Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1343/14.1TTLSB.L1-4
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTENCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: SUMÁRIO:
I. A intervenção principal do Ministério Público, assumida na acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho por tal competência lhe ser atribuída por lei para defesa dos interesses que a mesma visa salvaguardar, nomeadamente o combate à precariedade de modo a evitar a perpetuação das formas atípicas e injustas de trabalho, entre elas, os falsos recibos verdes, mantém-se até ao desfecho final da acção ou, melhor dito, até à extinção da instância, tendo necessariamente legitimidade para recorrer de toda e qualquer decisão recorrível que à acção respeite.
II. Através do recurso vem o Ministério Público questionar se o tribunal a quo fez a correcta aplicação do direito ao julgar extinta a instância. O seu propósito, alicerçado nos fundamentos que invoca, é o de ver a decisão revogada e, consequentemente, o prosseguimento da acção. Portanto, o Ministério Público tem interesse processual em recorrer, sendo inquestionável a necessidade que o justifica.
III. O princípio da liberdade contratual (art.º 405.º CC) não significa que esteja na disponibilidade das partes qualificarem um contrato como bem lhes aprouver - mesmo que o façam sem qualquer intenção simulatória - designadamente, denominando-o como contrato de prestação de serviços, quando na verdade do que convencionaram ou da sua execução prática resulte um verdadeiro contrato de trabalho subordinado.
IV. A declaração contida em requerimento apresentado pelo “trabalhador”, dizendo não pretender o reconhecimento de vínculo de trabalho “por não existir”, qualificando-o (em adesão expressa à posição sustentada pela R. na contestação) como “Contrato de Prestação de Serviços de Docência” e, referindo ainda pretender mantê-lo naqueles termos, não basta para conduzir à inutilidade superveniente da lide, pois equivale a fazer tábua rasa dos fins prosseguidos pela Lei n.º 63/2013. A lide não é inútil, pois não se sabe se há ou não uma situação de precariedade.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I.RELATÓRIO
I.1 No Tribunal do Trabalho de Lisboa, o Ministério Público veio, nos termos do disposto no art.º 15º-A da Lei nº 17/2009 de 14 de Setembro e art.º 186º-K do C.P.T., na redacção introduzida pela Lei 63/2013 de 27 de Agosto, intentou a presente Acção de Reconhecimento de Existência de Contrato de Trabalho contra “AA, CRL”, pedindo que se declare a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado, desde 01/10/2003, entre o trabalhador BB e aquela Ré.
No essencial, alegou que na sequência de acção inspectiva realizada pela ACT nas instalações da Ré, foi constada a existência de indícios de uma situação de prestação de trabalho relativamente à Ré e ao prestador da actividade BB que, embora tenha celebrado com aquela um contrato de docência, o mesmo foi concebido e executado, desde o seu início, como um verdadeiro contrato de trabalho subordinado.
Regularmente citada, a Ré veio apresentar contestação, defendendo-se por excepção e impugnação.
Por excepção, arguiu a caducidade da participação da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT); e, ainda, a falta de interesse em agir do Ministério Público, posto não alegar qualquer prejuízo ou desvantagem para o docente BB, enquanto dador de trabalho, nem a existência de litígio efectivo ou eventual, ou sequer mera divergência, entre as partes da relação contratual, quanto à qualificação do vínculo que as une, tal como não alega qualquer prejuízo ou desvantagem para o Estado.
 Impugnando, contrapõe, no essencial, que da participação da ACT, que inspirou integralmente a petição inicial do Ministério Público, não resultam factos que, a provarem-se, sejam, por si só, de molde a concluir pela existência de contrato de trabalho. Do “contrato de docência”, cujo clausulado é totalmente incompatível com o regime laboral, resultam referências expressas à exclusão da aplicabilidade desse regime; da participação da ACT resulta que BB teria sido contratado pela R. para leccionar 6 horas lectivas por semana, o que por si só não se afigura consentâneo com um contrato de trabalho; resulta, ainda, que a remuneração, por acordo das partes, é calculada de acordo com um determinado valor/hora; resulta, ainda, resulta que quanto a “férias” os Docentes estão condicionados pelo calendário escolar; resulta, também, que o Docente informa a sua disponibilidade, nomeadamente quais os dias da semana, que prefere para se deslocar ao seu local de trabalho.
Nada mais a ACT apurou, nomeadamente quanto a ordens instruções ou directivas que a docente, eventualmente, recebesse da R..
Conclui pugnando pela improcedência da acção e a sua consequente absolvição do pedido.
O Ministério Público apresentou resposta à defesa por excepção, pugnando pela sua improcedência.
Subsequentemente o Tribunal a quo proferiu despacho ordenando a notificação do A., com os duplicado da petição inicial, contestação e resposta apresentadas, com a expressa advertência de poder, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário (art.º 186ºL, n.º 4, e 186ºN, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo do Trabalho).
Concretizada a notificação, veio o trabalhador BB apresentar o requerimento a fls. 308, dele constando o seguinte:
Eu, BB, residente na Rua (…), Caxias, com o processo 1343/12.1TTLSB, referência 5725292, declaro que não pretendo aderir aos factos apresentados na petição inicial nem apresentar articulado próprio ou sequer constituir mandatário.
