Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9427/2007-8
Relator: BRUTO DA COSTA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
FUNÇÃO JURISDICIONAL
PRISÃO PREVENTIVA
ERRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Nos termos conjugados dos arts. 22º da Constituição e 225º, nº 2, do Código de Processo Penal, o Estado é civilmente responsável por actos praticados no exercício da função jurisdicional de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem, desde que tais acções ou omissões tenham sido determinadas por erro grosseiro.
2. Erro grosseiro para este efeito é todo aquele que se mostrar um erro indesculpável, palmar, crasso, evidente, consagrando soluções absurdas, graves e claramente arbitrárias que demonstrem sem margem para dúvidas a negligência culposa do agente.
3. A decisão jurisdicional que determina a prisão preventiva de arguido condenado a uma pena de prisão efectiva de 18 meses pelo crime de corrupção activa, fundada apenas no facto de ter havido condenação e de o arguido não ter confessado a infracção, além de outras circunstâncias acessórias de menor relevo é errada e incorrecta, fundando-se numa concepção autoritária do Direito Penal e numa apreciação exageradamente severa da personalidade do arguido.
4. Tal decisão, porém, embora incorrecta, não enferma de erro grosseiro, fundando-se em critérios sem dúvida polémicos, mas que informam muitas outras decisões judiciais que assentam nos mesmos fundamentos e pressupostos.
(BC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório.

Na comarca de Lisboa
HM

Intentou acção com processo ordinário contra
Estado Português

Alegando que nas condições abaixo determinadas foi ilegitimamente privado da liberdade e durante o período de prisão não foi devidamente assistido do ponto de vista da saúde.

Conclui pedindo uma indemnização de € 25.000 pelos danos sofridos.

Citado, o Réu contestou, alegando que não se verificaram os pressupostos da prisão ilegítima ou outros que gerassem responsabilidade do Estado, sustentando que a acção deve improceder por falta de fundamentos.

Saneado, instruído e julgado o processo, foi proferida douta sentença julgando a acção apenas parcialmente procedente e condenando o Réu a pagar ao Autor uma indemnização de € 4.000.

Da douta sentença vem interposto o presente recurso de apelação, unicamente pelo Réu que nas suas doutas alegações formula as seguintes conclusões:
1.°
A douta sentença apelada, reconhecendo a procedência parcial da presente acção intentada por HM, condenou o Réu Estado Português a pagar-lhe € 4.000,00 (quatro mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, pois considerou injustificada por erro grosseiro sobre os seus pressupostos de facto, a prisão preventiva que lhe foi imposta no Processo Comum Singular n.°, da a Secção do .° Juízo Criminal de Lisboa.
2.°
Porém, o sentenciamento assentou num erro de apreciação e aplicação do direito à factualidade apurada, já que a existência de eventuais falhas ou deficiências do despacho que determinou aquela prisão preventiva não bastariam para configurar o «erro» causal reconhecido pela douta sentença apelada, muito menos autorizando a que ele fosse considerado «grosseiro».
3.°
Com efeito, nos termos do art. 225.° n.° 2 do CPP, a prisão preventiva só poderá considerar-se «injustificada» quando tenha sido determinada, ou mantida, em função de um «erro (grosseiro) de facto», ou seja, de um «erro» que, incidindo sobre o factualismo considerado, traduza uma representação falsa, deturpada ou simplesmente imprópria da realidade atendida.
4.
Sendo igualmente certo que, quando a prisão preventiva seja determinada em função de fundamentos concorrentes, só poderá considerar-se «injustificada» quando tal «erro» afecte a substância da decisão.
5.°
Diversamente, se o «erro» incide apenas sobre um ou alguns desses fundamentos sem afectar os demais pertinentemente invocados, tanto bastará para justificar a imposição da medida, tornando, por isso, irrelevante o «erro parcial» cometido.
6.°
No caso vertente, a prisão preventiva do Autor foi determinada na sequência da leitura da respectiva condenação em pena de 18 meses de prisão efectiva, por crime de corrupção, e do imediato recurso interposto daquela condenação, com efeito suspensivo.

