Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
572/18.3T8OER.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: LEGITIMIDADE DIRECTA E INDIRECTA
INTERESSADO
SUCESSÍVEL LEGITIMÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Sumário: I– Na aferição da legitimidade directa, urge ajuizar, na ponderação do concreto litígio, se a previsível procedência da acção, nos termos configurados pela demandante, é susceptível de lhe trazer, objectivamente, uma situação de vantagem ou utilidade, o que traduz a adopção do denominado critério da utilidade ou prejuízo, com enfoque no nº. 2 do artº. 30º, do Cód. de Processo Civil ;
II– tal implica o reconhecimento de que a demandante Autora poderia dispor, através dos meios processuais, acerca da situação jurídica material em que se traduz o objecto processual, ou seja, a invocação da nulidade do contrato de doação, daí obtendo benefício jurídico directo, que não apenas reflexo, com o putativo juízo de procedência ;
III– ainda no âmbito da legitimação directa, e na aplicação do denominado critério formal da titularidade, previsto no nº. 3 do mesmo normativo, impor-se-ia efectuar a correspondência entre a afirmada relação material (em controvérsia) e a legitimidade processual exercida, legitimando-se esta através daquela, de acordo com o quadro factual densificador da causa de pedir afirmado pela Autora ;
IV– não se reconhecendo a atribuição de directa legitimação, urge conhecer acerca da eventual existência de legitimidade indirecta para a instauração da presente acção, ou seja, se nos termos da 1ª parte do nº 3, do transcrito artº. 30º, do Cód. de Processo Civil, não existirá normativo legal que faça estender tal legitimação ;
V– nomeadamente o prescrito no artº. 286º, do Cód. Civil, no sentido de que sendo nulo o acto jurídico, é reconhecida legitimidade para a propositura da acção destinada à declaração da nulidade a qualquer terceiro interessado ;
VI– ou seja, mesmo que estranho à relação material controvertida, pois a pretendida declaração de nulidade não tem por suporte o afirmar de um qualquer direito potestativo do demandante que a lei expressamente lhe reconheça, aquele normativo é susceptível de atribuir ao interessado tal faculdade ou poder geral (atribuição legal de legitimidade) ;
VII– a Autora, enquanto sucessível legitimária, não tem, em vida da sua mãe (ora 1ª Ré), um qualquer direito subjectivo à quota-parte daquilo que constituiria a sua porção legitimária – cf., artigos 2156º e 2157º, ambos do Cód. Civil -, ou, ainda menos, que possa arrogar-se como titular de um qualquer direito subjectivo sobre concretos bens constituintes do património hereditário, capazes de virem a inteirar a sua quota ;
VIII– efectivamente, a Autora, enquanto putativa sucessível de sua mãe, e durante a vida desta, apenas se pode considerar como detentora de uma expectativa juridicamente titulada à sua porção legitimária, e não de um qualquer direito subjectivo à quota-parte em que se traduz a sua parcela ou porção legitimaria ;
IX– com efeito, a Autora, enquanto designada sucessível legitimária de sua mãe, na vida desta, não possui qualquer mecanismo de tutela, de garantia ou de conservação daquela expectativa jurídica ;
X– inexiste qualquer tutela legal geral relativamente à protecção dos sucessíveis legitimários, no sentido de conferir-lhes legitimidade para poderem agir, durante a vida do autor da sucessão, contra os actos por este praticados que de alguma forma afectem as suas expectativas futuras na sucessão dos bens da herança ;
XI– excepção legalmente prevista a tal princípio é a que decorre da legitimidade outorgada aos herdeiros legitimários relativamente aos negócios simulados feitos pelo autor da sucessão, com o intuito de os prejudicar, conforme decorre do nº. 2, do artº. 242º, do Cód. Civil, podendo agir mesmo em vida daquele.

Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
              

I – RELATÓRIO.


1– M., residente na ……………., veio instaurar acção declarativa constitutiva, sob a forma de processo comum, contra:
– S. (falecida, e entretanto habilitada pelo filho M. F.), residente na ……….. ;
– M. F. residente na ………………………,
deduzindo o seguinte petitório:
1.Que a acção seja julgada procedente, por provada, e em consequência, seja declarada nula a doação (da nua propriedade, tendo a doadora reservado para si o usufruto) efectuada pela 1ª Ré ao 2º Réu, relativamente:
À fracção autónoma F, correspondente ao 5º andar, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na ……………………, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº. 2..., e inscrito na matriz sob o artigo 1....
Alegou, em súmula, o seguinte:
– É filha da 1ª Ré e irmã do 2º Réu ;
– No dia 06 de Agosto de 2012, no Cartório Notarial de Lisboa, sito na Rua Visconde de Santarém, n.º 73, perante a notária M. N. a 1.ª R. doou ao 2.º R., reservando para si o usufruto, a fracção identificada, tendo o Réu aceite a doação ;
– a Direcção do Conselho Directivo do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. tornou público que, na sequência do processo disciplinar instaurado à Senhora Drª. M. N., com último domicílio profissional na Rua V... S..., nº ..., 1...-2...- L..., por deliberação do Conselho do Notariado, de 13 de Dezembro de 2010, que a mesma foi condenada na pena de interdição definitiva do exercício de funções de Notária ;
Por despacho da Senhora Ministra da Justiça, de 16 de Maio de 2012, ficou decidido, que a Senhora Drª. M. N. violou os deveres consignados no artigo 23.º, n.º 1, alínea a), b) e h) e no artigo 11.º, alínea a) do Estatuto da Ordem dos Notários, ficando obrigada a cessar definitivamente o exercício da actividade notarial ;
Pelo que a Senhora Dr.ª M. N. está inibida do exercício de funções, com todas as legais consequências ;
A Drª. M. N. estava pessoalmente impedida de praticar actos de notariado, foi condenada na pena de interdição definitiva do exercício de funções de Notária e, por consequência, desde o dia 16 de Maio de 2012 ficou obrigada a cessar definitivamente o exercício da actividade notarial – artigos 11.º, n.º 2, al. a) e 41.º do Estatuto do Notariado ;
Pelo que a doação celebrada no dia 06 de Agosto de 2012, no Cartório Notarial de L..., sito na Rua V... S..., n.º ..., perante a notária M. N., é nula – artigos 286.º e 289.º, n.º 1 do Cód. Civil.
2–Citados os Réus, vieram apresentar contestação e requerer a intervenção acessória provocada do I., IP, fazendo-o, em resumo, nos seguintes termos:

Por excepção:
– A acção deveria ter sido intentada também contra a Notária que outorgou a escritura pública, sob pena de preterição do litisconsórcio necessário, conducente á absolvição dos Réus da instância ;
– no momento presente (Abril de 2018), desconhecem a eficácia e os efeitos sancionatórios da decisão tomada pela administração publica em sede de processo disciplinar e as suas consequências limitativas da competência da notaria Senhora Dra. M. N., em especial se o mesmo transitou em julgado ou foi anulado e, bem assim, a data de eficácia ;
– ou seja, desconhecem se a Senhora Dra. Notária foi condenada ou absolvida e, tendo sido condenada, se transitou em julgado a pena ;
– sendo que a não ter transitado em julgado a pena, o processo burocrático gracioso ou o processo contencioso de anulação existente é causa prejudicial ao presente processo uma vez que sendo possível e expectável a absolvição a mesma teria efeitos retroactivos sanando qualquer vício de competência ;
– a Dra. M. N. celebrou milhares de escrituras antes da referida data de 6 de Agosto de 2012 e continuou a celebrar escrituras, em número de centenas, após a referida data e pelo menos até Fevereiro de 2013 ;
– todas estas escrituras, quando respeitantes a bens ou direitos sujeitos a registo, foram regularmente registadas nos registos prediais, comerciais e automóveis sem que uma única conservatória tivesse questionado a competência da notária ;
– isto é, a estar suspensa nas suas competências, o que não se admite, nem mesmo a Direcção Geral dos Registos e Notariados / Instituto de Registo e Notariado e os seus vários órgãos e conservatórias questionaram e apresentaram reticencias aos actos notariais da Senhora Dra. M. N. ;
– é manifesto que a Senhora Dra. M. N. exercia em 6 de Agosto de 2012 publicamente o seu cargo e que existia a convicção generalizada e pública de que o exercia de modo regular, estando-se assim estamos perante a noção clássica e geralmente aceite de “funcionário de facto” ;
– pelo que a escritura em crise nestes autos é absolutamente válida e eficaz perante as partes contratantes e quaisquer terceiros, nomeadamente a autora, atento prescrito no nº. 2, do artº. 369º, do Cód. Civil.
Concluem pela procedência das excepções invocadas, ou de outras de oficioso conhecimento ou, subsidiariamente, pela improcedência da acção, com a absolvição dos Réus do pedido, devendo, ainda, ser aceite a intervenção acessória e provocada do I., IP.
3–Conforme requerimento de 23/04/2018, veio a Autora deduzir incidente de intervenção principal provocada de M. N., Notária que outorgou a escritura, como associada dos Réus.