Mais declaro que estou totalmente de acordo com todos os factos constantes da contestação apresentada pela AA, por serem verdadeiros, bem como com as respectivas conclusões.
Declaro ainda, que o vínculo estabelecido entre mim e a AA é de um Contrato de Prestação de Serviços de Docência, o qual pretendo manter nos mesmos termos, não pretendendo qualquer reconhecimento de vínculo de trabalho, por não existir.”
Concluídos os autos, o Senhor Juiz proferiu despacho determinando a notificação de tal documento ao Ministério Publico e à ré “para querendo, no prazo de 10 dias, se pronunciarem”
Pronunciou-se a Digna Magistrada do Ministério Público, reiterando o conteúdo da petição inicial e “manifestando – de novo – o interesse superior do Estado em ver esclarecida a natureza do vínculo jurídico que une aquele à Ré, o que apenas pode ocorrer na decorrência da produção de prova em audiência de julgamento, não relevando a declaração agora efetuada pelo trabalhador”.
Pronunciou-se igualmente a Ré, alegando ser assim inequívoca a falta de interesse em agir por parte do Ministério Público – excepção invocada na sua contestação.
I.2 Subsequentemente, pelo Senhor Juiz foi proferida decisão, dela constando, na parte que aqui interessa, o seguinte:
-«(..) temos que o “trabalhador”, como acima se referiu, manifestou expressamente que queria manter o contrato de docência celebrado com a empregadora como de prestação de serviços, não pretendendo qualquer reconhecimento de vínculo de trabalho, por não existir.
Temos, assim, uma situação paralela à versada nos segundo dos referidos acórdãos, que só nos pode levar a concluir, salvo melhor entendimento, pela inutilidade da presente lide.
Na verdade, o principal interessado no reconhecimento do contrato como sendo de trabalho, por ser na sua esfera jurídica que se projectam os efeitos desse reconhecimento, com aas vantagens e desvantagens inerentes, veio dizer que não pretende tal reconhecimento, pelo que, a prossecução na lide, sendo certo que a mesma visa apurara vontade real das partes no conteúdo do contrato que celebraram, levaria, necessariamente, à improcedência da acção, constituindo, assim, um acto inútil, logo ilícito – cfr. art. 130.º do CPC.
E não se diga que há um interesse superior do Estado em ver esclarecida a natureza do vínculo jurídico que une o “trabalhador” à “empregadora”, que obsta a tal conclusão.
É que uma tal construção, além de afastada pela doutrina expendida nos arestos citados, atenta a natureza privada do contrato em questão e a disponibilidade do direito dos outorgantes de verem jurisdicionalmente definida a respectiva qualificação jurídica, violaria frontalmente o princípio da liberdade contratual nesta matéria, com consagração constitucional no art.º 47.º, n.º 1 da CRP.
E, no limite, levando ao extremo um tal entendimento, equivaleria a institucionalizar uma nova forma de escravatura, já que, o suposto trabalhador, poderia, sem ser “visto nem achado”, ver-se, a final, “condenado” a celebrar um contrato de trabalho contra a sua vontade.
Acresce, no caso dos autos, que não estamos perante um “trabalhador” analfabeto ou iletrado, à mercê das “manobras vis” da “empregadora”, mas sim de um professor Universitário que, atendendo à sua formação e experiência de vida, manifesta esclarecidamente a sua vontade, não havendo razões que levem a colocar em causa a validade de tal manifestação.
A inutilidade da lide é, assim, patente, impondo-se a consequente extinção da Instância.
Por tudo o exposto, nos termos do art.º 277.º al. e) do CPC, aplicável por força do art.º 1.º n.º2 al.a) do CPT, julgo extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
(..)»
 I.3 Inconformado com essa decisão, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito próprios. As alegações foram concluídas nos termos seguintes:
(…)
I.4 A Recorrida apresentou contra alegações, finalizadas com as conclusões que se passam a transcrever
 (…):
I.5 Foram colhidos os vistos legais.
I.6 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do NCPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] a questão colocada para apreciação consiste em saber se o tribunal a quo errou na aplicação do direito ao considerar verificar os necessários pressupostos para julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1.  MOTIVAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para a apreciação do presente recurso são os que constam do relatório.

II.2 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
II.2.1 Comecemos por equacionar as posições em confronto.
O Tribunal a quo julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no art.º 277º, al. e) do CPC, aplicável por força do disposto no art.º 1º, n.º2, al .a) do CPT”, na consideração, no essencial,  de que “(..) o principal interessado no reconhecimento do contrato como sendo de trabalho, por ser na sua esfera jurídica que se projectam os efeitos desse reconhecimento, com as vantagens e desvantagens inerentes, veio dizer que não procede tal reconhecimento, pelo que a prossecução da lide, sendo certo que a mesma visa apurar a vontade real das partes no conteúdo do contrato que celebraram, levaria, necessariamente, à improcedência da acção, constituindo, assim um acto inútil, logo ilícito – cfr. Art.º 130.º do CPC”. 
