Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
64872/05.1YYLSB-B.L1-8
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: AVAL
LIVRANÇA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O aval constitui uma função de garantia inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou a caucioná-la.
2. A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade desta provier de vício de forma.
3. A livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado «acordo ou pacto de preenchimento».
4. Esse acordo tanto pode ser expresso como tácito, v.g., por se encontrar implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título.
5. O ónus da prova desse preenchimento abusivo impende sobre o obrigado cambiário, nos termos do art. 342º, nº 2, do CC, por se tratar de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito.

(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – 1. Banco, S.A., Sociedade Aberta, instaurou a execução apensa contra:

- H, S.A.
- R,
- M,
- J,

- A e
- E

Visando obter dos Executados o pagamento do quantitativo de € 1.903.406,04.

2. Os Executados A e E deduziram oposição à execução alegando, em síntese, que são avalistas da sociedade “H na livrança que o Banco apresentou como título executivo na execução no montante de € 1.903.406,04.
Acontece, porém, que a referida livrança foi entregue em branco ao B tendo sido celebrado o respectivo acordo de preenchimento em conformidade com a cláusula 8ª do contrato.
E o B não protestou, em tempo, a referida livrança. E não tendo sido dispensado o protesto, o portador da livrança não é titular de qualquer direito contra os avalistas pois não tem qualquer meio de provar a recusa de pagamento da mesma pelo sacado, pois tal recusa apenas se prova após o protesto da livrança. E não tendo havido esse protesto, o exercício do direito invocado contra os avalistas caducou.
Por outro lado, houve preenchimento abusivo da livrança por força de violação do acordo de preenchimento. E tendo sido prestado o aval em 1999, deve ser considerada como inadmissível a sujeição a uma dívida sem limite temporal, pois os executados deixaram de pertencer à sociedade executada e não têm maneira de controlar tal situação. O que constitui violação à ordem pública e aos bons costumes nos termos do art. 280º, nº 2, do Código Civil.
Concluem pedindo a improcedência da execução.

3. A Exequente contestou com os argumentos aduzidos a fls. 51 e segs., que consistem, em síntese, em:
- Sendo os opoentes avalistas não se impõe que se faça o protesto; também não houve qualquer preenchimento abusivo, a que acresce o facto de a Exequente não saber, nem sequer ter a obrigação de saber, se os opoentes deixaram ou não de fazer parte da sociedade executada.

4. O Tribunal “a quo” julgou a oposição improcedente, por não provada e, consequentemente, determinou que os autos de execução prosseguissem os seus termos.

