Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2481/16.1T8CSC.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: FIANÇA
SUB-ROGAÇÃO
EXTINÇÃO DA FIANÇA
PRESSUPOSTOS
INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR ORIGINÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/16/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. - A extinção da fiança, ex vi art. 653 CC, pressupõe um facto voluntário (acção ou omissão) do credor afiançado que inviabilize a sub-rogação do fiador nos direitos que lhe assistem.
2 - A insolvência do devedor originário em nada contende com a sub-rogação do crédito do credor primitivo traduzindo-se, tão só, numa eventual impossibilidade de cobrança do crédito sub-rogado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

A [ ….Portugal, S.A. ], demandou B [ ….dos Santos ] e C [ ….Pereira ]  pedindo a sua condenação  no pagamento à autora:
a) No valor de € 9.528,75, a título de restituição de comparticipação publicitária, no âmbito do contrato identificado nos autos;
b) Nos juros moratórios vincendos, aplicando as taxas de juro legais e sucessivas fixadas para os créditos de que são titulares empresas comerciais, contados desde a citação dos réus até integral e efectivo pagamento;
c) no valor de € 37.930,00, a título de indemnização por café não consumido, no âmbito do contrato referido e;
d) Nos juros moratórios vincendos, aplicando as taxas de juro legais e sucessivas fixadas para os créditos de que são titulares empresas comerciais, contados desde a data de citação dos réus até integral e efectivo pagamento;
e) No valor de € 6.119,52, a título de indemnização referente ao valor do equipamento à data da resolução do contrato 2500, e;
f) Nos juros moratórios vincendos, aplicando as taxas de juro legais e sucessivas fixadas para os créditos de que são titulares empresas comerciais, contados desde a data de citação dos réus até integral e efectivo pagamento;
g) No valor de € 773,88 relativa a fornecimentos de produtos não pagos;
h) Nos juros moratórios vencidos, aplicando as taxas de juro legais e sucessivas fixadas para os créditos de que são titulares empresas comerciais, contados nos últimos cinco anos, de 08/09/2011 até 08/09/2016, as quais ascendem a € 292,97, sem prejuízo dos juros vincendos até efectivo e integral pagamento;
Alegou, em síntese, que celebrou com os réus o contrato nº 2500, datado de 24/07/2007, de fornecimento de café, comparticipação publicitária, comodato e aquisição de equipamento, no âmbito da actividade comercial da Autora e da sociedade ….RESTAURAÇÃO, LDA., doravante designada por Sociedade, e para o estabelecimento comercial desta denominado “Fizz Caffe”, pelo período de 60 meses, com início em 20/07/2007;
A Sociedade obrigou-se a consumir, em exclusivo, no seu estabelecimento comercial, café da marca BUONDI, Lote PRESTIGE, comercializado pela autora, nomeadamente, a adquirir 4200Kgs deste produto, num mínimo mensal de 70kgs;
A Sociedade incumpriu a sua obrigação de adquirir um mínimo mensal de 70Kgs de café à autora, não tendo realizado o consumo de café acordado;
Em 27/11/2009, a Sociedade tinha uma dívida vencida para com a autora no valor de € 773,88.
Em Outubro de 2009, a Sociedade realizou a última aquisição de café à autora e não mais retomou o seu consumo;
Na vigência do contrato a Sociedade adquiriu à autora apenas 407kgs dos 4200kgs a que se havia obrigado;
A duração do contrato foi de 39 meses – início, em 20/7/2007 e resolução, em 19/11/2010.
Os réus nada pagaram à autora, apesar de terem assinado o contrato nº 2500, na qualidade de fiadores e principais pagadores solidários à autora das obrigações contratuais assumidas pela sociedade.
Citado, o réu C não contestou.
Citado, o réu B, concluindo pela absolvição do pedido, excepcionou a extinção da fiança, incumprimento do dever de informação, inexistência de interpelação e impugnou o alegado pela autora.
Sustentou, no que às excepções concerne, que a Sociedade VNP RESTAURAÇÃO, LDA, foi declarada insolvente, em 02.03.10, não tendo a autora apresentado a competente reclamação de créditos, verifica-se, assim, a impossibilidade de sub-rogação pelos fiadores, possibilitando que estes fiquem desonerados da obrigação em que ficaram constituídos, nos termos do disposto no art. 654 CC.