Sustentou-se, conforme invocado na sentença, nos acórdãos desta Relação e Secção, ambos proferidos em 24-09-2014, respectivamente, aos processos 4628/13.0TTLSB.L1-4 e 1050/14.5TTLSB.L1-4, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Insurge-se o recorrente Ministério Público, argumentando que a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho “tem subjacente interesses de natureza pública”, tendo o Ministério Público, nos termos da Lei que a instituiu “uma exclusividade de acção”, agindo “em nome e representação do Estado-Colectividade, na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei e também visa proteger interesses de ordem pública, promovendo “interesse público específico para a qual a lei lhe confere competência, pois há todo um conjunto de interesses públicos relevantes que decorrem da qualificação da relação como de trabalho subordinado”, nomeadamente, por o Estado ter “o direito a cobrar os seus impostos, taxas devidas em sede de segurança social e a obrigatoriedade de manter e exigir exames periódicos de saúde a todos os que empregam trabalhadores por conta de outrem e com o vínculo e qualificação de contrato de trabalho”, acrescendo que necessita de “manter a veracidade e fiabilidade dos seus registos e dados estatísticos em conformidade com a realidade existente” sabendo “quantos trabalhadores por conta de outrem e com contrato de trabalho existem no país”.
Defende que o trabalhador não é parte nesta acção e nos presentes autos. (Cfr. artsº. 3º, 30º. e 283º, do C.P.Civil, não possuindo “legitimidade para desistir ou para celebrar transacção em sentido contrário à pretensão de natureza pública constante da petição inicial”. A declaração que foi apresentada pelo trabalhador ”que não é parte nestes autos, prestada por requerimento e sem que fossem produzidas as demais provas em sede de audiência de discussão e julgamento, não poderá ter (..) os efeitos considerados no despacho recorrido».
Em abono da posição sustentada invocam-se os Acórdãos, também desta Relação e Secção,  de 10-9-2014 e 8/10/14, proferidos, respectivamente, nos processos n.º1344/14.0TTLSB.L1-4 e 1330/14.0TTLSB.L1-4 e, da Relação de Coimbra, de 13-11-2014, processo n.º 327/14.4TTLRA.C, todos disponíveis em www.dgsi.pt,
Em suma, na sua perspectiva, a acção deverá prosseguir com a fase processual interrompida, designando-se data para a audiência de julgamento e produção de prova.
Por seu turno a recorrida começa por suscitar a questão prévia de saber se o Ministério Público tem legitimidade para interpor o presente recurso. No seu entender a intervenção do Ministério Público esgota-se na apresentação da petição inicial, não sendo parte na acção, antes o sendo o trabalhador e, logo, não podendo interpor o recurso por falta de legitimidade, deverá o mesmo ser liminarmente rejeitado (artigo 631.º, n.º1, CPC).
Para o caso de assim não se entender, sustenta que sempre lhe faltará interesse em agir/recorrer e, por isso, já que a disponibilidade do direito  projecta-se em termos processuais, pelo que, a posição manifestada pelo putativo trabalhador no processo há-de determinar decisivamente a posição e actuação do Ministério Público no processo, cuja intervenção é meramente instrumental. Tendo o putativo trabalhador, declarado não pretender qualquer reconhecimento de vínculo laboral, por inexistir, falta ao Ministério Público interesse processual em recorrer.
Ainda para o caso de assim não se entender, na acção está somente em causa o apuramento da natureza dos vínculos contratuais mantidos entre o Docente e a R., por iniciativa de entidades oficiais assente no interesse público de protecção e salvaguarda dos interesses dos trabalhadores, entendido como parte mais fraca da relação contratual, visando o reconhecimento laboral de tais vínculos. Não pode confundir-se este interesse público com a natureza do direito em causa na acção, relevando a vontade das partes, como o exige o princípio da liberdade contratual e o princípio da autonomia da vontade privada. O Estado não pode impor às partes um regime contratual que elas, declarada e inequivocamente, não desejam, nem executam.
Socorre-se igualmente de jurisprudência desta Relação e Secção, nomeadamente, os mesmos arestos invocados pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, de 24-09-2014 (processos n.ºs1050/14.5TTLSB.L1-4 e 4628/13.0TTLSB.L1-4) e, ainda, de 13-12-2014, processo 233/14.2TTCSC.L1-45.
Conclui que, não estando em causa neste tipo de acção direitos indisponíveis nem a defesa da legalidade democrática, é relevante a vontade processual manifestada pelas partes, empregador e trabalhador, podendo, unilateral ou bilateralmente, lançar mão, livremente, dos mecanismos processuais da desistência, da confissão ou da transacção, como aconteceu.
II.2.2  A apreciação do presente recurso, inclusive no que respeita às questões que devem ser previamente resolvidas –  alegada fala de legitimidade do MP para recorrer ou falta de interesse em agir/recorrer- aconselham que se inicie com algumas considerações sobre o enquadramento legal da nova acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
A Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, tem como objectivo proclamado no seu artigo 1.º,  “instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado”.
Para viabilizar a concretização desse objectivo, o legislador introduziu alterações ao regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social (Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro) e ao Código de Processo do Trabalho.