Como resultou apurado e resulta da sua transcrição integral na douta sentença apelada, o despacho que determinou a prisão preventiva do Autor fundamentou a decisão, essencialmente, na afirmação do correspondente perigo de fuga, integrador do pressuposto da alínea a) do art. 204.° do CPP.
8.
Essa conclusão foi extraída da própria condenação do Autor em pena de prisão efectiva, que colocava a hipótese abstracta de que tencionasse subtrair-se ao cumprimento da pena, e em função da gravidade do crime e da personalidade do próprio arguido, que concretizavam esse risco.
9.
O citado despacho desenvolveu ainda outras considerações acessórias para reforçar e complementar a afirmação do perigo de fuga, designadamente respeitantes à situação pessoal e familiar do ora Autor, bem como teceu ainda outras e diversas referências que o levaram a concluir pela concorrente verificação dos pressupostos das alíneas b) e c) do art. 204.° do CPP.
10.°
O primeiro «erro» que a douta sentença apelada imputa ao citado despacho, traduzido na invocação das circunstâncias pessoais e familiares do Autor, que não constavam do processo, não reveste especial gravidade, dado que tais referências foram ali feitas em resposta ao anterior requerimento do próprio Autor, onde aludia à sua situação familiar, e, em todo o caso, respeitavam a uma parte acessória da fundamentação.
11.°
O segundo «erro» que a douta sentença aponta a esse despacho, traduzido na falta de concretização das referências feitas à gravidade do crime, à personalidade dos arguidos e ao modo como eles transmitiram ao processo os factos imputados, tido por revelador de que não interiorizaram a prática de um verdadeiro crime, não poderá nunca ser considerado como um verdadeiro «erro», já que, nesta parte, o despacho remetia directamente para a apreciação feita sobre aqueles aspectos na sentença condenatória, anteriormente lida, reportando-se, por isso, à valoração dos elementos que publicamente constavam do processo.
12.°
O mesmo se diga, também, quanto aos demais reparos feitos pela douta sentença apelada ao despacho em referência, já que estes traduzem, apenas, diversa valoração da mesma realidade e não «erro» do seu enunciado.
13.°
Contrariamente ao que vem referido na douta sentença apelada, não é minimamente verdade que o despacho em causa tenha extraído qualquer conclusão indevida sobre o perigo de fuga, a partir da ausência de confissão dos arguidos.
14.°
Deste modo, no tocante ao considerado perigo de fuga, não ocorre qualquer «erro de facto» do despacho que determinou a prisão preventiva do Autor, pelo menos no tocante à sua linha principal de fundamentação, havendo antes de concluir-se que o entendimento firmado foi alcançado a partir da realidade processual, correspondendo a soluções lógicas, plausíveis no plano jurídico, e que, para mais, já encontraram acolhimento Jurisprudencial.
15°
Os demais «erros» que a douta sentença apelada aponta ao despacho citado, traduzidos na indevida afirmação dos pressupostos das alíneas b) e c) do art. 204.° do CPP mediante factos e circunstâncias que os não integravam, afiguram-se corresponderem a «erros jurídicos», sendo certo que, mesmo quando configurados como «erros de facto», teriam de considerar-se limitados aos pressupostos complementares e autónomos a que respeitavam, não tendo, por isso, a virtualidade de inquinar os fundamentos considerados a propósito do diverso perigo de fuga.
16.°
Assim, uma vez que o núcleo primordial da fundamentação do despacho em referência, atinente ao perigo de fuga, só por si, bastaria para fundar a imposição da prisão preventiva ao Autor, nos termos das conclusões antecedentes, razão alguma ocorre para que a medida seja considerada injustificada por erro, muito menos por «erro grosseiro», sobre os respectivos pressupostos de facto.
17.°
Aliás, a douta sentença apelada limita a afirmação do «erro grosseiro» a um único aspecto da fundamentação do despacho citado, referente à argumentação ali tecida sobre o requisito da alínea b) do art. 204.° do CPP, esquecendo que esse vício não inquinava a restante fundamentação do despacho, nem quanto a ela se verificava.
18.°
Nesta conformidade, a douta sentença apelada deveria ter decidido a improcedência da acção, em quadro da total falência da causa de pedir invocada pelo Autor, com a consequente absolvição do Réu Estado do pedido.
19.°
Mesmo que assim não fosse, ou quando melhor não se entenda, a procedência da acção sempre resultará prejudicada pela inexistência do necessário nexo de causalidade entre os danos não patrimoniais provados e o facto gerador da responsabilidade (então, a injustificada prisão preventiva).
20.°
Com efeito, o Autor não concretizou nenhum prejuízo directamente resultante da prisão preventiva e, bem diversamente, reportou todos os danos (morais) alegados a uma outra e diversa causa de pedir, a pretensa negligência dos Serviços Prisionais do Estado no tratamento adequado ao seu estado de doença.
21.°
Na medida em que essa diversa «causa» não se provou (ficando antes claramente demonstrado que os Serviços Médicos do Estabelecimento Prisional de Lisboa prestaram ao Autor toda a assistência necessária e adequada ao seu estado de saúde), tudo se reconduziria à inexistência de qualquer prejuízo relevante a considerar para efeitos indemnizatórios da prisão preventiva, mesmo quando ela houvesse de ser considerada «injustificada».
22.°
Acresce que, conforme os Pontos 2.1.15 e 2.1.19 da Fundamentação de Facto da douta sentença apelada, da alegação inicial do Autor apenas resultou provado que: 1) «À data referida em 2.1.6 (ou seja, em 08-07-2003), o Autor achava-se doente, com um tumor na próstata»; 2) «O Autor, enquanto esteve preso preventivamente, sofreu angústia e receava morrer».
23.°
É evidente que esses sentimentos de angústia e receio tiveram origem na situação de doença do Autor, que lhes deu causa directa, e não na situação de prisão preventiva, com a qual não apresentam a menor relação.
24.°
No contexto factual apurado nem mesmo se poderá considerar que a prisão preventiva do Autor tivesse de algum modo contribuído para a produção ou agravamento daquela doença, tanto mais que era anterior e tanto mais ainda que lhe foram dispensados todos os cuidados médicos adequados durante a sua reclusão.
25.°
Acresce que não foi apurado qualquer facto que permitisse configurar a privação da liberdade do Autor como dano.
26 °
Assim, claramente, os únicos danos não patrimoniais apurados - a angústia e o receio de morrer - não cabem à responsabilidade indemnizatória do Estado, mostrando-se incorrectamente arbitrada a indemnização em que vem condenado pela douta sentença apelada.
27.°
Outrossim, haverá de concluir-se pela inexistência de qualquer dano a ressarcir, em quadro da total inconsequência da acção.
28.°
Quando assim se não entenda e antes se julguem verificados os pressupostos da responsabilidade civil do Estado e que, não obstante a falta de alegação concreta de qualquer prejuízo relevante, o Autor deva ser indemnizado pela privação da sua liberdade, a indemnização sempre terá de ser expurgada da parcela relativa à compensação dos sobreditos sentimentos de angústia e receio de morrer, ficando consequentemente reduzida ao montante que venha a ser equitativamente fixado.
Termos. em que:
Deverá a douta sentença apelada ser revogada e substituída por outra decisão que, procedendo à correcta e preconizada avaliação jurídica da factualidade apurada, reconheça a total falência da causa de pedir invocada pelo Autor e julgue a acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição do Réu Estado do pedido;
Quando assim não se entenda, sempre deverá a douta sentença apelada ser revogada e substituída por outra decisão que, reconhecendo a inexistência do nexo de causalidade entre os danos não patrimoniais provados e a prisão preventiva imposta ao Autor, conclua pela inconsequência da demanda e julgue a acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição do Réu Estado do pedido;

Quando assim tão pouco se entenda, sempre deverá ser reduzido o montante da indemnização a prestar pelo Estado ao Autor, alterando-se, nesta parte, a respectiva condenação.