4–Por despachos de 25/05/2018 –cf., fls. 30 a 32 -,foram admitidos a intervir nos presentes autos:
- como parte principal, ao lado dos Réus, M. N. ;
- como parte acessória, assumindo a posição de assistente (auxiliar na defesa), o I., IP.

5–Citados os Intervenientes, veio o I., IP, apresentar contestação, aduzindo, em súmula, o seguinte:
– falha legitimidade á Autora para instaurar a presente acção ;
– como resulta da própria petição inicial e da escritura pública aí reproduzida, a Autora não teve qualquer intervenção neste negócio jurídico, nem tinha que ter, uma vez que não tem nenhum direito sobre o prédio objecto da doação ;
– efectivamente, a Autora, não só não teve qualquer intervenção directa no negócio que pretende ver anulado como também não retirará qualquer benefício de uma eventual procedência do seu pedido uma vez que não tem (nem se arrogar ser titular de) qualquer direito sobre o prédio a que respeita a doação ;
– tal situação, por si só, leva-nos a concluir que a Autora não dispõe de legitimidade por inexistir qualquer evidência de um benefício resultante da procedência do seu pedido – cfr. art. 30.º do CPC. ;
– por outro lado, não se pode aceitar que a circunstância de a Autora ser herdeira de uma das Rés lhe possa conferir legitimidade ad causam, dado que o herdeiro, em vida do de cujus, é mero titular de uma expectativa, incerta e indefinida, quanto ao património deste ;
– ora, para ter legitimidade activa torna-se indispensável que a Autora demonstre ser titular de um interesse directo em demandar e, tal interesse, exprime-se pela utilidade derivada da procedência do seu pedido – cfr. artigo 30.º do CPC. ;
– a utilidade da procedência do pedido, por sua vez, deve respaldar-se necessariamente num direito, sendo que, as meras expectativas só serão juridicamente relevantes se tal resultar expressamente da lei ;
– a Autora não colherá qualquer benefício directo com a presente demanda, nem do seu pedido resulta qualquer benefício indirecto, eventual ou potencial, mesmo considerando a sua condição de herdeira da Ré ;
– poder-se-ia, ainda assim, alvitrar que, estando em causa a invocação de uma nulidade, a Autora teria a sua legitimidade amparada no artigo 286.º do CC e que prevê que este vício «é invocável a todo o tempo e por qualquer interessado» ;
– todavia, não pode a Autora enquadrar-se no conceito de «interessada», sendo que o artigo 286.º do CC deve estar em perfeita conjugação com o conceito de legitimidade ;
– interessado será, pois, apenas aquele a quem a lei reconheça o direito de impugnar em juízo o facto hipoteticamente gerador da nulidade e esse interesse directo remete para um juízo avaliativo do interesse substantivo subjacente ;
– pelo que, assumindo este conceito de interessado, não se pode aceitar que nele caiba o herdeiro legitimário porque o mesmo não assume uma posição substantiva geradora de um direito, ou, sequer, de uma expectativa que legalmente o habilite a impugnar um negócio jurídico celebrado em vida pelo “de cujus” ;
– não existe na lei uma intenção geral e objectiva de protecção dos herdeiros, conferindo-lhes legitimidade para impugnar negócios jurídicos susceptíveis de atingir as suas expectativas em relação à futura sucessão nos bens da herança dos seus antecessores ainda vivos ;
– sendo que só em situações excepcionais é reconhecida essa legitimidade mas, para que tal ocorra, é necessária uma consagração legal expressa da legitimidade – cf., o nº. 2, do artº. 242º, do Cód. Civil ;
– não estando a Autora inserida em qualquer destas situações excepcionais ;
– pelo que deve ser considerada a ilegitimidade da Autora, como excepção dilatória conducente à absolvição da instância ;
– por outro lado, é indubitável que a Notária que lavrou o acto em apreço exercia, em 06/08/2012, publicamente, funções notariais, em termos que não denotavam, para o cidadão comum, a ilegitimidade desse exercício ;
– pelo que, provado tal exercício público, a causa de pedir invocada pela Autora só poderia proceder se se provasse que os Réus , no momento da sua celebração tinham conhecimento daquela decisão disciplinar aplicada á Notária, ou seja, que estavam de má fé ;
– o que não se provou ;
– inexistindo, por outro lado, qualquer responsabilidade da assistente.

Conclui, no sentido da improcedência da acção, com a absolvição dos Réus e Assistente da instância, por falta de legitimidade da Autora, ou, caso assim não se entenda, absolvendo-os do pedido.

6–Em idêntico sentido, veio igualmente contestar a Interveniente Principal M. N., alegando, em resumo, o seguinte:
– a Autora funda a sua legitimidade unicamente na relação de parentesco que a une à 1.ª e ao 2.º RR. ;
– acontece que a relação de parentesco que une a A. à 1.ª e ao 2.º RR. não se afigura, de per si, suficiente para dotar a Autora da qualidade de interessado para efeitos de invocar a suposta nulidade da referida doação ;
– sobretudo quando a A. não é parte do negócio jurídico cuja nulidade pretende ver declarada ;
– o simples facto de a Autora ser filha da 1.ª R. não lhe confere legitimidade para arguir a nulidade da doação celebrada entre esta e o 2.º R. ;
– já que dessa relação de parentesco não resulta a existência de qualquer direito incompatível com o negócio jurídico realizado entre a 1.ª e o 2.º RR. ;
– não possuindo os filhos, em vida dos pais, qualquer direito aos bens destes, nem sobre esses bens ;
– pois antes da devolução sucessória aos herdeiros legitimários, como é o caso da Autora, são meros titulares de uma expectativa jurídica ;
– devendo, assim, a Autora ser considerada como parte ilegítima ;
– por outro lado, sempre se dirá não se conseguir alcançar qual a utilidade ou o prejuízo que da procedência ou improcedência da presente acção advirá para a Autora, que ficará exactamente na mesma situação jurídica independentemente da procedência ou improcedência do pedido por si formulado nestes autos ;
– pelo que, também nesta perspectiva, haverá necessariamente que se concluir pela ilegitimidade activa da Autora para a presente acção ;
– na data da outorga da escritura a Interveniente estava convencida que a pena imposta por despacho da Sra. Ministra de Justiça não havia produzido efeitos imediatos com a mera comunicação ;
– não padecendo a escritura de qualquer vício de nulidade atenta a impugnação entretanto interposta de tal decisão ;
– ademais, nenhum dos Réus tinha forma de saber da existência desse acto sancionatório, pois não eram partes nos processos judiciais pendentes, nem nada lhes foi dito pela Interveniente ;
– donde, à data da outorga da escritura a Interveniente exercia publicamente o cargo, havendo a convicção generalizada que o exercia de forma regular ;
– pelo que haverá que reconhecer-se os efeitos jurídicos decorrentes da outorga da escritura em termos semelhantes aos da teoria do agente de facto (putativo).
Conclui, no sentido da procedência da invocada excepção dilatória de ilegitimidade, absolvendo-se os Réus e Interveniente Principal, da instância ou, caso assim não se entenda, deve o pedido ser julgado improcedente, por não provado.
7– Em resposta a convite efectuado, no âmbito do dever de gestão processual, para, querendo, se pronunciar acerca das excepções arguidas nas contestações, veio a Autora fazê-lo por requerimento de 05/11/2018 – cf., fls. 199 e 200 -, pugnando pela sua legitimidade para a invocação da nulidade, por ser possuidora de um interesse, seja directo, seja meramente mediato ou indirecto, na sua invocação, pelo que devem improceder as invocadas excepções. 
8–Entretanto, tendo falecido a Ré S., foi deduzido o competente incidente de habilitação de herdeiros, pelo que, por decisão de 13/06/2019 – cf., fls. 212 e 213 -, em julgamento da sua procedência, foi declarado “M. F. habilitado para contra si também na qualidade de herdeiro de S. prosseguirem os ulteriores termos da causa”.