5. Inconformados os executados A e E Apelaram, tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões:

1.  As relações cambiárias imediatas, são as que se estabelecem entre os sujeitos que nelas são intervenientes directos, sem intermediação de outrem, como é o caso do sacador do aceitante e do avalista em relação à pessoa à qual presta o aval.
2. Não tendo ocorrido a transmissão cambiária da livrança, o tomador é beneficiário da garantia do aval e seu destinatário definitivo, logo encontra-se no domínio das relações imediatas, já que os sujeitos da relação cambiária são exactamente os mesmos.
3. Pois que, se o título não sair do domínio das relações dos primitivos intervenientes, pode o avalista do subscritor, que é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, opor ao primitivo credor qualquer excepção de direito material, fundada sobre as relações pessoais que este pudesse opor ao negócio subjacente.
4. Uma vez que no âmbito de relações imediatas, não havendo terceiros de boa fé a proteger, não faz sentido aplicar as regras particulares dos títulos de crédito e que têm como objectivo fundamental proteger a circulação desses títulos e a segurança dos terceiros de boa fé que entretanto os tenham adquirido.
5. E, é precisamente porque o título pode apenas consubstanciar a aparência do bom direito, que se permite a oposição à execução por parte daqueles que fazem parte da relação material subjacente à emissão da livrança, triângulo do qual faz parte o avalista.
6. Pois como ficou demonstrado e resulta do texto do conte to sue se juntou com a oposição como doc. 1, os referidos avalistas fazem parte integrante do pacto de preenchimento, podendo assim defender-se contra todos os vícios constantes do título cambiário inerentes à sua emissão.
7. Tal oposição, que na prática funciona como uma contestação, permite aos oponentes carrear todas as provas e levantar todas as questões susceptíveis de fazer claudicar a boa aparência do direito inscrito no título executivo.
8. Concluímos por isso que a exigibilidade e liquidez do título é apenas aparente, uma vez que as hipotéticas obrigações constantes do título podem ser infirmadas afectando a sua exigibilidade e a sua liquidez, pois os valores pelos cais foram preenchidos podem vir a ser corrigidos em face de novas informações que condicionem o seu cálculo e em consequência o seu preenchimento.
9. Em suma, não havendo circulação da livrança, encontramo-nos no domínio das relações imediatas em que os sujeitos são os primitivos intervenientes, sendo inequívoco no caso sub judice, a possibilidade de o avalista se defender podendo opor as excepções que entenda ao título executivo.
10. Além do mais, os Apelantes são subscritores do acordo de preenchimento que integra o contrato de empréstimo, sendo portanto sujeitos mm materiais da relação subjacente à emissão da livrança.
11. Pelo que os Apelantes têm toda a legitimidade para oporem ao Exequente, aqui Apelado, todos os meios de defesa de que dispõe a subscritora por eles avalizada.
12. Salvo melhor opinião, a não se entender desta forma, estaremos a interpretar de forma inconstitucionalizante o regime jurídico das letras e livranças e a denegar a possibilidade aos Apelantes de se defenderem, nos termos do art. 20º da Constituição da República Portuguesa.
13. Não cremos ser de considerar argumento válido, e connosco grande parte da jurisprudência também não o considera, a tese de que os avalistas não têm direitos, pois trata-se de premiar o detentor de um título executivo, apenas pelo mero facto se o ser, apesar de vícios e ilegalidades de que o título possa padecer.
14. Como já se referiu, a aparência de bom direito do título executivo pode ser "atacada" e infirmada pelos primitivos intervenientes da relação cartular.
15. As partes, como ficou provado, expressamente quiseram submeter o preenchimento da livrança em causa à autorização de preenchimento subscrita pelo devedor principal, também executado, e por todos os avalistas, conforme consta do texto do contrato junto com a oposição.
16. A validade do preenchimento de uma livrança em branco deve ser atestada pelo acordo de preenchimento, celebrado por escrito, para que assira se possa aferir da legalidade vens invalidade do preenchimento.
17. Tanto a doutrina como a jurisprudência são inequívocas ao considerar que o título deverá ser reenchido de harmonia com o pacto de preenchimento, que define e delimita os termos desse preenchimento sob per a de tal preenchimento vir a ser considerado abusivo.
18. 21 Os avalistas tiveram conhecimento através da devedora originária sue a dívida se era contra extinta por qualquer meio do interesse do Exequente e que os Apelantes não têm que conhecer, porquanto lhes foi comunicada a existência de um extracto de dívida a zeros, facto que a douta sentença, com o devido respeito e salvo melhor entendimento, desprezou.
19. O Apelado/Exequente contesta alegando que o referido extracto revela não a extinção da dívida mas uma "transferência para crédito mal parado".
20. Na prática estamos perante uma cessão de créditos, já que falamos em duas entidades juridicamente distintas, e o Executado não logrou provar o contrário, operação normal e corrente, contudo sujeita a requisitos formais conforme consta do regime jurídico do Código Civil.
21. Não tendo o Exequente comunicado a cessão de créditos, nem obtido junto dos avalistas aqui Apelantes, o consentimento exigido por lei nos termos do artigo 5530 do CC para que tal cessão possa produzir os seus efeitos jurídicos.
22. Apesar de alegar ter enviado uma carta com a comunicação da cessão de créditos aos Apelantes, para uma morada que não corresponde à morada aqueles, conforme se pode comprovar pela citação de execução.
23. Não prova que a referida carta foi recepcionada, como não poderia deixar de ser, dado que não corresponde à morada daqueles, pelo que a cessão de créditos não pode produzir os seus efeitos.
24. Os Apelantes rejeitam ter alguma vez dado tal consentimento, expresso ou tácito, uma vez que não receberam qualquer comunicação por parte do Exequente referente a essa matéria, nem dela tinham qualquer conhecimento.
25. Pelo que consideram os Apelantes ter havido um preenchimento
manifestamente abusivo do título em causa.