O Autor apelado contra-alegou, defendendo a confirmação da decisão, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O apelado esteve privado da sua liberdade entre 8 de Julho de 2003 e 1 de Setembro de 2003, por motivos absolutamente injustificados e injustificáveis, que configuram uma invulgar violência judicial exercida contra a sua pessoa, de uma forma geral e contra a sua integridade física, de um modo particular.
2. Contra a sua pessoa, de um modo geral, porque era de esperar que o tribunal onde a sua liberdade foi posta em causa cumprisse a lei com rigor, ao contrário do que aconteceu, tendo especialmente em conta que a prisão preventiva tem natureza excepcional e ainda contra a sua integridade física, porque o apelado tinha uma doença muito grave (tumor cancerígeno na próstata) e estava carecido de cuidados clínicos excepcionais e urgentes, que lhe não foram prestados no Estabelecimento Prisional, para onde foi violentamente empurrado.
3. O apelado passou aquele período de corte absurdo da sua liberdade em circunstâncias de enorme angústia e ficou mesmo convencido de que iria morrer na prisão (respostas aos quesitos 8 e 9), sendo apenas e só por isso já indemnizável o dano que lhe foi causado, já que foi exactamente a violência judicial contra si exercida que acabou por projectar no palco da protecção jurídica a relação causa / efeito que o apelante diz não existir ...
4. Fez assim o Tribunal "a quo" uma correcta aplicação do disposto no art. 225°., n°. 2 do CPP (com referência aos arts. 204°. e 97°., n °. 4 do CPP), bem como do disposto no art. 496°., n°. 1 do C. Civ..
5. E também fez uma correcta aplicação do disposto nos arts. 496°., n°. 3 e 566°., ambos do C.Civ..
6. Motivos pelos quais deve a sentença recorrida ser inteiramente confirmada, com todas as legais consequências, como é de Inteira e Merecida JUSTIÇA !

 Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

A questão a resolver consiste em apurar se há ou não matéria de facto provada susceptível de fundamentar a responsabilidade do Réu e a consequente condenação ao pagamento de indemnização.

 II - Fundamentos.

Vem provada da 1ª instância a seguinte matéria de facto:
1. O Autor, HM, foi arguido no processo / (certidão de fls. 206 e segs.) [al.  A) dos factos assentes].
2. No processo mencionado em 1., por despacho datado de 28.06.2001, cuja cópia se acha a fls. 390 a 405, foi o Autor acusado pelo Ministério Público da prática de um prime p. e p. pelo art. 374°, n° 1, do Código Penal, com referência ao artigo 372° do mesmo Código (certidão de fls. 206 e segs.) (al.  B).
3. Requerida a abertura de instrução, por despacho proferido em 28.01.2002, cuja cópia se acha a fls. 440 a 443, foi o Autor pronunciado pela prática de um crime de corrupção activa, previsto e punido pelo art. 374°, n° 1, do Código penal. Tendo sido mantidas as medidas de coação de termo de identidade e residência, e caução que lhe haviam sido aplicadas em fase de inquérito (certidão de fls. 206 e segs.) (al.  C).
4. O processo mencionado em 1. veio a ser distribuído à a Secção do ° Juízo Criminal de Lisboa (certidão de fls. 206 e segs.) (al. D).
5. Por despacho datado de 20.02.2002, cuja cópia se acha a fls. 445, foi a acusação mencionada em 2. recebida, tendo sido determinado o julgamento do ora Autor, em processo comum, e por intermédio de tribunal singular, bem como a aplicação da medida de coacção de termo de identidade e residência (certidão de fls. 206 e segs.) (al.  E).
6. Concluído o julgamento no processo mencionado em 1. por sentença datada de 08.07.2003, cuja cópia se acha a fls. 621 a 634, e lida na mesma data, foi o Autor condenado, como autor de um crime previsto e punido no art. 374°, n° 1, do Código Penal na pena de 18 meses de prisão (certidão de fls. 206 e segs.) (al.  F).
7. Na mesma data mencionada em 6., logo após a leitura da sentença, o ora Autor interpôs recurso da mesma, isto nos termos e fundamentos constantes da acta cuja cópia se acha a fls. 636 a 643 (certidão de fls. 206 e segs.) (al. G).
8. O recurso mencionado em 7. foi de imediato recebido, com subida nos próprios autos, imediatamente, e com efeito suspensivo, conforme despacho constante da mesma acta (certidão de fls. 206 e segs.) (al.  H)).
9. Logo após ter sido proferido o despacho referido em 8., o Ministério Público requereu a aplicação ao ora Autor da medida de coacção prisão preventiva, nos termos documentados na mesma acta (certidão de fls. 206 e segs.) (al.  I).
10. Na sequência de tal requerimento, o ora Autor manifestou oposição à aplicação da medida de coacção de prisão preventiva (certidão de fls. 206 e segs.) (al.  J).
11. Logo após o referido em 10., por despacho documentado na mesma acta, foi determinada a aplicação ao ora Autor da medida de prisão preventiva, nos termos constantes de fls. 639 a 641 (certidão de fls. 206 e segs.) (al.  L).
12. O Autor interpôs recurso do despacho mencionado em 11. (certidão de fls. 206 e segs.) (al.  M).
13. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de …, foi concedido provimento ao recurso referido em 12., tendo em consequência sido revogado o despacho referido em 11., e ordenada a imediata libertação do Autor, nos termos constantes de fls. 1200 a 1202 (certidão de fls. 206 e segs.) (al.  N.).
14. Na sequência do despacho mencionado em 11. o Autor esteve preso preventivamente desde 08.07.2003 até 01.09.2003, data da sua libertação (certidão de fls. 206 e segs.) (al. O).
14-A. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de …, foi concedido parcial provimento ao recurso mencionado em 7., tendo sido decretada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao Autor na sentença referida em 6., isto nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 982 a 1010 (certidão de fls. 206 e segs.) (al. P).
15. À data referida em 6., o Autor achava-se doente, com um tumor na próstata (r. quesito 1°).
16. Em 18 de Julho de 2003, o Autor apresentou ao Director dos Serviços Clínicos do Estabelecimento Prisional de Lisboa o requerimento cuja cópia se acha a fls. 76, acompanhado dos documentos cujas cópias foram juntas a fls. 78, 79 e 82 a 86 (r. 4°).
17. O médico urologista que acompanhou o Autor elaborou, para ser presente ao Director dos Serviços Clínicos do Estabelecimento Prisional de Lisboa, o documento junto por cópia a fls. 89, datado de 08.08.2003, no qual o referido clínico declara que "(...) é necessário determinar a natureza da doença, pelo que é imperioso efectuar uma ecografia prostática transrectal com biopsias ecodirigidas, a qual tem certa urgência" (r. 5°).
18. No dia 09 de Dezembro de 2003 o Autor foi submetido a intervenção cirúrgica para debelar o tumor na próstata (r. 7°).
19. O Autor, enquanto esteve preso preventivamente, sofreu angústia e receava morrer (r. 8° e 9°).
20. No dia 24.07.2003, o Autor foi submetido a uma consulta de clínica geral, na qual lhe foram marcados alguns exames complementares de diagnóstico (r. 10° e 11°).
21. Realizados os exames referido em 20, o resultado de um deles (micro) foi conhecido em 30.07.2003 (r. 12°).
22. O médico que assistiu o Autor solicitou a realização de análises clínicas (r.13°).
23. O Autor faltou no dia marcado para a realização de uma recolha de sangue, com vista a ulterior análise clínica, por nesse dia ter "visita especial" (r. 14° e 15°).
24. No dia 11.08.2003 foram realizadas análises clínicas, tendo os respectivos resultados sido conhecidos em 26.08.2003 (r. 16° e 17°).
25. No dia 18.08.2003 o Autor esteve presente novamente numa consulta de clínica geral, tendo o médico que o observou solicitado que o Autor fosse observado em consulta de urologia e submetido a exames complementares de diagnóstico (r. 18° e 19°).
26. Nos dias 18.07.2003, 21.07.2003 e 22.08.2003 o Autor foi observado em consultas de psiquiatria (r. 20°).