9– Por despacho de 08/10/2019 – cf., fls. 214 a 216:
– Foi fixado o valor da causa ;
– Decidiu-se pela dispensa da realização da audiência prévia ;
– E conheceu-se acerca da invocada excepção dilatória de ilegitimidade, dispondo o dispositivo de tal conhecimento o seguinte:
“Face ao exposto, conjugando o disposto nos artigos 576.º, n.º2, 577.º al. e) e 578.º do Código de Processo Civil, julgo procedente a excepção de ilegitimidade da Autora, e consequentemente absolvo os Réus da instância.
As custas são da responsabilidade da Autora, nos termos do art.º527.º do CPC, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Registe e notifique”.

10–Inconformada com o decidido, a Autora interpôs recurso de apelação, por referência ao despacho prolatado.
Apresentou, em conformidade, as seguintes CONCLUSÕES:
1.ª-Existe um nexo de causalidade entre o comportamento da Senhora Notária, acto ilícito e culposo e sua relação com aquele incumprimento: o interesse público é posto em causa e a validade da doação da quota disponível irá influenciar a partilha dos bens da herança. Quer dizer: a quota da herança do 1.º réu será maior do que a da apelante.
2.ª-Os fundamentos da acção consistem, pois, num acto ilícito e culposo, que confere validade a um acto inválido, prejudicando um interesse futuro da apelante.
3.ª-A douta sentença descortinou o direito conducente a uma sentença favorável, porque envolveu o conhecimento de fundo. A verdade formal sobrepôs-se à verdade material.
4.ª-A douta sentença violou a Lei que disciplina a matéria da relação jurídica substantiva objecto da presente lide – artigo 30.º do Código Processo Civil, artigos 286.º e 2104.º e segs. do Código Civil.
5.ª-Nestes termos, requer-se ao Venerando Tribunal, julgar procedente a legitimidade da apelante”.

11–A Apelada/Recorrida Interveniente Principal M. N. apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes CONCLUSÕES:
a)-O presente recurso de apelação visa a revogação da sentença que considerou procedente a invocada exceção de ilegitimidade ativa.
b)-A motivação expendida pela apelante não supera a bem fundamentada sentença, que analisou, detalhadamente, a presente questão e explicitou que a autora carece de legitimidade na medida em que não é titular de um interesse direto na declaração de nulidade da doação em apreço.
c)-O conceito constante no art.º 286.º do CC não é um conceito de interessado irrestrito, distinguindo-se por ser muito mais exíguo do que o conceito legal que concede legitimidade a “qualquer pessoa”, expressão muitas vezes utilizada pelo legislador.
d)-A doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores – identificadas na motivação e para as quais se remete – são unânimes em entender que (e citando a Sentença) “…os herdeiros legitimários do doador não têm legitimidade para arguir a nulidade da doação, ainda em vida do doador (como sucedeu na presente acção), uma vez que são meros titulares de uma expectativa incerta e indefinida quanto ao património deste.”.
e)-A própria organização sistemática do Código Civil confirma esta interpretação do conceito de interessado do art.º 286.º, já que excepcionalmente no caso de negócio simulado, consagrou-se expressamente no art.º 242.º, n.º 2 a legitimidade dos herdeiros em vida do autor da sucessão, para arguir a nulidade de negócio simulado.
f)-Esta norma excepcional não tem tradução, no conspecto específico do regime da nulidade, em mais nenhum caso senão o do negócio simulado.
g)-A mera invocação do interesse púbico no caso em apreço – além de errónea – não densifica o conceito de interessado do art.º 286.º, o qual exige um interesse direto e não meramente futuro e hipotético, como é o caso do interesse da autora.
h)-Desta guisa, deverá ser mantida a Sentença de 08.10.2019, considerando procedente a invocada exceção de ilegitimidade ativa”.

Conclui, no sentido da improcedência do recurso, e consequente manutenção da decisão recorrida.

12–O recurso foi admitido por despacho de fls. 233, como apelação, com subida nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
13–Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II–ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1– o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2– Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a)- As normas jurídicas violadas ;
b)- O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c)- Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.

Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso,sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto dos interpostos recursos.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina aferir se atento o objecto processual exposto no articulado inicial a Autora é parte legítima activa, ou se, ao invés, não possui legitimidade para a demanda em equação.

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III–FUNDAMENTAÇÃO

A–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade ponderável é a que resulta do iter processual supra exposto em sede de relatório.

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B–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

I)-Da decisão apelada
              
Em sede de saneamento processual, conhecendo-se acerca da invocada excepção dilatória de ilegitimidade processual da Autora, ajuizou-se, em súmula, nos seguintes termos:
- para apurar acerca da legitimidade processual importa atender à relação de interesses das partes com o objecto da acção, tendo em consideração o pedido e a causa de pedir, tal como configurada pelo autor na petição inicial ;
- analisada a petição inicial, a Autora não esclarece qual o interesse que tem nesta acção, nem o benefício/utilidade que obtém com a sua procedência ;
- efectivamente, o facto de alegar que é filha da 1ª Ré e irmã do 2º Réu não permite aferir o interesse na demanda, nem a existência de um direito incompatível com o negócio jurídico realizado entre os Réus ;
- mesmo a considerar-se, como hipótese, que o interesse reside na qualidade de herdeira da 1 Ré (o que não foi alegado), tem-se entendido que os herdeiros legitimários do doador não têm legitimidade para arguir a nulidade da doação, ainda em vida do doador, pois são apenas titulares de uma expectativa incerta e indefinida quanto ao património deste ;
- assim, conclui-se pela necessidade de existir um interesse directo em demandar, e não um mero interesse indirecto, nomeadamente de defesa de um interesse público ;
- existindo a necessidade de conjugar ou concatenar o estatuído no artº. 286º, do Cód. Civil e o artº. 30º, do Cód. de Processo Civil ;
-reconhecendo-se que a Autora não tem legitimidade para intentar a presente acção, concluiu-se pela procedência da excepção dilatória de ilegitimidade da Autora, e consequente absolvição dos Réus da instância. 

Em sede recursória, alega a Autora/Apelante que o seu interesse tem natureza jurídica, reportado a um momento futuro.
Desta forma, a validade da doação, por conta da quota disponível, influenciará a partilha dos bens na herança, pois a quota da herança do Réu será maior do que a da Autora.

Na resposta apresentada, a Recorrida/Interveniente Principal referencia estar em equação o preenchimento do conceito de interessado previsto no artº. 286º, do Cód. Civil.
Referencia que na aludida possibilidade de afectação da herança (não alegada) como tutela de uma situação futura, o interesse substantivo e processual da Autora é meramente hipotético e futuro, para além de ser improvável, pois a doação foi feita por conta da quota disponível, pelo que não será chamada á colação, sendo a redução de liberalidades meramente hipotética.
Aludindo à regra excepcional do nº. 2, do artº. 242º, do Cód. Civil, defende que o artº. 286º, do mesmo diploma, não confere aos herdeiros legitimários legitimidade para pedirem a declaração de nulidade das doações feitas pelos pais, enquanto vivos forem.
Por outro lado, aduz inexistir qualquer legitimidade substantiva para a invocação do interesse público.

