Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2596/2008-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
VEÍCULO AUTOMÓVEL
MÚTUO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/15/2008
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1. A reserva de propriedade configura-se como uma autêntica retenção do direito de propriedade, destinada a assegurar o vendedor contra os efeitos da aplicação da regra geral estabelecida no art.º 408.º, n.º 1, do C. P. Civil, qual seja, ficar despido do seu direito de propriedade sem receber a contrapartida, o preço.
2. Esta definição conceptual da figura da reserva de propriedade impede a sua aplicação no âmbito do contrato de mútuo, a favor do mutuante, pela própria natureza do contrato, ainda que consentida pelo mutuário e objecto de cedência, em documento particular, posterior à celebração do contrato de mútuo, assinado pelo vendedor, com reserva de propriedade registada a seu favor, uma vez que este acto - de cedência da reserva de propriedade - se não configura como cessão da posição contratual.
3. O mutuante que, ainda assim, logrou registar a reserva de propriedade a seu favor, não pode fazer uso do procedimento cautelar previsto no art.º 15.º do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, o qual é dependência da acção de resolução do contrato de compra e venda e não da acção de resolução do contrato de mútuo.
(ON)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO

F…através da sua sucursal em Portugal, propôs contra,
T…Ld.ª Providência Cautelar de Apreensão de Veículo Automóvel e respectivos documentos, nos termos do disposto no art.º 15.º do Dec. Lei n.º 54/75 de 12 de Fevereiro, pedindo se ordene a imediata apreensão do veículo automóvel com a matricula …e respectivos documentos, com fundamento em que financiou a requerida na aquisição desse veículo, sendo que para garantia do reembolso da quantia financiada, no valor de € 23.200,00, foi constituída reserva de propriedade a favor do vendedor registado, Ford Lusitana, e esta cedeu à requerente, com o consentimento da requerida, a titularidade da referida reserva de propriedade, encontrando-se esta registada a favor da requerente.
O prazo de reembolso foi fixado em 48 prestações mensais, tendo a requerida deixado de pagar a prestação 29.ª e subsequentes, apesar de interpelada, para o efeito, pelo que a requerente, por carta de 30/05/2007, notificou-a da resolução do contrato, encontrando-se em divida o montante de € 12.529,00 e não tendo sido entregue o veículo.
Produzida a prova foi proferida decisão indeferindo a requerida apreensão com fundamento, em síntese, em que a providência cautelar de apreensão de veículo é dependência da acção de resolução do contrato de compra e venda e não da resolução do contrato de mútuo da quantia utilizada na sua aquisição.
Inconformada com esta decisão, a requerente dela interpôs recurso, recebido como agravo, pedindo a sua revogação e a substituição por outra que decrete a providência, formulando as seguintes conclusões:
A. A Agravante intentou a presente o presente procedimento cautelar no âmbito do artigo 15. ° do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, com vista à apreensão do veículo com a matrícula….
B. O contrato de financiamento aqui em causa foi celebrado entre a Agravante e a Agravada com a constituição de reserva de propriedade a favor da vendedora do veículo, a saber, a FORD LUSITANA, S.A.
C. A decisão do Tribunal a quo errou ao julgar a matéria de facto, quando considerou não provado que a FORD LUSITANA, S.A. cedeu à Agravante a mencionada reserva de propriedade, pelo que se impugna o referido julgamento.
D. A Agravante juntou com o requerimento inicial, como doc. 2, a certidão emitida pela Conserva Registo Automóvel de Lisboa da qual consta registada a propriedade do veículo com a matrícula …a favor da Agravada e um encargo de reserva de propriedade cujo sujeito activo é a Agravante.
E. Nos termos do Código do Registo da Propriedade Automóvel bem como do Regulamento do Registo de Automóveis não seria viável à Agravante obter o registo de qualquer ónus ou encargo a seu favor sem que fosse apresentada a documentação comprovativa da titularidade do direito em causa.
F. O registo da reserva de propriedade padece de uma presunção tantum iuris que, no caso em apreço, não foi objecto de prova em contrário.
G. No dia 9 de Janeiro de 2008, a testemunha D…, indicada a toda a matéria pela Agravante, conforme o Tribunal ora recorrido considerou prestou um depoimento isento, revelando razoável conhecimento da situação, constando o seu o registo do mesmo gravado no lado A da cassete n.º 1, a rotações O a 340 e atestando a ocorrência da cessão da reserva de propriedade – cfr. transcrição do depoimento no seguimento do artigo 13 supra, em sede de alegações.
H. Nunca a Agravante configurou que o Tribunal a quo pudesse, perante a certidão emitida pela Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa conjugada com as cláusulas 2.ª e 11 a das condições particulares, e cláusula A. das condições gerais do contrato de financiamento, questionar a efectiva cessão da reserva de propriedade.
I. Por mera cautela de patrocínio, ao abrigo da segunda parte do n.º 1 do artigo 706.º do Código de Processo Civil, requer-se a V. Exas. se dignem admitir a junção de certidão narrativa do registo automóvel da qual consta de fls. 8 a 11 o documento comprovativo da cessão da reserva de propriedade que fundamentou o registo a favor da ora Agravante e de cuja existência o Tribunal a quo duvidou.