Quanto ao primeiro daqueles diplomas, através dos artigos 2.º e 4.º, foram-lhe aditados novos preceitos:
-  O primeiro,  ao art.º 2.º, que passou a ter um n.º3, atribuindo competência ao ACT, para além das que já lhe estavam ali cometidas, para  «(..) instaurar o procedimento previsto no artigo 15.º -A da presente lei, sempre que se verifique uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, que indicie características de contrato de trabalho, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro»;
- O segundo, introduzindo art.º 15-A, prevendo o novo procedimento a adotar em caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviços, determina que, “caso o inspetor do trabalho verifique a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas ao contrato de trabalho, nos termos descritos no artigo 12.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente”[n.º 1]; sendo o procedimento“imediatamente arquivado no caso em que o empregador faça prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral [n.º2]; ou, caso tal não aconteça findo aquele prazo, devendo a ACT remeter “em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público da área de residência do trabalhador, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”.
No que respeita ao Código do Processo de Trabalho, as alterações introduzidas resultam dos artigos 3.º e º5.º, consistindo, respectivamente, na previsão de um novo processo especial, com natureza urgente, em concreto “A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”[art.º26.ºal.i)] e no aditamento de um novo “capítulo VIII ao título VI do livro I (..), denominado «Ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho», composto pelos artigos 186.º -K a 186.º -R”.
Em traços largos, o novo processo especial apresenta as caraterísticas seguintes:
- Inicia-se com o recebimento da participação do ACT [n.º 3 do novo artigo 15.º -A, da Lei 107/2009], dispondo o Ministério Público do prazo de 20 dias, contados do início do processo “para intentar ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho” [Art.º 186.º -K, n.º1];
- A petição inicial a ser apresentada pelo Ministério Público, não carece de forma articulada, dela devendo constar exposição sucinta da “pretensão e os respetivos fundamentos”, sendo juntos “todos os elementos de prova recolhidos até ao momento” [art.º 186.º L, n.ºs 1 e 3];
- O empregador é citado para contestar no prazo de 10 dias, não se exigindo igualmente que a contestação seja articulada [art.º 186.º L, n.ºs 2 e 3].
- A intervenção processual do trabalhador é suscitada com a notificação da data para a audiência de julgamento, sendo-lhe simultaneamente remetidos o duplicado da petição inicial e da contestação e feita a “expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário” [art.º 186.º L, n.º4].
- Na falta de contestação pelo empregador, no prazo de dez dias, o juiz profere “decisão condenatória, a não ser que ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente” [Art.º 186.º -M].
-Se houver contestação a acção prossegue, podendo “o juiz julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa”, devendo a audiência de julgamento ser realizada “dentro de 30 dias”, nesse acto oferendo as partes as provas, entre elas podendo “apresentar até três testemunhas” [art.º 186.º- N, n.ºs 1 a 3].
- Previamente ao início do julgamento, “Se o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los” [art.º 186.º -O, n.º1];
 - Frustrando-se a conciliação “inicia-se imediatamente o julgamento, produzindo -se as provas que ao caso couberem”, não sendo “motivo de adiamento a falta, ainda que justificada, de qualquer das partes ou dos seus mandatários [art.º 186.º -O, n.º2].
- Finda a produção de prova é possibilitado a “cada um dos mandatários fazer uma breve alegação oral”, sendo a sentença logo proferida, sucintamente fundamentada”e ditada para a ata. [art.º 186.º -O, n.ºs 6 e 7].
- A sentença que reconheça a existência de um contrato de trabalho “fixa a data do início da relação laboral” [art.º 186.º -O, n.º8].
Releva ainda referir que a Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, teve origem no projecto de lei n.º 142/XII, que conforme nele se menciona, “é da autoria de um conjunto de cidadãos eleitores, constituindo uma iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC)”, intitulado “Lei contra a precariedade”.
No aludido projecto de lei, sobre o título “2. Objecto, motivação e conteúdo da iniciativa”,menciona-se que de acordo com a exposição de motivos que o integra, “a precariedade atinge hoje cerca de 2 milhões de trabalhadores em Portugal e o seu crescimento ameaça todos os outros”. (..) Assim, a presente lei contra a precariedade introduz mecanismos legais de modo a evitar a perpetuação das formas atípicas e injustas de trabalho, incidindo sobre três vetores fundamentais da degradação das relações laborais com prejuízo claro para o lado do trabalhador: os falsos recibos verdes, a contratação a prazo e o trabalho temporário”.
Em suma, no que aqui releva, através desta alteração legislativa procurou-se combater o recurso ao contrato de prestação de serviços nas situações em que tal consiste num expediente que visa camuflar um verdadeiro contrato individual de trabalho, tendo como propósito desrespeitar a tutela que a legislação laboral confere ao trabalhador. Em poucas palavras, através dos mecanismos instituídos visa o legislador combater o falso trabalho autónomo.
II.2.3 A questão prévia de saber se o Ministério Público tem legitimidade para interpor o presente recurso.
Dispõe o n.º1 do art.º 631.º, do CPC: “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido”.
Como resulta da breve resenha feita no ponto anterior, é ao Ministério Público, e só a este, que cabe instaurar a acção de reconhecimento de existência de contrato de trabalho. O eventual trabalhador subordinado cuja relação contratual será objecto de apreciação com vista à sua qualificação não a pode propor por si, não é chamado a pronunciar-se sobre a oportunidade ou interesse em ser proposta, nem tão pouco opor-se à sua propositura.