O Autor propõe a presente acção com dois fundamentos:

· Prisão ilegítima

· Maus cuidados de saúde durante o período de prisão.
Quanto aos maus cuidados de saúde a acção improcedeu por nada de significativo se ter provado.

Quanto à legitimidade ou ilegitimidade da prisão, podemos ler na acta de julgamento junta por fotocópia a fls. 638/641 o seguinte:
Dada a palavra ao magistrado do M° Público pelo mesmo foi dito:
"Os arguidos D e H acabam de ser condenados nas penas de 24 e 18 meses de prisão efectiva respectivamente, sentença da qual interpuseram recurso.
O M° Público entende que a eminência do cumprimento das penas de prisão por parte dos dois arguidos bem como a falta da confissão dos factos em julgamento, reveladora de que não interiorizaram os factos e que portanto não os assumem, faz recear que tentem evitar o cumprimento daquelas penas.
Acresce relativamente ao arguido D a circunstância de ser natural do Chile o que poderá reforçar a tentação de se eximir à acção da Justiça.
A gravidade dos factos fala por si e está reflectida nas penas de prisão efectiva em que ambos foram condenados.
Considera-se que deverão aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva o que se requer, relativamente a ambos os arguidos, nos termos do disposto nos art°s 372° e 374° do C.P. e art°s 193°, 202° n° 1 al. a) e 204° al. a) todos do C.P.P.."

Dada a palavra ao mandatário do arguido D pelo mesmo foi dito:
"Salvo o devido respeito, entendo relativamente ao arguido DO, que de modo algum se verificam os pressupostos da prisão preventiva que conforme tem sido abundantemente defendido apenas deve ser determinada em casos que claramente o justifiquem.
No caso do arguido DO e independentemente do resultado do recurso interposto e admitido com efeito suspensivo não se verificam aqueles pressupostos. Com efeito não há qualquer perigo de continuação de qualquer outra actuação delituosa em virtude de o mesmo estar afastado da actividade que vinha exercendo.

Não há perigo de destruição de prova como é claramente manifesto. Quanto ao perigo de fuga parece mais que evidente que o mesmo não se verifica pois o arguido reside em Portugal à muitos anos, tem a nacionalidade portuguesa e nunca se furtou à actuação da Justiça. Não pode assim retirar-se do simples facto de ter nascido no Chile qualquer ilação ou justificação do perigo de fuga que justifique a sua prisão preventiva. Quando muito e sem conceder, poderão existir outros meios menos gravosos que se possa eventualmente aplicar, sejam eles quais forem, sejam de apresentações ou até de meios electrónicos eventualmente sem se justificar a medida máxima e extremamente gravosa que de todo se deve evitar, a prisão preventiva, sobretudo tendo em atenção a total ausência de antecedentes criminais. O arguido desde já dá autorização para qualquer outra medida que venha a ser tomada."

