Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
600/18.2T9VFX.L1-3
Relator: MARIA PERQUILHAS
Descritores: MAUS TRATOS
PODER DEVER DE CORRECÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Os actos praticados pelo arguido não se podem enquadrar no poder-dever de correção.
Este poder dever de correção foi eliminado do nosso ordenamento jurídico em Novembro de 1977.
Por força das recomendações da ONU e exigências do Conselho da Europa, que foi firmando jurisprudência sólida, os direitos da criança mais não são que direitos humanos adaptados à sua especial condição CRIANÇA, verdadeiro sujeito de direitos.
Os pais e educadores têm para com as suas crianças a responsabilidade de os educar através do recurso a formas e modelos educacionais positivos onde predomine o empoderamento, o incentivo e o (bom) exemplo.
Na sequência destes novos desenvolvimentos a própria lei 61/2008 de 31 de outubro substituiu a expressão poder paternal por responsabilidades parentais, colocando a criança no seu devido lugar na família e enquanto titular de direitos face aos próprios pais/guardiões de facto e educadores.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão proferida na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

EI… veio interpor recurso da sentença de 07 de março de 2019 que o condenou pela prática de um crime de maus tratos, p.p. art. 152º-A, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, nos termos do art. 50.º do Código Penal.
Para o efeito apresentou as seguintes conclusões:
1) O arguido recorrente não se conforma com o teor da decisão condenatória proferida pelo Tribunal a quo que condenou;
2) – EI…, Arguido ora Recorrente, pela prática, em autoria material, de um crime de maus tratos, p.p. art. 152º-A, n.º 1, al. a) do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão;
- Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, nos termos do art. 50.º do Código Penal;
- E também condenou o arguido EI… no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s, bem como, no pagamento dos demais encargos legais – art.º 513.º, 514.º do C.P.P. e art.º 8.º, n.º 9 e tabela III do R.C.P.
3) Sucede porem, que o arguido ora recorrente dificilmente se pode conformar com a decisão condenatória em apreço, limitando o recurso à medida da pena aplicada em que foi condenado.
4) Entende o ora recorrente que a pena de de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, que lhe foi aplicada se afigura manifestamente exagerada e desproporcional.
5) Tal pena resulta do facto de não terem sido devidamente valoradas todas as circunstâncias atenuantes que militam a favor do ora recorrente.
6) Considerando todas as circunstâncias, conclui-se que o Douta Sentença recorrida violou, ao determinar a medida concreta da pena, os artigos 40º, 71º e 50º n.º 1 do Código Penal, que presidem à escolha e medida da pena.
7) Na verdade, a aplicação ao recorrente de uma pena de pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, não visa a sua integração social, profissional e familiar e ultrapassa muito a medida de sua culpa.
8) Por outro lado, não poderá ser descurada a realidade judicial no tocante à aplicação de penas, e à concretização da medida concreta de pena de prisão neste tipo de crime - face à qual esta pena concreta se afigura manifestamente desproporcionada - sob pena de, na impossibilidade de se alcançar uma justiça absoluta, passarmos a ter uma justiça relativa que não serve os valores nem os fins do Estado de Direito Democrático e, por maioria de razão, a verdadeira essência do Direito Penal.
9) Face à personalidade do recorrente, cfr. seu relatório social, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, bem como ao seu enquadramento pessoal, familiar, e social é de concluir que uma condenação numa pena de pena de 1 (um) ano suspensa na sua execução por igual periodo, realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr artigo 50º nº l do CP).
10) O presente recurso tem por fundamento a discordância do ora recorrente face a pena deve ser especialmente atenuada nos termos dos artigos 72º e 73º do Código Penal, considerando a medida da pena “exagerada e desproporcional”, pedindo a sua redução para 1 ano de prisão, suspensa na sua execução.
11) Não há dúvida de que a matéria de facto apurada preenche efectivamente os elementos constitutivos do crime de maus tratos, p.p. art. 152º-A, n.º 1, al. a) do Código Penal.
12) O tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos considerados provados e não provados na ponderação do conjunto probatório produzido em audiência dediscussão e julgamento analisado de uma forma crítica e com o recurso a juízos de experiência comum.
13) O arguido admitiu os factos constantes do ponto 1) a 8), explicando que actuou desse modo de forma a corrigir o comportamento do arguido, uma vez que o mesmo tinha mau comportamento quer na escola, quer em casa. Explicou que a primeira situação ocorreu depois de ter recebido um telefonema da escola no qual lhe disseram que o ofendido tinha levado uma faca para a escola e que tinha andado atrás de um colega, sendo que actuou da forma descrita no ponto 5) para corrigir o comportamento do ofendido.
