Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2419/22.7T8LSB.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: EXCEPÇÃO DILATÓRIA
PRETERIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL
CONHECIMENTO PELO TRIBUNAL ESTADUAL
CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM
VALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Nos termos do Art.º 5.º n.º 1 da LAV, o tribunal estadual no qual seja proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu, deduzido até ao momento em que apresentar o seu articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância «a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível».
II - Os tribunais judiciais só devem rejeitar o reconhecimento da verificação da exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral quando seja manifesto e incontroverso, sem necessidade de grandes averiguações ou produção de qualquer prova, que a cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no âmbito de aplicação da convenção arbitral.
III - Estabelecendo-se, no caso, numa cláusula de “Memorando de Entendimento” que as partes submeterão obrigatoriamente todos os litígios, decorrentes ou relacionados com ele, à arbitragem, devendo os árbitros decidir o litígio no prazo de 3 meses a contar da data de constituição do tribunal arbitral, essa cláusula não é manifestamente inexequível.
IV - O prazo de 3 meses, assim estabelecido, pode ser de difícil cumprimento, mas não é objetivamente impossível de cumprir, o que é quanto basta para se julgar não ser “manifestamente inexequível”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
A A, S.A. veio propor a presente ação constitutiva e de condenação, em processo declarativo comum, contra B, pedindo  que seja declarado como resolvido o contrato de compra e venda através do qual a A. vendeu ao R. o prédio urbano composto por armazém de rés-do-chão, andar e logradouro, sito na Avenida …, lote 25, freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número … da mesma freguesia, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Olivais, e ainda o prédio urbano composto por conjunto fabril constituído por sete edifícios, três dos quais com um só pavimento, dois com dois pavimentos, e dois com quatro pavimentos, destinado ao fabrico de discos de cortiça para cápsulas de garrafas, sito na Avenida …, lotes 26, 27 e 28, freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número … da mesma freguesia, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Olivais, pelo montante global de €9.000.000,00 (nove milhões de euros). Em consequência, pede também para ser ordenada a restituição dos dois referidos imóveis à A., mediante a correspondente restituição do preço ao R., que havia sido recebido pela A., e ainda a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de €17.519,13, acrescida dos juros moratórios que se vencerem desde 30.12.2021 e até integral e efetivo pagamento, calculados à taxa convencionada de 30,132% ao ano sobre o capital de €13.550,43.
Para tanto, alegou que foi celebrado um contrato de compra e venda entre A. e R., que tinha por objeto os mencionados 2 imóveis, os quais foram vendidos pela A. ao R. pelo montante global de €9.000.000,00, encontrando-se esse negócio inserido no âmbito de um outro acordo, mais vasto e complexo, que passou pela celebração de um contrato de compra e venda de ações da sociedade C, S.A. (C), através do qual o R. adquiriu à A. o valor correspondente a 66% do capital social da referida sociedade, e um “Memorandum of Understanding” (“MoU”), ou “Memorando de Entendimento”, onde se previa também  a celebração de um contrato de arrendamento entre o R. e a C, que tinha por objeto os imóveis vendidos pela A. ao R. e onde se estabelecia que a C tinha a obrigação de proceder aos trabalhos de empreitada necessários ao desenvolvimento do projeto “The Corkworks Lisboa” e a obtenção de todas as licenças necessárias, prevendo-se ainda a celebração de um outro contrato, de gestão do projeto “The Corkworks Lisboa”, entre a C e a A., que obrigavam esta e o Sr. D, outro dos outorgantes do MoU, a procederem aos trabalhos aí descritos, com uma distribuição dos custos repartidos entre a C e a A., ficando o R. como o único responsável pelo financiamento do projeto “The Corkworks Lisboa”, através de empréstimos realizados à C, os quais seriam remunerados, quanto a 30%, a uma taxa de juros de 10%, e os restantes 70% com uma taxa de juro equivalente a Euribor 6 meses + 2 %, sempre com um mínimo de 2%.
Havia assim uma interdependência entre o contrato de compra e venda dos imóveis, o contrato de arrendamento e o contrato de gestão de projeto, tendo a A. apenas aceito proceder à venda dos 2 imóveis ao R., e bem assim a vender-lhe 66% do capital social que detinha na C, no pressuposto da celebração dos outros negócios diretamente realizados com esses imóveis.
Sucede que, por carta datada de 25 de setembro de 2019, o R. comunicou à A. e ao Sr. D a sua decisão de resolver o MoU, por ter sido ultrapassado o prazo máximo, previsto na sua cláusula 6.ª, para se celebrar o contrato de arrendamento, o contrato de gestão de projeto, o acordo parassocial, o contrato promessa de compra e venda de ações, o acordo de escrow e a outorga duma procuração irrevogável, invocando ainda que teria estado continuamente a financiar o projeto, mas este não tinha saído da sua fase inicial, e, como tal, seria necessária uma equipa mais capacitada para desenvolver um projeto daquela dimensão.
A A. respondeu a essa missiva, não aceitando os fundamentos da resolução. Ao que se seguiu uma troca de correspondência entre as partes, concluindo a A. pela improcedência dessa pretensão do R., que motivou que este último se tivesse recusado a implementar o acordado, com fundamento na caducidade do MoU.