O recebimento da participação do ACT [n.º 3 do novo artigo 15.º -A, da Lei 107/2009], desencadeia a intervenção do Ministério Público, para no prazo de 20 dias, contados do início do processo “intentar ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho” [Art.º 186.º -K, n.º1];
A intervenção processual do trabalhador só ocorre com a notificação da data para a audiência de julgamento, facultando-lhe a lei a possibilidade de “aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário” [art.º 186.º L, n.º4].
Nos termos do artigo 219º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa compete ao Ministério Público “(..) representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar (…)».
Sendo a densificação desse princípio feita no art.º 3.º, com a epígrafe “Competência”, do Estatuto do Ministério Público, daí decorrendo, competir [1] “especialmente ao Ministério Público”, no que aqui interessa,  [l) “Intervir nos processos de falência e de insolvência e em todos os que envolvam interesse público” e [p] “Exercer as demais funções conferidas por lei”.
Por seu turno, o art.º 5.º do mesmo Estatuto do Ministério Público, com a epígrafe “Intervenção principal e acessória”, estabelece que [1] O Ministério Público tem intervenção principal nos processos”, para de seguida, nas alíneas a) a f) enumerar taxativamente quais as situações em que tal intervenção ocorre, mas salvaguardando a possibilidade de outras tantas ao consignar na alínea g): “Nos demais casos em que a lei lhe atribua competência para intervir nessa qualidade”.
Por conseguinte, como se escreve no acórdão da Relação do Porto de 17-12-2014, “A legitimidade do Ministério Público – como parte activa - para instaurar a acção especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho, resulta, assim, da própria Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, do artigo 291º, nº 1 da CRP e do seu Estatuto Legal [artigos 1º, e 3º, alíneas a) e l)], que lhe dão competência própria, e tem como pressuposto a existência de um interesse público determinado – o combate à precaridade laboral fruto dos chamados falsos recibos verdes” [Proc.º n.º  09/14.6TTGDM.P1, Desembargador António José Ramos, disponível em www.dgsi.pt].
Contrariamente ao que defende a recorrente, a intervenção principal do Ministério Público neste processo não se esgota com a apresentação da petição inicial, conclusão que logo se retira se tivermos bem presente os termos em que a lei manda notificar o trabalhador para intervir no processo, isto é, com a “expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário” [art.º 186.º L, n.º4].
Da norma resulta que ao trabalhador são facultadas aqueles direitos processuais - aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário - que poderá exercer, ou não, conforme bem entenda. Se não exercer qualquer daqueles direitos, o processo prossegue normalmente, sustentado na petição inicial apresentada pelo MP; se aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, o processo prossegue igualmente tendo por base aquela petição inicial; e, o mesmo acontece caso apresente articulado próprio e constitua mandatário, prosseguindo o processo tendo por base a petição inicial apresentada pelo MP, embora concomitantemente passe a conter mais este articulado.
Daqui se retira que a intervenção principal do Ministério Público, assumida nesta acção por tal competência lhe ser atribuída por lei para defesa dos interesses que a mesma visa salvaguardar, nomeadamente o combate à precariedade de modo a evitar a perpetuação das formas atípicas e injustas de trabalho, entre elas, os falsos recibos verdes,  mantém-se até ao desfecho final da acção ou, melhor dito, até à extinção da instância.
Nesse pressuposto, o Ministério Público tem necessariamente legitimidade para recorrer de toda e qualquer decisão recorrível que à acção respeite.
II.2.4 A questão prévia de saber se falta ao Ministério Público interesse processual em recorrer
A recorrida sustenta, ainda, que sempre faltará ao Ministério Público interesse em agir/recorrer, atenta a posição assumida pelo trabalhador, ao ter declarado que não pretende qualquer reconhecimento do vínculo laboral. Na sua perspectiva, a posição assumida pelo trabalhador tem necessariamente que reflectir-se na intervenção do Ministério Público.
Em termos lógicos, essa posição assenta num outro pressuposto que defende para pugnar pela improcedência do recurso, isto é, de que não estando aqui em causa direitos indisponíveis nem a defesa da legalidade democrática, é relevante a vontade processual manifestada pelas partes, empregador e trabalhador, podendo, unilateral ou bilateralmente, lançar mão, livremente, dos mecanismos processuais da desistência, da confissão ou da transacção, como aconteceu.
É nesta base que a recorrida sustenta dever manter-se a decisão recorrida, julgando extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Por seu turno, o Ministério Público defende que o trabalhador não é parte nesta acção não possuindo “legitimidade para desistir ou para celebrar transacção em sentido contrário à pretensão de natureza pública constante da petição inicial”, para sustentar que a declaração que foi apresentada pelo trabalhador ” não poderá ter (..) os efeitos considerados no despacho recorrido».
Sobre o interesse em agir, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora -  na obra conjunta Manual de Processo Civil – observam o seguinte:
Entre os pressupostos processuais referentes às partes, deve ainda incluir-se o interesse processual, embora a lei lhe não faça referência expressa.
O interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.
(..)
Relativamente ao autor, tem-se entendido que a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (..) ou o puro interesse subjectivo  (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial.
O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais do que isso» [2.º Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, p. 179 e segts].
Na apreciação da questão anterior concluímos que a intervenção principal do Ministério Público, assumida nesta acção por tal competência lhe ser atribuída por lei para defesa dos interesses que a mesma visa salvaguardar, mantém-se até ao desfecho final da acção ou, melhor dito, até à extinção da instância.