J. A referida reserva de propriedade foi validamente constituída nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 409.º do Código Civil, ou seja, até à verificação do integral cumprimento do contrato de financiamento para aquisição a crédito do referido veículos celebrado entre a agravante e a agravada.
K. Nessa sequência, ao abrigo da liberdade contratual do artigo 405º n.º 1 do Código Civil, pela Cláusula A das condições gerais do contrato de financiamento, à luz dos artigos 591.º e 588. ° daquele diploma, as reservas de propriedade foram cedidas pela vendedora dos veículos FORD LUSITANA, S.A. à Agravante ficando esta sub-rogada nos direitos da vendedora com consentimento da aqui Agravada.
L. Foi neste contexto, que a aqui Agravante usou do meio legal previsto no Decreto-lei 54/75, de 12 de Fevereiro para judicialmente fazer valer o seu direito à propriedade plena do veículo bem como à restituição/apreensão do mesmo.
M. A Agravada deixou de pagar as prestações convencionadas no contrato de financiamento.
N. Tendo sido devidamente interpelada para pôr termo à mora, não o fez.
O. O referido Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro faculta ao titular do registo da reserva de propriedade a possibilidade de requerer em juízo a imediata apreensão do veículo alienado, quando o adquirente não cumpra as obrigações que originaram a referida reserva (Cfr. artigo 15. °, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).
P. Veja-se a este propósito as doutas considerações do Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão de 30.05.2006, em que é relatora a Exma. Senhora Desembargadora Isabel Salgado, publicado in www.dgsi.pt.
Q. "Na situação em que a reserva de propriedade se encontra registada a favor da própria financiadora não parece possível denegar-Ihe a legitimidade para por si só requerer a providência cautelar de apreensão da viatura e subsequentemente a acção principal da sua restituição definitiva".
R. "Ao aceitar-se a interpretação, segundo a qual, apenas o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, a cláusula da reserva de propriedade propenderia para ser desprovida de efeito prático, na situação da aquisição do veículo através do financiamento de terceiro, o que incontornavelmente é hoje a regra ".
S. "Enveredando-se por uma perspectiva limitadora do sentido da norma, incumprido o contrato de mútuo, caso, seja vedado ao financiador, accionar o conteúdo de tal convenção, e invocar o incumprimento e resolução do contrato de mútuo como causa do accionamento da reserva de propriedade constituída, obteríamos em consequência, a absurda situação de o mutuário – adquirente do veículo remisso não poder ser desapossado do veículo de que afinal não é proprietário, efeito pernicioso que certamente os princípios do sistema não aplaudem ".
T. A alusão a «contrato de alienação» constante do artigo 18.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Dezembro, tem de ser objecto de uma interpretação actualista, concatenada com o disposto no art. 409.º, n.º 1 do Código Civil, devendo entender-se que o contrato ali em causa é aquele cujo regular cumprimento das obrigações encontra-se garantido pela reserva de propriedade, in casu, o Contrato de Financiamento.
U. Recentemente, também o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou no sentido de considerar que subjacente à reserva de propriedade prevista no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 54/75 pode estar o cumprimento do contrato de financiamento para aquisição do veículo em causa, reforçando a amplitude do artigo 409.º do Código Civil – cfr. Acórdão de 12.09.2006, proferido em Agravo de 2.ª Instância, na sequência de indeferimento pelo tribunal de 1.ª Instância e da Relação de procedimento cautelar requerido ao abrigo daquele diploma.
V. Considera o referido Acórdão que a relação entre a financeira e o vendedor titular do registo de propriedade configura "uma união de contratos com dependência unilateral dos contratos de compra e venda relativamente aos contratos de financiamento, por as partes terem querido a pluralidade de contratos como um todo, como um conjunto económico, dependendo a validade e vigência das alienações dos articulados veículos automóveis da validade e vigência dos contratos de financiamento, atenta a intrínseca relação económica existente, pelo que, a extinguirem-se os contratos de financiamento, extinguem-se também os de compra e venda" – negrito e sublinhado nosso.
W. Logo, em sede de acção declarativa principal, corroborando o pressuposto da legitimidade e instrumentalidade, é absolutamente legal a condenação da Agravada no reconhecimento que a propriedade do veículo pertence à Agravante bem como na entrega definitiva do mesmo.
X. Nestes termos, a Agravante tem direito a ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre o veículo financiado dado que o mesmo se transferiu para a sua esfera jurídica pela cessão da reserva de propriedade,
Y. E, consequentemente tem direito à entrega do mesmo pela Agravada.
Z. Ao proferir a decisão ora Recorrida, de direito e de facto, o Tribunal a quo violou o Dec. Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, designadamente as normas previstas nos arts. 15.º, n.º 1, 16.º, n.º 1 e 18.º n.º 1 do mesmo, bem como os artigos 9.º n.º 1, 350.º, 376.º, 383.º, 409.º, 405.º n.º 1, 588.º e 591.º do C. Civil, o artigo 29.º do Código do Registo da Propriedade Automóvel, Registo Predial e o artigo 655.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.