Apesar do contrato não constituir, no seu todo, um contrato de adesão, existem elementos no mesmo susceptíveis de enquadrar verdadeiras cláusulas contratuais gerais e, não obstante, a autora não comunicou, nem informou o réu, violando o art. 5 do DL 446/85 de 25/10.
A autora não só não interpelou o réu para pagar como também não lhe enviou interpelou o réu para pagar, nem lhe enviou carta de resolução – fls. 36 e sgs.
Na resposta às excepções a autora concluiu pela sua improcedência referindo, em síntese, que o réu, gerente da insolvente, administrador da insolvente e fiador do contrato 2500, não pode ignorar a falta de cumprimento deste contrato e a falta de pagamento das facturas emitidas pela autora (cujo pagamento é reclamado neste processo).
O réu considera-se interpelado uma vez que as cartas enviadas para a sociedade, foram também para o réu, ainda que para a mesma morada (gerente da sociedade).
O crédito não foi reclamado no processo 1641/09.6TYLSB (Juízo de Comércio de Sintra – Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste), no âmbito do qual a sociedade VNP Restauração, Lda., foi declarada insolvente;
O réu, gerente da sociedade, podia e devia ter assegurado o reconhecimento pelo Sr. Administrador de Insolvência do crédito da autora;
Não podendo o réu desconhecer a existência de um crédito da autora, se tivesse pago esta dívida, teria (ex vi art. 644 CC) ficado sub-rogado nos direitos da A, sobre a insolvente VNP Restauração, Lda., tendo elencado factos constantes da certidão apresentada pelo réu relativa ao processo de insolvência.  
Foi prolatado despacho saneador sentença que, julgando procedente a excepção arguida, julgou extinta a fiança e absolveu os réus do pedido, com fundamento no facto de que se o devedor for declarado insolvente e o credor não tiver reclamado o seu crédito no processo de insolvência/reclamação de créditos, não pode exigir do fiador a satisfação do seu crédito porquanto, este não poderá ficar sub-rogado nos direitos do credor, ex vi dos arts. 644 e 653 CC, 37/7, 38, 90, 128 e 146 Cire – fls. 57 e sgs.
Inconformada, a autora A., apelou, formulando as conclusões que se transcrevem:
1ª. Nos presentes autos de apelação, vem a recorrente apelar ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, pela revogação do Despacho Saneador - Sentença pelo qual o Tribunal de 1ª Instância, considerando procedente a excepção de extinção da fiança, julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os réus dos pedidos;
2ª. Com todo o respeito, considera a apelante errónea a decisão, tanto no que concerne à matéria de facto considerada como assente, como no que respeita à aplicação do Direito;
3ª. Quanto à factualidade considerada assente e relevante nos autos, entende a apelante que outros factos, por si alegados na resposta oferecida às excepções deduzidas pelo réu contestante devem ser tidos em conta, uma vez que deles, por aplicação do Direito, resulta uma diferente solução para a questão a decidir;
4ª. Considera a apelante, que devem ter-se como assentes, por relevantes para a questão decidenda, os factos seguintes:
a) A sociedade VNP Restauração, Lda. apresentou-se à insolvência;
b) A gerência da sociedade VNP Restauração, Lda. era exercida pelos três sócios;
c) O réu B foi nomeado administrador da sociedade insolvente;
d) No processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda. não foram reclamados quaisquer créditos conhecidos;
e) Da lista de credores reconhecidos no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda. constam quatro credores, nenhum dos quais a A.;
f) A sociedade VNP Restauração, Lda., insolvente, aquando do processo de insolvência, tinha contabilidade organizada;
g) Em 2007, a insolvente, no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda., apresentou um resultado liquido de: - € 19.429,38 (negativo);
h) Em 2008, a insolvente, no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda., apresentou um resultado de:  - € 91.187,26 (negativo);
i) Em Novembro de 2009, a insolvente, no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda., apresentava um saldo devedor de € 330.300,00.
5ª. Os factos supra enunciados têm suporte probatório no documento junto aos autos com a contestação, que corresponde a certidão referente ao processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda., a que corresponde o código de acesso 98V6-….-TT2S-XY2;
6ª. No que respeita à aplicação do Direito, centra-se a questão a decidir na interpretação e aplicação do art. 653 CC.