Ora, atenta a posição das partes em equação, urge aferir in casu se a Autora, ao interpor a presente acção através da qual pugna pela declaração de nulidade da doação efectuada pela sua mãe, da nua propriedade de um imóvel, a um seu irmão, deve ser considerada parte processualmente legítima, nomeadamente por preencher o conceito de interessado equacionado no artº. 286º, do Cód. Civil.

II)–Do pressuposto processual da legitimidade

Prevendo acerca do conceito de legitimidade, estatui o artº. 30º, do Cód. de Processo Civil, que:
1-O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2- O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3- Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (sublinhado nosso).

A legitimidade configura-se como um pressuposto processual relativo às partes, sendo a ilegitimidade legalmente rotulada como excepção dilatória, de conhecimento oficioso, impedindo o conhecimento do mérito da causa e determinando a absolvição da instância – cf-. artigos 278º, nº. 1, alín. d), 576º, nºs. 1 e 2, 577º, alín. e) e 578º, todos do Cód. de Processo Civil.

Citando Alberto dos Reis, referencia Rui Pinto [2] consistir a legitimidade processual numa certa posição de um sujeito – a parte processual – face a um certo objecto – o objecto processual – exigida pelo direito”, ou seja, “uma certa posição exigida às partes em relação ao concreto objecto processual.

Exige-se, assim, à parte uma posição que lhe atribua “a faculdade de dispor em processo da situação jurídica material que constitui o seu objecto”, prevendo-se, deste modo, uma prévia “averiguação de quem pode dispor da situação material, mas por via processual”.
O presente pressuposto processual permite, assim, uma função regulatória ou ordenatória, de forma a garantir que os sujeitos processuais são “aqueles que podem ser beneficiados com a decisão de procedência ou de improcedência da causa” [3], assim se pressupondo “que os efeitos decorrentes da disponibilidade da situação em litígio se possam referir e repercutir na respectiva esfera jurídica”.
A regra a observar deve ser, deste modo, a que determina “que não pode ter legitimidade para propor acção ou ser nela demandado quem materialmente não pode dispor da situação que será objeto dos efeitos da decisão final”, o que traduz a legitimidade processual directa.
Assim, e conforme o nº. 1 do transcrito normativo, terá legitimidade processual activa “o titular do interesse direto em demandar”, o qual “deve ser jurídico, ainda que não actual”.
Acrescenta o mesmo Autor que o referenciado normativo prevê “dois critérios concretizadores pelos quais se pode apurar o interesse direto de modo relativamente flexível: o critério da utilidade e o critério da titularidade da relação material”.
Relativamente ao primeiro critério práticocritério da utilidade ou prejuízo -, enunciado no nº. 2 daquele artigo, a aferição da utilidade é efectuada “em face da petição e segundo um juízo de prognose: supondo-se que o pedido seja procedente”. Assim, “se em face da petição se percebe que a esfera jurídica da parte é indiferente à procedência, pois não ganha nem perde na procedência, então não tem legitimidade, sendo terceira”.
Assim, e relativamente ao autor (parte activa), o interesse traduz-se na vantagem jurídica que lhe trará a procedência da acção, devendo esta vantagem ser “objetiva e não apenas segundo o ponto de vista de quem a requer”, bem como directa, e não apenas reflexa.
No que se reporta ao segundo critério práticocritério formal da titularidade -, enunciado no nº. 3, da sua aplicabilidade resulta que “a titularidade da alegada relação material surge como modo de descobrir o interesse directo na acção, sendo uma forma «implícita» de aferição de legitimidade”.
Donde se configura “uma coincidência entre a afirmação de titularidade (e inerente legitimação material) sobre a situação individualizada e a legitimidade processual, pelo que a legitimidade directa terá de ser apurada pela análise da relação material ou situação jurídica invocada em juízo”.
Conforme referencia Paulo Pimenta [4], o autor é parte legítima “sempre que a procedência da acção (previsivelmente) lhe venha a conferir (para si e não para outrem) uma vantagem ou utilidade (…)”, consistindo a legitimidade “numa posição concreta da parte perante uma causa. Por isso, a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à acção, ao litígio que aí se discute”.
Desta forma, nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa [5], o autor é parte legítima se, “atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar diretamente do efeito jurídico pretendido”.
Donde, a “exigência de um «interesse» emergente de pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo ou mediato, ou ainda mais um interesse diletante ou de ordem moral ou académica”.
Ou seja, conforme expressamente referenciam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [6], “à legitimidade não satisfaz a existência de qualquer interesse, ainda que jurídico (não apenas moral, científico ou afectivo), na procedência ou improcedência da acção. Exige-se que as partes tenham um interesse directo, seja em demandar, seja em contradizer ; não basta um interesse indirecto, reflexoou derivado.
Como pressuposto ou condição de necessário preenchimento para que seja proferida decisão de mérito, exprime a legitimidade “a relação entre a parte no processo e o objecto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o”.
A sua aferição, em regra, é efectuada “pela titularidade dos interesses em jogo (no processo)”, ou seja, na legal previsão dos nºs. 2 e 3 do normativo em equação, “pelo interesse direto (e não indireto ou derivado) em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação (…)” [7].
Por fim, nas palavras do Professor Alberto dos Reis [8], exige-se que o interesse seja directo, não bastando “um interesse indirecto ou reflexo ; não basta que a decisão da causa seja susceptível de afectar, por via de repercussão ou por via reflexa, uma relação jurídica de que a pessoa seja titular”, ou seja, “que as partes sejam sujeitos duma relação jurídica conexa com a relação litigiosa ; é necessário que sejam os sujeitos da própria relação litigiosa”.
O interesse em equação deve ser jurídico, no sentido de dever “apoiar-se numa razão de ordem jurídica, e não numa razão de ordem moral, sentimental ou científica”, não tendo, todavia, que ser actual, pois pode reportar-se “não à data da propositura da acção, mas a data futura, que pode até ser posterior ao julgamento da causa” – cf., o vigente artº. 611º, nº. 1, do Cód. de Processo Civil.

