não é “aplicável” uma tal providência, “quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte”, vd. n.º 3, cit. art.º.
Tendo-se assim, como requisitos gerais dos procedimentos cautelares: a) a probabilidade séria da existência do direito invocado b) o fundado receio de que outrem, antes de a ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito c) adequação da providência à situação de lesão iminente d) Inexistência de providência específica que acautele aquele direito.
E podendo, como expressamente se consignou no texto da lei, ser a providência requerida do tipo conservatório, ou do tipo antecipatório.

As providências do primeiro tipo, visam acautelar o efeito útil da ação principal, assegurando a permanência da situação existente quando se despoletou o litígio ou aquando da verificação da situação de periculum in mora.
Com as segundas, o tribunal, atenta a urgência da situação carecida de tutela, antecipa a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal e que será objeto de execução.
2. Considerou-se, na decisão recorrida, “que a requerente, para lograr obter vencimento na sua pretensão, teria de ter alegado e demonstrado quais as consequências que lhe adviriam do accionamento da garantia bancária em questão (designadamente que ficaria numa situação financeira debilitada por, por exemplo (…)  Sucede, porém, que a requerente nada disto alegou e, por isso, também nada demonstrou e a verdade é que o montante da garantia (€ 22.200,00), por si só, também nada diz
Ora a falta de alegação dos aludidos factos tendentes ao preenchimento do periculum in mora determina, por si só, a improcedência do presente procedimento e daí que nem sequer haja necessidade de apreciar do preenchimento dos demais requisitos, posto que os mesmos são cumulativos
Por todas as razões aduzidas, não estando demonstrando que o accionamento da garantia bancária em questão consubstancie uma lesão que mereça tutela através do presente procedimento cautelar comum, tem o mesmo, necessariamente, de improceder.”.

Importando assim verificar se face ao alegado no requerimento inicial é possível equacionar a probabilidade de danos e prejuízos (graves) que a normal demora de decisão definitiva possa causar e a difícil ressarcibilidade daqueles.

Ora, e desde logo, abarcando a proteção cautelar tanto os prejuízos imateriais ou morais, “por natureza irreparáveis ou de difícil reparação”, como “ainda os efeitos que possam repercutir-se na esfera patrimonial do titular”, ponto é que “Quanto aos prejuízos materiais o critério deve ser bem mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.
Apesar disso, não deve excluir-se, como aliás, a lei não exclui, a possibilidade de protecção antecipada do interessado relativamente a prejuízos de tal espécie, embora devam ser ponderadas as condições económicas do requerente e do requerido e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados”.[1]
E ao impor a lei o “fundado” do receio, quis significar dever apoiar-se aquele “em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade”.
Visando-se igualmente, com tal qualificativo, “restringir as medidas cautelares, evitando que a concessão indiscriminada de protecção provisória, eventualmente com efeitos antecipatórios, possa servir para alcançar efeitos inacessíveis ou dificilmente atingíveis num processo judicial pautado pelas garantias do contraditório e da maior ponderação e segurança que devem acompanhar as acções definitivas”. [2]
 Sendo ainda que como, sobre esta questão do “fundado receio”, expendem José Lebre de Freitas. A. Montalvão Machado. Rui Pinto,[3] “Dadas a provisoriedade da medida cautelar e a sua instrumentalidade perante a acção de que é dependência…” bastará ao Requerente “…fazer prova sumária do direito ameaçado…; mas já não é assim no que respeita ao periculum in mora, que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer acção; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito”.
Tendo esta Relação julgado, em Acórdão de 19-10-2010,[4] que «Por outro lado, (cfr. Manuel Rodrigues, " in Processo Preventivo e Conservatório, pág. 67) a violação receada não será qualquer uma mas aquela que "modificando o estado actual, possa frustrar ou dificultar muito a efectividade do direito de uma parte. Para justificar o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação não basta um acto qualquer, mas sim aquele que é capaz de exercer uma dificuldade notável, importante para o exercício do direito
Ou seja, não basta, para o deferimento da providência, que se conclua pela possibilidade de o requerente poder vir a sofrer um qualquer dano. Tal dano tem de revestir uma gravidade assinalável, ser penoso e importante (que se sente e que causa "mossa" ao requerente), de tal forma que a sua reparação posterior seja inviável ou mesmo meramente difícil.
Este último requisito há -de aferir-se já não através de um juízo de mera probabilidade (como o da verificação da aparência do direito) mas sim através de um juízo de realidade ou de certeza.».

3. Como resulta do assinalado supra, em sede de relatório, a requerente limitou-se a invocar “o fundado receio (…) de que esse direito – a ver denunciado o contrato de arrendamento e extinta (d)a garantia – sofra lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora) em consequência do pagamento pela entidade garante de valores pecuniários através da
garantia bancária em questão;”.