7ª. Com o devido respeito, não andou bem a Mma. Juiz do Tribunal a quo ao enquadrar a factualidade assente nos autos (e ao olvidar outros elementos de facto essenciais para a correcta decisão) à luz dos preceitos legais;
8ª. No caso presente, foi erroneamente interpretado e aplicado o disposto no art. 653 CC porquanto:
9ª. De acordo com a disposição do artigo 653 CC, depende a liberação do fiador da sua obrigação, de ter sido uma acção ou omissão culposa do credor a causa da impossibilidade de sub-rogação daquele, no direito do credor sobre o devedor principal. Porém,
10ª. No caso presente, não foi o facto de a autora não ter reclamado os seus créditos no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda., a causa de impossibilidade de os réus ficarem sub-rogados no direito da sociedade devedora principal;
11ª. Perante as normas reguladoras do instituto da fiança (designadamente os artigos 627/1, 634 e 644 CC), os réus fiadores, estão obrigados a cumprir a obrigação de pagamento das quantias peticionadas na acção.
12ª. E, atendendo à relação material controvertida configurada pela autora na acção estão os réus, fiadores, obrigados a pagar à autora a quantia de € 773,88 desde 27/09/2009, bem como deve considerar-se que as quantias peticionadas pela autora na acção, enumeradas sob as alíneas a) a f) do pedido, são devidas desde 19/11/2010.
13ª. Considerando que:
- A gerência da sociedade VNP Restauração, Lda. era exercida pelos três sócios;
- O réu, contestante, B foi nomeado administrador da sociedade insolvente;
Os réus fiadores estavam inteirados da existência das dívidas à ora apelante, tanto das decorrentes de fornecimento de produtos, como das que emergem do incumprimento contratual.
14ª. Os réus, fiadores, apesar de cientes das suas obrigações, nada pagaram à apelante:
15ª. Devendo entender-se que o requisito essencial do direito do fiador à sub-rogação (nos direitos do credor), previsto no artigo 644 CC, reside no cumprimento da obrigação do devedor afiançado,
16ª. Estando em causa a aplicabilidade da norma constante do art. 653 CC e, sendo um dado adquirido que os réus fiadores não procederam a qualquer pagamento à credora, deve a questão ser analisada num plano prévio à falta de reclamação de créditos no processo de insolvência;
17ª. Com efeito, se, nas datas do seu vencimento, os réus, fiadores, tivessem pago as dívidas da devedora principal, teriam (ex vi artigo 644 CC) ficado sub-rogados nos direitos da A. sobre a sociedade VNP Restauração, Lda., desde o momento desse pagamento.
18ª. Desse modo, poderiam os réus ter-se sub-rogado nos direitos da apelante, referentes aos créditos derivados do fornecimento de produto desde as datas de vencimento das facturas, a 19/10/2009 e 26/11/2009, caso tivessem procedido ao seu pagamento;
19ª. Igualmente quanto à sub-rogação nos créditos indemnizatórios peticionados pela apelante, poderiam os réus fiadores ter exercido o direito à sub-rogação, caso tivessem pagos tais dívidas:
20ª. Em ambas situações, poderiam os réus ter reclamado os créditos em que teriam ficado sub-rogados, tanto através da competente reclamação no processo de insolvência da devedora principal, como por via de acção de verificação ulterior de créditos, nos termos do disposto no artigo 146 Cire (na redacção aplicável), dispondo ao tempo do prazo de 1 ano para o efeito;
21ª. Não pode, portanto, deixar de se concluir que a alegada impossibilidade de sub-rogação dos réus, fiadores, se deve, directamente e, em primeiro lugar, a factos que só a eles são imputáveis – o não pagamento das quantias em dívida aquando dos respectivos vencimentos.
Para além do que vai exposto nas anteriores conclusões, outro fundamento existe para justificar o não enquadramento do caso em apreço na disposição do art. 653 CC.
22ª. Considerando que os réus, fiadores, eram sócios e gerentes da sociedade insolvente, caso estes viessem a adquirir, por sub-rogação, os créditos da apelante, tais créditos teriam a natureza de créditos subordinados (cfr. artigos 47 a 49 Cire).
23ª. Tais créditos apenas seriam pagos, havendo activo na massa insolvente a ratear, após a satisfação dos credores privilegiados e comuns.