Para além das situações de legitimidade directa, existem, igualmente, situações de legitimidade indirecta ou extraordinária, com inscrição no 1º segmento do nº. 3, do mesmo artº. 30º do Cód. de Processo Civil, nomeadamente quando se referencia “na falta de indicação da lei em contrário”.
Referencia Lopes do Rego [9] que a atribuição da legitimidade indirecta “nunca depende das meras afirmações do autor, expressas na petição inicial (….)”, mas “da efectiva demonstração do interesse ou da titularidade da relação legitimante que justifica a atribuição de legitimidade indirecta”.
Assim, no que se reporta à legitimidade indirecta, “a efectiva titularidade da relação legitimante é «conditio sine qua non» da legitimação de quem se apresta a exercer direitos alheios”.
Acrescenta, citando Manuel de Andrade, que “nesta última acção (acção pauliana) é requisito da legitimidade a prova do direito de crédito invocado pelo Autor. Dum modo geral, quando a lei admite os sujeitos duma relação jurídica conexa com outra a influir nesta, mediante acção constitutiva (v. g. na revogação ou redução de doações inoficiosas) ou a provocar a sua apreciação judicial (v.g., nas acções de nulidade absoluta de negócios jurídicos), a legitimação do Autor depende da prova daquela relação”.
Pelo que, não é o facto do autor se “arrogar um interesse em obter providência judicial que se repercuta directamente na esfera jurídica alheia que, só por si, o torna parte legítima na causa”.
E, fazendo a destrinça com a legitimidade normal, aduz que enquanto nesta “o problema da titularidade ou pertinência da relação material controvertida se entrelaça estreitamente com a apreciação do mérito da causa, os pressupostos em quer se baseia (….) a legitimação indirecta aparecem claramente destacados do objecto do processo ; e funcionando logicamente como «questões prévias» relativamente à admissibilidade da discussão entre as partes acerca da relação material controvertida, dessa forma condicionando a possibilidade de prolação de decisão sobre o mérito da causa”.
Assim, nos caos de legitimidade indirecta, o interesse em que se baseia a legitimidade depende “de circunstâncias diversas da concreta titularidade da relação litigiosa, podendo perfeitamente, nestes casos, a prova de tal interesse ou qualidade juridicamente relevante constituir um efectivo requisito da legitimidade”. Nestas situações processuais, está em causa, “não propriamente apurar da titularidade ou pertinência da relação material controvertida (questão que consideramos indissociável da apreciação do mérito), mas (…) decidir acerca da existência de um interesse que justifique a dedução de um pedido que versa sobre relação jurídica alheia”.
No mesmo sentido, referenciam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa [10] existirem casos em que “é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade ativa ou passiva, prevalecendo tal indicação sobre a eventual alegação do autor em sentido inverso, como ocorre designadamente (….) nos casos de legitimidade extraordinária ou indirecta que é atribuída ao cabeça de casal ou ao administrador do condomínio urbano. Apesar de não serem titulares (….) diretos do interesse em discussão, prevalece o que emerge dos preceitos legais que sustentam a sua intervenção”.    
Assim, a referenciada regra decorrente da legitimidade directa – aferida pelo interesse directo em demandar, decorrente da vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da acção – “só deixa de se aplicar nos casos excecionais de atribuição do direito de ação ou do direito de defesa a titulares dum interesse indirecto (….) e nos de tutela de interesses coletivos e difusos” [11].
Efectivamente, conforme exaram Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [12], de acordo com o critério legal de legitimidade, que apenas funciona em termos subsidiários, existem “numerosos casos em que a lei atribui legitimidade para a acção a quem não é titular ou só em parte é titular da relação material em litígio”, o que configura situações também designadas de legitimidade extraordinária.
E, exemplificam, “assim sucede nomeadamente com o cabeça-de-casal, o testamenteiro, o administrador da massa falida ou insolvente, a quem é reconhecida legitimidade para intervir em acções respeitantes a relações (substantivas) a que eles são estranhos, das quais não são sujeitos. E o mesmo fenómeno ocorre, embora por outras razões, com o transmitente por acto entre vivos da coisa ou direito litigioso, que continua a ter legitimidade para a causa (art. 271º, 1), enquanto adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo”.
Acrescentam, com especial enfoque para o caso concreto, que no “caso de o acto jurídico ser nulo, a lei reconhece legitimidade para a acção destinada a declarar a nulidade, se necessária, a qualquer terceiro interessado (art. 286º do Cód. Civil).
O terceiro é, nesta caso, um estranho à relação controvertida, visto a impugnação não assentar num direito potestativo que a lei discriminativamente lhe reconheça, mas numa faculdade ou poder geral indiscriminadamente atribuído a todos os interessados”.
Por fim, ajuizando acerca da exposta legitimidade processual indirecta, referencia Rui Pinto [13], em termos de intróito, que “a legitimidade é um poder para dispôr em processo da situação jurídica nele feita valer, ainda que não necessariamente um poder para dispôr materialmente da situação jurídica.
Tal situação, acrescenta, “abre campo à inclusão dos referidos casos excecionais ressalvados no nº. 3 (“Na falta de indicação da lei em contrário….”) em que o sujeito que pode dispor da situação em processo não é o mesmo que o poderia fazer materialmente, ou seja, não é o titular da situação individualizada”.
Assim, acrescenta, “não titulares da situação jurídica alegada na pretensão podem ter legitimidade processual atuando em substituição do legitimado material – situações de legitimidade dita indirecta. Nestas o sujeito com legitimidade processual não é o sujeito com legitimidade material (substituído), mas o seu substituto”. 

III)–Do conceito de interessado para a invocação da nulidade

Prevendo acerca da nulidade do negócio jurídico, estatui o artº. 286º, do Cód. Civil, ser a mesma “invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”.
Relativamente ao preenchimento do conceito de interessado, aduzem Pires de Lima e Antunes Varela [14] traduzir-se no “titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio”, acrescentando Rodrigues Bastos [15]abranger a palavra interessado“as partes no negócio,os seus sucessores (a título universal ou particular), e qualquer outra pessoa que tenha, relativamente ao reconhecimento da nulidade, um interesse directo, legítimo e juridicamente protegido”.
Por sua vez, referencia Carlos Alberto da Mota Pinto [16] que o regime e efeitos “mais severos da nulidade encontram o seu fundamento teleológico em motivos de interesse público predominante”, enquanto que as anulabilidades “fundam-se na infracção de requisitos dirigidos à tutela de interesses predominantemente particulares”.
Assim, o conceito de interessado de invocar a nulidade é o “sujeito de qualquer relação jurídica afectada, na sua consistência jurídica ou prática, pelos efeitos a que o negócio se dirigia”. Diferentemente, as anulabilidades “só podem ser invocadas por determinadas pessoas e não por quaisquer interessados”, pelo que só têm legitimidade para as arguir “os titulares do interesse para cuja específica tutela a lei a estabeleceu”.
Em termos semelhantes, realçando que as nulidades têm por base motivos de interesse público, defende Manuel de Andrade [17] que “podem ser invocadas por qualquer pessoa que tenha interesse em que se não produzam em relação a si os efeitos do respectivo negócio”, sendo interessado, no sentido de se lhe atribuir legitimação processual, “o sujeito de qualquer relação jurídica que de algum modo possa ser afectada pelos efeitos que o negócio tendia a produzir. Afectada na sua consistência jurídica (v. g., subadquirentes) ou mesmo só na sua consistência prática (credores)”.
Diferentemente, as anulabilidades (também designadas de nulidades relativas) só podem ser invocadas pelos “portadores dos interesses em consideração dos quais foi estabelecido o requisito cuja infracção ocasionou a nulidade”, sendo as mesmas determinadas por interpretação da lei.
Por fim, referencie-se, ainda, o aduzido por Maria Clara Sottomayor [18], relativamente à determinação dos sujeitos com legitimidade para arguírem a nulidade, nos quadros do mesmo artº. 286º.
Mencionou que a lei “usa o conceito “qualquer interessado”, querendo significar que pode invocar a nulidade o “sujeito de qualquer relação jurídica afetada, pelos efeitos a que o negócio jurídico se dirigia” (Mota Pinto, 2005, 620).O direito de invocação da nulidade não é conferido a todos. Não é qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração de nulidade do negócio, que preenche os requisitos do conceito de interessado para efeito do artigo 286.º. O sujeito legitimado deve ter um interesse direto na nulidade e não apenas um interesse vago e indireto. O interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar a nulidade de um negócio jurídico segundo o artigo 286.º, é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio, porque o negócio nulo prejudica a consistência prática ou económica, de um direito seu (Lebre Freitas, 2007, 384). Por exemplo, são terceiros legitimados para invocar a nulidade o cônjuge responsável por dívida contraída pelo outro através de contrato nulo celebrado sem a sua intervenção e os adquirentes de direitos reais ou pessoais sobre o mesmo bem.
(…)
A legitimidade do tribunal para declarar oficiosamente a nulidade baseia-se em razões de interesse público. Contudo, nos casos em que a nulidade se fundamenta, em termos predominantes, na tutela de um interesse particular, não pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal nem invocada por terceiro interessado, sob pena de se frustrar a intenção protetora do legislador. É o caso da nulidade do contrato-promessa por falta de forma (art.º 410º, n.º 3), conforme resulta de dois assentos proferidos pelo STJ (Assentos n.º 15/94, 28-06-1994, e n.º 3/95, 01-02-95)”.

Efectuado o enquadramento doutrinário do pressuposto processual em equação, bem como do conceito de interessado legalmente previsto no âmbito da invocação da nulidade do negócio jurídico, urge então apreciar se a Autora pode ser considerada parte legítima:
– Ajuizando-se se a previsível procedência da acção, atenta a natureza dos interesses em jogo, é susceptível de lhe conferir, objectivamente, directa vantagem ou utilidade, na ponderação do litígio em discussão – legitimidade directa ;
– Ou se, apesar de não poder ser considerada como titular da afirmada situação jurídica individualizada controvertida (mas antes estranha), sendo nulo o acto jurídico equacionado, a lei reconhece-lhe legitimidade para a acção destinada à declaração de tal nulidade – legitimidade indirecta.
              
De forma a lograrmos aferir acerca do (não) preenchimento do equacionado pressuposto processual, analisemos, primeiramente, o entendimento jurisprudencial que vem sendo sufragado.