Através do recurso vem o Ministério Público questionar se o tribunal a quo fez a correcta aplicação do direito ao julgar extinta a instância. O seu propósito, alicerçado nos fundamentos que invoca, é o de ver a decisão revogada e, consequentemente, o prosseguimento da acção.
Portanto, o Ministério Público tem interesse processual em recorrer, sendo inquestionável a necessidade que o justifica.
 II.2.5 A inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, actualmente prevista no art.º 277.º al. e), do NCPC, norma correspondente à al. e), do pretérito CPC, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou se encontra fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio [José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, I Volume, 2ª Edição, Almedina, 2003 anotação 3 ao art.º 287.º, p. 512].
A instância extingue-se porque se tornou inútil o prosseguimento da lide: verificado o facto, o tribunal não conhece do mérito da causa, limitando-se a declarar aquela extinção.
Mas o facto susceptível de determinar a extinção da instância por inutilidade da lide deve ser superveniente, isto é a sua verificação deve ocorrer depois da constituição da instância. Não é suficiente, portanto, a existência de um facto que torne a lide inútil.
No caso em apreço, na pendência da acção o trabalhador (expressão que se usa sem que se queira significar subordinado) apresentou o requerimento a fls. 308, nele declarando o seguinte:
- “(..) não pretendo aderir aos factos apresentados na petição inicial nem apresentar articulado próprio ou sequer constituir mandatário.
Mais declaro que estou totalmente de acordo com todos os factos constantes da contestação apresentada pela AA,, por serem verdadeiros, bem como com as respectivas conclusões.
Declaro ainda, que o vínculo estabelecido entre mim e a AA é de um Contrato de Prestação de Serviços de Docência, o qual pretendo manter nos mesmos termos, não pretendendo qualquer reconhecimento de vínculo de trabalho, por não existir.”
Entendeu o tribunal a quo, no essencial, que «(..) o “trabalhador” (..) manifestou expressamente que queria manter o contrato de docência celebrado com a empregadora como de prestação de serviços, não pretendendo qualquer reconhecimento de vínculo de trabalho, por não existir” e que sendo ele “(..) o principal interessado no reconhecimento do contrato como sendo de trabalho (..) a prossecução na lide, sendo certo que a mesma visa apurar a vontade real das partes no conteúdo do contrato que celebraram, levaria, necessariamente, à improcedência da acção, constituindo, assim, um acto inútil, logo ilícito” .
Nessa consideração julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Insurge-se o Ministério Público, com a fundamentação que sintetizámos no ponto inicial, para defender que o trabalhador não possui “legitimidade para desistir ou para celebrar transacção em sentido contrário à pretensão de natureza pública constante da petição inicial” e, logo, que a declaração não poderá ter (..) os efeitos considerados no despacho recorrido»
Vejamos então.
Concordamos com o recorrente Ministério Público, quando afirma que a Lei n.º 63/2013, prossegue um interesse público no combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços  em relações de trabalho subordinado. Como no ponto anterior procurámos evidenciar, assim resulta claramente da Lei. O objectivo desta intervenção legislativa consiste no combate ao trabalho aparentemente autónomo, à “precariedade” que atinge “hoje cerca de 2 milhões de trabalhadores em Portugal”,  introduzindo mecanismos legais que visam “evitar a perpetuação” dessas situações.
Mas já não concordamos quando alega que “há todo um conjunto de interesses públicos relevantes que decorrem da qualificação da relação como de trabalho subordinado”, para defender, numa visão ampla, que o interesse público que a acção visa prosseguir prende-se, também, com o direito do estado a cobrar “impostos, taxas devidas em sede de segurança social e a obrigatoriedade de manter e exigir exames periódicos de saúde a todos os que empregam trabalhadores por conta de outrem e com o vínculo e qualificação de contrato de trabalho”, acrescendo, ainda, a necessidade do Estado “de manter a veracidade e fiabilidade dos seus registos e dados estatísticos em conformidade com a realidade existente”.
Sendo certo que qualquer trabalhador sempre poderá recorrer às vias judiciais, propondo uma acção judicial com processo comum para ver reconhecida a existência do contrato de trabalho subordinado, cremos poder afirmar-se que através dos mecanismos instituídos pretendeu o legislador, como propósito mais directo, actuar em protecção do trabalhador, normalmente reconhecido como a parte mais fraca e vulnerável de uma relação de trabalho subordinado. Esta protecção actua directamente em cada caso concreto, mas prossegue concomitantemente o interesse público do combate, em geral, à precariedade.
Na verdade, o legislador tem noção de que em muitos casos, embora o trabalhador possa ter todos os fundamentos para reagir a uma situação de falso trabalho autónomo, opta por não exercer o seu direito, não tomando qualquer iniciativa com o receio de um resultado que antecipa poder vir a ser pior para si. Por um lado, prevendo a possibilidade de ver imediatamente cessada a prestação da sua actividade quando o empregador for confrontado com a acção, em consequência ficando no desemprego até que a acção tenha o seu desfecho; por outro, porventura tendo também noção do risco relativamente ao desfecho da acção, pois não pode excluir a possibilidade de poder ter um desfecho desfavorável para si, caso não logre provar os fundamentos necessários; e, ainda por outro, por antever que mesmo que não se verifique qualquer um daqueles cenários, reconhecida a existência de uma relação de trabalho subordinado, provavelmente dai em diante a relação com a entidade empregadora passará a desenrolar-se em condições adversas.