24ª. Tendo, ainda, em conta que:
- Em 2007, a insolvente, no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda., apresentou um resultado liquido de - 19.429,38 Euro (negativo);
- Em 2008, a insolvente, no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda., apresentou um resultado de - 91.187,26 Euro (negativo);
- Em Novembro de 2009, a insolvente, no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda., apresentava um saldo devedor de 330.300,00 Euro.
Nunca os réus, fiadores, poderiam receber qualquer quantia, dada a insuficiência de bens da massa insolvente para o efeito.
25ª. Foram, assim, erroneamente interpretadas e aplicadas as disposições dos arts. 627, 634, 644 e 653 CC.
Mas, ainda que assim se não entenda, deverá, de igual modo, a decisão sob recurso ser revogada, porquanto:
26ª. De facto:
- a sociedade VNP Restauração, Lda. apresentou-se à insolvência;
- a gerência da sociedade VNP Restauração, Lda. era exercida pelos três sócios;
- o réu B foi nomeado administrador da sociedade insolvente;
- no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda. não foram reclamados quaisquer créditos conhecidos;
- da lista de credores reconhecidos no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda. constam quatro credores, nenhum dos quais a A.;
- a sociedade VNP Restauração, Lda., insolvente, a quando do processo de insolvência, tinha contabilidade organizada;
27ª. Os réus fiadores, gerentes da sociedade VNP Restauração, Lda., um dos quais administrador da insolvente, não podem ignorar a falta de cumprimento deste contrato e a falta de pagamento das facturas emitidas pela apelante - a sociedade insolvente tinha contabilidade organizada e todos os documentos necessariamente integravam a documentação e acervo contabilístico da sociedade.
28ª. No processo de insolvência foram reconhecidos créditos e quatro credores, embora nenhum deles os tenha reclamado.
29ª. No entanto, não foi, quanto à apelante, devendo tê-lo sido, dado cumprimento ao disposto no artigo 37/3 Cire porquanto, esta seria necessariamente o quinto credor conhecido a notificar, uma vez que a prova do seu crédito consta de documentos contabilísticos da sociedade insolvente, bem como não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 129/4 Cire.
30ª. Caso os réus, gerentes da sociedade insolvente, ou posteriormente a Sra. Administradora de Insolvência, tivessem dado cumprimento às citadas normas do CIRE, teria a apelante reclamado o seu crédito.
31ª. Os réus, aquando da apresentação do processo de insolvência, tinham por obrigação identificar os credores conhecidos, indicando os cinco maiores credores e, fazendo fé na lista de credores reconhecidos no processo de insolvência, a apelante era o quinto maior credor da insolvente.
32ª. Salvo melhor entendimento, considera a apelante que, ao procurarem prevalecer-se de um acto omissivo da apelante – falta de reclamação de créditos no processo de insolvência – actuam os réus em abuso de direito (cfr. artigo 344 CC) uma vez que,
33ª. Também eles cometeram no processo de insolvência omissões que colidiram com os direitos da apelante.
34ª. Invocando uma omissão da apelante para fundar a faculdade de se exonerarem da fiança, violam, manifestamente, os recorridos os princípios da boa-fé porquanto, também eles incorreram em omissão que pôs em causa os direitos da apelante enquanto credora da sociedade insolvente.
35ª. Deste modo, por aplicação do disposto no artigo 344 CC, deverá considerar-se em manifesto abuso de direito a invocação pelos réus da omissão de reclamação de créditos, por parte da apelante, para se exonerarem do cumprimento das obrigações assumidas na qualidade de fiadores;
36ª. Em suma, não pode considerar-se que ocorre, no caso sub judice, o pressuposto da desoneração dos fiadores previsto no artigo 653 CC.
37ª. Assim, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar-se o Despacho Saneador com valor de Sentença, ordenando-se o prosseguimento da acção, com o cumprimento das disposições dos arts. 596 e sgs. CPC.
Foram deduzidas contra-alegações tendo o apelado pugnado pela rejeição do recurso no respeitante à decisão de facto e pela confirmação da decisão.
Factos que a 1ª instância considerou apurados

a) A autora, a sociedade VNP RESTAURAÇÃO, LDA., sociedade por quotas com o número único de matrícula e pessoa colectiva 508029562 e os réus celebraram o contrato nº 2500, datado de 24/07/2007, de fornecimento de café, comparticipação publicitária, comodato e aquisição de equipamento.
b) O contrato 2500 foi celebrado no âmbito da actividade comercial da autora e da sociedade VNP RESTAURAÇÃO, LDA, doravante designada por Sociedade, e para o estabelecimento comercial desta denominado “Fizz Caffe”.
c) A vigência deste contrato foi contratualmente estipulada por um período de 60 meses, com início em 20/07/2007.
d) No âmbito do qual, a Sociedade se obrigou a consumir, em exclusivo, no seu estabelecimento comercial, café da marca BUONDI, Lote PRESTIGE, comercializado pela autora.
e) Tendo-se obrigado a adquirir 4200Kgs deste produto, num mínimo mensal de 70 kgs.
f) A Sociedade obrigou-se, ainda, a não adquirir a terceiros café da marca contratada, bem como a não publicitar ou revender, café e descafeinado de outras marcas, no seu estabelecimento, durante o período de vigência do contrato 2500.
g) Como contrapartida das obrigações contratuais assumidas pela Sociedade a autora entregou-lhe a título de comparticipação publicitária a quantia de € 27.225,00.
h) Igualmente como contrapartida, a autora colocou no estabelecimento comercial desta, o seguinte equipamento:
 - Uma máquina de lavar Kromo, no valor de 2.850,65€ + IVA;
- Uma máquina de lavar Faema Kb c/ Dep. Secante, no valor de         € 1.400,00+IVA;
- Uma máquina de café Cimbali M29 Start 2gr, no valor de               € 2.800,00+IVA
- Uma máquina de café Cimbali, M39 Classic 2 gr, no valor de         € 4.345,00+IVA,
- Um moinho Master 6 Aut., no valor de € 413,00+IVA;
- Um moinho Cimbali Special, no valor de € 835,00+IVA;
No montante global de € 15.298,82.
i) O equipamento identificado no artigo que antecede destinava-se a ser utilizado para venda dos produtos contratados e foi emprestado por um período que coincide com a vigência do contrato nº 2500.
j) A Sociedade não adquiriu o mínimo mensal de 70Kgs de café à autora.
k) A Sociedade obrigou-se a realizar o pagamento das facturas no prazo de vencimento das mesmas.
l) A autora enviou à Sociedade e aos réus carta registada com aviso de recepção, datada de 19/07/2010, cujo teor de fls. 9 vs. se dá como reproduzido.
m) Através da carta registada com aviso de recepção datada de 12/11/2010, enviada à Sociedade e datada de 11/11/2010 a enviada aos réus, todas remetidas, a 16/11/2010, a autora declarou proceder à resolução do contrato nº 2500 e reclamou o pagamento dos valores decorrentes dos nºs 2 e 3 da cláusula 4 e nº 6 da cláusula 5ª, do contrato referido.
n) Os réus não realizaram o pagamento de qualquer quantia à autora.
o) Os réus assinaram o contrato nº 2500 na qualidade de fiadores e principais pagadores solidários à autora das obrigações contratuais assumidas pela sociedade VNP RESTAURAÇÃO, LDA.
p) Em 2 de Março de 2010, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Noroeste – Juízo do Comércio de Sintra, no âmbito do processo nº 1641/09.6TYLSB, foi proferida sentença de declaração de insolvência da pessoa colectiva VNP Restauração, Lda..
q) Não tendo sido apresentada a competente reclamação de créditos por parte da autora, nem mesmo, no prazo para o efeito, apresentada a petição inicial para verificação ulterior de créditos, em consequência, não foi o alegado crédito da autora sobre a Sociedade insolvente reconhecido.
Colhidos os vistos, cabe decidir.
Atentas as conclusões da apelante que delimitam como é regra o objecto do recurso – arts. 635, 639 e 640 CPC - as questões a decidir consistem em saber se há ou não lugar à:
a) Alteração da decisão de facto.
b) Extinção da fiança
c) Abuso de direito
Vejamos, então.

a) Modificabilidade da decisão de facto
O Tribunal da Relação pode alterar a decisão da    1ª instância sobre a matéria de facto se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 640 CPC, a decisão com base neles proferida – art. 662 CPC.
Importa desde já referir que a garantia do duplo grau de jurisdição, no que concerne à matéria de facto, não desvirtua, nem subverte, o princípio da liberdade de julgamento, ou seja, o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – art. 607 CPC.
No entanto, esta liberdade de julgamento não se traduz num poder arbitrário do juiz, encontra-se vinculada a uma análise crítica das provas, bem como à especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção.
Por isso, os acrescidos poderes do Tribunal da Relação sobre a modificabilidade da matéria de facto, em resultado da gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas em julgamento, não atentam contra a liberdade de julgamento do juiz da 1ª instância, permitindo apenas sindicar a correcção da análise das provas, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência, prevenindo o erro do julgador e corrigindo-o, se for caso disso - Ac. TC 3/10/2001, in Ac. TC, vol. 51, 206.
O Tribunal da Relação não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova, com os demais elementos existentes nos autos, pode exibir perante si - cfr. Ac. STJ de 4/7/2013, in www.dgsi.pt.
Impugna o apelante a decisão da matéria de facto concluindo que devem ser considerados provados os factos constantes das alíneas a) a i) elencados na 4ª conclusão (alegações), com base no documento, junto com a contestação – certidão referente ao processo de insolvência da sociedade VPN Restauração, Lda.
Tendo em atenção o alegado no articulado (resposta às excepções) e o documento junto a fls. 50 a 56, aditam-se aos factos provados os seguintes, sob as alíneas r a y e ao facto sob a alínea p) que a “sentença transitou em julgado, em 28/7/10, e não já os constantes das alíneas c) e d) por conclusivo e ausência de prova bastante:  
p - Em 2 de Março de 2010, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Noroeste – Juízo do Comércio de Sintra, no âmbito do processo nº 1641/09.6TYLSB, foi proferida sentença de declaração de insolvência da pessoa colectiva VNP Restauração, Lda., cujo trânsito ocorreu, em 28/7/10.
r -  A sociedade VNP Restauração, Lda. apresentou-se à insolvência;
s – A gerência da sociedade VNP Restauração, Lda. era exercida pelos três sócios, B , Vanda ….. e C .
t – Da lista de credores reconhecidos no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda. constam quatro credores, nenhum dos quais a A.;
u - A sociedade VNP Restauração, Lda., insolvente, a quando do processo de insolvência, tinha contabilidade organizada;
v - Em 2007, a insolvente, no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda., apresentou um resultado liquido de: - € 19.429,38 (negativo);
x - Em 2008, a insolvente, no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda., apresentou um resultado de:  - € 91.187,26 (negativo);
y - Em Novembro de 2009, a insolvente, no processo de insolvência da sociedade VNP Restauração, Lda., apresentava um saldo devedor de € 330.300,00.
Destarte, procede parcialmente a pretensão.
 b) Extinção da fiança
Pugna o apelante pela inexistência de extinção da fiança, ex vi art. 653 CC, defendendo que, pelo facto de não ter reclamado os créditos no processo de insolvência da sociedade VNP, não ficaram os réus impossibilitados de se subrogarem nos seus direitos (apelante) porquanto, se tivessem efectuado o pagamento das facturas em dívida, desde 19/10 e 26/11/2009, teriam ficado sub-rogados nos direitos da apelante (credora), pelo que perante as normas que regulam o instituto da fiança (arts. 627/1, 634 e 644 CC), são devidas as quantias peticionadas.
Por seu turno, o apelado defende que não tendo a autora reclamado os seus créditos no processo de insolvência da sociedade afiançada, retirou-lhe a possibilidade de se sub-rogar no seu crédito, o que constitui motivo de desoneração/extinção da fiança.
De acordo com o apurado entre a apelante e a sociedade VNP foi celebrado o contrato nº 2500, tendo o réu assinado o contrato na qualidade de fiador e principal pagador (solidário) das obrigações contratuais assumidas por aquela.
Face ao incumprimento da sociedade, não pagamento de facturas em dívida e aquisição de determinada quantidade de café, que, no entrementes, foi declarada insolvente, a apelante não reclamou os seus créditos no processo de insolvência, tendo intentado acção contra os réus/fiadores reclamando o pagamento das facturas em dívida, bem como a indemnização pela resolução do contrato.
A fiança é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do crédito deste sobre o devedor – art. 627/1 CC.
A vantagem da fiança reside no facto de à garantia geral do património do devedor acrescer a garantia especial do património de terceiro.
No entanto, a fiança não é uma garantia real, não é dotada de sequela, característica e força dos direitos reais absolutos, sujeitando-se às vicissitudes do património.
A fiança pode ser constituída por contrato ou por negócio jurídico unilateral.
A fiança garante ao credor o pagamento do débito de outrem, obrigando-se pessoalmente  no confronto com o credor: o garante, no caso em que o devedor garantido não cumpra espontaneamente, põe à disposição do credor todo o seu património pessoal até ao montante da totalidade do crédito, ou seja, o fiador, estranho à ralação obrigacional já constituída ou contextual, assume no confronto com o credor uma ulterior obrigação, acessória e solidária relativamente à denominada principal, tendo por objecto uma prestação que normalmente corresponde e coincide com a assumida pelo devedor garantido.
O Prof. Januário Gomes, in “Direito das Obrigações”, vol. III, Coimbra Editora, 79 a 119, refere que  fiador enquanto devedor é-o de uma dívida própria, ou seja, a dívida da fiança que tem a particularidade da acessoriedade, estar moldada nos termos da dívida principal (moldada per relationem), i. é, o fiador só é responsável pelo cumprimento da obrigação do devedor na medida em que, sendo o devedor responsável, ele assumiu o dever de cumprir especialmente conotado com o dever de cumprir do devedor.
A fiança comporta uma absoluta identidade qualitativa entre a prestação do devedor principal e a do fiador.
O regime da fiança assenta na acessoriedade (invocabilidade de excepções relacionadas da obrigação principal e no âmbito das responsabilidades – arts. 637/1, 631/1 e 634 CC) e tem como fim a segurança ou garantia (não só do cumprimento da obrigação, como também na solvência do devedor), não se olvidando que representa um risco para quem a presta.
Na verdade, todos os negócios envolvem um risco, embora aqui o risco seja grande porquanto, o fiador pode ter que ser chamado a suportar um esforço de satisfação do credor, sem que lhe possa exigir qualquer correspectivo, impendendo sobre ele o ónus e esforço de obter junto do devedor, o valor que realizou sem ter a certeza da sua efectivação - cfr. Acs. STJ de 21/1/2014 e de 1/7/2008, relatados por Gabriel Catarino e Alves Velho, respectivamente, in www.dgsi.pt.
O fiador que cumpre a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, para quem se transmitem todas as garantias e acessórios do direito de crédito – art. 644 e 582/1, ex vi     art. 594 CC.
Os fiadores ainda que solidários ficam desonerados da obrigação que contrairam, na medida em que, por facto positivo (acto doloso ou negligente) ou negativo (facto voluntário não necessariamente culposo) do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem (direitos anteriores à fiança ou contemporâneos, como posteriores) – art. 653 CC.
Assim, se o credor, por acção ou omissão, voluntária que não necessariamente culposa, inviabilizar a sub-rogação do fiador este seja exonerado da fiança na exacta (mesma) medida.
O que está em causa é que o credor perca a vantagem da fiança, na medida em que a perda do direito lhe seja imputável.
“Não sofre dúvidas que o regime plasmado no art. 653 CC tem aplicação aos casos de garantias associadas ao crédito como são as hipotecas, os penhores, os privilégios ou as fianças; o mesmo se dirá das posições activas de garantia e segurança decorrentes de uma penhora ou de um direito de retenção.
Porém, nos casos em que ocorra uma (mera) impossibilidade prática da realização do direito de cobrança do crédito, por via da sub-rogação, maxime quando o devedor se tenha tornado insolvente, o credor não tem o dever para com o fiador de zelar pela solvabilidade do devedor, tendo em vista a futura recuperação do crédito por parte do fiador, quando sub-rogado.
Pressupostos base de aplicação do regime plasmado no art. 653 CC é que o fiador não possa ficar sub-rogado nos direitos do credor. Ora, nenhuma impotência patrimonial superveniente do devedor, impede que o fiador, cumprindo, fique sub-rogado na posição de credor” – cfr. Manuel Januário Costa Gomes, in Assunção Fidejussória da Dívida, Almedina – pág. 925 e sgs. e Acs. RC de 8/11/16, relatora Maria João Areias e RG de 18/1/2006, relatora Rosa Tching, in www.dgsi.pt.
Assim, concluiu-se que a insolvência do devedor em nada contende com a sub-rogação do crédito do credor primitivo, traduzindo-se, tão só, numa eventual impossibilidade de cobrança do crédito sub-rogado.
In casu, a apelante interpelou a sociedade e os fiadores, enviando-lhes carta, em 19/7/2010, no sentido de cumprimento do contrato, pagamento do valor de € 773,88 (alegada dívida de 2009) e não aquisição de café, desde Outubro de 2009, sob pena de resolução do contrato, o que veio a suceder (cfr. facto apurado sob a alínea m), carta remetida a 16/11/2010.
Até hoje nada foi pago.
A sociedade, tendo como gerente o réu/apelado (gerência era exercida por três sócios), apresentou-se à insolvência, tendo sido declarada insolvente, em 2/3/2010, sentença transitada, em 28/7/10.
A sociedade tinha contabilidade organizada, apresentando resultados negativos, em 2007 e 2008 e, em 2009, o valor da dívida era de € 330.000,00.
A autora/apelante não reclamou o seu crédito no processo de insolvência.
Dos factos apurados constata-se que, escassos meses, após a constituição em mora (dívida) a sociedade apresentou-se à insolvência.
O réu, enquanto gerente da sociedade e tendo esta contabilidade organizada, não podia ignorar a existência de dívidas da sociedade para com terceiros, mormente, para com a autora, sendo que se tivesse efectuado o pagamento, assumiria a posição de credor originário (apelante) – art. 47/3 Cire.
O réu, ao pagar o valor da alegada dívida de 2009    (€ 773,88) esse valor, poderia ter-se sub-rogado no direito da apelante e, reclamar tal crédito no processo de insolvência, arriscando-se, contudo, a não ser ressarcido.
De qualquer forma, com a publicação da sentença que declarou a insolvência da sociedade, o réu/apelado considera-se notificado, das consequências legais decorrentes da declaração de insolvência, designadamente, a do vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva (art. 91 Cire) abrindo-lhe a possibilidade de, querendo, pagar a dívida, a fim de poder exercer, em sub-rogação os direitos inerentes no processo de insolvência.
Tendo em atenção que a resolução do contrato ocorreu após a declaração de insolvência, sempre o réu poderia ter pago o valor peticionado, subrogando-se nos direitos da apelante e lançar mão do preceituado no art. 146 Cire (acção de verificação ulterior de créditos) – cfr. Ac. RL 12/2/2009, relatora Maria do Rosário Morgado, in www.dgsi.pt.
Destarte, procede a pretensão da apelante.
 
c) Abuso do direito
Suscitou a apelante nas conclusões de recurso que o réu ao procurar prevalecer-se de um acto omissivo (não reclamação de créditos no processo de insolvência) actuou em abuso de direito, violando os princípios da boa-fé (art. 334 CC).
Ora, esta questão é de todo omissa nos articulados pela apelante (p.i. e resposta à excepções) e, por isso, não foi apreciada na sentença, constituindo uma questão nova.
Os recursos são meios a usar para se obter a reapreciação de uma decisão, já não para obter decisões sobre questões novas, ou seja, questões que não foram suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido, não sendo lícito invocar neles questões que não tenham sido objecto das decisões impugnadas.
As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, os quais se destinam a reapreciar questões e não a decidir questões novas, sob pena de supressão de um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida - cfr. Acs. STJ 7/11/93, in CJ STJ 1/93 e de 4/7/95, in CJ STJ 2/95 – 153, entre outros.
O Tribunal da Relação não tem de se pronunciar sobre questões novas suscitadas, excepção às de conhecimento oficioso – arts. 608/2 e 627 CPC.
Concluindo:
- A extinção da fiança, ex vi art. 653 CC, pressupõe um facto voluntário (acção ou omissão) do credor afiançado que inviabilize a sub-rogação do fiador nos direitos que lhe assistem.
- A insolvência do devedor originário em nada contende com a sub-rogação do crédito do credor primitivo traduzindo-se, tão só, numa eventual impossibilidade de cobrança do crédito sub-rogado.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogando-se o despacho saneador sentença, determina-se o prosseguimento da acção, para conhecimento das demais questões colocadas.
Custas pelo apelado
Lisboa,16/5/2019

(Carla Mendes)
(Octávia Viegas)
(Rui da Ponte Gomes)