Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
288/18.0T9LRS.L1-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: CRIME DE INJÚRIA
FACTOS PRATICADOS NO DECURSO DE UM JOGO DE FUTEBOL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I- No crime de injúrias, o direito penal não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidade do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros, sendo ainda de frisar que na avaliação do preenchimento do tipo de crime de injúria não basta a consideração das palavras e expressões proferidas: é preciso situá-las no enquadramento preciso em que foram ditas;
II- No mundo do desporto, e, em particular, do futebol, estão instituídas determinadas práticas que a generalidade das pessoas valora de uma forma mais permissiva, desde que tais condutas se desenvolvam no âmbito restrito do sub-sistema desportivo, sucedendo tal com as injúrias;
III-  Assim se no decurso de um jogo de futebol, entre o clube de que era treinador o Assistente – Clube Futebol S I- e o Grupo D de L, cujo delegado de jogo era o arguido, ocorreu uma troca de palavras e uma discussão entre o assistente e o arguido no decurso da qual este dirigindo-se aquele disse “Vá lá p’ra barraca, vai mas é pó caralho seu filho da puta”, tais expressões feitas  no seio do “mundo do futebol”, não se podem considerar que tenham atingido um patamar de obscenidade e grosseria de linguagem, nem que aquelas expressões tenham colidido com o conteúdo moral da personalidade do visado nem atingido valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal;
IV-No contexto de acesa discussão, numa envolvência futebolística, em que foram proferidas, aquelas palavras não têm outro significado que não seja a mera verbalização das palavras obscenas, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação do visado. Traduzem sim um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral e contra as regras da ética desportiva; contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, é também ele, de alguma forma tolerado nos bastidores da cena futebolística. Eventualmente, deverá ser sancionado disciplinarmente, mas daí a sê-lo penalmente a resposta terá de ser negativa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes da 9ª. Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO.