2. FUNDAMENTAÇÃO

A) OS FACTOS
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1) Com data de 14 de Outubro de 2004 requerente e requerida subscreveram o acordo denominado Contrato de Financiamento Para Aquisição a Crédito nº 55241, junto aos autos por fotocópia a fls. 6 e 7, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2) Tal acordo teve por objecto o financiamento de € 23.200,00, quantia que se destinou à aquisição pela requerida do veículo automóvel da marca Ford, modelo Transit, com a matrícula ….
3) Nos termos de cláusula 11º das condições particulares do referido contrato foi constituída reserva de propriedade a favor do vendedor, Ford Lusitana, SA.
4) A requerida assumiu a obrigação de pagar ao requerente uma prestação mensal de € 624,95, por um período de 48 meses.
5) A requerida não efectuou o pagamento da 29ª prestação, que se venceu a 15.03.2007, nem das que subsequentemente se venceram.
6) Através de carta registada com aviso de recepção, datada de 16.05.2007, e que a requerida recebeu, o requerente concedeu à requerida um prazo suplementar de oito dias para pagamento da dívida, findo o qual a mora se converteria em incumprimento definitivo.
7) Não tendo a requerida pago qualquer quantia dentro do referido prazo, através de carta registada com aviso de recepção, datada de 30.05.2007, o requerente transmitiu à requerida a declaração de resolução do contrato de financiamento e reclamou a entrega imediata do veículo.
8) A requerida não procedeu à entrega do veículo ao requerente.
9) Encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa a favor do requerente a reserva de propriedade do veículo de matrícula …..


B) O DIREITO APLICÁVEL

O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões do agravo, supra descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pela agravante consiste, tão só, em saber se o vendedor do veículo com a matricula …., a Ford Lusitana, cedeu a reserva de propriedade aposta a essa venda à agravante (conclusões A a N) e se a reserva de propriedade registada a favor da agravante, nestas condições, pode ser servir de base à providência cautelar de apreensão do veículo, prevista no art.º 15 do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, no caso de o comprador/mutuário deixar de cumprir as obrigações decorrentes do contrato de mútuo (conclusões O a X).
 Vejamos.
I. A figura civilista da reserva de propriedade.
O art.º 408.º, n.º 1 do C. Civil estabelece a regra nos termos da qual, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato (sem necessidade de entrega da coisa).
Esta regra, que é aplicável ao contrato de compra e venda (cfr. art.ºs 874.º e 879.º do C. Civil), conhece, desde logo, a excepção estabelecida pelo art.º 409.º do C. Civil o qual, sob a epígrafe reserva de propriedade, permite ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações da outra parte.
Esta reserva de propriedade tem o seu campo de eleição no âmbito do contrato de compra e venda em que a obrigação de pagamento do preço é fraccionada em prestações[1].
No âmbito deste contrato de compra e venda com fraccionamento do preço em prestações, a reserva de propriedade configura-se, conceptualmente, como uma condição suspensiva que abrange apenas a transmissão da propriedade da coisa[2], a qual só ocorre depois de cumprida integralmente a obrigação de pagamento do preço.
A reserva de propriedade configura-se, neste caso, mais do que uma garantia do bom cumprimento da obrigação de pagamento do preço, numa autêntica retenção do direito de propriedade, favor negotii, destinada a assegurar o vendedor contra os efeitos da aplicação da regra geral estabelecida pelo art.º 408.º, n.º 1 do C. Civil, qual seja, ficar despido do seu direito de propriedade sem receber a contrapartida do preço.
Esta definição da figura da reserva de propriedade impede a sua aplicação ao contrato de mútuo, a favor do mutuante, pela própria natureza do contrato (empréstimo de dinheiro ou de outra coisa fungível - art.º 1142.º do C. Civil), uma vez que não está em causa a alienação de uma coisa.
No caso sub Judice, a reserva de propriedade em causa supõe a realização, a par do contrato de mutuo, de um contrato de compra e venda entre o mutuário e um terceiro, in casu, entre a requerida e a Ford Lusitana a favor da qual foi constituída, inicialmente, a reserva de propriedade (n.º 3 da matéria de facto supra).
No seu requerimento inicial, alegou a agravante que a Ford Lusitana lhe cedeu, com o consentimento da requerida, a titularidade da referida reserva de propriedade, insurgindo-se, agora, também, contra a decisão do Tribunal a quo que julgou “não provado” o facto respectivo, o que se nos afigura uma forma atípica de requerer a alteração da decisão em matéria de facto – juntando com as alegações do agravo um documento que devia ter sido junto com a alegação do facto que, com ele, se propõe provar. 
E como o mutuário não cumpriu as obrigações que deram origem a esse acordo, incumprindo o contrato de mútuo, a agravante arroga-se o direito de propriedade sobre o veículo, que lhe adviria da acordada reserva de propriedade, e o consequente direito à sua restituição com a apreensão do veículo nos termos do art.º 15 do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro
A reserva de propriedade, neste caso, só pode configura-se como uma garantia de cumprimento relativamente à obrigação de restituição da quantia mutuada que impende sobre o mutuário.
E não poderá dizer-se que esta garantia se traduz, afinal, na retenção do direito de propriedade a que acima nos referimos uma vez que não lhe assiste a natureza de condição suspensiva relativamente à transmissão da propriedade da coisa.
Aliás, a transmissão da propriedade da coisa é pressuposto do estabelecimento dessa garantia, ou seja, o comprador só pode limitar a sua propriedade plena, dando ao mutuante a garantia da reserva de propriedade, depois de adquirir e porque adquiriu a propriedade plena sobre a coisa.
A admitirmos que a reserva de propriedade pode ser constituída nestas circunstâncias, temos de admitir que nos encontramos muito longe do escopo inicial da figura da reserva de propriedade, levando esta a desempenhar uma função para a qual não foi criada[3].
Não obstante, outra pode ser a abordagem da questão.
II. O princípio da liberdade contratual.
A reserva de propriedade em causa nos autos resultou do exercício da liberdade contratual das partes contratantes, as quais, como do escrito de fls. 6 consta acordaram em que: “O presente contrato é celebrado com reserva de propriedade do veículo a favor do vendedor registado, nos termos das cláusulas gerais constantes deste contrato. O vendedor registado cedeu ou cederá à F… a titularidade de tal reserva de propriedade, e o comprador presta desde já o seu consentimento a tal cessão” (facto contido no n.º 1) da matéria de facto supra).
Como dispõe o art.º 405.º do C. Civil, dentro dos limites da lei, as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos, incluir as cláusulas que lhes aprouver e reunir regras de dois ou mais negócios.
Nos termos da cláusula supra citada, as partes contratantes acordaram na possibilidade de cessão de uma hipotética reserva de propriedade e esta foi registada a favor da agravante.
Perante uma tal amplitude do princípio da liberdade contratual, a questão que nos vem ocupando revelar-se-ia uma discussão inútil.
Mas não é assim.
No exercício da sua liberdade contratual as partes devem conter-se nos limites da lei.
E não foi isso que aconteceu no caso sub judice em que a agravante, para beneficiar da eficácia do registo em relação a terceiros, nunca tendo sido proprietária, levou a acordada reserva de propriedade ao registo
Trata-se, por isso, de um mero acto registral sem suporte no direito substantivo uma vez que a agravante nunca foi proprietária do veículo para poder reservar essa propriedade até lhe ser restituída a quantia mutuada.
A realidade assim criada não é merecedora de protecção legal, não podendo a requerente ser beneficiada, com a utilização de um meio processual mais favorável a que de outro modo não poderia aceder (o procedimento de apreensão de veículo a que se reporta o art.º 15 do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro). 
Esta conduta configura-se como inábil na aplicação à realidade negocial dos instrumentos legais ao dispor, entre eles, as virtualidades do princípio da liberdade contratual.
III. A sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor.
 A realidade negocial em causa configura-se como um contrato de mútuo, entre agravante e agravada destinado a proporcionar a esta a quantia necessária à aquisição a um terceiro de um veículo automóvel.
Atenta a proximidade de tais contratos, que lhes advém do interesse conjunto dos contraentes[4], nada obstava a que, utilizando o instituto legal da sub-rogação, a mutuante fosse sub-rogada nos direitos do vendedor para que pudesse beneficiar da figura da reserva de propriedade, ficando a sub-rogação a constar do documento do empréstimo, nos termos do art.º 591.º, n.º2, do C. Civil (que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor).
Tratando-se de contratos distintos (de mutuo e de compra e venda), entre contraentes distintos estão, todavia numa relação de proximidade e dependência que facilita o recurso à sub-rogação voluntária prevista em tais preceitos.
Com as alegações de recurso, a agravante juntou os documentos de fls. 85 a 92 (certidão do registo predial com os documentos que serviram de base ao registo da reserva de propriedade referida em 9) da matéria de facto supra), com os quais pretende demonstrar que a Ford Lusitana lhe transmitiu a reserva de propriedade[5].
Ora, como já referimos, no seu requerimento inicial alegou a agravante que a Ford Lusitana lhe cedeu, com o consentimento da requerida, a titularidade da referida reserva de propriedade pelo que, prima facie, tal documento deveria ter sido junto com a articulação do facto que se propõe provar.
Acontece, todavia, que sobre a matéria em causa nos autos se formaram nos tribunais portugueses duas correntes jurisprudenciais, uma admitindo o recurso a esta providência por parte do mutuante com reserva de propriedade registada a seu favor com fundamento numa interpretação actualista do art.º 15.º do Dec. Lei, n.º 54/75 de 12 de Fevereiro[6] e outra – em que se insere a decisão sob recurso e que também temos seguido – que rejeita o recurso a tal providência pelo mutuário que, simplesmente, logrou registar uma reserva de propriedade a seu favor[7].
Em face dessa dualidade de decisões judiciais não nos repugna admitir que os documentos juntos com o agravo, a fls. 85-92, embora atinentes a um facto articulado no requerimento inicia, se possam considerar documentos cuja “… Junção apenas se tornar/ou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 706.º, n.º 1 e 3, do C. P. Civil.
Afinal, se o Tribunal a quo seguisse a tese da interpretação actualista, citada, a certidão de registo automóvel inicialmente junta pela requerente seria suficiente para o efeito substantivo e processual por ela prosseguido.
Admitido tal documento não podemos deixar de considerar provado um facto, sob o n.º 10) com o seguinte conteúdo:
10) A Ford Lusitana, S. A. cedeu à F… a reserva de propriedade que detinha sobre o veículo automóvel da marca Ford, modelo Transit, com a matrícula…..
Temos assim que, tendo sido constituída reserva de propriedade a favor do vendedor do veículo, por acordo entre o comprador e o mutuante – (cláusula supra descrita e contida no facto n.º 1) com o seguinte conteúdo: “O presente contrato é celebrado com reserva de propriedade do veículo a favor do vendedor registado, nos termos das cláusulas gerais constantes deste contrato. O vendedor registado cedeu ou cederá à F… a titularidade de tal reserva de propriedade, e o comprador presta desde já o seu consentimento a tal cessão”) – e por acordo entre o mutuante e o vendedor, essa reserva de propriedade foi cedida, ao mutuante. 