A solução passou, pois, pela introdução destes mecanismos, em face dos quais o trabalhador não tem que tomar qualquer iniciativa directa, tudo dependendo à partida da intervenção da ACT, que tanto poderá ocorrer no âmbito de uma acção inspectiva aleatória, como motivada pela denúncia do trabalhador ou trabalhadores.
Em suma, como se escreve no sumário do Acórdão desta Relação e Secção, de 24/09/2014: [II] “O interesse que permeia a Lei n.º 63/2013, de 27.8, é o do trabalhador no reconhecimento da laboralidade do seu contrato, e não o da comunidade na perseguição de todas as situações em que possa haver indícios de falsos recibos verdes” [Processo n.º 4628/13.0TTLSB.L1-4, Desembargador SERGIO ALMEIDA, disponível em www.dgsi.pt].
Atentemos, agora, nas consequências, quer caso o empregador regularize a situação assumindo que existe um contrato de trabalho subordinado na sequência da notificação da ACT, quer quando não o faça mas venha a ser condenado por decisão judicial. Em qualquer dos casos resultará a fixação de uma data que marca o início da relação laboral e, consequentemente, o trabalhador passa a beneficiar do regime jurídico do trabalho subordinado com efeitos reportados àquela data, o que se traduzirá, para além do mais, na proteção contra despedimentos sem justa causa e, logo, numa certa estabilidade e garantia de durabilidade do vínculo contratual, mas também no direito à atribuição de uma determinada categoria, com o consequente direito a auferir pelo menos a retribuição mínima prevista para a categoria, bem como a adquirir o direito a férias, retribuição de férias e subsídio de férias, subsídio de Natal, etc. Em suma, o trabalhador verá a sua posição garantida, através do reconhecimento de todos os direitos que a lei confere aos trabalhadores vinculados por contrato de trabalho sem termo, inclusive com efeito retroactivo, relativamente àqueles em que a retroactividade possa operar.
Mas aqui chegados, importa ter presente que o contrato de trabalho é um contrato de direito privado, “um negócio jurídico bilateral, isto é, um acordo vinculativo formado por duas declarações de vontade contrapostas, em que cada um dos contraentes prossegue interesses opostos, mas que através do contrato, chega a uma regulamentação comum, e, portanto, a um resultado unitário” [Bernardo da Gama Lobo Xavier, Iniciação ao Direito do trabalho, 2.ª Edição, Verbo, Lisboa, 199, p. 141].
Por outro lado, não pode também esquecer-se o contrato de trabalho, como qualquer outro, pode cessar mediante a celebração de acordo entre o empregador e o trabalhador, prevendo a lei laboral expressamente essa modalidade de cessação [art.º 340.º(al.b)], depois estabelecendo o artigo 349.º que “O empregador e o trabalhador podem fazer cessar o contrato de trabalho por acordo” (n.º 1), devendo o mesmo ser celebrado por escrito assinado por ambas as partes (n.º2), mencionando “expressamente a data da celebração do acordo e a de início da produção dos respectivos efeitos” (n.º3).
Nesse quadro, tal como defendemos em acórdão de 3 de Dezembro de 2014, proferido na apelação 233/14.2TTCSC.L1, relatado pelo aqui relator, não vimos que a Lei 63/2013 obste à livre vontade das partes em porem termo à relação contratual que existiu entre ambos e que esteja a ser apreciada na acção, fazendo-o por transacção judicial ou extrajudicial, e sem necessidade que dela resulte assumirem que o contrato que fazem cessar era de trabalho subordinado. Nesses casos, cremos que nenhuma razão exige que a acção prossiga.
Assim como também não excluímos, em determinados casos, a possibilidade de desistência, desde que validamente expressa, designadamente quando a relação contratual cessou, sendo inútil a sua qualificação como de trabalho, posto estar na livre disponibilidade do trabalhador não reclamar qualquer direito emergente de contrato de trabalho, se porventura se chegasse a essa conclusão.
Nesse entendimento acompanhou-se o Acórdão desta Relação e Secção, de 24-09-2014, onde se escreve que sendo «indiscutivelmente, o contrato de trabalho um contrato de direito de privado, cremos não poder negar-se aos outorgantes do contrato cuja qualificação jurídica é suscitada em tribunal pelo M.P., o direito de ver, ou não, essa questão jurisdicionalmente decidida. É, aliás, a lei que, ao estabelecer no art. 186º-O do CPT[3] quese o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los”, deixa claro que o direito em causa – de ver jurisdicionalmente definida a qualificação jurídica do contrato – é disponível, pois, de outro modo, não se compreenderia a previsão legal de tal tentativa de conciliação, sendo certo que o que está em causa na acção é apenas e só o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho. Não faria sentido, salvo o devido respeito, prever a realização de uma tentativa de conciliação se a única conciliação possível passasse apenas pela confissão, por parte do empregador, da pretensão formulada nos autos, como vem sustentar o recorrente. A tentativa de conciliação visa, em princípio, alcançar uma transacção, através de cedências recíprocas» [Proc.ºn.º1050/14.5TTLSB.L1-4,Desembargadora MARIA JOAO ROMBA, disponível em www.dgsi.pt].