No processo comum supra identificado, do Juízo Local Criminal de Loures- Juiz 4, do Tribunal da Comarca de Lisboa Norte, o assistente BB…deduziu acusação particular, que o Mº.Pº. acompanhou- fls.55 e 56- contra AA…, imputando-lhe a prática do crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal.
Em despacho judicial, proferido em 26/03/2019- fls. 67 a 69 dos autos- a Mmª. Juíz titular rejeitou a acusação deduzida, que considerou manifestamente infundada, ao abrigo do disposto nos artigos 181 do C.P., 311-2 a) e 3 d) do C.P.P.
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Inconformado, o assistente BB.., veio interpor recurso do referido despacho, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 78 a 83 dos autos, onde escreveram as conclusões que se transcrevem:
A) O Assistente não pode concordar com o entendimento defendido pelo Tribunal a quo, pois, atenta a factualidade alegada pelo Assistente e o contexto na qual a mesma decorreu e, bem assim, a qualidade em que, quer o Assistente, quer o Arguido, se encontravam a agir no momento da prática dos factos não se pode afastar a dignidade penal do comportamento do Arguido, nem se pode qualificar as expressões proferidas pelo mesmo, como não ultrapassando “ ... o nível discursivo da indelicadeza ou grosseria, aptas a qualificar pejorativamente quem as produz, mas inócuas para atingir as referenciadas honorabilidade ou respeitabilidade de quem as ouve.”
B) Assim, errou o Tribunal a quo, padecendo a sentença ora recorrida de um vício de erro na apreciação dos factos trazidos ao conhecimento do Tribunal e erro na subsunção dos factos ao direito, com clara violação do disposto no Art. 181º, do CP, ao considerar os factos em causa não subsumíveis ao tipo de crime aí previsto.
C) São elementos constitutivos do tipo de ilícito aqui em causa:
a) o ato de injuriar outrem;
b) dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração;
c) a existência de dolo, em qualquer das suas formas.
D) A honra é a dignidade subjetiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um. E a consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objetiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão.
E) O crime de injúrias é um crime de perigo, pois, como ensina Beleza dos Santos, “a lei não exige, como elemento do tipo criminal, em nenhum dos casos, um dano efectivo do sentimento da honra ou da consideração. Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se.”
F) Posto isto, e delimitado o tipo de ilícito que aqui está em causa, importa responder à pergunta: Será a factualidade imputada na acusação particular ao Arguido suscetível de preencher os elementos constitutivos do tipo legal de crime de injúria, p. e p. pelo Art.º 181º, 1, do CP? Entendemos, inequivocamente que sim, ao contrário do que foi decidido na sentença recorrida.
G) Ao proferir a sentença ora recorrida, o Tribunal a quo, não levou em linha de conta dois dados fundamentais: a) que existem expressões que, objetivamente, atingem o património pessoal do individuo a quem tais expressões são dirigidas, humilhando as mesmas; b) a qualidade em que agiam, no momento da pratica dos factos, quer o Assistente, quer o Arguido, já que ambos se encontravam no local no exercício de funções determinadas, e não meramente como espetadores.
H) É inequívoco que existem determinadas expressões que são comunitariamente tidas como obscenas e que, contêm em si mesmas uma carga de ofensividade que lhe é inerente.
I) Pelo que, atenta essa perceção que tais expressões acarretam e encerram em si mesmas, quando dirigidas a um individuo determinado, de forma direta, e intencional, as mesmas atingem o património pessoal deste, atingindo a sua honra, e dignidade e humilhando o indivíduo a quem são dirigidas.
J) E, a expressão “filho da puta” carrega em si mesma essa carga negativa, reconhecida de forma geral pela comunidade, pelo que da mesma tal negatividade e intenção de ofender, maltratar e humilhar não podem ser retiradas.
K) Pelo que, é forçoso concluir que a expressão aqui em causa se trata de uma expressão que atinge necessariamente a honra do visado, pelo que, quem dirija tal expressão a terceiro, de forma direta e intencional, ofende e injuria o mesmo, preenchendo, assim, o tipo de ilícito previsto no Art. 181º, do CP.
L) Entendimento este que é defendido na jurisprudência, nomeadamente no Ac. da Relação de Guimarães de 30.11.2009, do qual resulta que: a) há palavras cujo sentido primeiro e último é tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração”; b) há expressões que exprimem e encerram em si mesmas um indesmentível desvalor objetivamente ofensivo.
M) Não ponderou o Tribunal a quo a qualidade em que agiam, no momento da prática dos factos, quer o Assistente, quer o Arguido, já que ambos se encontravam no local no exercício de funções determinadas, e não meramente como espetadores.
N) Na qualidade de dirigente de um clube desportivo o Arguido está sujeito a regras de ética desportiva, nomeadamente as previstas no Código de ética Desportiva, das quais se realçam as seguintes:
“Reger-se por princípios de honestidade e de integridade de caráter - Integridade.”; e “Não proferir, sob qualquer forma, declarações depreciativas do mérito e do valor, das demais associações ou sociedades desportivas, bem como dos dirigentes, praticantes, treinadores, árbitros ou outros agentes desportivos.” (sublinhado nosso)
O) Assim sendo, o contexto em que foram proferidas as expressões injuriosas por parte do Arguido não deveria ter servido para afastar a dignidade penal do comportamento do Arguido, mas antes pelo contrário para, de forma, inequívoca, conferir carater penal ao mesmo.
P) Pois, se, como atrás se demonstrou, tais expressões são, sempre, objetivamente ofensivas, atenta a perceção que, das mesmas, a comunidade genericamente considerada tem, tal grau objetivo de ofensividade aumenta, e não diminui, quando quem as profere está obrigado a especiais deveres de urbanidade e integridade.
Q) Errou o Tribunal a quo ao rejeitar a acusação particular deduzida pelo Assistente, pelo que, deve a sentença recorrida ser substituída por outra que aceite a acusação particular deduzida pelo Assistente e prossigam os autos para julgamento.
 Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência ser a decisão recorrida substituída por outra que aceite a acusação particular deduzida pelo Assistente e prossigam os autos para julgamento.
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Respondeu o arguido, nas fls.89 e 90, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Respondeu o Mº.Pº. a fls.91 a 107, onde concluiu que o recurso interposto deve ser improcedente.[1]
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Neste Tribunal a Ex.m.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer aderindo à resposta apresentada pelo Mº.Pº. na 1ª. Instância.
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Cumpridos os vistos, procedeu-se a conferência.
Cumpre conhecer e decidir.

II- MOTIVAÇÃO.

É jurisprudência constante e pacífica (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Ac. do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série-A, de 28.12.95).

No caso, o objecto do recurso visa a discordância da integração da qualificação jurídica dos factos apurados nos autos, que o Tribunal fez no despacho de rejeição da acusação particular.
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Consta do despacho recorrido:
(transcreve-se)
O Tribunal é competente.
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O assistente BB…. deduziu acusação particular contra AA…imputando-lhe a prática de um crime de injúria p. e p. pelo art.181º do Código Penal.
O Ministério Público declarou acompanhar a acusação deduzida.
Analisando.
Dispõe o art. 311º do Código de Processo Penal:
1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do nº1 do artigo 284º e do nº4 do artigo 285º, respectivamente.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
Determina o art. 285º do Código de Processo Penal que, no caso de o
inquérito ter por objecto um crime de natureza particular, como no caso sub judicie, compete ao assistente deduzir acusação, o que deverá ser feito nos termos previstos no art. 283° n°s 3 e 7 (n°s 1 e 3).
O assistente imputa ao arguido a prática de um crime de injúria p. e p. pelo art.181° n°1 do Código Penal.
Prescreve o art.181° n°1 do Código Penal que quem injuriar outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias.
Neste ilícito o bem jurídico protegido é a honra, nas suas múltiplas cambiantes, pois que se trata de um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exteriores.
O elemento objectivo deste ilícito criminal é a injúria a outrem, consistente na imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou a prolação de palavras ofensivas da honra ou consideração alheias.
O elemento subjectivo consiste na enunciação factual de uma intenção de actuação ofensiva, uma vez que estamos perante um ilícito de natureza dolosa, mas que não exige dolo específico.
Trata-se de um crime de perigo na medida em que não é necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender. Basta a idoneidade da ofensa para produzir o dano.
Como se decidiu no Ac. do TRP de 07-12-2005 relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Borges Martins, consultado in www.dgsi.pt, é próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade. Fazem parte da sua estrutura ontológica as desavenças, diferentes opiniões, choques de interesses incompatíveis que causam grandes animosidades. Estas situações, entre outros meios, expressam-se ao nível da linguagem, por vezes de forma exagerada ou descabida.
E neste mesmo aresto, citando o Ac. de 12-06-2002 proferido na mesma Relação, e em que foi relator o Exmo. Sr Desembargador Manuel Braz, se decidiu que o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere  susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social que é a sua função. (sublinhado nosso).
Não cabe aos tribunais avaliar se uma afirmação é justa, razoável ou grosseira.
Não se pode pretender que as conversas discordantes tenham todas um discurso sereno, com adjectivação civilizada e detentoras de uma argumentação racional.
Apenas há um limite: não pode ser atingida a honra do visado – um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior (Comentário Conimbricense, Tomo 1,pag 607).
Alega o assistente que no decurso de um jogo de futebol entre um clube de que é treinador o queixoso e outro clube de que era delegado de jogo o denunciado, quando o assistente se encontrava a falar com o árbitro por causa do número de jogadores em campo aquando de uma substituição de jogadores que estava em curso, ocorreu uma troca de palavras entre o assistente e o arguido no decurso da qual este dirigindo-se aquele disse “Vá lá p’ra barraca, vai mas é pó caralho seu filho da puta”. Mais alega que o arguido proferiu estes insultos de viva voz, pelo que foi ouvido por quem se encontrava nas imediações, nomeadamente o delegado de jogo e director de um dos clubes de futebol. Com o seu comportamento, de forma livre, voluntária e intencional, o arguido pretendeu e conseguiu, ofender a honra e consideração do assistente injuriando-o, dirigindo-lhe palavras, formulando sobre ele juízos ofensivos da sua honra, agindo de forna consciente deliberada e voluntariamente, com o intuito de ofender a honra e consideração do assistente, bem sabendo que tal conduta é proibida por lei.
Na avaliação do preenchimento do tipo de crime de injúria não basta a consideração das palavras e expressões proferidas: é preciso situá-las no enquadramento preciso em que foram ditas (Ac do TRP de 18-01-2017 relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Maria Manuela Paupério, consultado in www.dgsi.pt).
Do mínimo de dignidade existe uma certa variedade de concepções, da qual resulta que palavras ou actos considerados ofensivos da honra, decoro ou bom nome em certo país em certo ambiente e em certo momento, não são assim avaliados em lugares e condições diferentes, pelo que, pode ser uma ofensa ilícita em certo lugar, meio, época ou para certas pessoas, pode não o ser em outro lugar ou tempo (aresto supra citado).
 
De acordo com a acusação, a expressão aqui em causa foi proferida num contexto de troca de palavras relacionadas com a prática desportiva e as regras relacionadas com o jogo que estava a decorrer.
Assim, apesar de censurável do ponto de vista ético-social, a expressão em causa, pelo contexto em que terá sido proferida, não assume relevância penal.
De facto, na avaliação que importa fazer quanto ao preenchimento do crime de injúria não basta a consideração das palavras e expressões que, em cada caso concreto, tenham sido proferidas, até porque o direito penal não pode ser chamado a intervir para impedir que alguém use linguagem desabrida, que possa incomodar, imprópria, ainda que susceptível de ferir sensibilidades.
O direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidade do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros (Ac do TRP de 26-11-2003, in www.dgsi.pt).
Atento o teor da expressão que é imputada ao arguido como tendo pelo mesmo sido proferido e o contexto em que tais factos terão ocorrido, não se pode concluir que foram ultrapassados os limites que justificam a intervenção do direito penal.
A conduta pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros, mas não o ser em termos penais (Ac. do TRC de 03-05-2010 relatado pelo Exmo. Sr Desembargador Orlando Gonçalves, consultado in www.dgsi.pt).
Assim, muito embora se aceite que o assistente tenha ficado incomodado com o comportamento do arguido, o certo é que, a injúria não se pode confundir com a mera indelicadeza ou mesmo com a grosseria.
As expressões proferidas, e na medida em que o foram num contexto de conflito (discussão) verbal, não ultrapassa o nível discursivo da indelicadeza ou grosseria, aptas a qualificar pejorativamente quem as produz, mas inócua para atingir as referenciadas honorabilidade ou respeitabilidade de quem as ouve. De facto, se unanimemente vem sendo entendido que nem todo o facto que envergonha, perturba ou humilha é injurioso ou difamatório, "... tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa" - cfr. Oliveira Mendes, in O Direito à Honra e a Sua Tutela Penal, 37 –, mais relevantemente cumpre considerar a natureza subsidiária do direito penal, decorrente do princípio da necessidade enquanto matriz orientadora em matéria de direitos fundamentais, e erigida esta a princípio jurídico-constitucional, com assento no preceito geral contido no art. 18°, nº 2 da Lei Fundamental.
Pelo exposto, por manifestamente infundada, rejeito a acusação particular deduzida por BB… contra AA… (arts.181° do Código Penal e 311° n°2 al.a) e n°3 al. d) do Código de Processo
Penal).
O assistente também deduziu pedido de indemnização civil.
Ora, nos termos do artigo 71° do Código de Processo Penal “O pedido cível
fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo...”.
Face à decisão de não recebimento da acusação particular deduzida pelo assistente, não se verifica o requisito essencial para ser apreciado o pedido de indemnização cível, uma vez que, não serão apreciados os factos imputados ao arguido e em relação aos quais o pedido de indemnização civil foi estruturado e deduzido.
Custas a cargo da assistente (art.515° n°1 al. f) do Código de Processo Penal).
Notifique.

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A questão em análise prende-se com o entendimento jurídico a fazer quanto às expressões proferidas pelo arguido “Vá lá p´ra barraca, vai mas é pro caralho seu filho da puta” durante uma discussão com o assistente.
Imputa assim o assistente ao arguido a prática do crime de injúrias p.p. pelo artigo 181-1 do C.P. segundo o qual " - Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias".
Pressupõe o preenchimento deste tipo legal de crime, a imputação de factos ou a articulação de palavras, que sejam ofensivas da honra ou consideração de outrém. Basta-se o processo executivo do crime com a prática da imputação de factos ou articulação de palavras e no que toca ao elemento subjectivo, com a suficiência do dolo genérico -(cfr.Maia Gonçalves- Código Penal 8ª edição Pág.657).
Conforme escreveu o Sr. Conselheiro Oliveira Mendes em "O direito à Honra e a sua Tutela Penal- 1996, p.40 a 59, o crime de injúrias é um crime de perigo abstracto-concreto, uma vez que a ofensividade surge aqui ligada à conduta do agente mediante a qual o perigo é desencadeado, devendo a mesma ser adequada  à criação do evento perigoso, isto é, para a verificação do elemento subjectivo basta a consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da acção previsto na norma incriminatória, sem que se exija que o agente tenha previsto o perigo em concreto.
Refere Maia Gonçalves, na obra atrás citada, que " no nº. 1, consagra-se o príncipio de que o ordenamento jurídico deve ser encarado no seu conjunto, de modo que as normas de outros ramos que estabelecem a ilicitude de uma conduta têm reflexo no direito criminal". Esta norma tem a sua justificação no facto de o direito criminal constituir a "ultima ratio" em matéria de política social, pelo que as condutas que não sejam consideradas ilícitas pelos outros ramos de direito não deverão ser criminalizadas. Abrangerá também esta norma os casos em que a própria sociedade, ou determinados sectores ou sub- núcleos dessa sociedade tendem a considerar impunes condutas que, em princípio, seriam puníveis, quer por força do exercício de interesses legítimos- como serão os casos do exercício da advocacia e do debate político- quer por força dos usos, entendidos enquanto meras práticas de facto (Mota Pinto- Teoria Geral do Direito Civil, 2ª.Ed.P.49).Ponto decisivo é que a sociedade na sua globalidade sancione esses usos, conferindo-lhes assim uma vigência tácita. E esses usos têm relevância no mundo do direito, uma vez que este não pode ser visto enquanto algo de exterior e fechado ao mundo real.
Ora, é notório que, no mundo do desporto, e, em particular, do futebol, estão instituídas determinadas práticas que a generalidade das pessoas valora de uma forma mais permissiva, desde que tais condutas se desenvolvam no âmbito restrito do sub-sistema desportivo. É o que sucede com as injúrias.
Conforme escreveu Desmond Morris em "A tribo do Futebol-P.E.ª1981,pág.19 " é, sem dúvida, verdade que se o espectador violento de futebol se comportasse da mesma maneira no local de trabalho ou entre a família e os amigos, depressa se veria envolvido em graves problemas. Os insultos, com que tão livremente fulmina autoridades, jogadores, treinadores e directores durante um desafio, provocariam de imediato a retaliação no contexto profissional ou social. Portanto, o jogo concede-lhe uma libertação dos controlos sociais..." " é esta a «teoria da válvula de segurança» do desporto competitivo. Baseia-se na tradição de que é socialmente permitido gritar, insultar e praguejar num desafio de futebol, sem que os transgressores tenham de responder por isso em tribunal. O espectador que injuria está, de certo modo, «autorizado» a fazê-lo pelo contexto do acontecimento desportivo ".
Não obstante estes entendimentos, é necessário precisar que, no caso, o visado é um interveniente do espectáculo e não um outro espectador. No entanto, e, na contextualização dos factos, não podemos esquecer que os mesmos tiveram lugar no decurso de um jogo de futebol entre o clube de que era treinador o Assistente – Clube Futebol S I- e o Grupo D de L, cujo delegado de jogo era o arguido. E, no decurso de divergências entre ambos, relativas à substituição de jogadores, gerou-se discussão entre ambos tendo o arguido proferido as expressões acima. Ou seja, não é despiciendo que no auge da discussão e, no referido “mundo do futebol” as expressões tenham atingido um ponto de obscenidade e grosseria de linguagem. E, neste contexto, será que se pode afirmar que o arguido desencadeou um atentado à personalidade moral do interlocutor- o assistente?. É que, muito embora as funções desempenhadas por cada um dentro dos respectivos clubes e nas relações profissionais entre ambos, exijam determinados comportamentos éticos, na realidade, aquelas expressões não contendem com o conteúdo moral da personalidade do visado nem atingem valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal - Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 19/04/2006, in www.dgsi.trp.pt , proc. nº 0515927 (JusNet 1586/2006); Ac. da Relação do Porto, de 19/12/2007, in www.dgsi.trp.pt , proc. nº 0745811 (JusNet 7397/2007).
No contexto de acesa discussão, numa envolvência futebolística, em que foram proferidas, as palavras não têm outro significado que não seja a mera verbalização das palavras obscenas, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação do visado. Traduzem sim um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral e contra as regras da ética desportiva; contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, é também ele, de alguma forma tolerado nos bastidores da cena futebolística. Eventualmente, deverá ser sancionado disciplinarmente, mas daí a sê-lo penalmente vai uma significativa distância.
Assim, também nós decidimos em conformidade com o despacho recorrido, que decidimos manter.

III -  DECISÃO.

Face ao exposto, acordam os juízes da 9ª Secção deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo do Assistente, fixando-se em 3Ucs a taxa de justiça devida (artº. 515-1 b) do C.P.P. e mapa III anexo ao C.C.J.).

Lisboa12/09/2019

(Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – artº 94º, nº 2 do C.P.Penal)
                                                                       
Relatora
Maria do Carmo Ferreira

Adjunta
Cristina Branco

[1] Não obstante, antes ter acompanhado (naturalmente por com ela concordar) a acusação particular deduzida pelo assistente conforme consta do despacho de fls.55 e 56 dos autos, vem agora manifestar diverso entendimento, aderindo ao despacho recorrido.