26. Os Apelantes consideram-se ainda desvinculados da dívida err7 causa pois concederam um mandato de venda de uma sociedade (S, SA), o qual tinha como pressuposto essencial a extinção de todas as dívidas existentes junto do Exequente e respectivos avales.
27. Até porque o aqui Apelado e Exequente não veio peticionar o montante de 4.040.051,39, dívida esta que foi extinta na mesma ocasião e nas mesmas condições
28. Não se vislumbrando por isso a que título peticiona o valor em causa na presente execução, já que ambos os montantes se deveriam considerar extintos por força do acordado.
29. O Apelado conhecia a vontade dos avalistas, ora Apelantes, de se desvincularem das obrigações outrora aceites ou, ainda, por outras palavras, conhecia e não podia ignorar a sua intenção/vontade de pôr termo aos respectivos avales através da denúncia dos mesmos.
30. Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e ordenando a sua substituição por outra que determine a procedência da oposição à execução apresentada pelos aqui Apelantes, por terem legitimidade, com as legais consequências.

6. Não foram apresentadas contra-alegações.

7. Corridos os Vistos legais,
Cumpre Apreciar e Decidir.


II – Os Factos:

- Mostram-se assentes os seguintes factos:

1. Em 18/06/1999 foi emitida uma livrança, cujo vencimento ocorreu a 27/06/2005, no montante de € 1.894.478,63, da qual consta, no anverso, como subscritor a opoente “H, Lda.” – cf. doc. de fls. 12 dos autos de execução;
2. Do verso constam as assinaturas correspondentes aos nomes de todos os co-­executados, R,  M, J, bem como A e E após a menção "Por aval à firma subscritora" – cf. documento de fls. 12 verso dos autos de execução – e sendo que os ora opoentes A e E não impugnaram as suas assinaturas, pelo contrário, assumem que prestaram o aval;
3. A livrança foi emitida para garantia de um empréstimo sob a forma de Facilidade de Crédito em Conta-Corrente no montante de Esc. 395.000.000$00 – (documento de fls. 22 e 23 e não impugnado);
4. A livrança não foi paga na data do vencimento, nem posteriormente – (doc. de fls. 56 e não impugnado).


III – O Direito:

1. Resulta provado nos autos que os opoentes/Recorrentes são Executados no processo apenso instaurado pelo Exequente Banco S.A. contra os mesmos, na qualidade de avalistas, a par de outros executados.
 Resulta igualmente provado que os opoentes/Recorrentes prestaram o seu aval na livrança emitida, no montante de € 1.894.478,63, vencida a 27/06/2005, sendo subscritora da livrança a sociedade executada “H, Lda.”.

Os fundamentos invocados para a oposição foram os seguintes:
a) Falta de protesto da livrança – com a caducidade do direito do Exequente B de executar a livrança em virtude de a mesma não ter sido protestada perante os avalistas, ora oponentes;
b) Preenchimento abusivo da livrança – devendo, segundo os Recorrentes, ser declarada inexigível a obrigação subjacente à livrança dada à execução, na medida em que a mesma é inválida: foi preenchida à revelia do acordo de preenchimento, encontrando-se a dívida extinta;
c) Falta de delimitação temporal – defendem os Recorrentes ser inadmissível uma sujeição sem limite temporal à responsabilidade de uma dívida, que não têm maneira de controlar, pelo que as obrigações por tempo indeterminado são nulas.

O Tribunal “a quo” rejeitou todos os fundamentos e julgou improcedente a oposição.

2. Acontece porém que, em sede de recurso, os Executados, aqui Avalistas/Opoentes, reiteraram não só os argumentos atrás elencados,  como vieram ainda aduzir que o referido preenchimento abusivo e a falta da delimitação temporal da obrigação é inconstitucional, tendo também alegado a existência de uma pretensa cessão de créditos.
Contudo não lhes assiste qualquer razão, porquanto:

2.1. Relativamente à inconstitucionalidade argumentam os executados que ao julgar improcedente a oposição o Tribunal “a quo” está a denegar a possibilidade de os Apelantes se defenderem, o que constitui violação do art. 20º da Constituição da República Portuguesa.
Argumento que é de rejeitar.