Defendeu-se no douto aresto do STJ de 13/02/2003 [19], acerca do conceito de legitimidade activa do interessado invocante da nulidade do negócio jurídico, não se afastar a redacção do citado artº. 286º, do Cód. Civil, dos sistemas jurídicos mais próximos.
Consignou-se (omitem-se as fontes de citação) que:
“O Codice Civile fala de "qualquer que nisso tenha interesse"-artº1421º.
Santoro-Passarelli (1) limita-se a afirmar a legitimidade de "qualquer interessado".
A. Von Tuhr (2), escreve:"A nulidade pode suscitá-la qualquer um, não só as partes que intervieram no negócio, seus sucessores e "causahabientes", mas também aquele terceiro a cujos direitos interesse a nulidade do negócio, e muito principalmente os credores...".
Mais longe vão Enneccerus-Nipperdey (3):"todo o mundo pode invocar a nulidade contra qualquer um".
Curiosas são as observações de P. Esmein (4):Aí se lê que deve tratar-se de um interesse protegido pelo direito, susceptível de abrir uma acção na justiça.
Que um habitante não pode arguir a nulidade de um negócio se visar ver-se livre de uma vizinho indesejado.
Nem um comerciante pode pedir a dissolução de uma sociedade apenas para se livrar de uma concorrente no mercado...
Se invocar outros fins que não esses (ilegítimos, inaceitáveis) já será de lhes conceder legitimidade, deduz-se do texto.
Segundo Heinrich Ewald Hörster (5), não é qualquer pessoa que pode invocar a nulidade mas apenas o particular cujos interesses, jurídicos ou económicos ou morais, tiverem sido afectados pelo negócio nulo.
Parece-nos ser esta uma formulação adequada para a interpretação do artº286º do CC.”.

O douto Acórdão da RP de 11/01/2021 [20]tratou de situação de legitimidade na arguição de nulidade do negócio jurídico, por simulação, o que implicou a consideração da norma específica contida no artº. 242º, do Cód. Civil.
Fez-se constar, no que concerne à remissão para o artº. 286º, do mesmo diploma, que “ por “qualquer interessado”, não pode deixar de entender-se que a lei se está a referir ao “titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio” – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 263 e, no mesmo sentido, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, 2.ª reimpressão, Coimbra Editora, pág. 620 – ou seja o sujeito de qualquer relação jurídica que, de algum modo, possa ser afetado pelos efeitos que o negócio tendia a produzir. Interessado para este artigo é o sujeito de qualquer relação jurídica que de algum modo possa ser afetado pelos efeitos que o negócio tendia a produzir. Afetado na sua consistência jurídica ou mesmo só na sua consistência prática (R. Alarcão, Confirmação, 1º- 63, nota 68; Rodrigues de Bastos, Relações Jurídicas, 4º, 14º)”.
E, invocando o interesse público, conclui que em matéria de legitimidade para a arguição da nulidade deve pugnar-se pelo afastamento de orientações restritivas, sem todavia deixar de consignar as exigências expressamente expostas para o preenchimento do conceito de interessado.

Ajuizando acerca do mesmo conceito de interessado, consignou-se no douto aresto da mesma RP de 24/01/2018 [21] afigurar-se claro “que o direito de invocação da nulidade não pode ser conferido a todos, dado que não é (nem pode ser) qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração da nulidade, que preenche os requisitos para ser considerado interessado.
De facto - de acordo, aliás, com a própria inserção sistemática do art. 286º -, o interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar o vício é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica, ou a consistência prática ou económica, de um direito seu. O sujeito legitimado deve, assim, ter um interesse direto na nulidade e não apenas um interesse reflexo, vago e indireto” (sublinhado nosso) [22].

Ajuizando acerca de situação potencialmente consubstanciadora de legitimidade indirecta, referenciou-se no douto aresto desta RL de 17/01/2012 (omitem-se as expressas referências às citações) [23] que “a ressalva constante do nº3 do art. 26º (“na falta de indicação em contrário”), respeita às hipóteses em que, excepcionalmente, o legislador reconhece legitimidade a quem não é sujeito (ou só é em parte) da relação material controvertida submetida à apreciação do tribunal.
Ou seja, para além de se atribuir legitimidade aos sujeitos da relação material controvertida (legitimidade directa), resultante de uma presumida coincidência entre as partes na acção e os sujeitos da relação material, a lei excepcionalmente atribui legitimidade aos não titulares da relação material (legitimidade indirecta).
E, nas palavras de Paula Costa e Silva, a legitimidade enquanto pressuposto processual adquire relevância precisamente quando em juízo se encontram, não as partes materiais, mas as partes formais, naquelas situações em que quem está em juízo alega não ser o titular da relação material controvertida.
Como refere Anselmo de Castro, “não poderia, porém, a lei abstrair das muitas situações em que terceiros são profundamente interessados na definição da relação jurídica de outrem. E assim venha a conferir o direito de acção não apenas aos sujeitos da relação material, mas ainda a outros que o não são. Este fenómeno de ampliação do direito de acção verifica-se sempre que o objecto da acção se apresente como algo de prejudicial em relação às pretensões de outros sujeitos (relações conexas) ou afecte interesses públicos”.
A doutrina é unânime em considerar como exemplos de atribuição do direito de acção versando sobre relação jurídica a que é estranho ou em que tem apenas um interesse indirecto, a acção de declaração de nulidade dos negócios jurídicos, a acção sub-rogatória prevista no art. 606º do CC, e a acção popular prevista no art. 26º-A do CPC.
Em todas estas hipóteses, em que é atribuída legitimidade processual a quem é titular de um interesse indirecto, surge um fenómeno de substituição processual: a acção é deduzida em nome e no interesse próprio, mas sobre relação jurídica de outrem”.
Seguidamente, após explicitar a dualidade entre legitimidade indirecta substitutiva e representativa, conclui referenciando que “quando a disponibilidade adjectiva não decorre da alegada titularidade da situação objectiva, é indispensável a atribuição legal da legitimidade, pois sem essa atribuição legal, a parte não será legítima” (sublinhado nosso).