Não obstante tal facto, o certo é que, no caso sub judice não se verificou qualquer sub-rogação válida do mutuante na posição jurídica do vendedor.
Uma das virtualidades da reserva de propriedade cedida, e de que a agravante se arroga titular, é a possibilidade legal de recurso à providência cautelar prevista no art.º 15.º do Dec. Lei, n.º 54/75 de 12 de Fevereiro em caso de incumprimento pelo comprador/mutuário das obrigações contratuais que originaram a reserva de propriedade.
Questão que, desde logo, se coloca é a de saber se é possível esta transmissão, a qual se configura como transmissão de um instrumento processual[8] inerente a um instituto substantivo – a compra e venda a prestações, com reserva de propriedade – sem a transmissão da posição substantiva inerente – o crédito relativo ao preço.
É que a cláusula de reserva de propriedade tem como finalidade garantir o cumprimento de uma obrigação pecuniária relativa ao contrato de compra e venda, não tendo autonomia em face desta.
A nosso ver, como resulta do disposto no art.º 582.º, n.º 1, do C. Civil, não se pode transmitir uma coisa (reserva de propriedade e a inerente faculdade processual) sem a outra (o crédito relativo ao preço).
Acresce que, a própria cessão de créditos não transmite o direito à resolução do contrato de compra e venda, pelo que nem sequer é liquido que a reserva de propriedade possa ser transmitida através da simples cessão do crédito, sem cessão da posição contratual[9].
Podemos, pois, concluir que, não obstante o acordo sobre a transmissão de reserva de reserva de propriedade e o correspondente registo, este não tem o condão de sub-rogar o mutuante na posição jurídica do vendedor. 
IV. O meio processual eleito e o registo da reserva de propriedade.
 A agravante requereu este procedimento cautelar de apreensão de veículo e respectivos documentos, ao abrigo do disposto no art.º 15.º do Dec. Lei, n.º 54/75 de 12 de Fevereiro, pedindo a apreensão do veículo, com fundamento na reserva de propriedade registada a seu favor.
Este meio processual, como se deduz do próprio texto do art.º 15.º, n.º 1 e dos art.ºs 18.º, n.º 3 e 19.º, n.º 1, al. a) do Dec. Lei, n.º 54/75 citado, respeita à acção declarativa de resolução do contrato de alienação com reserva de propriedade.
Não vislumbramos, pois, como pode a agravante pretender lançar mão do mesmo processo para uma realidade jurídica diferente, qual seja, a do não cumprimento, por parte do mutuário, das obrigações que lhe advieram da celebração do respectivo contrato, em que o único ponto de ligação com a matriz do Dec. Lei n.º 54/75 é o facto prosaico de respeitarem ambas a veículos automóveis.
Trata-se de um equívoco na eleição do meio processual adequado à realização do direito substantivo.
É que a providência cautelar prevista no art.º 15.º do Dec. Lei n.º 54/75, tendo como pressuposto a reserva de propriedade aposta a um contrato de compra e venda de veiculo com fraccionamento do preço em prestações, é dependência de uma acção de resolução do respectivo contrato, não se vislumbrando a que título se poderia transmutar em dependência da acção de resolução de um contrato de mútuo, tanto mais que só a resolução do contrato de alienação com reserva de propriedade poderia fundamentar a apreensão e a entrega do veículo à requerente.
Aliás, esta apreensão do veículo por dependência da acção de resolução de um contrato de mútuo, assemelhando-se mais a uma penhora antecipada, apresenta toda uma série de outras anomalias processuais, na fase executiva do processo, jurisprudencialmente abordas e que agora nos dispensamos de abordar[10].
Não vislumbramos, pois, critério interpretativo que conduza à aplicação do procedimento cautelar de apreensão de veículo à situação indiciada nos autos (contrato de mútuo não cumprido) tanto mais que, por um lado, se trata de utilização de um instrumento processual e não de interpretação de lei substantiva e, por outro, não existe qualquer lacuna na lei processual a tal respeito[11].
Como dispõe o art.º 2.º, n.º 2 do C. P. Civil: “A todo o direito... corresponde a acção destinada a fazê-lo reconhecer em juízo... bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção”.
Dispõe a agravante dos meios processuais adequados a fazer valer o seu direito (procedimento cautelar e acção declarativa) mas entre eles não se compreende o procedimento cautelar do art.º 15.º citado.
O que a agravante pretende é ressarcir-se pelo incumprimento do mutuário, utilizando para o efeito o procedimento mais expedito da apreensão do veículo automóvel, servindo-se da reserva de propriedade como garantia imprópria do seu crédito, pois esta não lhe confere qualquer direito de propriedade nem a possibilidade de, com base nela, reaver o que nunca teve, a propriedade do veículo.
E esta pretensão (processual) como se decidiu, entre outros, nos Ac. do S. T. J. de 12/05/2005 e de 02/10/2007[12], não é admissível.