O que justificaria o lançar mão “ao presente procedimento a fim de evitar uma lesão gravíssima na sua esfera patrimonial, bem como o de ver o seu direito a ver denunciado o contrato e extinta a garantia acautelado.” (sic).
Tanto mais – do que apenas em requerimento ulterior à deduzida oposição se deu conta, sendo convocado em sede de alegações de recurso – que se trata do pagamento de rendas “por um locado já entregue e que não usufrui”.

Tudo, portanto, eminentemente conclusivo.

Acolhendo-se o entendimento expresso na decisão recorrida de que o montante da garantia, por si só nada implica quanto à probabilidade de
“lesão grave e de difícil reparação”.

Para além de não proceder – em vista do que se deixou dito em sede de caracterização de tal requisito – a alegação de que “a prova de periculum in mora, flui implícito” da referência à “incapacidade da requerente para pagar a aludida renda caso o contrato de arrendamento permanecesse, a invocação da denúncia operada e do pedido de reconhecimento do seu direito de não ser obrigado a pagar rendas por um locado já entregue e que não usufrui” (ponto, este último, alegado em requerimento posterior à deduzida oposição à providência).
Sendo, e desde logo, que a Requerente NÃO alegou, no requerimento da providência, essa agora verbalizada incapacidade para pagar a aludida renda, caso o “contrato de arrendamento permanecesse”.
Irrelevando que porventura o haja insinuado em documento junto com o requerimento inicial…para prova da comunicação da denúncia do contrato de arrendamento.
Certo que os factos que sirvam de fundamento ao procedimento, devem ser expostos articuladamente no requerimento inicial daquele – cfr., os artigos 147º, n.º 2, e 365º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, e, especificamente quanto à petição inicial, nas ações, o art.º 552º, n.º 1, alínea d), do mesmo Código.
 E mesmo concedendo que a alegação dos factos se possa fazer por via indireta, por remissão para documentos, tal, como se decidiu no Acórdão desta Relação, de 2011-05-26,[5] será «sempre e só na perspectiva da estrita “complementação” do alegado na petição inicial, e assim desde que não redunde tal remissão, atenta a extensão e, ou, complexidade dos ditos documentos, na subalternização da petição inicial, enquanto lugar primeiro de exposição da factualidade que fundamenta a acção.».

Concluindo-se assim que, perante os factos alegados no requerimento inicial da agravante, não são configuráveis todos os requisitos exigidos por lei para o decretamento da requerida providência cautelar, e, mais exatamente, o periculum in mora, com o alcance que se deixou definido supra.

Com improcedência, nesta parte, das conclusões da recorrente.

II – 2 – Do convite ao aperfeiçoamento.
Ponto é, porém, que nos termos do disposto no art.º 590º, do novo Código de Processo Civil – vigente à data da entrada do requerimento inicial do procedimento – findos os articulados:
“1 – (…)
2 – (…)
3 – (…)
4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
5 - Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
6 - As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos nºs 4 e 5, devem
conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265º, se forem introduzi­ das pelo autor, e nos artigos 573º e 574º, quando o sejam pelo réu.

7 - Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados.”.

Assim, e como anotam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “O convite ao supri­mento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada é agora uma incumbência do juiz, isto é, um seu dever. A intenção do legislador é clara: a ação ou a exceção não podem naufragar por insuficiências ou imprecisões na exposi­ção ou concretização da matéria de facto alegada.
(…)
O juízo de manifesta improcedência continua a poder ser formulado; todavia, deve ele assentar numa estrutura narrativa suficiente e precisa apresentada pelo autor. O mesmo se diga dos fundamentos da defesa. Por exemplo, se o réu confirma os factos articulados pelo autor, limitando-se a invocar uma difficultas praestandi - e os factos que a revelam -, a matéria alegada é insuficiente para a obtenção do efeito pretendido, mas não estamos perante uma insuficiência de alegação.
(…)
O aperfeiçoamento da exposição dos factos articulados não se destina a prestar um ser­viço público de proteção da parte carenciada de assistência (judiciária), face a eventuais­ limitações do seu patrocínio forense. Não está aqui em causa garantir a igualdade substancial entre as partes (art. 4º) ou a equidade processual (em sentido estrito). O interesse perse­guido pela lei e pelo órgão jurisdicional é aqui o interesse último do processo: a justa com­posição do litígio (arts. 6º, nº 1, 7º, nº 1, 411º). A exposição factual imperfeita permite uma decisão correta, suportando a parte as consequências da sua incapacidade de narração. Todavia, se a justiça pública existe para que aquele fim seja alcançado, então não se deve bastar com decisões apenas formalmente corretas, quando possa ir mais além.
 (…)”.
Sendo que “O relato da relação material con­trovertida apresentado pela parte é suficiente quando é consequente, isto é, quando permite um raciocínio silogístico que leve à conclusão que apresenta - a condenação no pedido ou a procedência da exceção.”.
(…)
O juiz não está aqui na posição de julgador, justificando a sua intervenção na inconclu­dência do relato apresentado. Não lhe cabe convidar a parte a apresentar um relato de onde resulte a procedência da ação, como que sugerindo a apresentação de uma história melhor ou a invenção de uma.
O juiz está, sim, na posição do leitor - jurista, é certo - que, perante a descrição de um acontecimento, deteta uma lacuna, um salto na crónica. Esta falha narrativa pode ser patente, quando não permite compreender a concreta tessitura da relação material controvertida, mas também pode ser latente, quando a história aparenta estar completa, mas outros fatores levem o leitor jurista a concluir o contrário. A utilização de conceitos de direito ou conclusi­vos nos articulados, mais do que ser um problema de imprecisão na exposição dos factos, é um fator que permite ao leitor perceber que a história compreende algo mais do que aquilo que foi factualmente narrado. É um dos mais fortes indícios da insuficiência (latente) da articulação dos factos.”.