Por sua vez, o douto aresto da RE de 08/06/2017 [24]reporta-se a situação concreta com algumas semelhanças ao caso sub júdice. Nomeadamente, naquela, a Autora, enquanto herdeira legitimaria de seus pais, ainda vivos, pretendia impugnar a escritura de justificação notarial para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial feita por um terceiro relativamente a bens integrantes do acervo de uma herança indivisa, na qual figuravam como herdeiros, entre outros, os seus ascendentes progenitores.
Defendeu-se que a menção interessado feita constar no artº. 286º, do Cód. Civil (omite-se a expressa referência às citações)“abrange todo aquele a quem a lei confere o direito de impugnar em juízo o facto hipoteticamente gerador da nulidade e esse interesse directo remete para um juízo avaliativo do interesse substantivo subjacente.
Na hipótese vertente cumpre assim fazer a associação entre a regra processual respeitante à legitimidade processual e as normas editadas a propósito da disciplina da sucessão mortis causa, mormente aquelas que se reportam à administração da herança e ao exercício de direitos por parte dos sucessores do de cuius.
E deste modo, estamos perante uma hipótese excepcional em que a legitimidade não é simplesmente aferida pelo desenho da relação material controvertida tal como é configurada pelo(a) autor(a). Efectivamente, à luz da primeira parte do nº 3 do artigo 30º do Código de Processo Civil, existe uma indicação da lei que aponta para a existência de requisitos que condicionam a identificação do titular do interesse relevante para o efeito do preenchimento do pressuposto processual”.
Efectuando tal juízo, acrescenta que “na esteira da lição de Rabindranath Capelo de Sousa, também entendemos que não é verdade que os sucessíveis legitimários tenham em vida do autor da sucessão um direito subjectivo à quota-parte que constitui a sua porção legitimária ou, muito menos, um direito subjectivo aos bens em concreto do património hereditário que possam integrar a sua quota: em face dos concretos poderes ou faculdades jurídicas atribuídas pela lei a tais sucessíveis, estes têm em vida do autor da sucessão uma expectativa juridicamente titulada à sua porção legitimária.
Também Oliveira Ascensão sublinha que «o legitimário, satisfazendo a sua expectativa, não se torna necessariamente herdeiro. A referência do artigo 2156º a herdeiros só não é incorrecta por, uma vez mais, a palavra herdeiro estar utilizada em sentido amplo, como sucessível». Na letra da lei são herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes, os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima (artigo 2157º do Código Civil).
O direito ao direito a suceder relativamente aos legitimários que não integrem a primeira classe de sucessíveis corresponde a uma simples expectativa e
o herdeiro legitimário não tem um direito subjectivo à quota-parte que constitui a sua porção legitimária em vida do de cuius (sublinhado nosso).
Em acrescido argumentário conclui-se que “em primeiro lugar, o domínio e posse dos bens da herança só se adquirem pela aceitação (artigo 2050º, nº 1), a qual só pode ter lugar depois da abertura da sucessão (artigos 2032º, nº 1, ou seja, depois da morte do de cuius (artigo 2031º). Depois, a vocação sucessória só tem lugar no momento da abertura da sucessão.
Assim, fora dos casos excepcionados por lei, permanece válido o posicionamento teórico de Nuno Espinosa que defende que «o designado legitimário, enquanto tal, em vida do “de cuius” não tem qualquer meio de tutela ou conservação do que seria a sua expectativa jurídica».
Entre estas excepções emergem a legitimidade para arguir a simulação ao abrigo do disposto no artigo 242º do Código Civil e o instituto da inoficiosidade, em que, neste último, o herdeiro legitimário pode obter a revogação ou a redução das liberalidades, em vida e por morte, feitas pelo de cuius.
É incontroverso que os sucessíveis legitimários podem arguir a simulação dos negócios simulados, gratuitos ou onerosos, feitos pelo autor da sucessão com o intuito de os prejudicar. No entanto, face à arquitectura factual e jurídica da acção em curso não estamos perante uma hipótese com esta configuração, pois a providência anulatória em causa é absolutamente omissa quanto à existência de um conluio entre os seus pais e o seu irmão no sentido de a prejudicar na futura partilha de bens nem é invocado que o meio utilizado para concretizar o engano em apreciação foi o recurso a uma acção de justificação notarial.
Não existe na lei uma intenção geral e genérica de proteger os herdeiros legitimários conferindo-lhe legitimidade para atacar os actos que atinjam as suas expectativas em relação à futura sucessão nos bens da herança dos seus antecessores ainda vivos. Essa legitimidade só existe em circunstâncias especiais concretamente definidas na lei (sublinhado nosso).

Em idêntico sentido, sumariou-se no douto Acórdão desta RL de 15/12/1992 [25], não conferir a nossa lei “aos herdeiros legitimários o direito de, em vida do doador, impugnarem a validade das doações deste, fora do âmbito do n. 2 do artigo
242 do Código Civil. Esta última disposição tem carácter excepcional, só sendo aplicável aos casos nela contemplados.

O disposto no artigo 286 do Código Civil não confere aos herdeiros legitimários legitimidade para pedirem a declaração de nulidade das doações feitas pelos pais, enquanto vivos forem”.


IV)–Da concreta (i)legitimidade da Autora

Pretende a Autora a declaração de nulidade do contrato de doação celebrado entre a Ré mãe (entretanto falecida) e o Réu irmão, outorgado em 06 de Agosto de 2012, referente á nua propriedade da fracção autónoma F, correspondente ao 5º andar do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ……………………….., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº. 2..., e inscrito matricialmente sob o artigo 1....
Funda a sua pretensão na circunstância da escritura pública de doação ter sido outorgada em Cartório Notarial, perante Notária que se encontrava pessoalmente impedida de praticar actos de notariado, em virtude de ter sido condenada, por despacho ministerial, na pena de interdição definitiva do exercício de funções, ficando obrigada a cessar o exercício da actividade notarial.
Pelo que, rotulando tal acto como nulo, pretende que o Tribunal efective tal declaração.

Ora, para além do consignado, nada mais aduziu a Autora em sede de articulado inicial e, independentemente da pertinência processual, também nada mais aduziu, em termos factuais, na resposta às excepções apresentada.
Ou seja, tal como referenciado na decisão apelada, não decorre do alegado que a Autora, não sendo parte na outorga daquele contrato de doação, e apenas se apresentando como filha e irmã dos Réus, tenha exposto ou esclarecido qual o interesse que tem nesta acção, nem qual o benefício/utilidade que obtém com a sua procedência, de forma a preencher o conceito de interessado legalmente equacionado no transcrito artº. 286º. Do Cód. Civil. Efectivamente, a mera alegação daquela relação familiar não permite, por si só, a percepção do interesse na demanda, nem a afirmação de um direito incompatível com o negócio jurídico realizado entre os Réus, alvo de impugnação.
Ora, na aferição da legitimidade directa, urge ajuizar, na ponderação do concreto litígio, se a previsível procedência da acção, nos termos configurados pela Autora, é susceptível de lhe trazer, objectivamente, uma situação de vantagem ou utilidade. No que se traduz a adopção do denominado critério da utilidade ou prejuízo, com enfoque no nº. 2 do artº. 30º, do Cód. de Processo Civil.
O que implicava, igualmente, o reconhecimento de que a Autora poderia dispor, através dos meios processuais, acerca da situação jurídica material em que se traduz o objecto processual, ou seja, a invocação da nulidade do enunciado contrato, daí obtendo benefício jurídico directo, que não apenas reflexo, com o putativo juízo de procedência.
Ainda no âmbito da legitimação directa, e na aplicação do denominado critério formal da titularidade, previsto no nº. 3 do mesmo normativo, impor-se-ia efectuar a correspondência entre a afirmada relação material (em controvérsia) e a legitimidade processual exercida, legitimando-se esta através daquela, de acordo com o quadro factual densificador da causa de pedir afirmado pela Autora.
Todavia, analisada aquela causa de pedir, não se descortina a existência de qualquer interesse directo em demandar, nem que da eventual procedência da demanda resultasse, directamente, uma qualquer situação de vantagem ou benefício para a Autora. E, não se olvide, tal interesse, conforme supra expusemos, para além da sua juridicidade, sempre teria que ser directo, e não meramente reflexo, mediato ou derivado.
Nem se evidencia, por outro lado, que a mesma Autora, na configuração pela mesma introduzida na exposta causa de pedir, se afirme com a exigível qualidade posicional de parte face à acção ou litígio em controvérsia, de modo a que tal lhe confira a legitimação processual de que se arroga.
Donde, resulta claro não possuir a Autora a exigível legitimidade ou legitimação directa para a instauração da presente acção.

Aqui chegados, urge apreciar se à mesma Autora, ora Apelante, não será possível reconhecer legitimidade indirecta para a instauração da presente acção, ou seja, se nos termos da 1ª parte do nº 3, do transcrito artº. 30º, do Cód. de Processo Civil, não existirá normativo legal que faça estender tal legitimação.
Concretizando, impõe-se apreciar se, apesar de não poder ser considerada como titular da afirmada situação jurídica individualizada controvertida (mas antes estranha), sendo nulo o acto jurídico equacionado, a lei reconhece-lhe legitimidade para instaurar procedimento judicial destinado à declaração de tal nulidade.
Ora, conforme supra referenciámos, sendo nulo o acto jurídico, é reconhecida legitimidade para a propositura da acção destinada à declaração da nulidade a qualquer terceiro interessado, nos termos equacionados no artº. 286º, do Cód. Civil.
Ou seja, mesmo que estranho à relação material controvertida, pois a pretendida declaração de nulidade não tem por suporte o afirmar de um qualquer direito potestativo do demandante que a lei expressamente lhe reconheça, aquele normativo atribui ao interessado tal faculdade ou poder geral (atribuição legal de legitimidade). 
Donde, urge deste modo atentar se a Autora pode ser considerada como interessada, nos termos ali equacionados, o que passa por aferir se a relação jurídica pela mesma invocada é afectada, na sua consistência jurídica ou prática, pelos efeitos que a doação pretendia produzir. E, o interesse que aquele normativo reconhece é um interesse de direito substantivo, devendo a Autora, como potencial legitimada, ter um interesse directo na nulidade, e não meramente um interesse vago, indirecto ou reflexo.