Improcedem, pois, as conclusões da agravante.  
 3. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela agravante.

Lisboa, 15 de Abril de 2008

Orlando Nascimento

Ana Resende (vencida conforme declaração junta)


Dina Monteiro


Agravo n.° 2596/08 — 7 ª S.
           
Declaração de voto
Considerando que a decisão recorrida se coaduna com a posição tradicionalmente defendida pela Jurisprudência, entendo que tal posição, no âmbito de uma interpretação restritiva do n.°1, do art.° 15 do DL 54/75, de 24.02, omite o âmbito de aplicação do art.° 409, do CC, e não se adequa com as realidades da prática comercial actual, maxime no concerne à venda de veículos, antes se impondo a realização de uma interpretação actualista, e até correctiva, das referidas normas para dar adequada resposta jurídica a situações contratuais como a em causa nos autos.
Assim, entendendo como admissível a constituição de reserva de propriedade tendo por finalidade garantir um direito de crédito de terceiro, faz-se, desse modo, a interpretação extensiva do disposto no 18, n.°1, do mencionado DL 54/75 fazendo incluir no âmbito da expressão " contrato de alienação" o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda que esteve na origem da reserva de propriedade, na consideração de uma relação tripartida, em que os contratos de compra e venda e de financiamento se mostram como que interdependentes.
O entendimento contrário acarreta a própria inutilidade da estipulação da cláusula de reserva da propriedade, nos casos em que a aquisição do veiculo é feita com recurso ao financiamento de terceiro, pois tendo a vendedora recebido a totalidade do preço da entidade financiadora, mostrando-se, desse modo, efectivado, o cumprimento integral do contrato de alienação, inexiste fundamento para a resolução do contrato de alienação, e em conformidade, fazer reverter a favor do alienante a cláusula de reserva de propriedade, só fazendo esta sentido se entendida como estabelecida para garantir o cumprimento do contrato de financiamento.
Verificando-se na situação sob análise o registo da reserva da propriedade a favor da mutuante, ora Recorrente, daria provimento ao Agravo.

Ana Resende

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[1] Cfr. Os art.ºs 781.º e 934.º do C. Civil.
[2] Cfr. Pires Lima e A. Varela, C. Civil anotado, vol. I, 3.ª ed, pág. 357 e A. Varela, anotações na R.L. J. anos 3788 e 3789.
[3] E em substituição funcional de outros institutos jurídicos, como sejam a hipoteca, cfr. art.º 5., n.º 1, al. c) do Dec. Lei n.º 54/75.
[4] O qual é, grosso modo, para o comprador a aquisição do veículo, para o vendedor o recebimento do preço respectivo e para o mutuante a restituição, com remuneração, do seu capital.
[5] Na terminologia do documento de fls. 89, que ocorreu a “transmissão de posição de reservante”.
[6] Em que se inserem o acórdão desta Relação de 30/05/2006 e de S. T. J de 12/09/2006, citados pela agravante.
[7] Entre outros, os Ac. desta Relação de 16/12/2003 e do S. T. J. de 12/05/2005[7], In www. dgsi. pt. P.º 7023/2003, o primeiro e Processo 05B538, o segundo, contendo, este, exaustiva resenha da jurisprudência na matéria, orientação por nós seguida, entre outros, no Ac. de 06/06/2006, P.º 3628/06-7.

[8] A reserva de propriedade não é uma garantia real, mas uma cláusula acessória que, apondo-se ao contrato de compra e venda permite, no caso de compra e venda de veículo, a utilização da providência expedita do art.º 15.º do Dec. Lei n.º 54/75.
[9] Cfr., v. g., Meneses Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 2.ª edição, pág. 25 e segts.
[10] Dispondo o art.º 15.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 54/5, de 12 de Fevereiro que: “ Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e seus documentos” a harmonia do sistema estabelecido supõe que a esta apreensão se siga a resolução do contrato de compra e venda com a permanência da propriedade no vendedor e não que a esta apreensão se siga uma penhora com a subsequente venda coerciva.

[11] Não fazendo, também, sentido falar-se em interpretação actualista da lei ou em interpretação extensiva. 
[12] In www. dgsi. pt. Processos 05B538 e P.º 07A2680, contendo uma exaustiva resenha da jurisprudência na matéria.