Referindo Teixeira de Sousa, no Blog do IPPC:[6]
“3. A observação que importa fazer é que a omissão do convite ao aperfeiçoamento dos articulados pode efectivamente constituir uma nulidade processual (decorrente, naturalmente, de uma omissão do tribunal). O dever de cooperação que é imposto ao tribunal tem de ser “levado a sério”: ou esse dever é exercido com a finalidade que está subjacente à sua consagração na lei ou então não passa de um dever cujo incumprimento não tem qualquer consequência – o que, naturalmente, não se pode admitir.
Segundo o disposto no art. 590.º, n.º 2, al. b) e 3, nCPC, incumbe ao juiz providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, dirigindo o correspondente convite à parte. O juiz não tem, em todo e qualquer caso, de dirigir à parte o convite ao aperfeiçoamento do articulado. (…) se, mesmo que se fosse formulado um convite ao autor para aperfeiçoar a sua petição inicial, a acção haveria de improceder, não pela falta de esclarecimento de um facto constitutivo, mas pela falta de um facto constitutivo integrante da causa de pedir, é claro que não tem sentido dirigir esse convite. (…)
O que o tribunal não pode é deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado e, mais tarde (no despacho saneador ou na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado. Admitir o contrário seria desconsiderar por completo o dever de cooperação do tribunal: afinal, mesmo que este dever não tivesse sido cumprido, o tribunal poderia decidir como se tivesse sido dirigido à parte um convite ao aperfeiçoamento do articulado.
Resta concluir que, se o tribunal não convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado e, na decisão da causa, considerar improcedente o pedido da parte pela falta do facto que a parte poderia ter invocado se lhe tivesse sido dirigido um convite ao aperfeiçoamento, se verifica uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), nCPC): o tribunal conhece de matéria que, perante a omissão do dever de cooperação, não pode conhecer. Esta nulidade só pode ser evitada se, antes do proferimento da decisão, for dirigido à parte um convite ao aperfeiçoamento do articulado.”.

Perante este novo paradigma do processo civil – que se articula com outras “soluções”, como seja a da desnecessidade de manifestação de vontade da parte no aproveitamento dos factos essenciais complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e resultem da discussão da causa, cfr. art.º 5º, n.º 1, alínea b), do novo Código de Processo Civil, e sem que nos caiba pronúncia sobre a bondade de tal solução, nem elaborar projeções quanto aos seus resultados no médio prazo – temos de concluir que omitiu a 1ª instância, in casu, um convite à parte que a lei processual impunha.
Omissão essa que, como é óbvio, influiu no exame e decisão da causa.

Verificando-se pois a correspondente nulidade processual, inquinadora da decisão recorrida - cfr. art.º 195º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil – e que, salvo o devido respeito pela opinião de Teixeira de Sousa, prejudica o equacionável de qualquer excesso de pronúncia reportada à inconcludência da causa de pedir, por ausência de alegação de facto essencial.
O vício está a montante, na omissão do despacho, que não a jusante, no conhecimento do que poderia ter sido suprido caso tal omitido despacho tivesse sido proferido…e correspondido.

Com procedência, aqui, das conclusões da recorrente.

III – Nestes termos, acordam em julgar a apelação procedente, e anulam a decisão recorrida, a substituir por outra que convide a Requerente da providência cautelar a, em prazo, suprir a apontada insuficiente concretização de factos de que conclui o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável.

Custas pelo vencido a final.
*
Lisboa, 2014-05-15

Ezagüy Martins

Maria José Mouro

Maria Teresa Albuquerque

[1] Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do processo civil”, Vol. III, 2ª ed., Almedina, 2000, págs. 82-83.
[2] Idem, pág. 87.
[3] In “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 6.
[4] Proc. 1600/10.6TBCSC-A.L1-1, Relator: ANTÓNIO SANTOS, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf. No mesmo sentido veja-se ainda o Acórdão desta Relação mais recente, de 16-01-2014, Relator: VÍTOR AMARAL, no mesmo sítio da Internet.

[5] Proc. 3291/10.5TBCSC.L1, Relator: o mesmo do presente recurso.
[6] In https://sites.google.com/site/ippcivil/, “Posted: 09 Apr 2014 11:35 AM PDT”.