Todavia, a única relação jurídica equacionável, ainda que não expressamente afirmada, é a que resulta da qualidade de herdeira da 1ª Ré, e sua potencial herdeira legitimária (à data da propositura da acção). 
Pelo que é mister aferir se tal posição é, por si só, suficiente e bastante para lhe conferir o estatuto de interessada para a invocação da nulidade da doação efectuada pela sua progenitora mãe ao seu irmão, ora Réus.
Com efeito, apenas em sede recursória, veio a Autora Apelante alegar que o seu interesse é jurídico, reportado a um momento futuro. E que a validade da doação, por conta da quota disponível, influenciaria a partilha dos bens da herança, pois a quota da herança do Réu irmão seria maior do que a sua.
Ora, parece evidente não poder concluir-se no sentido de que a Autora, enquanto sucessível legitimaria, tivesse, em vida da sua mãe (ora 1ª Ré), um qualquer direito subjectivo à quota-parte daquilo que constituiria a sua porção legitimária – cf., artigos 2156º e 2157º, ambos do Cód. Civil -, ou, ainda menos, que pudesse arrogar-se como titular de um qualquer direito subjectivo sobre concretos bens constituintes do património hereditário, capazes de virem a inteirar a sua quota.
Efectivamente, a Autora, enquanto putativa sucessível de sua mãe, e durante a vida desta, apenas se pode considerar como detentora de uma expectativa juridicamente titulada à sua porção legitimária, e não de um qualquer direito subjectivo à quota-parte em que se traduz a sua parcela ou porção legitimária.
Com efeito, conforme prescreve o nº. 1, do artº. 2050º, do Cód. Civil, o domínio e posse dos bens da herança só se adquirem pela aceitação desta, a qual só ocorre após a abertura da sucessão que, por sua vez, apenas ocorre com a morte do seu autor – cf., artigos 2032º, nº. 1 e 2031º, do mesmo diploma.
Donde, replicando o supra exposto, a ora Autora, enquanto designada sucessível legitimária de sua mãe, na vida desta, não possui qualquer meio de tutela ou conservação do que seria a sua expectativa jurídica”.
Excepção legalmente prevista a tal princípio é a que decorre da legitimidade outorgada aos herdeiros legitimários relativamente aos negócios simulados feitos pelo autor da sucessão, com o intuito de os prejudicar, conforme decorre do nº. 2, do artº. 242º, do Cód. Civil, podendo agir mesmo em vida daquele.
Ora, apesar de tal legitimidade legalmente concedida aos herdeiros (sucessíveis) legitimários, da qual se poderia arrogar a ora Autora, o que é certo é que a mesma não fundamenta o seu pedido de nulidade em qualquer acordo ou conluio simulatório celebrado entre a Ré progenitora e o Réu irmão, no intuito de a enganar ou prejudicar num potencial futura partilha de bens, nem foi minimamente indicado que o meio utilizado para concretizar tal engano tenha sido a outorga da escritura pública de doação.
Por outro lado, também não está em equação no caso sub júdice uma pretensa redução da questionada doação, por inoficiosidade, por afectação do princípio da intangibilidade da legítima, de forma a apelar-se à legitimidade concedida aos herdeiros legitimários, por força do prescrito no artº. 2169º, do Cód. Civil.
Efectivamente, nada nos autos nos permite concluir por tal pretensa afectação (nem tal seria possível de concluir à data da instauração da acção, estando ainda viva a autora da sucessão), sendo certo que a doação impugnada foi efectuada por conta da quota disponível, o que sempre implicaria aferir acerca da pretensa afectação dos dois terços da herança que constituíam a legítima dos filhos – cf., o nº. 2, do artº. 2159º, do Cód. Civil -, bem como acerca da eventual existência de outras liberalidades primeiramente afectadas pela potencial redução por inoficiosidade – cf., o artº. 2171º, do mesmo diploma.
Resulta, deste modo, inexistir qualquer tutela legal geral relativamente à protecção dos sucessíveis legitimários, no sentido de conferir-lhes legitimidade para poderem agir, durante a vida do autor da sucessão, contra os actos por este praticados que de alguma forma afectem as suas expectativas futuras na sucessão dos bens da herança.
Efectivamente, tal legitimidade é apenas reconhecida em situações legalmente definidas e tipificadas, supra mencionadas, a que não se reconduz o caso em apreciação.
Determinando-se, assim, que a Autora, enquanto sucessível legitimária não possui legitimidade, nomeadamente conferida pelo artº. 286º, do Cód. Civil (não preenchendo o conceito de interessada ali enunciado), para, durante a vida da 1ª Ré sua mãe, pedir a declaração de nulidade da doação por esta efectuada ao 2º Réu seu irmão.
Decaindo, assim, o eventual reconhecimento de legitimidade indirecta da Autora para a instauração da presente acção.
O que implica, consequentemente, juízo de total improcedência da presente apelação, mantendo-se, nos seus precisos termos, a decisão recorrida.

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Relativamente à tributação, decaindo a Recorrente Autora no recurso interposto, é responsável pelo pagamento das custas em dívida, nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza.

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IV.–DECISÃO

Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, o seguinte:

I)–julgar totalmente improcedente a apelação, interposta pela Autora/Apelante M., em quer figuram como Apelados S. (falecida, e entretanto habilitada pelo filho M. F.) (Ré), M. F. (Réu), I., IP (assistente) e M. N. (interveniente principal), confirmando-se o despacho apelado/recorrido.
II)–relativamente á tributação, decaindo a Recorrente Autora no recurso interposto, é responsável pelo pagamento das custas em dívida, nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza



Lisboa, 17 de Junho de 2021



Arlindo Crua –Relator
António Moreira –1º Adjunto
Carlos Gabriel Castelo Branco –2º Adjunto

(assinado electronicamente)


[1]A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2]Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 111.
[3]Assim, Miguel Teixeira de Sousa, As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, Lisboa, Lex, 1995, pág. 47.
[4]Processo Civil Delarativo, 2ª Edição, Almedina, 2017, pág. 74 e 75.
[5]Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 59.
[6]Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 135.
[7]José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª Edição, Almedina, pág. 92.
[8]Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª Edição, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 84 e 85.
[9]Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª Edição, 2004, Almedina, pág. 56 a 60.
[10]Ob. cit., pág. 59.
[11]Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 92.
[12]Ob. cit., pág. 139 e 140.
[13]Ob. cit., pág. 116.
[14]Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 263.
[15]Notas ao Código Civil, Vol. II, Lisboa, 1988, pág. 43.
[16]Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição Actualizada, Coimbra Editora, pág. 610 a 613.
[17]Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra, 1987, pág. 417 e 420.
[18]Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica, pág. 708 e 709.
[19]Relator: Nascimento Costa, Processo nº. 03B113, in www.dgsi.pt
[20]Relatora: Eugénia Cunha, Processo nº. 589/17.5T8ESP-B.P1, in www.dgsi.pt .
[21]Relator: Miguel Baldaia de Morais, Processo nº. 874/10.7TYVNG.P1, in www.dgsi.pt .
[22]Referencie-se, ainda, o sumariado no douto Acórdão da RG de 08/10/2020, no sentido de que “nos termos do artº 286º do CC não é interessado para invocar a nulidade de um contrato de compre e venda de imóvel celebrado entre terceiros, por falta de licença de utilização e com utilização de documento com declaração falsa, quem alega para tanto que lhe foram dadas “algumas expectativas” pelo vendedor de que o prédio lhe seria antes vendido ainda que pretextando impedimentos de vária ordem relacionados com a situação legal do prédio”.
[23]Relatora: Maria João Areias, Processo nº. 9814/03.9TVLSB.L1 – 7, in www.dgsi.pt .
[24]Relator: Tomé de Carvalho, Processo nº. 538/13.0TBSSB.E1, in www.dgsi.pt .
[25]Relator: Joaquim Dias, Processo nº. 0062891, in www.dgsi.pt .