Em suma, sustenta a A. que só vendeu os 2 imóveis ao R., porque este se obrigou, concomitantemente, a proceder à celebração do contrato de arrendamento com a C; a financiar o projeto “The Corkworks Lisboa” através de empréstimos realizados à C, com os quais a C pagaria à A. os trabalhos desenvolvidos no âmbito do projeto “The Corkworks Lisboa”; e a re-arrendar, através da C, os imóveis a potenciais interessados por forma a rentabilizar o investimento de todos os envolvidos. Razão pela qual foi decidido celebrar o MoU, que era o “contrato interpretativo” da vontade das partes e estava subjacente aos vários contratos celebrados e acordados celebrar, os quais tinham a sua autonomia, mas tinham uma finalidade económica comum e uma subordinação que implicava que as vicissitudes de um se repercutissem nos outros.
Assim, ante a resolução do MoU, operada pelo R., ainda que sem fundamento, desapareceu a causa subjacente ao contrato de compra e venda dos imóveis, que por isso deve ser declarado resolvido, com a consequente restituição dos imóveis à A., mediante a correspondente restituição do preço recebido.
Citado, o R. veio contestar defendendo-se desde logo por exceção, invocando a incompetência absoluta do tribunal judicial, por preterição de Tribunal Arbitral, porquanto dos termos da cláusula 12.ª do MoU resulta que a vontade das partes foi no sentido de sujeitar todo e qualquer litígio, que possa surgir ou que tenha surgido entre as partes, ao Tribunal Arbitral.
Defende, portanto, que os contratos de compra e venda estão sujeitos à cláusula compromissória mencionada, pois estão unidos, interligados e totalmente dependentes entre si, porque têm por objetivo comum o desenvolvimento do projeto aí previsto, sendo que é a própria A. quem alega que a resolução do Memorando, por parte do R., acarretou necessariamente a resolução do contrato de compra e venda dos imóveis, que constitui o seu pressuposto.
Em suma, concluiu que o tribunal judicial não era competente para apreciar e decidir o litígio a que respeita o presente processo, mas sim o Tribunal Arbitral, o que importa a absolvição do R. da instância.
A A. veio a exercer o contraditório, pugnando pela improcedência dessa exceção invocando, em resumo, que o modo como delimitou o objeto da sua ação, e configurou o seu pedido, afasta, em relação a si, a aplicação da cláusula compromissória, uma vez que a A. não quer discutir nesta ação quaisquer “litígios decorrentes ou relacionados com o “Memorando de Entendimento”, mas tão-somente os efeitos para si decorrentes de uma resolução ilícita por parte do R., ou seja, a resolução do contrato de compra e venda dos imóveis autos.
Sem prejuízo, defendeu ainda que a cláusula compromissória constante do MoU é manifestamente inexequível, porque nela se prevê um curtíssimo espaço de tempo para que seja decidido qualquer litígio, sendo impensável que apenas no prazo de 3 meses, após a constituição do tribunal arbitral, se possa resolver a questão por via arbitral.
Referiu ainda que na consulta dos regulamentos de alguns centros de arbitragem de conflitos de consumo permite-lhe concluir que o prazo máximo para a mediação é de 90 dias no CNIACC (art. 13.º-1 do regulamento) e de 30 dias no CIAB, prorrogáveis por mais 30 dias (art. 4.º-7 e 8 do regulamento). Pelo que, o prazo fixado é adequado para a mediação, mas não para a resolução do litígio, aplicando-se a título supletivo o prazo de 12 meses, contado da data de aceitação do último árbitro, com possibilidade de prorrogação, tal como estabelecido no Art. 43.º n.º 1 e 2 da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV).
Em conformidade, conclui pugnando pela improcedência da alegada exceção.
Nessa sequência, vem a ser proferido o despacho saneador-sentença, datado de 13 de novembro de 2023, nos termos do qual, julgando-se não haver lugar à realização de audiência prévia, veio a conhecer da alegada exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral e, julgando a mesma por procedente, absolveu o R. da instância.
É dessa sentença que a A. vem agora interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
A. O presente recurso vem interposto do Despacho Saneador Sentença (Ref.ª Citius 429559816), no qual o Tribunal a quo, ao entender que cabia aos tribunais arbitrais, num primeiro momento, a apreciação da sua própria competência e, em particular, da exequibilidade ou não da cláusula arbitral, determinando a absolvição do Réu da instância, comete um clamoroso erro de julgamento.
B. Com efeito, no Saneador Sentença, o Tribunal a quo entendeu que aos tribunais arbitrais, num primeiro momento, a apreciação da sua própria competência, ou seja, que o tribunal arbitral tinha prioridade na apreciação da sua própria competência, aí incluída a questão da exequibilidade ou não da cláusula compromissória, cabendo ao tribunal estadual atuar com reserva quanto a esta matéria.
C. Para tanto, o Tribunal a quo aplicou uma disposição legal revogada – o artigo 21.º, n.º 1, da Lei n.º 31/86, anterior lei de arbitragem, entretanto revogada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, que aprovou a Lei de Arbitragem Voluntária atualmente em vigor no nosso ordenamento – e segundo a qual o tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção.