Dada a palavra à mandatária do arguido H, pela mesma foi dito:
"Faço minhas as palavras do meu colega querendo acrescentar que no caso do arguido HM não existe perigo de fuga porque a sua família, filha e neta residem perto dele e é sócio de uma sociedade por quotas proprietária de um estabelecimento de ensino de condução do qual aufere os seus rendimentos fundamentais à sua sobrevivência."
De seguida foi proferido o seguinte:

DESPACHO
"Após a leitura da sentença o magistrado do M° Público formulou um requerimento a fim de se determinar a prisão preventiva dos arguidos condenados em penas efectivas de prisão e após estes terem interposto recurso da sentença que, no caso tem efeito suspensivo, e conduziria a que a decisão de reclusão não fosse imediatamente executada.
Os fundamentos foram de que face às penas de prisão em que foram condenados e à não interiorização das condutas imputadas se agrava o receio de fuga neste momento, uma vez que acaba de ser proferida uma decisão de condenação em pena de prisão efectiva.
O outro fundamento foi da gravidade em si dos factos e quanto ao arguido DO o de ter nascido no Chile.
Assim, os fundamentos referem-se ao perigo de fuga- al. a) do art° 204° - e ao perigo em razão da natureza do crime de continuar a actividade criminosa - art° 204° al. c) e ainda art° 202° do C.P.P..
Considerando o requerimento e as respostas dos arguidos através dos seus advogados, o Tribunal entende que efectivamente, neste momento, nos termos da al. a) do art° 204° do C.P.P. que se refere não só à fuga mas ao perigo de fuga, existe esse perigo de fuga dado que os arguidos acabam de ser condenados em pena de prisão.
Esse perigo de fuga revela-se tanto mais nos casos concretos por um dos arguidos, embora com nacionalidade portuguesa, ter nascido no Chile e ser filho de pessoas que nesse país nasceram e obviamente dispor de um outro território que o possa acolher.
Quanto ao arguido HM o receio de fuga advém ainda da possibilidade de ser uma pessoa com a família já constituída há anos, sem pessoas a cargo, com possibilidade de deslocação sem que lhe sejam conhecidas concretamente circunstâncias que o possam não fazer resistir ao cumprimento desta pena.
Estes dados de facto são ainda deduzidos não pela não confissão dos factos delituosos, mas sim pelo modo como eles foram transmitidos ao Tribunal o que revela circunstâncias concretas de personalidade dos arguidos que permitam a subtracção da justiça.
Esta exigência resulta também do disposto na al. a) do art° 204° do C.P.P. quando se refere ao perigo em razão não só da natureza do crime como de personalidade e de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas. Entende-se assim que estão verificadas de modo acrescido as circunstâncias dos art°s 204° al. a) e c) do C.P.P..

Ainda há a considerar que a produção da prova neste processo é de natureza essencialmente testemunhal e que o decurso do tempo, com os arguidos em liberdade pode ainda suscitar ao tribunal o perigo de que a consumação ou veracidade da prova se mantenham.

Quer o Tribunal dizer que foi sensível ao facto de a prova testemunhal, embora evidente, ter sido bastante dolorosa para as pessoas que aqui a prestaram e tiveram coragem de o fazer, que com os arguidos em liberdade e até com uma condenação efectiva e se tivesse por uma hipótese remota que ser repetido o julgamento, tal prova poderia não surgir com a espontaneidade e capacidade de memória com que foi exposta.
Assim, consideram-se verificados os pressupostos das alíneas a), b) e c) do art° 204° do C.P.P., para, com o disposto no art° 202° n° 1 do mesmo diploma e o art° 191° e 193° do C.P.P. se entender que neste momento a única medida de coacção adequada e suficiente para impor aos arguidos é a prisão preventiva que ora se determina.
Passe mandados de condução ao estabelecimento prisional."

Em resumo, no final do julgamento, estando o arguido condenado a 18 meses de prisão efectiva e estando interposto recurso com efeito suspensivo, o Ministério Público entendeu que se verificava o fundado receio de fuga e a Exma. Juíza de Direito julgou verificado o pressuposto e decidiu no sentido promovido pela acusação, decretando assim a prisão preventiva.