Com efeito, os autos revelam à saciedade que nenhuma denegação de justiça foi cometida no caso concreto. Uma coisa é indeferir um requerimento ou julgar improcedente uma acção, outra, bem diversa, é impedir que alguém lance mão dos meios/mecanismos legais previstos no nosso ordenamento jurídico de molde a assegurar uma defesa.
Os Recorrentes exerceram todos os meios de defesa que a lei lhes confere, sem que tal direito lhes tivesse sido limitado ou coarctado. O que não obtiveram, da parte do Tribunal, foi acolhimento para as suas pretensões… Contudo, o deferimento ou procedência das mesmas está sujeito à aplicação e interpretação da lei ao seu caso, aqui em análise. E, como é sabido, não basta invocar que se tem razão. É preciso, acima de tudo, prová-la, tal como é igualmente necessário que o regime jurídico aplicável o preveja nos mesmos termos favoráveis.
Destarte, improcede a alegada inconstitucionalidade por inexistência de violação ao art. 20º, ou qualquer outro, da Constituição da República Portuguesa.
2.2. Quanto à cessão de créditos, constata-se que tal matéria não foi alegada, nem conhecida, nesses termos, na 1ª instância.
Trata-se, assim, de uma questão nova e, como tal, não pode, nesta parte, ser conhecida em sede de recurso.
Os recursos são o meio legal próprio de impugnação das decisões proferidas pelos Tribunais inferiores e visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova.
Pelo que, o seu âmbito encontra-se objectivamente limitado pelas questões postas ao Tribunal recorrido e não para conhecer questões novas, não apreciadas ou decididas por aquele. [1]

2.3. Posto isto, impõe-se incidir, agora, a nossa análise nas restantes questões suscitadas.

3. Quanto ao aval e a falta de protesto:

3.1. O aval é o acto pelo qual um terceiro garante o pagamento da letra ou da livrança por parte de um dos seus subscritores (cf. arts. 30°, 31 ° e 32°, ex vi art. 77°, todos da LULL [2]) sendo que o art. 32º estipula que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. E a sua obrigação mantém-se mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja o vício de forma.
O fim próprio ou a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário, uma vez que a lei estabelece o princípio de que a obrigação do avalista se mantém, ainda que a obrigação garantida seja nula – e abre uma única excepção a este princípio para o caso de a nulidade desta segunda obrigação provir de um vício de forma. [3]
Destarte, por via do aval é constituída uma obrigação ou vínculo solidário, em que o avalista responde pelo pagamento da letra ou livrança solidariamente com os demais subscritores – cf. arts. 32° e 77°, ambos da LULL.
"O avalista pela sua declaração de confiança constitui um valor patrimonial correspondente ao da operação que avaliza a favor do destinatário desta, portador legitimado do título”. [4]
Quer isto dizer que o património do avalista passa a constituir uma garantia patrimonial adicional ou paralela do respectivo credor, podendo este accioná-lo já que o crédito assumido teve como base uma responsabilidade solidária.

A solidariedade, mesmo qualificada como imperfeita na caracterização que se faça da responsabilidade adveniente das obrigações cambiárias, implica a constituição de uma pluralidade de responsabilidades patrimoniais, podendo cada uma delas ser afectada na garantia do credor.
E implica na sua essência, segundo Antunes Varela [5], uma pluralidade de obrigações, vínculos esses unidos por uma identidade da prestação (mesmo que a prestação cambiária não caiba, em termos principais, aos obrigados cambiários, mas em termos acessórios) e uma identidade finalística; caracterização que não é afastada pelo facto de estarmos perante uma responsabilidade de obrigados cambiários, uma vez que, por força do preceituado no art. 47°, I, da LULL, todo o interveniente em títulos cambiários – sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas – responde solidariamente e subsidiariamente pela obrigação incorporada no título.
Ou seja: o credor pode exigir o pagamento de qualquer deles.
São, pois, todos eles, solidariamente responsáveis para com o portador.

Tudo isto para concluir que:
- “A função do aval é uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou a caucioná-la.
- A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade desta provier de vício de forma.
- Atenta esta autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções do avalizado, salvo no que concerne ao pagamento”. [6]

Por conseguinte, sendo os Executados/Opoentes avalistas e sendo a sua obrigação materialmente autónoma, ambos são efectivamente responsáveis da mesma maneira que a pessoa por eles afiançada, mantendo-se, pois, a sua responsabilidade mesmo, como se disse, se a obrigação que eles garantiram for nula por qualquer razão, com excepção da ressalva prevista na parte final do art. 32º, II, da LULL.