D. Embora o artigo 21.º, n.º 1, da lei de arbitragem revogada seja semelhante ao artigo 18.º, n.º 1, da atual LAV, ao aplicar erradamente uma lei revogada, o Tribunal a quo ignorou as restantes disposições relevantes da atual LAV, aplicáveis ao caso concreto, particularmente o artigo 5.º, n.º 1, da LAV.
E. O artigo 5.º, n.º 1, da LAV consagra o efeito negativo do princípio da competência-competência, nos termos do qual se reconhece a competência aos árbitros de poderem pronunciar-se com prioridade sobre a sua competência, mas com uma limitação: os tribunais estaduais podem e devem averiguar se a convenção é ou não manifestamente nula, ineficaz ou inexequível.
F. Em sentido oposto ao decidido pelo Tribunal a quo, o efeito negativo do princípio da competência-competência não veda ao Tribunal a quo averiguar se a cláusula é manifestamente inexequível, mas muito pelo contrário.
G. Este entendimento é confirmado de forma unânime pela doutrina e jurisprudência, tendo o Supremo Tribunal de Justiça entendido que o efeito negativo do princípio da competência-competência “faz dos árbitros, não os únicos juízes da sua competência, mas os primeiros desta, a não ser que seja manifesto que a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.” (Acórdão de 12.05.2016, proferido no âmbito do processo n.º 710/14.5TVLSB-A.L1.S1).
H. O Tribunal a quo tinha assim a obrigação de ter apreciado efetivamente se a Cláusula Compromissória constante da Cláusula 12ª do Memorando de Entendimento é manifestamente nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, da LAV em vigor e conforme peticionado pela Recorrente.
I. No entanto, o Tribunal a quo mais não fez mais do que comentar de passagem a questão da inexequibilidade da cláusula arbitral, entendendo, no entanto, que cabia ao tribunal arbitral apreciar tal questão e não apreciando verdadeiramente, e para os efeitos do artigo 5.º, n.º 1, da LAV, se a convenção de arbitragem é inexequível, atento o curtíssimo espaço de tempo que prevê para que seja decidido qualquer litígio, i.e., apenas 3 meses após a constituição do tribunal arbitral, com a consequência da anulação da sentença arbitral caso seja excedido este prazo.
J. Verifica-se que a convenção de arbitragem é manifestamente inexequível, restringindo o direito da Recorrente a uma tutela judicial efetiva pela manifesta impossibilidade de decidir um litígio por via arbitral no curto prazo de três meses.
K. O Tribunal a quo, ao nem sequer apreciar a questão da inexequibilidade da cláusula arbitral, entendendo que a apreciação da competência e da exequibilidade da cláusula arbitral caberia, num primeiro momento, ao tribunal arbitral, em clara contradição com o disposto no artigo 5.º, n.º 1, da LAV, comete um clamoroso erro de julgamento, que deve ser corrigido com a revogação do Despacho Saneador Sentença e apreciação da exequibilidade de cláusula arbitral, conforme peticionado pela Recorrente.
Pede assim que o recurso seja julgado procedente e, em consequência, que seja revogado o Saneador Sentença recorrido, prosseguindo o processo os seus ulteriores termos.
O R. respondeu ao recurso, sobrelevando das suas contra-alegações, as seguintes conclusões:
1. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, sendo a questão objeto do recurso apenas a reapreciação da decisão recorrida que entendeu que a cláusula arbitral é exequível, decidindo pela preterição do tribunal arbitral e, consequentemente, declarou o tribunal a quo incompetente, absolvendo o Réu da instância.
2. Não é posto em causa pela Recorrente no presente recurso que no MoU celebrado entre as partes existe uma cláusula compromissória, que especifica, de forma clara, a relação jurídica a que os litígios respeitam, ou seja “todos os litígios, decorrentes ou relacionados com o presente Memorando de Entendimento” e que o presente litígio é, efetivamente, decorrente ou relacionado com o MoU, ao qual está intrinsecamente ligado e, como tal, sujeito à arbitragem voluntária.
3. Qualquer litígio que não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado pode ser cometido pelas partes à decisão de árbitros (cfr. artigo 1.º, n.º 1, da LAV).
4. Para que seja válida a cláusula arbitral deve adotar forma escrita e especificar a relação jurídica que lhe subjaz (cfr. artigo 2.º, n.º 1 e n.º 6 da LAV).
5. O tribunal estadual onde seja proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve absolvê-lo da instância a menos que se verifique que manifestamente a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.
6. Os termos manifestamente tem de ser interpretado com o sentido de “dispensar a produção de prova, para se alcançar a nulidade, a ineficácia ou a inexequibilidade”.
7. O juiz “apenas pode conhecer daqueles vícios se eles forem tão evidentes que praticamente não carecem de demonstração, ou seja, inexiste razão jurídica ou prática para o juiz observar o princípio da competência-competência, remetendo as partes para a arbitragem”.
8. Só casos em casos excecionais e evidentes pode o juiz obviar à remessa do processo para arbitragem.
9. O tribunal arbitral tem prioridade na apreciação da sua própria competência, ou seja, no domínio da LAV o juízo sobre a questão de saber se a convenção de arbitragem é inoperante, quer por ser inválida, quer por ser ou se tornar ineficaz, compete, antes de mais, ao árbitro (cfr artigo 18.º, n.º 1 da LAV).