Tal medida veio a ser revogada por acórdão desta Relação certificado a fls. 811 e segs., onde se pondera que:
(...) Os fundamentos da decisão de alterar a medida de coacção a que o recorrente estava sujeito e que era a de prestação de caução foram, segundo o despacho recorrido o da existência de perigo de fuga em virtude de o recorrente ter sido condenado numa pena de prisão. Ainda segundo o despacho recorrido esse perigo de fuga revelar-se-ia: a) na circunstância de o recorrente ser urna pessoa com família constituída mas sem pessoas a seu cargo e com possibilidades de deslocação serra que sejam conhecidas circunstâncias que possam dissuadí-lo de resistir ao, cumprimento da pena; b) na circunstância de a não confissão do recorrente dos factos pelos quais veio a ser condenado revelarem urna personalidade que aponta para uma intenção de fuga á justiça.
É ainda referida a existência de perigo em razão da natureza do crime e da personalidade do recorrente de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas.
Por isso se consideraram verificadas as circunstâncias previstas nas alíneas a) e c) do art. 204° CPP.
Foi ainda considerado que a face à circunstância de a prova produzida ser essencialmente testemunhal, com os arguidos em liberdade e o decurso do tempo, a possibilidade de repetição do julgamento poderia afectar a espontaneidade dos depoimentos e a capacidade de memória dos depoentes.
O art. 204° CPP define quais são os requisitos gerais de aplicação de qualquer medida de coacção para lá do termo de identidade e residência.
No caso concreto em face da fixação anterior da medida de prestação de caução decerto que foram ponderados quer o perigo de fuga quer o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas.
Como é sabido a fixação das medidas de coacção está sujeita ao princípio rebus sic stantibus segundo o qual as medidas devem ser revistas logo que se apresentem circunstâncias que o justifiquem. E a prisão preventiva assume carácter excepcional de acordo com o comando constitucional do art. 28°, n° 2 CRP não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.
No caso concreto não se vislumbra desde logo em que se apoiou o tribunal para considerar que o recorrente tem família constituída mas sem pessoas a seu cargo. Basta atentar que da sentença, onde tais factos deveriam figurar como provados ou não provados, nada consta pura e simplesmente. Mas mesmo que tal fosse comprovado não se afigura que seja razoável extrair, sem mais, da ausência de encargos familiares um acréscimo do perigo de fuga. Sendo certo que sempre haveria de considerar-se que o recorrente tem, neste momento, 66 anos de idade que não é compatível com maiores facilidades para encetar um processo de fuga com as naturais dificuldades que ele acarreta.
Quanto à ausência de confissão também se não vê em que é que isso possa ser revelador de um aumento do perigo de fuga. A confissão ou não confissão dos factos é um direito que assiste ao arguido sendo que desta última atitude não podem nem devem ser retirados efeitos jurídicos negativos.
Quanto à perturbação da ordem e da tranquilidade públicas não se vê em que possam elas consistir quando os factos pelos quais o arguido foi condenado remontam ao início de 2001 e não houve desde então razão para considerar necessária a prisão preventiva.
Tendo, pois, em atenção o referido princípio rebus sic stantibus o entendimento deste tribunal é o de que não há absolutamente nada que em termos de exigências cautelares justifique a alteração do estatuto do recorrente e que se justifique também que se lance mão da medida a que se deve recorrer apenas excepcionalmente.
Por último, deve dizer-se que o argumento relativo à perda de espontaneidade e perda de capacidade de memória das testemunhas na hipótese de repetição do julgamento não só nada tem a ver com os fundamentos legais das situações passíveis de prisão preventiva como também não se descortina em que é que isso possa ter a ver com a prisão preventiva. A repetição do julgamento, a ocorrer, nenhuma interferência pode ter com a situação de prisão preventiva ou de liberdade provisória sendo que a inversa é igualmente verdadeira.
3. Não. há, em suma e salvo melhor opinião, nenhum fundamento válido para alterar a situação de liberdade provisória em que o recorrente se encontrava.
Nessa medida, decide-se conceder provimento ao recurso revogando o despacho recorrido.

Ou seja, por acórdão desta Relação se extrai a conclusão de que a medida decidida na 1ª instância foi incorrecta, constituindo um erro.

O que nos reconduz ao tema central deste processo: poderá/deverá esse erro considerar-se grosseiro?

Sobre a natureza e conceptualização do erro grosseiro têm doutrinado os nossos Tribunais pela forma seguinte:
1. O artigo 22º da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos, sendo inequívoco que no seu âmbito estão abrangidos também os actos dos titulares dos órgãos jurisdicionais, ainda que os titulares desses órgãos possam não ser civilmente responsáveis (art. 216º, nº 2, da Constituição).
2. Assim, e para além dos casos em que se consagra expressamente o dever de indemnização a cargo do Estado (arts. 27°, n° 5, e 29°, n° 6, da Constituição - privação ilegal da liberdade e erro judiciário), há-de entender-se que a responsabilidade do Estado-Juiz pode e deve estender-se a outros casos de culpa grave, designadamente no que respeita a grave violação da lei resultante de negligência grosseira, afirmação ou negação de factos cuja existência ou inexistência resulta inequivocamente do processo, adopção de medidas privativas da liberdade fora dos casos previstos na lei, denegação de justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do Magistrado no cumprimento dos seus deveres.

3. Todavia, os pressupostos da ilicitude e da culpa, no exercício da função jurisdicional susceptível de importar responsabilidade civil do Estado, conforme o artigo 22º da Constituição, só podem dar-se como verificados nos casos de mais gritante denegação da justiça, tais como a demora na sua administração, a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei, a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ou assentes nos autos, por culpa grave indesculpável do julgador.

4. Isto é, para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar, de que não foi justa ou melhor a solução encontrada: impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis.

5. A mera revogação de uma decisão judicial não importa, à partida, um juízo de ilegalidade ou de ilicitude, nem significa que a decisão revogada estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um Tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso.

6. Ainda que se admita que a actividade jurisdicional se enquadra no âmbito da responsabilidade do Estado por facto lícito (artigos 22º da Constituição e 9º, nº 1, do Dec.lei nº 48.051) só existirá obrigação de indemnizar se, além do mais, se provar que a Administração tenha lesado direitos ou interesses legalmente protegidos do particular, fora dos limites consentidos pelo ordenamento jurídico.

7. Em todo o caso, a prova, quer a existência do dano, quer do nexo de causalidade adequada entre o acto e o dano, incumbe ao lesado, nos termos gerais aplicáveis à responsabilidade civil extracontratual (artigo 342º, nº 1, do C.Civil).

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2005 (Relator: Araújo Barros), alcançável na base de dados do Tribunal acessível via Internet no endereço www.dgsi.pt/ [1]. [2]

I. A responsabilidade civil do Estado decorrente do exercício da função jurisdicional está prevista no art. 22º da Constituição da República.

II. Essa responsabilidade civil decorrente de erro de direito praticado no exercício da função jurisdicional está dependente de o erro ser considerado grosseiro, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial claramente arbitrária.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-07-2006 (Relator: João Camilo).

1) Para além dos dois casos específicos expressamente mencionados nos art.ºs 27º, nº 5, e 29º, nº 6 (prisão ilegal e condenação penal injusta), o art.º 22º da Constituição abrange na sua previsão a responsabilidade civil extra-contratual do Estado decorrente da actividade jurisdicional.

2) Independentemente da existência de lei ordinária que o concretize, o direito reconhecido pelo art.º 22º da Constituição beneficia do regime estabelecido no seu art.º 18º para os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, designadamente quanto à sua aplicação directa.

3) A autonomia na interpretação do direito e a sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas são manifestações essenciais do princípio da independência dos juízes.