3.2. Como flui do início das questões sintetizadas, uma das que importa apreciar é a da necessidade do protesto, como condição de persistência dos direitos cambiários.
Ou seja: saber se é de exigir ou não o protesto relativamente aos avalistas da subscritora da livrança.
Em sede de recurso defenderam os Recorrentes uma resposta positiva, contrariando aquilo que a jurisprudência e a doutrina largamente maioritária vêm expressando.

Com efeito, apesar das considerações jurídicas em que se fundamenta o recurso, a argumentação aduzida vem ao arrepio da generalidade da jurisprudência e da doutrina, sem que se detectem argumentos de ordem racional que imponham uma tal solução.
A razão fundamental para rejeição de tal entendimento advém da leitura do art. 32° da LULL (também aplicável às livranças, por via dos arts. 77° e 78°), na medida em que nele se dispõe que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.
Tendo o legislador estabelecido a total equiparação entre o avalista e o avalizado não há que exigir para o avalista a formalidade de apresentação a protesto que, nos termos do art. 53°, é expressamente dispensada em relação ao aceitante (nas letras) ou ao subscritor (nas livranças) e ao avalista deste.
Mas se, porventura, a extracção do verdadeiro sentido da lei carecesse de argumentos de ordem racional, ainda assim encontraríamos na própria natureza e contornos do aval apoios suficientes para se manter a solução que corresponde ao entendimento praticamente unânime na Jurisprudência e na Doutrina.
No que concerne especificamente à livrança, é sabido que recai sobre o subscritor o principal foco de responsabilidade. Independentemente de outros responsáveis intermédios, sempre lhe será exigível o pagamento da quantia inscrita na livrança na data do respectivo vencimento.
Quanto ao avalista, a sua responsabilidade emerge do facto de se vincular à obrigação assumida por outro interveniente. [7]

Por conseguinte, se relativamente ao subscritor da livrança não é necessária a apresentação a protesto por falta de pagamento, também não encontra justificação racional tal exigência imposta quando se pretenda responsabilizar o seu avalista. [8]

É abundante a jurisprudência que versa a matéria de direito cambiário e na qual se revelam opiniões de relevo e profunda argumentação no sentido da defesa da tese aqui pugnada e ao contrário da defendida pelos Recorrentes, podendo a mesma facilmente ser encontrada e nas colectâneas de jurisprudência ou, via Internet, em www.dgsi.pt.
Assim, a adesão a uma tese minoritária, sem argumentação jurídica substancialmente convincente, num quadro fáctico que não contém qualquer circunstância que apele a um outro sentido, conduziria a uma quebra da uniformidade na interpretação e aplicação da lei que não encontra no caso sub judice qualquer razão justificativa. [9]

Em Conclusão:
- Para ser accionado o avalista do aceitante (ou, no caso da livrança, o avalista do subscritor) também não é necessário proceder ao protesto da letra ou da livrança.
- E ao não proceder ao protesto da livrança o Banco Exequente/Recorrida não perdeu os seus direitos de acção contra os ora Recorrentes – cf. arts. 32º, 44º e 53º, ex vi art. 77º, todos da LULL.

4. Sobre o aval em branco e o preenchimento abusivo:

4.1. Insistem os Recorrentes na tese de que o título dado à execução – a livrança – teria sido objecto de preenchimento abusivo. Mas sem razão.

4.2. A livrança constitui um título à ordem, sujeito a certas formalidades ou requisitos essenciais, pelo qual uma pessoa se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância em certa data.
Ou seja: é um comprovativo de dívida com os requisitos essenciais mencionados no art. 75º da LULL.
E a livrança em branco é aquela a que falta algum ou alguns desses requisitos.

Sobre a sua utilização comercial e circulação no âmbito dos negócios bancários, pode ler-se o seguinte:
“Normalmente, os Bancos, como condição para a concessão do crédito, exigem ainda que a livrança em branco lhes seja entregue com a assinatura de um ou mais avalistas, independentemente de, a nível da relação de base, os mesmos serem também garantes, v.g. como fiadores. Se for esse o caso, não há dúvida de que a subscrição da livrança em branco é acompanhada de uma garantia especial, na medida em que, para além do património do mutuário, que é também subscritor da livrança, passa a haver um outro responsável – o avalista – com todo o seu património”. [10]
 
Ora, como é sabido, a livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado «acordo ou pacto de preenchimento».
Esse acordo pode ser expresso – quando as partes estipularam certos termos em concreto – ou tácito – por se encontrar implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título. Em tais circunstâncias o título deverá ser preenchido de harmonia com as referidas estipulações ou cláusulas negociais, sob pena de poder vir a ser considerado tal preenchimento como «abusivo».
Seja como for, é ponto assente que o ónus da prova desse preenchimento abusivo impende sobre o obrigado cambiário, nos termos do art. 342º, nº 2, do CC, por se tratar de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito. [11]

4.3. Por outro lado, conforme se salientou, a obrigação do avalista subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade provier de vício de forma.
A relação entre portador de uma letra/ livrança e o avalista não é uma relação imediata, mas mediata, porquanto os executados/oponentes, na sua qualidade de avalistas, que não na de sujeitos materiais da relação contratual (relação subjacente), não podem, conforme se referiu já, suscitar em sede de oposição à execução quaisquer excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, nos termos do art. 17º da LULL.
Assim, os Recorrentes, na sua qualidade de meros avalistas, não podem opor à entidade bancária Exequente a excepção do preenchimento abusivo do título.
A prestação do aval pelos Recorrentes, através da oposição no título das respectivas assinaturas, é incontroversa. Pelo que, os factos potencialmente integradores de tal alegação perfilar-se-iam sempre como de todo em todo irrelevantes em ordem à definição da respectiva responsabilidade como meros avalistas. [12]
O aval representa, deste modo, um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma de honrar o título – princípio da independência do aval.
O que não impede, contudo, que os avalistas possam invocar o pagamento.

4.4. Alegaram os Recorrentes, a este propósito, que a dívida originária da sociedade se encontra extinta, conforme o tinham feito no seu articulado inicial nos arts. 41º, 42º e segts.
Porém, tal como se referiu já, e aparece reiterado na decisão recorrida, o Banco Exequente é detentor de um título executivo, o qual, para ser executado, não carece de referência à relação material subjacente.
Assim sendo, cabia aos executados, aqui avalistas, provar essa “extinção” da dívida, através, ou do seu pagamento, ou de outra via que permitisse concluir nesse sentido, não lhes bastando alegar.
Impunha-se aos Recorrentes que efectuassem a prova do que então alegaram – cf. art. 342º, nº 2, do CC. Prova essa que não se mostra feita.
E não tendo sido demonstrado que foi efectuado o pagamento ou a referida “extinção” da dívida, e sendo o aval prestado a favor do subscritor, o acordo do preenchimento do título concluído entre este e o portador impõe-se ao respectivo avalista.

Com efeito, o avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apensa sujeito da relação subjacente ou fundamental à obrigação cambiária do aval, relação essa constituída entre ele e o avalizado e que só é invocável no confronto entre ambos. Sendo, assim, indiferente que o avalista tenha dado ou não o seu consentimento ao preenchimento da livrança, porquanto esse acordo apenas diz respeito ao portador da letra/livrança e ao seu subscritor
Mas mesmo que o avalista pudesse opor ao portador a excepção do preenchimento abusivo (estando o título no âmbito das relações imediatas) certo é que a excepção de preenchimento abusivo, como excepção do direito material que é, deveria ter sido não só alegada, como provada, por força do nº 2 do art. 342º do CC. [13]
O que não aconteceu no caso sub judice.

4.5. Salienta-se ainda que a mesma solução foi firmada quanto ao cheque pelo Acórdão Uniformizador do STJ, datado de 14/Maio/1996, no qual se decidiu:
“Em processo de embargos de executado é sobre o embargante, subscritor do cheque exequendo emitido em data em branco e posteriormente completado pelo tomador ou a seu mando que recai ónus da prova de existência de acordo de preenchimento e da sua observância”.

Nada obstando, antes aconselhando, a que se aceite válido, para as letras e livranças, este entendimento.

4.6. Ora, in casu, os Recorrentes não lograram provar quaisquer factos dos quais resulte a existência de um acordo de preenchimento em que tenham participado e quiçá a sua inobservância pelo Banco Exequente.
Por conseguinte, também improcede, nesta parte, a Apelação.

5. Quanto à falta de delimitação temporal dir-se-á, por fim, atento o que se referiu nos pontos anteriores, que sendo exigível a livrança na data do seu vencimento, o qual nela será aposto, não se pode argumentar que, em tal circunstância, exista falta de delimitação temporal de pagamento.

Neste caso concreto as obrigações não são por tempo indeterminado pois em qualquer momento os responsáveis podem pedir a indicação do seu montante e proceder ao seu pagamento.
Sendo certo que também se provou que:
- Tal livrança foi emitida em 18/06/1999, tendo o seu vencimento ocorrido a 27/06/2005, no montante de € 1.894.478,63, da qual consta, no anverso, como subscritor a opoente “H, Lda.” – cf. doc. de fls. 12 dos autos de execução e factos provados e inseridos supra, no ponto 1) da matéria de facto;
- E foi emitida para garantia de um empréstimo sob a forma de Facilidade de Crédito em Conta-Corrente no montante de Esc. 395.000.000$00, e não foi paga nem na data do vencimento, nem posteriormente – cf. documento de fls. 22 e 23, não impugnado, e factos provados e inseridos supra, nos pontos 3) e 4) da matéria de facto.

Improcede, assim, por falta de fundamento, a presente Apelação.



IV – Em Conclusão:

1. O aval assume-se como uma função de garantia inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou a caucioná-la.
2. A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade desta provier de vício de forma.
3. Atenta esta autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções do avalizado, salvo no que concerne ao pagamento.
4. A livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado «acordo ou pacto de preenchimento».
5. Esse acordo tanto pode ser expresso como tácito, v.g., por se encontrar implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título.
6. Seja como for, é uniforme o entendimento que defende que o ónus da prova desse preenchimento abusivo impende sobre o obrigado cambiário, nos termos do art. 342º, nº 2, do CC, por se tratar de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito.

V – Decisão:

- Termos em que se acorda em julgar improcedente a Apelação e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.                      

- Custas a cargo dos Apelantes.

                             Lisboa, 04 de Junho de 2009.



                               Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)

                                António Manuel Valente

                                Ilídio Sacarrão Martins


_______________________________________________________
[1] Esta questão constitui, aliás, jurisprudência uniforme. Neste sentido vejam-se, os Acórdãos do STJ., de 25/2/1993 e de 21/1/1993, in CJSTJ, T. I, págs. 150 e 71, respectivamente, e Ac. da Relação de Évora, de 27/10/1992, in CJ., T. 4, pág. 260.
[2] Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças.
[3] Neste sentido cf. Ferrer Correia, in “Lições de Direito Comercial” – “Letra de Câmbio”, págs. 196 e segts.
[4] Assim o refere Paulo Sendin, in “Letra de Câmbio” - “LU de Genebra”, vol. II, pág. 127; Vd. ainda, Ferrer Correia, in “Lições de Direito Comercial”, 1975, págs. 111, 205 e segs., e Abel Delgado, in “Lei Uniforme sobre Letras e Livranças – Anotada”, 1984, págs. 208 e segs.
[5] Cf. "Das Obrigações em Geral", Vol. I, 1986, págs. 747 e segs.
[6] Cf. o Acórdão do STJ, datado de 24/01/2008, in CJSTJ., T. I, págs. 59 e segts.
[7] Assim se decidiu no Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 15/05/2007, exarado no âmbito do Processo-Apelação nº 3860-07, relatado por António Abrantes Geraldes.
[8]  Neste sentido cf. também Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças – Anotada”, págs. 161 e 229 e segts.
[9] Cf. o Acórdão da Relação de Lisboa supra citado.
[10] Cf. Januário Gomes, in “Assunção de Dívida – Sobre o Sentido e o Âmbito da Vinculação do Fiador”, 2000, págs. 82 e segts.
[11] Neste sentido cf. o Acórdão do STJ, datado de 21/04/2004, proferido no âmbito do Processo nº 04B3453, in www.dgsi.pt., que vimos citando.
[12] Ibidem, cf. o Acórdão do STJ., datado de 21/04/2004.


[13] Neste sentido, cf. o Acórdão do STJ., datado de 24/01/2008, já citado.
Veja-se também, quanto ao ónus da prova, o Acórdão do STJ, datado de 17/04/2008, proferido no âmbito do Proc. Nº 08A727, in www.dgsi.pt.