10. “(...) as questões relativas à validade, eficácia, ou aplicabilidade da convenção de arbitragem estão subtraídas à jurisdição estadual
11. Nas palavras do STJ “face ao princípio consagrado no art. 18.º, n.º 1, da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem –, os tribunais judiciais só devem rejeitar a exceção dilatória de preterição do tribunal arbitral (...)quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível (...)17”, o que não é manifestamente o caso.
12. O que o STJ consagra é o princípio da competência-competência (Kompetenz-Kompetenz), que se justifica na necessidade de evitar que, invocada por uma das partes litigantes a falta de competência do tribunal arbitral, tivesse de ser o tribunal judicial a decidir dessa mesma competência.
13. A convenção de arbitragem não é manifestamente nula, ineficaz ou inexequível.
14. Andou bem o Tribunal a quo quando entendeu que, “no caso em apreço não cremos que a dita cláusula seja inexequível, pois é possível que o litígio seja resolvido no prazo previsto”.
15. A cláusula compromissória em apreço refere que a decisão “deve” ser proferida no prazo de três meses, não afastando que os árbitros, ouvidas as partes e com fundadas razões apresentadas pelos próprios e se for caso disso, possam alargar tal prazo.
16. Por cautela de patrocínio, sempre sem conceder, refira-se, ainda, que de acordo com o artigo 292.º do Código Civil, a nulidade pu anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio – assim, ainda que por mera hipótese, se considere que o n.º 7, da Cláusula 12.ª do MoU sofre de algum vício, deverá apenas tal número ser eliminado e as demais regras da cláusula compromissória mantidas.
17. De notar que a Recorrente foi devidamente assessorada por advogados e tem larga experiência no mercado imobiliário, razão pela qual tinha absoluta consciência do teor da referida cláusula e da vontade de submeter o litígio ao Tribunal Arbitral.
18. É, pois, o Tribunal Arbitral que tem competência para concluir se tem competência para conhecer do litígio e para dirimir este mesmo litígio.
19. A sentença recorrida não merece, em consequência do exposto, qualquer censura.
Pede assim que a sentença recorrida seja mantida nos seus exatos termos, por proceder a exceção dilatória de preterição do tribunal arbitral, com a consequente absolvição do R. da instância.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, em termos sucintos, a única questão a decidir é a de saber se no caso poderia proceder a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Ao apreciar a exceção dilatória, a decisão aqui recorrida fixou a seguinte factualidade, tida por relevante:
1 – A A. é uma sociedade comercial de direito português dedicada a atividades de mediação e avaliação imobiliária, consultoria para os negócios e a gestão, promoção imobiliária; administração de imóveis por conta de outrem, estudos de mercado, atividades de consultoria imobiliária, de administração de condomínios, construção de edifícios e outras obras de engenharia, arrendamento, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, e comércio por grosso e a retalho de materiais de construção.
2 - O R., por sua vez, é uma pessoa singular que decidiu investir no sector imobiliário em Portugal.
3 – Entre A. e R. foi celebrado, no dia 29 de Dezembro de 2017, um contrato de compra e venda relativo a dois imóveis celebrado, a saber, (i) o prédio urbano composto por armazém de rés-do-chão, andar e logradouro, sito na Avenida …, lote 25, freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número … da mesma freguesia, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Olivais, e (ii) o prédio urbano composto por conjunto fabril constituído por sete edifícios, três dos quais com um só pavimento, dois com dois pavimentos, e dois com quatro pavimentos, destinado ao fabrico de discos de cortiça para cápsulas de garrafas, sito na Avenida …, lotes 26, 27 e 28, freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número … da mesma freguesia, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Olivais, pelo montante global de €9.000.000,00 (nove milhões de euros).
4 – A. e R. celebraram ainda, a 29 de Dezembro de 2017, um Memorando de Entendimento (MoU), estipulando na sua cláusula 12ª que:
“Lei aplicável
1. As partes acordam que qualquer litígio relativo ao presente Memorando de Entendimento será regido pelas leis de Portugal.
2. As partes submeterão obrigatoriamente todos os litígios, decorrentes ou relacionados com o presente Memorando de Entendimento, a mediação de acordo com as Regras de Mediação do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial).
3. Se o litígio não for resolvido por mediação no prazo de 30 (trinta) dias, será definitivamente resolvido por arbitragem de acordo com o Regulamento do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial), por três árbitros nomeados de acordo com o regulamento.
4. A arbitragem terá lugar em Lisboa, na sede da Associação Comercial de Lisboa.
5. A língua da mediação e da arbitragem será o inglês.
6. O tribunal arbitral será composto por três árbitros, um árbitro nomeado pela Primeira Parte, um nomeado pela Quarta Parte, sendo o terceiro árbitro escolhido por acordo dos dois nomeados. Na ausência de acordo, tal nomeação será feita pelo Presidente do Centro de Arbitragem Comercial da Associação Comercial de Lisboa.