No nosso acórdão de 03-12-2014, escrevemos, ainda, o seguinte:
Poderá argumentar-se que o reconhecimento de uma relação de trabalho subordinado implicaria, paralelamente, o emergir de obrigações de natureza fiscal e contributiva, quer para o trabalhador quer para o empregador, nomeadamente relativos ao IRS e à taxa contributiva prevista para o regime geral dos trabalhadores por conta de outrem.
Contudo, com o devido respeito, não decorre da lei que esse seja também um desiderato a alcançar, impondo que se caminha sempre até à decisão final, com o propósito de ver reconhecido, ou não, um eventual vínculo laboral. Se o legislador assim pretendesse, certamente não deixaria de o ter consagrado expressamente, o que indiscutivelmente não acontece, sendo certo que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” [n.º3, art.º 9.º do CC]».
Por conseguinte, não se acolhe a posição do Ministério Público, quando defende genericamente que o trabalhador “Não possui legitimidade para desistir ou para celebrar transacção em sentido contrário à pretensão de natureza pública constante da petição inicial”.
Mas isso não significa que noutros pontos não tenha razão, nomeadamente quando argumenta, reportando-se à declaração apresentada pelo trabalhador, que “a vontade das partes não é elemento bastante para definir ou não da existência de uma relação de trabalho subordinado”.
Sendo o vínculo laboral uma relação contratual de direito privado, não pode arredar-se a aplicação do princípio da liberdade contratual, consagrado no art.º 405.º do CC, que se desdobra em vários aspectos, entre eles, “a possibilidade das partes contratarem ou não contratarem, como melhor lhes aprouver” [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1987, p. 355].
Mas como se sabe, tal não significa que esteja na disponibilidade das partes qualificarem um contrato como bem lhes aprouver - mesmo que o façam sem qualquer intenção simulatória -  designadamente, denominando-o como contrato de prestação de serviços, quando na verdade do que convencionaram ou da sua execução prática resulte um verdadeiro contrato de trabalho subordinado. A esse propósito observa João Leal Amado: “Na verdade as partes são livres de concluir o contrato x ou o contrato y, mas já não o são para celebrar o contrato x dizendo que celebraram o contrato y – naquilo, e não nisto, consiste a sua liberdade contratual, entre nós consagrada no art. 405.º do Código Civil.” [Temas Laborais 2, O contrato de trabalho entre a presunção legal de laboralidade e o presumível desacerto legislativo, Coimbra Editora, 2007, p. 12].
Ora, no caso vertente o “trabalhador” veio dizer não pretender o reconhecimento de vínculo de trabalho, “por não existir”, qualificando-o  (em adesão expressa à posição sustentada pela R. na contestação)  que o vínculo estabelecido entre si e aquela COFAC “é de um Contrato de Prestação de Serviços de Docência”, referindo ainda pretender mantê-lo naqueles termos.
Portanto, dessa declaração decorre que a relação contratual vai continuar a existir e, logo, se porventura estivermos perante um verdadeiro contrato de trabalho subordinado, hipoteticamente podem configurar-se três cenários distintos: i) crerem o trabalhador e a Ré que estão a executar um verdadeiro contrato de prestação de serviços, mas estarem equivocados; ii) estarem ambos cientes que executam um verdadeiro contrato de trabalho, mas querendo mantê-lo encoberto sob a falsa capa de um contrato de prestação de serviços; iii) estarem ambos cientes de que executam um contrato de trabalho e assumirem a capa do contrato de prestação de serviços, mas por imposição da Ré a que o A. se submete para não perder o trabalho.
Quanto a esta última hipótese cabe deixar claro que nada autoriza a presumir, nem mesmo o facto de o aqui “trabalhador” ser professor universitário, que aquela declaração foi feita com total liberdade. A declaração não foi feita perante o juiz, mas simplesmente apresentada em requerimento avulso.
 Em qualquer daquelas hipóteses, se porventura há um contrato de trabalho que vai continuar em execução sob a capa de um contrato de prestação de serviços, então o trabalhador está ver sacrificados todo o leque de direitos emergentes do contrato de trabalho subordinado, nomeadamente o conjunto de direitos indisponíveis que lhe são próprios.
Por conseguinte, num contexto em que a relação contratual vai continuar a existir, aceitar que aquela mera declaração é quanto basta para conduzir à inutilidade superveniente da lide, equivale a fazer tábua rasa dos fins prosseguidos pela Lei n.º 63/2013. A lide não é inútil, pois não se sabe se há ou não uma situação de precariedade.
Como última nota, assinala-se que os acórdãos invocados quer pelo tribunal a quo quer pela recorrida, não têm plena aplicação ao caso concreto, dado que as questões neles apreciadas  não são exactamente coincidentes com a que aqui coube apreciar.
Concluindo, procede o recurso, devendo ser revogada a decisão recorrida, para ser substituída por outra que designe dia para a realização da audiência de julgamento.

***
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que designe dia para a audiência de julgamento.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 25 de Março de 2015
              
Jerónimo Freitas
Francisca Mendes
Maria Celina de J. Nóbrega
Decisão Texto Integral: