Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9184/2007-1
Relator: AFONSO HENRIQUE
Descritores: TELECOMUNICAÇÕES
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
PRESCRIÇÃO EXTINTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/12/2008
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - Quando a Lei 23/96, de 26-7, que qualifica o serviço de telefone como serviço público refere no seu artº10º que “o pagamento do serviço prestado prescreve no prazo de 6 meses após a sua prestação", o direito de exigir o pagamento é, simplesmente, o direito de enviar a factura.
II - Enviada a factura dentro dos 6 meses, o direito de exigir o pagamento foi tempestivamente exercido; não se presume qualquer pagamento, iniciando-se a prescrição quinquenal.
III - Existe uma correlação entre os dois prazos: o primeiro, de 6 meses diz apenas respeito, como se esclarece no art. 9º nº5 e 16º nº3 do DL 381-A/97, ao exigir o pagamento com a apresentação da factura; o 2º, de cinco anos, nos termos do art. 310º CC, respeita à prescrição propriamente dita, como extinção do direito por efeito do seu não exercício.
F.G.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

           N SA intentou, em 11OUT2002, acção declarativa de condenação com processo ordinário contra P Ldª pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 19.135,10, e juros, referente a serviço telefónico prestado de JUN2000 a JAN2001.
          A Ré contestou invocando a prescrição, a nulidade do contrato e a inexigibilidade do pagamento.
           A final, considerando que à data da citação já haviam decorrido mais de seis meses sobre a prestação dos serviços em causa, concluiu-se pela procedência da excepção de prescrição e absolveu-se a Ré do pedido, considerando prejudicada a apreciação das demais questões
            Inconformada, apelou a A. concluindo, em síntese, pela não ocorrência de prescrição do seu crédito.
            Não houve contra-alegação.

           Em face das conclusões apresentadas, a única questão a resolver é a de saber se ocorre ou não prescrição do crédito da Autora.

            Porque não impugnada, a factualidade relevante é a fixada em 1ª instância (fls 210-211), para a qual se remete nos termos do artº 713º, nº 6, do CPC.

A Lei 23/96, de 26-7, qualifica o serviço de telefone como serviço público e no seu artº10º refere que “o pagamento do serviço prestado prescreve no prazo de 6 meses após a sua prestação”.

Como refere o Professor António Menezes Cordeiro: “A Lei – 23/96 – passou quase despercebida, a quando da sua aprovação. Com o andar do tempo, os problemas apareceram e chegaram aos Tribunais. Estes tiveram de decidir, sem apoio da doutrina e na experiência prévia.”

No seu Estudo sobre “A Prescrição do Preço dos Serviços Públicos/Serviço de Telefone Prestados” este Insigne Professor de Direito defende que aquela Lei visa a defesa mais do utente que a do consumidor (elo fraco) e, é aplicável a todos os serviços “essenciais” enumerados no respectivo artº12º – água, electricidade, gás e telefone – desde que “disponível ao público”.

Lembra ainda, que a nível jurisprudencial começou por ser sustentado, inicialmente, que a prescrição prevista no artº10º da Lei em análise, tem natureza presuntiva – Acórdão da Relação do Porto, de 28-6-99 – e que, este aresto teve anotação desfavorável do Professor Calvão da Silva, na Revista de Legislação e Jurisprudência – RLJ – 133, 137 -, o qual defendeu a natureza extintiva de tal prescrição – igualmente, neste sentido o Acórdão da Relação do Porto, de 20-3-00, in Colectânea de Jurisprudência/XXV/Tomo2/207 -.

Segundo este último entendimento, o direito de exigir o pagamento do serviço prestado prescreve no prazo de 6 meses após a sua prestação e tem-se por exigido o pagamento com a apresentação da respectiva factura.

Diversamente, conclui, o Professor Menezes Cordeiro, que: “O direito de exigir o pagamento é, simplesmente, o direito de enviar a factura. Enviada a factura dentro dos 6 meses, o direito de exigir o pagamento foi tempestivamente exercido; não se presume qualquer pagamento, iniciando-se a prescrição quinquenal”.

Hoje constata-se que, a Jurisprudência está dividida como foi bem assinalado na sentença recorrida.

No entanto, maioritariamente, tem ido ao encontro da posição expressa pelo Professor Menezes Cordeiro, com esta argumentação: - “ … descortina-se uma certa – para não dizer clara – correlação entre os dois prazos: O primeiro, de 6 meses diz apenas respeito, como se esclarece no artº9º nº5 e 16º nº3 do DL 381A/97, ao exigir o pagamento com a apresentação da factura; o 2º, de cinco anos, nos termos do artº310º CC, respeita à prescrição propriamente dita, como extinção do direito por efeito do seu não exercício”por todos o paradigmático acórdão da Relação do Porto, de 7-6-05 publicitado in www.dgsi.pt/jtrp.nsf -.

Também nós aderimos a esta interpretação, em matéria de prescrição dos denominados serviços disponíveis ao público, por essenciais, seja por operadoras/empresas privadas, seja por operadoras/empresas públicas.

            Aplicando o entendimento adoptado ao caso concreto temos que os serviços foram prestados ente JUN2000 e JAN2001 tendo sido remetidas facturas em 2OUT2000 (referente a JUN2000), 29DEZ2000 (referente a JUL-NOV2000), 26JAN2001 (referente a DEZ2000) e 23FEV20001 (referente a JAN2001), com prazo de pagamento até, respectivamente, 22OUT2000, 27FEV2001, 15FEV2001 e 15MAR2001, e que a interposição da presente acção e a citação da Ré tiveram lugar em OUT2002.
            Todas as facturas foram apresentadas dentro do prazo de seis meses após a prestação dos serviços a que diziam respeito; e aquando da citação ainda não se encontrava decorrido o prazo prescricional de 5 anos.

Assim sendo, concluímos pela não ocorrência da prescrição, do que decorre a procedência da apelação e a necessidade de conhecer das questões consideradas prejudicadas.

            Nessa circunstância, numa primeira análise, poderia afirmar-se que esta Relação estaria habilitada a – quiçá, deveria (artº 715º do CPC) – conhecer das questões que foram consideradas prejudicadas.
            Não é esse o entendimento deste Tribunal.
            Efectivamente, em face do disposto nos artigos 20º, nº 4, da Constituição da República e 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não é apenas às partes que se exige que litiguem de forma leal (artº 266º-A do CPC) – isso também é exigível por estas ao estado, aqui ao poder de soberania que é exercido pelos juízes.
            Daí que haja que evitar as chamadas decisões surpresa. E seria isso que ocorreria se, neste momento e sem discussão prévia se tomasse posição expressa quanto a essa matéria.
            Por outro lado, ainda, não seria nem leal nem equitativo para as partes nem respeitador dos seus direitos fundamentais, logo seria inconstitucional, privá-las de um grau de jurisdição quanto à apreciação das questões jurídicas tão relevantes como as que foram postas na acção – a não ser, claro, que ambas as partes nisso tivessem expressamente assentido.

DECISÃO.
Assim e pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Relação acordam em julgar procedente a apelação e, consequentemente, declarar não verificada a excepção de prescrição, revogando a sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que conheça das demais questões postas na acção.
            Custas pela Ré.
                        Lisboa, 12 de Fevereiro de 2002.
                                   (Afonso Henrique)
                                    (Torres Vouga)
                        (Rijo Ferreira)
             [Vencido, conforme projecto de acórdão que junto]
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Voto Vencido
(…)
IV – Fundamentos de Direito
            Na abordagem da questão objecto do recurso importa, desde já, relembrar algumas noções de enquadramento dogmático.
            A prescrição, que se funda em razões de certeza e segurança jurídica bem como na dispensa da prova do devedor em função do decurso do tempo, não tem por efeito a extinção da obrigação, mas apenas a de a transformar numa obrigação natural na medida em que atribui ao devedor a faculdade de recusar o respectivo cumprimento (nisso se distinguindo da caducidade que, fundada na não utilização do direito num determinado decurso de tempo, opera a efectiva extinção do direito).
            A prescrição pode operar com diversa intensidade: de uma forma menos intensa, em que apenas faz presumir o cumprimento – prescrição presuntiva -, e uma forma mais intensa em que atribui ao devedor a possibilidade de recusar o cumprimento e de se opor ao exercício do direito – prescrição extintiva.
            Os efeitos da prescrição podem ser obstaculizados pela verificação de situação que impeça, dificulte ou torne justificado o não exercício do direito – suspensão da prescrição, em que não corre o prazo prescricional enquanto perdurar a situação – ou pelo efectivo exercício ou reconhecimento do direito – interrupção da prescrição, em que é inutilizado todo o prazo decorrido iniciando-se nova contagem do mesmo.
            Tal enquadramento dogmático tem enquadramento no regime legal da prescrição constante do Código Civil, designadamente nos artigos 298º, 304º, 312º, 318º a 322º e 323º a 326º.

            Atentemos, agora, na sequência cronológica dos regimes legais aplicáveis.
            Dispõe o artº 310º, al. g), do Código Civil que ‘prescrevem no prazo de cinco anos quaisquer outras prestações periodicamente renováveis’, entendendo-se tradicionalmente que aí se incluíam os pagamentos de água, luz e telefone.
            A Lei 23/96, de 26JUL (Lei de protecção do utente de serviços públicos essenciais) veio, entretanto, estabelecer, no nº 1 do seu artgo 10º, que relativamente aos serviços de fornecimento de água, energia eléctrica, gás e telefone ‘o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação’.
            Por seu turno o DL 381-A/97, 30DEZ (regula a prestação de serviços de telecomunicações),  veio estabelecer, no nº 4 do seu artº 9º, e reproduzindo o disposto na Lei 23/96, que ‘o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação’, aditando, porém, um nº 5 ao mesmo artigo onde prescreve que ‘para os efeitos do número anterior, tem-se por exigido o pagamento com a apresentação de cada factura’.
            A Lei 5/2004, 10FEV (Lei das Telecomunicações Electrónicas), no seu artº 127º, nº 1, al. d), revogou o DL 381-A/97 e, no nº 2, determinou a exclusão do serviço de telefone do âmbito de aplicação da Lei 23/96.

            A concretização do regime estabelecido nas disposições legais acabadas de citar tem suscitado posições divergentes na jurisprudência e doutrina[1].

            No que concerne à sucessão de leis no tempo não pode, sem mais, como o faz a apelante, defender a aplicação do regime decorrente da Lei 5/2004, na medida em que dispondo a lei apenas para o futuro (artº 12º, nº 1, do CCiv) só se colocará a problemática da aplicação do novo regime se à data da sua entrada em vigor ainda se não tiver operado a prescrição.
            Assim estando em causa o saber-se se à data da citação – OUT2002 – a prescrição havia ou não ocorrido é irrelevante a consideração do regime decorrente da Lei 5/2004; só em caso de resposta negativa é que poderá, eventualmente, haver necessidade de levar em consideração as alterações decorrentes do novo regime legal.
            Ao nível da compatibilização do regime de prescrição decorrentes da Lei 23/96 e do DL 381-A/97 com o regime estabelecido no Código Civil importa, em nosso modo de ver, começar por afirmar que não obstante o Código Civil ser um diploma fundamental no sistema jurídico nacional, nele se encontrando plasmados alguns princípios fundamentais de direito de valor reforçado, as suas disposições não são inalteráveis nem têm a virtualidade de retirar ao legislador os seus poderes conformadores, designadamente o de estabelecer regimes diferenciados ou especiais relativamente aos estabelecidos naquele código. Daí que consideremos como um falso problema a apontada questão da compatibilização de regimes.
            Com feito nada impede o legislador de criar outros prazos de prescrição para além dos previstos no regime geral estabelecido no Código Civil e de os aplicar a situações que se encontravam abrangidas nessas disposições legais (o próprio Código Civil prevê situações e prazos especiais, como ocorre nos artigos 482º e 498º).
            E o que resulta do circunstancialismo histórico-social da Lei 23/96 é, efectivamente, a criação de um tipo específico de prescrição fundado no entendimento da necessidade de protecção dos utentes de serviços públicos essenciais contra o sobreendividamento resultante do excessivo montante a que poderiam ascender as suas dívidas se não fossem diligente e oportunamente exigidas pelo credor.
            O prazo de prescrição das dívidas em causa é de seis meses após a sua prestação.

            Dogmaticamente a prescrição presuntiva aplica-se às situações de vida quotidiana em que o devedor não pede recibo ou os conserva por curtos períodos estando associado a prazos curtos.
            Alguma doutrina (designadamente Menezes Cordeiro no seu Tratado de Direito Civil) tem defendido que atenta a identidade do prazo com os estabelecidos no artº 316º do CCiv e por estar em causa situação que corresponde às situações típicas do instituto se deve considerar a prescrição em análise como prescrição presuntiva.
            Não cremos, porém, que assim seja.
            O facto de o prazo previsto – seis meses – ser de idêntica duração a um dos prazos previstos no regime geral estabelecido no Código Civil e aí só se prever esse prazo para as prescrições presuntivas, mais não é do que uma mera identidade, em nada revelando qualquer intencionalidade ou inferência no sentido da qualificação da prescrição.
            E também não está em causa uma situação típica da prescrição presuntiva (situação da vida quotidiana em que o devedor guarda os recibos por pouco tempo). Com efeito, e como generalizadamente se reconhece, a razão de ser de tal regime especial não foi a dificuldade do devedor em demonstrar o pagamento mas, e como já se referiu, a necessidade de protecção dos utentes de serviços públicos essenciais contra o sobreendividamento resultante do excessivo montante a que poderiam ascender as suas dívidas se não fossem diligente e oportunamente exigidas pelo credor. Não está em causa uma dificuldade de prova do pagamento que se colmata com uma presunção de pagamento, mas antes, para defesa do utente, uma exigência de diligência do credor sem a qual se legitima a recusa de cumprimento.
            Estamos, pois, perante uma prescrição extintiva.

            No DL 381-A/97 para além de reproduzir o prazo de prescrição de seis meses o legislador acrescentou que para efeitos do número anterior (onde fixa o prazo de prescrição) tem-se por exigido o pagamento com a apresentação de cada factura. Tendo-se, também, verificado alguma divergência quanto ao significado a atribuir a tal disposição legal.
            Segundo uns tal disposição veio clarificar que o prazo de seis meses é apenas o prazo para apresentar a factura; depois desta apresentada releva o prazo geral decorrente do artº310ª do CCiv.
            Segundo outros tal disposição não apresenta qualquer relevância, limitando-se a afirmar que a apresentação da factura é uma interpelação para pagamento.
            Segundo outros, ainda, tal disposição veio introduzir uma causa de interrupção da prescrição.
            Acompanhamos esta última posição.
            Desde logo ela resulta do teor literal dos preceitos. Depois de se determinar que o direito de exigir o pagamento prescreve em seis meses vem determinar-se que para efeitos do número anterior, ou seja, para efeitos de prescrição, a apresentação da factura corresponde ao exercício do direito de exigir o pagamento.
            Se fosse para afirmar que a apresentação da factura corresponde a uma interpelação para pagamento tal disposição legal surgiria como inútil e destituída de sentido dado que, de acordo com entendimento generalizado, a apresentação da factura é uma interpelação para pagamento. Ora, segundo o artº 9º, nº 3, do CCiv é de presumir que com a introdução daquele normativo o legislador visa um sentido útil, que só se vislumbra ser o de estabelecer uma causa de interrupção da prescrição.
            Por outro lado, e pelas razões já expostas, não se vislumbra que dela se possa retirar qualquer intencionalidade de duplicidade de prazos de prescrição – um para apresentar a factura e outro, o do regime geral, para a extinção da dívida.
            Contra a consagração de causa de interrupção da prescrição argumenta-se que, segundo o regime previsto no artº 323º do CCiv só o exercício judicial do direito é que tem aptidão para interromper a prescrição. Mas tal argumento não procede porquanto, se é verdadeira a asserção nele contida (de um ponto de vista legal, mas não já dogmático), nada impede o legislador de, por razões que entenda justificadas, criar um regime especial em que o exercício não judicial do direito é apto a interromper a prescrição. E nesse modo de ver a norma do nº 5 do artº 9º do DL 381-A/97 surge plenamente justificada e com um sentido útil manifesto.

            Aplicando o entendimento adoptado ao caso concreto temos que os serviços foram prestados ente JUN2000 e JAN2001 tendo sido remetidas facturas em 2OUT2000 (referente a JUN2000), 29DEZ2000 (referente a JUL-NOV2000), 26JAN2001 (referente a DEZ2000) e 23FEV20001 (referente a JAN2001), com prazo de pagamento até, respectivamente, 22OUT2000, 27FEV2001, 15FEV2001 e 15MAR2001, e que a interposição da presente acção e a citação da Ré tiveram lugar em OUT2002.
            Todas as facturas foram apresentadas dentro do prazo de seis meses após a prestação dos serviços a que diziam respeito, tendo essa apresentação interrompido a prescrição, só voltando a correr novo prazo após o prazo de pagamento (artº 306º, nº 1, do CCiv); prazo esse que há muito se mostrava decorrido quando, em OUT2002, teve lugar a citação.

            Donde se conclui, embora com outra fundamentação, como na sentença recorrida pela prescrição do direito da Autora.
V – Conclusões
            Do exposto podem extrair-se as seguintes conclusões:
1. Na vigência da Lei 23/96, 26JUN, e do DL 381-A/97, 30DEZ, o crédito pela prestação de serviços telefónicos prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação;
2. Tal prescrição é extintiva e não presuntiva;
3. A apresentação da factura interrompe a prescrição.
(…)
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[1] - que podem constatar-se pela leitura dos acórdãos do STJ de 13MAI2004 (proc. 04A1323), 2OUT2007 (proc. 07A2656) e 4OUT2007 (proc. 07B1996).