7. Os árbitros julgarão de acordo com a lei e a sua decisão, que deve ser proferida no prazo de 3 (três) meses a contar da data de constituição do tribunal arbitral, não pode ser objeto de recurso.”

Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A única questão objeto da presente apelação é saber se deveria ser julgada por procedente, ou improcedente, a alegada exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral.
Importa para esse efeito ter em consideração que a presente ação, tal como configurada pela A., e como resulta do sumariado no relatório do presente acórdão, visa o reconhecimento da resolução de um contrato de compra e venda relativo a 2 imóveis, tendo tal pretensão como pressuposto que esse negócio está incindivelmente ligado a um acordo mais vasto e complexo, cuja compreensão integral só se alcança dos termos do “Memorando de Entendimento” (MoU), celebrado na mesma data. Mais concretamente, a A. sustentou que o próprio fundamento do pedido de resolução do contrato de compra e venda emerge, como consequência necessária, da resolução, embora alegadamente infundada, do “Memorando de Entendimento” operada por iniciativa do R..
Portanto, o litígio a que se reporta a presente ação passa essencialmente pela apreciação do incumprimento das obrigações emergentes para as partes do “Memorando de Entendimento”, o qual é pressuposto do contrato de compra e venda dos imóveis, dependendo a procedência desta ação do julgamento da ilegitimidade (ilicitude) da resolução desse “Memorando”, operada por iniciativa do R., a qual teria como consequência inevitável a verificação do incumprimento definitivo do contrato de compra e venda e a sua resolução, tal como peticionada.
Em consequência do exposto, tal como sustentado na petição inicial, apesar de cada negócio individualmente considerado – todos mencionados no “Memorando de Entendimento” –, poderem ter a sua autonomia, todos eles estão interligados entre si por uma finalidade económica unitária, relacionada com a implementação do projeto que as partes denominaram “The Corkworks Lisboa”. De tal modo que o incumprimento, ou a resolução de um desses negócios, poderia arrastar consigo a subsistência de todos os outros. O que, de acordo com a A., se passaria com a concreta situação de resolução do “Memorando de Entendimento” relativamente à manutenção do contrato de compra e venda dos imóveis, que estavam na base do projeto “The Corkworks Lisboa”.
Nestes contexto não pode deixar de ser realçado que o contrato de compra e venda dos imóveis, que foi celebrado no mesmo dia do “Memorando de Entendimento”, é mencionado neste último, logo na alínea A) dos seus considerandos. Por outro lado, esses imóveis foram adquiridos pelo R. e a eles se reportam vários dos outros negócios mencionados do “Memorando”, sendo assim evidente a ligação e dependência do contrato de compra e venda de todos os restantes acordos referenciados no “Memorando”.
Ora, na cláusula 12.ª do referido “Memorando de Entendimento” (MoU), consta que foi acordado o seguinte:
«1. As partes acordam que qualquer litígio relativo ao presente Memorando de Entendimento será regido pelas leis de Portugal.
«2. As partes submeterão obrigatoriamente todos os litígios, decorrentes ou relacionados com o presente Memorando de Entendimento, a mediação de acordo com as Regras de Mediação do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial).
«3. Se o litígio não for resolvido por mediação no prazo de 30 (trinta) dias, será definitivamente resolvido por arbitragem de acordo com o Regulamento do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial), por três árbitros nomeados de acordo com o regulamento.
«4. A arbitragem terá lugar em Lisboa, na sede da Associação Comercial de Lisboa.
«5. A língua da mediação e da arbitragem será o inglês.
«6. O tribunal arbitral será composto por três árbitros, um árbitro nomeado pela Primeira Parte, um nomeado pela Quarta Parte, sendo o terceiro árbitro escolhido por acordo dos dois nomeados. Na ausência de acordo, tal nomeação será feita pelo Presidente do Centro de Arbitragem Comercial da Associação Comercial de Lisboa.
«7. Os árbitros julgarão de acordo com a lei e a sua decisão, que deve ser proferida no prazo de 3 (três) meses a contar da data de constituição do tribunal arbitral, não pode ser objeto de recurso».
Visto isto, apesar da posição inicialmente assumida pela A. na sua réplica, que parece já ter sido abandonada nas alegações de recurso, é inquestionável que o litígio dos autos se compreende na previsão da cláusula 12.ª transcrita, porque evidentemente “decorre”, ou “está relacionado”, com esse “Memorando de Entendimento”, pelas razões que atrás acabámos de expor e que resultam plasmadas na petição inicial.
Em função dos termos como a questão agora se coloca nas alegações de recurso apresentadas, o problema já não está na conclusão evidente de que a cláusula 12.ª do “Memorando de Entendimento” compreende o presente litígio, mas sim na consideração de que essa cláusula é inválida ou ineficaz, na estrita medida em que nela se prevê um prazo para a resolução do conflito em tribunal arbitral que alegadamente é “manifestamente inexequível”. Portanto, a questão, tal como colocada nas alegações de recurso da Recorrente, resume-se à alegada inexequibilidade da resolução do litígio no prazo de 3 meses a contar da constituição do tribunal arbitral, tal como estabelecido na cláusula 12.ª n.º 7 do “Memorando de Entendimento”.
Consabidamente, nos termos do Art. 18.º n.º 1 da LAV (Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011 de 14/12), o tribunal arbitral “pode” decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção.
Trata-se da consagração legal do princípio geral da “competência da competência” do tribunal arbitral, que se traduz no reconhecimento de que é ao tribunal arbitral que compete decidir sobre se têm competência para dirimir um determinado litígio. É uma regra quase universalmente aceite nas convenções internacionais e nas leis nacionais sobre arbitragem (vide, a propósito: António Sampaio Caramelo num artigo intitulado “A Competência da Competência e a Autonomia do Tribunal Arbitral” in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73, 2013-01).
Conforme é esclarecido na obra “Lei da Arbitragem Voluntária Comentada”, sob coordenação de Mário Esteves Oliveira, nas páginas 254 a 255: «Aquele “pode” [reportando-se à redação do n.º 1 do Art. 18.º da LAV] faz sentido não porque a decisão sobre a competência corresponda a uma faculdade que os árbitros exercitarão se o entenderem conveniente, mas porque o legislador quis afirmar aí a regra de que a legitimidade da intervenção do tribunal arbitral no julgamento de um processo, a sua competência, é algo sobre que só a ele (não ao tribunal estadual) cabe decidir inicialmente, valendo aquele “pode”, portanto, como uma afirmação de competência, não como a concessão de um poder discricionário».
O propósito final desta norma é-nos relatado por Pinto Monteiro (in “Manual da Arbitragem”, pág.s 187 a 188) como sendo o de prevenir a existência de expedientes dilatórios pelas partes que podem tentar recorrer a mecanismos judiciais com vista a afastar a jurisdição arbitral.
Assim, como é sustentado por Manuel Pereira Barroca (in “Lei da Arbitragem Comentada”, 2.ª Ed., pág. 89, anotação 2) «quer a convecção de arbitragem seja existente ou inexistente, válida ou inválida, eficaz ou ineficaz, exequível ou inexequível, o tribunal arbitral tem sempre competência, não apenas para julgar a lide como também para apreciar a existência, a validade, a eficácia ou a inexequibilidade da convenção de arbitragem e, assim, em suma, tem poderes para, positiva ou negativamente, poder vir, a final, a decidir o litígio».
Sucede que, nos termos do Art. 5.º n.º 1 da LAV, o tribunal estadual no qual seja proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que apresentar o seu articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância «a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível».
É precisamente com base nesta parte final do Art. 5.º n.º 1 da LAV que a Recorrente vem sustentar que o tribunal judicial, apesar do princípio da “Kompetenz-Kompetenz”, consagrado no Art. 18.º n.º 1 da LAV, poderia apreciar, por competência própria, a alegada “manifesta inexequibilidade” da convenção arbitral.
No fundo, sustenta a Recorrente, que a “manifesta inexequibilidade” da convenção arbitral, funciona como requisito negativo, cuja apreciação compete ao tribunal judicial, quando a ação aí lhe seja submetida para julgamento.
Efetivamente, António Menezes Cordeiro (in “Tratado da Arbitragem”, Almedina, 2015, pág. 120) entende que a: «absolvição da instância, a decidir pelo Tribunal do Estado no qual seja proposta ação abrangida por convenção arbitral, depende dos requisitos seguintes: (a) a ação entrada em tribunal do Estado; (b) a invocação da convenção de arbitragem pela outra parte; (c) feita até ao primeiro articulado sobre o fundo da causa; (d) a prova da existência dessa convenção; (e) e o requisito negativo de a cláusula invocada não ser manifestamente nula, ineficaz ou inexequível».
Ora, na verdade, ninguém discute que, sendo a ação relativa a questão compreendida por uma convenção arbitral instaurada em tribunal judicial, será este último quem deve absolver o R. da instância, por motivo de preterição de tribunal arbitral. É isso, e só isso, que é reconhecido nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça citados nas alegações de recurso (v.g. Ac. do STJ de 12/05/2016, Proc. n.º 710/14.5TVLSB-A.L1.S13 e Ac. do STJ de 10/03/2011, Proc. n.º 5961/09.1TVLSB.L1.S15, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Mas a regra é que o efeito negativo da atribuição da competência aos tribunais arbitrais para apreciar a sua própria competência reduz-se à conclusão de que os tribunais estaduais não têm competência para apreciar esses litígios, devendo sobrestar no julgamento da sua competência (cfr. citação feita nas alegações de recurso de Dário Moura Vicente, in “Lei da Arbitragem Voluntária”, 5.ª Ed., em anotação ao Art. 5.º).
Sem prejuízo, os tribunais judiciais poderem apreciar, como é evidente, que a questão sujeita ao compromisso arbitral não pode, no caso, determinar a necessária absolvição do R. da instância, por verificar que a convenção de arbitral é manifestamente nula, ineficaz ou inexequível.
Por isso mesmo, a título meramente exemplificativo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/2019 (Proc. n.º 8927/18.7T8LSB-A.L1.S1, Relator: Pedro de Lima Gonçalves, disponível no mesmo sítio), se decidiu que: «III. Face ao princípio consagrado no artigo 18º, nº1, da LAV, segundo o qual incumbe ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem –, os tribunais judiciais só devem rejeitar a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respetivo âmbito de aplicação. IV. A insuficiência económica superveniente, e sem culpa, da parte para custear as despesas com a convenção de arbitragem, fará com que a exceção de preterição de tribunal arbitral não se lhe possa opor, porquanto conduziria a uma situação de denegação de justiça (e de acesso aos tribunais) e à consequente violação do disposto no artigo 20º, nº1, da CRP. V. A mera concessão de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, sem qualquer outra alegação de insuficiência económica superveniente e sem culpa da parte, não é suficiente para afastar a procedência da exceção de preterição do tribunal arbitral».
Com interesse para o caso transcreve-se ainda a seguinte passagem relevante da fundamentação desse acórdão, que reflete o pensamento praticamente unânime do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria:
«O STJ vem entendendo que face ao princípio consagrado no artigo 18º, nº1 da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem -, os tribunais judiciais só devem rejeitar a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respetivo âmbito de aplicação. Suscitadas dúvidas sobre o campo de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio – Acórdão do STJ, de 20/03/2018 - cfr., no mesmo sentido, Acórdão do STJ, de 21/06/2016 – Deste modo, o tribunal estadual só deve intervir, fixando a sua competência, quando for manifesto e insuscetível de controvérsia séria a nulidade, ineficácia e a inexequibilidade da convenção de arbitragem, sendo que manifesta é aquela que não necessita de mais prova para ser apreciada, isto é, quando é constatável independentemente da produção complementar de prova» - (sublinhados nossos).
Ocorre que o Tribunal a quo, ao contrário do sustentado pela Recorrente, não se escudou apenas no princípio da “Kompetenz-Kompetenz”, para concluir que seria o tribunal arbitral o competente para apreciar a sua própria competência para julgar o litígio. O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a alegada “inexequibilidade” da cláusula compromissória constante do “Memorando”, nos seguintes termos:
«Alega ainda a Autora que a Cláusula Compromissória constante do Memorando é manifestamente inexequível, atento o curtíssimo espaço de tempo que prevê para que seja decidido qualquer litígio, i.e., apenas 3 meses após a constituição do tribunal arbitral, com a consequência da anulação da sentença arbitral caso seja excedido este prazo.
«No caso em apreço não cremos que a dita cláusula seja inexequível, pois, é possível que o litigio seja resolvido no prazo previsto, prazo esse que se inicia, em nosso entender, após o Tribunal Arbitral estar constituído, isto é, após a nomeação dos árbitros e o Tribunal Arbitral inicie as diligências necessárias, então dar-se-á inicio à contagem do prazo» (sic).
Na verdade, não temos elementos de facto palpáveis para concluir de forma diversa do exposto pelo Tribunal a quo. Nada nos diz que o tribunal arbitral não tenha condições para decidir o litígio no prazo acordado. Desde que beneficie da colaboração das partes e os árbitros escolhidos tenham disponibilidade para esse efeito, em abstrato tudo é possível…
Já pelo contrário, se o litígio tivesse de ser julgado nos tribunais judiciais é que seria para nós fácil de concluir que, com grande segurança, o litígio dificilmente poderia ser resolvido no prazo de 3 meses, pois aqui teriam de ser observados os prazos processuais perentórios previstos na lei para o exercício dos direitos das partes, o que arrasta inevitavelmente no tempo a solução do processo.
Estando em causa um tribunal arbitral, que não está vinculado à observância estrita do formalismos processual do Código de Processo Civil (v.g. Art.s 33.º e 34.º da LAV, onde se salvaguarda sempre a convenção das partes em sentido contrário) e pode agilizar procedimentos com vista à solução célere da causa, não é de excluir à partida que esse prazo possa ser observado.
Contra-argumenta a Recorrente que consultou alguns regulamentos de tribunais arbitrais para concluir que o prazo de 3 meses só seria adequado para a resolução do litígio por conciliação das partes. Mas, uma vez mais, não temos elementos para chegar a essa conclusão, porque tudo está depende, como referido, do acordo das partes e das cláusulas que em concreto sejam estabelecidas observar para a resolução do litígio pelo Tribunal Arbitral.
A agilização de procedimentos pode ser convencionada pelas partes e adequada pelo Tribunal Arbitral à resolução do caso concreto, sendo certo que o espírito subjacente à cláusula 12.ª do “Memorando de Entendimento” parece ser apenas que os litígios diretamente emergentes, ou relacionados com esse acordo, sejam resolvidos por Tribunal Arbitral de forma célere e, por isso, se estabeleceram prazos relativamente curtos para a sua resolução.
Isso faz pressupor que as partes acordaram na cláusula compromissória, porque entendiam que os litígios resolvidos por tribunal arbitral seriam resolvidos em mais curto espaço de tempo que nos tribunais judiciais. O que, por regra, é verdade, desde logo, pelas razões formais que já explicitámos e também porque ficou cumulativamente acordado que da decisão do tribunal arbitral não caberia recurso (cfr. cláusula 12.ª n.º 7 “in fine”), o que é um fator de celeridade imbatível, por comparação com as ações que correm termos nos tribunais judiciais estaduais comuns.
Também assiste razão ao Recorrido quando sustenta, relativamente à questão da alegada inexequibilidade do prazo de 3 meses para a resolução do litígio, que ela não determina a invalidade do “compromisso arbitral”, que corresponde à vontade das partes, mas apenas, e só, e eventualmente, do segmento da cláusula 12.ª n.º 7 que pretende vincular o tribunal arbitral a julgar o litígio no prazo de 3 meses a contar da datada da constituição do tribunal (cfr. Art. 292.º do C.C.).
Efetivamente, se corresponde à vontade real das partes submeter todos os litígios relacionados com a aplicação do “Memorando de Entendimento” à decisão de tribunal arbitral, no pressuposto de que a decisão seja mais célere, não deixará de se concluir que as partes sempre teriam acordado nos termos constante do n.º 7 da cláusula 12.ª desse “Memorando”, mesmo que não fosse possível, por qualquer razão, que o tribunal arbitral decidisse o litígio precisamente no prazo de 3 meses. É que, de todo o modo, como já explicitámos, a probabilidade de o tribunal arbitral decidir com maior celeridade que os tribunais judiciais estaduais comuns é muito maior que a alternativa contrária. Nessa medida, tudo nos levaria a crer que, se o interesse real das partes é a celeridade na resolução do litígio, o compromisso arbitral satisfaz melhor esse concreto interesse, que a ausência da convenção arbitral.
O que não faz sentido é invocar, nestas condições, a inexequibilidade do compromisso arbitral, quando as consequências da sua “exequibilidade possível”, no sentido de ser obtida uma decisão arbitral mais rápida, são provavelmente mais satisfatórias para os interesses manifestos pelas partes, que a sujeição da causa à jurisdição dos tribunais estatais, que as partes voluntariamente pretenderam afastar por entenderem não poderem ser tão céleres.
Neste contexto, Pinto Monteiro (in “Manual de Arbitragem”, pág. 188) reconhece mesmo a evidente dificuldade do afastamento da cláusula compromissória com fundamento na invalidade, ineficácia ou inexequibilidade da convenção arbitral, quando refere: «conjugando a regra do princípio competência-competência com a autonomia da convenção de arbitragem, a instância arbitral encontra-se relativamente blindada, não sendo relativamente fácil desaforar o tribunal arbitral da sua competência». Acrescentando mais à frente (pág. 190) que a análise da exceção prevista na parte final do Art. 5.º n.º 1 da LAV deve focar-se apenas nos requisitos de validade e existência da convenção de arbitragem e sem necessidade de recorrer a meios de prova. O que vai na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, exemplificativamente enunciada no acórdão supra citado e parcialmente transcrito.
Mário Esteves de Oliveira (in “Lei da Arbitragem Voluntária Comentada”, pág. 99) defende mesmo que se deve partir da presunção da validade e eficácia da convenção arbitral, «salvo no caso de “manifestamente” – isto é, sem necessidade de uma cuidadosa averiguação – elas se mostre nula”, ter-se tornado “ineficaz” ou ser “inexequível”». Ainda na mesma obra (v.g. pág. 101) identificam-se as deficiências geradoras de ineficácia ou inexigibilidade com as categorias respetivas da teoria geral, em que se enquadram a generalidade dos atos jurídicos, exemplificando-as com casos de “inarbitrabilidade do litígio” (cfr. pág. 259). O que nos remete para as situações que constituam violação direta do Art. 1.º da LAV, que evidentemente não está em causa nos autos, pois o presente litígio envolve essencialmente interesses de natureza patrimonial.
Manuel Pereira Barroca (in “Lei da Arbitragem Comentada”, 2.ª Ed., pág. 53) também exemplifica os casos de “inexequibilidade” duma convenção arbitral quando esta vise resolver um litígio relativo a bens localizados fora do espaço terrestre e outras situações de “impossibilidade de facto” para cumprir a convenção arbitral que, todavia, seja válida e vinculativa.
Nesta esteira, Menezes Cordeiro também entende que a manifesta inexequibilidade deve equivaler a uma “impossibilidade objetiva total” (vide: “Tratado de Arbitragem”, 2016, pág. 121).
Ora, nada disso se verifica no caso concreto. Quando muito pode admitir-se que o prazo de 3 meses para resolver o litígio pode ser de difícil cumprimento pelo Tribunal Arbitral, mas não totalmente impossível, e isso é razão quanto baste para o Tribunal a quo decidir, como decidiu, que não é manifesta a inexequibilidade da convenção arbitral, devendo proceder a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral, com a consequente absolvição do R. da instância, tal como dispõe desde logo o Art. 5.º n.º 1 da LAV.
Resta dizer que, nos termos do Art. 96.º al. b) do C.P.C., a preterição de tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal estadual para apreciar a presente causa, o que implica a absolvição do R. da instância (cfr. Art. 99.º n.º 1 do C.P.C.). Nessa medida, a decisão recorrida deve ser mantida nos seus precisos termos, improcedendo todas as conclusões apresentadas em sentido diverso do exposto.
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V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente por não provada, mantendo integralmente a decisão recorrida nos seus precisos termos.
- Custas pela apelante (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
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Lisboa, 19 de março de 2024
Carlos Oliveira
Ana Rodrigues da Silva
Ana Mónica Pavão