4) Os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis

5) O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil na jurisdição cível quando, salvaguardada a essência da função jurisdicional referida no ponto 4), seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.7.2003 (Relator: Nuno Cameira).

I - O art. 22 da C.R.P. estabelece um princípio geral de directa responsabilidade civil do Estado.

II - Em alargamento dessa responsabilidade a factos ligados ao exercício da função jurisdicional, para além do clássico erro judiciário, o art. 27, nº5, a Constituição da República impõe ao Estado, de modo especial, o dever de indemnizar quem for lesado por privação ilegal da liberdade, nos termos que a lei estabelecer.

III - Em cumprimento do preceituado no art. 27, nº5, da Constituição, o art. 225 do C.P.P. veio regular as situações conducentes a indemnização, por privação da liberdade, ilegal ou injustificada.

IV- A previsão do art. 225, nº2, do C. P. P. comporta também o acto manifestamente temerário.

VI - A prisão não é injustificada, e muito menos por erro grosseiro, só porque o interessado vem a ser absolvido.

VII - A circunstância de alguém ser sujeito a prisão preventiva, legal e judicialmente estabelecida, e depois vir a ser absolvido em julgamento, sendo então libertado, por não se considerarem provados os factos que lhe eram imputados e que basearam aquela prisão, só por si, não possibilita o direito a indemnização.

VIII ...

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.3.2004 (Relator: Azevedo Ramos).

O art. 225º do CPP prevê o dever de indemnizar nos casos de prisão preventiva que, não sendo ilegal, se revele injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, se da privação da liberdade resultarem prejuízos anómalos e de particular gravidade.

Não existe direito de indemnização se, malgrado a existência de erro na apreciação dos factos incriminadores, esse erro não é qualificável como grosseiro, isto é, como indesculpável.

Acórdão da Relação de Lisboa de 26.2.2004 (Relator: Carlos Valverde).

I- Não definindo o art.22.º da Constituição os termos da consagrada responsabilidade do Estado por facto praticado no exercício da função jurisdicional , cabe ao intérprete a concretização daquele comando constitucional.
II- Procurando conciliar o princípio da independência dos tribunais com o da responsabilidade do Estado, tanto a doutrina como a jurisprudência têm entendido que o erro de direito nas decisões dos tribunais só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil na jurisdição cível, quando seja grosseiro, evidente, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária.

Acórdão da Relação de Lisboa de 3.10.2006 (Relator: Alziro Cardoso).


Assim, há que concluir que para se qualificar um erro como grosseiro em termos que relevem para a responsabilidade civil do Estado por facto praticado no exercício da função jurisdicional, ele deve ser um erro indesculpável, palmar, crasso, evidente, consagrando soluções absurdas, graves e claramente arbitrárias que demonstrem sem margem para dúvidas a negligência culposa do agente.
Debruçando-se sobre tal aspecto, defende-se na douta sentença da 1ª instância que estamos efectivamente perante erro grosseiro, pois (passamos a citar):
(...)Do exposto resulta que o despacho que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva ao Autor se alicerçou num único facto: a condenação do arguido numa pena de prisão efectiva de 18 meses (é o próprio despacho que refere expressamente que "existe esse perigo de fuga dado que os arguidos acabam de ser condenados em pena de prisão") e a circunstância de este ter recorrido da sentença.
Ora, a aplicação de uma pena de prisão a alguém não constitui fundamento legal para lhe aplicar a prisão preventiva se este recorrer.
É necessário que se verifique, em concreto, alguma das circunstâncias referidas no art. 204°.
E isso tem de resultar de indícios ou factos concretos e não de argumentos sem substrato factual.
Conforme expressamente estabelece a Constituição no seu artigo 28°, n° 2, "a prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável na lei".
Tratando-se de uma medida excepcional e sendo indispensável que o despacho de aplicação de uma medida de coacção seja fundamentado (por ser um despacho judicial decisório - v. art. 97°, n° 4, do CPP), a fundamentação (que deve, segundo doutrina e jurisprudência uniforme, conter a indicação das exigências cautelares e dos indícios que em concreto justificação a medida aplicada e a indicação dos meios de prova pertinentes - v. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág. 224) não se pode circunscrever a uma argumentação que não indica um único facto ou indício daqueles que a lei considera relevantes para a aplicação da medida de coacção prisão preventiva. Muito menos é admissível que se recorram a argumentos que qualquer cidadão médio (leigo em matéria de direito) consideraria irrazoáveis, como sejam o de alguém ficar em prisão preventiva para precaver a hipótese de repetição do julgamento que se acaba de terminar, ou porque não confessou os factos.
Portanto, embora a prisão preventiva decretada seja formalmente legal, a verdade é que a mesma era manifestamente injustificada, por revelar-se assente em erro grosseiro na apreciação dos seus pressupostos. E o erro é grosseiro, na medida em que o vício sobressai com evidência, em termos objectivos, da análise da situação fáctico/jurídica em causa.

Verificamos que no despacho em causa se decide existir fundado receio de fuga com base:
· No facto de o arguido ter acabado de ser condenado a uma pena de prisão efectiva de 18 meses pelo crime de corrupção activa;
· No facto de o arguido não ter interiorizado a gravidade da sua conduta;
· No facto de o arguido ser uma pessoa com a família já constituída há anos, sem pessoas a cargo, com possibilidades de deslocação;
· No facto de o arguido não ter confessado o cometimento do crime.
Por outro lado, a decisão em causa sugere que a manutenção do arguido em liberdade poderá implicar a perturbação da ordem e da tranquilidade públicas.
Já vimos que a decisão era incorrecta, como bem se conclui pela leitura do acórdão que a revogou.
Mas será esta decisão um erro indesculpável, palmar, crasso, evidente, consagrando soluções absurdas, graves e claramente arbitrárias ?
Será ela demonstrativa sem margem para dúvidas da negligência culposa do agente, que o mesmo é dizer da Mmª Juíza ?
Salvo o devido respeito por opinião contrário, não o cremos.
Na verdade não é absurdo nem disparatado e muito menos um erro indesculpável, crasso e evidente, ponderar que a condenação do arguido numa pena de prisão efectiva poderá ser causa de alguma pulsão do arguido para a fuga; nem é erro indesculpável e absurdo acreditar que a não confissão do arguido é elemento a ponderar negativamente na apreciação da sua personalidade, ela própria um elemento a ponderar para a definição de um regime de liberdade ou de prisão preventiva.
Verificamos que a apreciação feita pelo Tribunal criminal revela uma concepção autoritária do Direito Penal e uma apreciação muitíssimo severa da conduta do arguido, levando a um resultado errado, mas não absurdo, nem indesculpável e muito menos demonstrando negligência culposa da Exma. Juíza em causa; aliás tal apreciação está alicerçada em critérios que durante muitos anos informaram a jurisprudência dos nossos Tribunais, existindo diversas decisões judiciais que apontam no sentido da razoabilidade de tais critérios.
Vejam-se neste sentido os seguintes arestos[3]:

I...II...III...

IV - O crime de corrupção tem ínsito na sua prática um elemento de desprezo pelos valores colectivamente assumidos, a que se alia uma grande capacidade de dissimulação. Os seus autores só se preocupam com os seus próprios desígnios, com prevalência para o seu bem-estar material. Assim, é de considerar seriamente a probabilidade de que, alguém que está fortemente indiciado por um crime desta natureza, ademais com elevado grau de ilicitude, se tiver os meios, tente fugir.

 Acórdão da Relação de Lisboa de 10.1.2007 (Relator: Ricardo Silva).

Com a condenação do arguido - em 3 anos e 6 meses de prisão pelo crime de burla - agravou-se o receio de fuga, dada a postura que demonstrou em julgamento, com a negação dos factos que assumiu durante toda a audiência, alterando-se os pressupostos que estiveram na base da inicial medida de coacção - caução e apresentação às autoridades - pelo que só a prisão preventiva se apresenta como medida coactiva eficaz, a qual se mostra proporcional e adequada ao crime e à personalidade do arguido.

Acórdão da Relação do Porto de 1.4.98 (Relator: Cachapuz Guerra).

Com a condenação, ainda que não transitada, do arguido ( na pena de 5 anos e meio de prisão ) pelo crime de violação ( reiterada, de uma deficiente mental ) não só subsistem como se agravaram as circunstâncias que determinaram a prisão preventiva, designadamente o receio de fuga do arguido à acção da justiça e o perigo de perturbação da tranquilidade pública.

Acórdão da Relação do Porto de 18.10.95 (Relator: Fonseca Guimarães).

No mesmo sentido, veja-se ainda o Acórdão da Relação do Porto de 30.11.94 (Relator: Pereira Madeira).
Pela leitura dessa jurisprudência se verifica que em muitos Tribunais criminais se considera que a simples condenação do arguido a uma pena de prisão efectiva é sinónimo de acrescido perigo de fuga, podendo integrar o conceito do fundado receio de fuga para efeitos de definição de um estatuto de prisão preventiva.
Em suma, e para efeitos deste processo, entendemos que a decisão da Exma. Juíza Exma. Juíza, sendo embora uma decisão incorrecta no que toca à apreciação dos pressupostos de prisão preventiva, não configura um erro grosseiro.
Não havendo tal erro, falece a causa de pedir por inexistência de um dos seus pressupostos taxativos, consagrado no artº 225º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Pelo que a acção deve improceder.
Procedendo a apelação.
Em face do exposto, formula-se a seguinte síntese:
1. Nos termos conjugados dos arts. 22º da Constituição e 225º, nº 2, do Código de Processo Penal, o Estado é civilmente responsável por actos praticados no exercício da função jurisdicional de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem, desde que tais acções ou omissões tenham sido determinadas por erro grosseiro.
2. Erro grosseiro para este efeito é todo aquele que se mostrar um erro indesculpável, palmar, crasso, evidente, consagrando soluções absurdas, graves e claramente arbitrárias que demonstrem sem margem para dúvidas a negligência culposa do agente.
3. A decisão jurisdicional que determina a prisão preventiva de arguido condenado a uma pena de prisão efectiva de 18 meses pelo crime de corrupção activa, fundada apenas no facto de ter havido condenação e de o arguido não ter confessado a infracção, além de outras circunstâncias acessórias de menor relevo é errada e incorrecta, fundando-se numa concepção autoritária do Direito Penal e numa apreciação exageradamente severa da personalidade do arguido.
4. Tal decisão, porém, embora incorrecta, não enferma de erro grosseiro, fundando-se em critérios sem dúvida polémicos, mas que informam muitas outras decisões judiciais que assentam nos mesmos fundamentos e pressupostos.

III - Decisão.

De harmonia com o exposto, nos termos das citadas disposições, acordam os Juízes desta Relação em declarar procedente a apelação, revogando-se a douta sentença do Tribunal a quo e absolvendo o Réu do pedido.

Custas pelo apelado, na proporção.

  Lisboa e Tribunal da Relação, 14/02/2008


Os Juízes Desembargadores,

Francisco Bruto da Costa

Catarina Arelo Manso

Pedro Lima Gonçalves

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[1] Todos os acórdãos de seguida citados estão alcançáveis via Internet nas mesmas bases de dados alojadas no endereço www.dgsi.pt .

[2] No mesmo sentido veja-se também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2004 (Relator: Araújo Barros).
[3] Estes acórdãos estão alcançáveis via Internet nas bases de dados dos respectivos Tribunais alojadas no endereço www.dgsi.pt .