14) Esclareceu que na segunda situação houve várias situações de mau comportamento na escola, pois foi chamado na quarta-feira anterior porque tinha várias faltas disciplinares e não mostrava a caderneta, na quinta-feira foi também chamado à escola porque o menor foi malcriado com a professora e na sexta-feira foi mandado para casa porque tinha atacado um colega com um x-acto. Salientou que na sexta-feira, dada a gravidade da situação, não quis falar com o ofendido, mas que no sábado acordou por causa de uma discussão entre aquele e a sua mãe, pelo que chamou-o e perguntou o que se passava, tendo o ofendido respondido de forma ríspida e com falta de respeito. Explicou que nessa altura “passou-se” atenta a forma como o menor lhe respondeu e também por causa do que tinha acontecido no dia anterior e desferiu-lhe diversas pancadas com uma mangueira nas mãos, sendo que admitiu ter desferido entre 3 a 5 pancadas em casa mão. Admitiu que se excedeu, que foi um excesso da sua parte, mas que aquilo que pretendia era efectivamente corrigir o comportamento do menor.
15) A testemunha MC…, professora ...explicou a situação ocorrida na sexta-feira anterior à factualidade ocorrida no ponto 6) em que o menor cortou um colega com um x-acto e em que foi à direcção que decidiu mandar o menor para casa naquele dia. Relatou que o ofendido estava muito preocupado com a reacção que o arguido ia ter e pediu-lhe para não telefonar para ele, sendo que inclusivamente fez um gesto com uma tesoura como se quisesse espetá-la no pescoço, o que a deixou preocupada. Contudo, falou com o arguido sobre a situação e manteve com o mesmo uma conversa normal ao telefone, sendo certo que o menor depois de falar ao telefone com o arguido acalmou também e posteriormente foi para casa. ... Confirmou ainda que o menor tinha mau comportamento na escola e que sempre que era chamado à atenção reagia mal e vitimizava-se. Salientou que o arguido tinha sido chamado à escola na quarta-feira anterior a esta situação por causa do comportamento do menor.
16) A testemunha MJ…, mãe do arguido, explicou o comportamento que o menor tinha na escola e as queixas que recebiam dos professores, pois o mesmo era bastante agressivo com os colegas e tratava mal os professores, tendo chegado a levar uma faca para a escola. Salientou que também em casa era agressivo, pois sempre que era contrariado reagia mal. Referiu que o arguido já não sabia como lidar com o ofendido, pois os castigos também já não resolviam a situação. Acrescentou que não estava em casa quando a factualidade descrita no ponto 6) ocorreu.
17) A testemunha MR…, psicóloga na escola que era frequentada pelo menor, confirmou que o ofendido tinha mau comportamento na escola e com os colegas, que reagia mal, de forma agressiva quando era contrariado e que demonstrava ter carência afectiva por estar a viver longe da mãe.
18) A testemunha HS…, que foi directora de turma do ofendida, explicou o comportamento daquele na sala de aula e com os colegas, confirmando aquilo que foi referido por todas as testemunhas, ou seja, que o menor reagia mal e de forma agressiva quando era contrariado, que não respeitava os professores e que era agressivo para os colegas. ... Explicou ainda que na quinta-feira anterior havia chamado o arguido por causa do comportamento do ofendido, sendo que nessa reunião o arguido mostrou-se calmo e preocupado com o menor, sendo que este nunca referiu ter receio do arguido. Atestou que ficou muito surpreendida quando viu aquelas marcas, pois não estava à espera desse comportamento por parte do arguido.
19) De facto, o arguido admitiu a factualidade que lhe é imputada e que consta descrita nos pontos 1) a 8). Contudo, referiu que apenas pretendeu corrigir o menor e o comportamento daquele, dado que tinha um mau comportamento quer na escola, quer em casa e que a sua actuação foi no âmbito do dever de correcção ou no dever educacional.
20) Quanto à questão da medida da pena, invoca o recorrente a seu favor o mau comportamento do menor, um comportamento censurável do menor que, rotineiramente, tinha mau comportamento na escola, comprovado por toda a prova testemunhal que prestaram depoimento de forma isenta, coerente e segura, denotando razão de ciência e vivência directa dos factos que descreveram, e em casa, sendo que a conduta do menor, que se mostrava recorrente, impunha o exercício do poder/dever de correcção, e a testemunha mãe do arguido que referiu que o arguido já não sabia como lidar com o ofendido, pois os castigos também já não resolviam a situação.
21) Referiu que apenas pretendeu corrigir o menor e o comportamento daquele, dado que tinha um mau comportamento quer na escola, quer em casa e que a sua actuação foi no âmbito do dever de correcção ou no dever educacional.
22)   O menor EA… tinha mau comportamento na escola e em casa, assumindo uma postura agressiva com os colegas e professores e reagia mal sempre que era contrariado;
23)   O arguido esforçou-se por desenvolver a sua capacidade de se relacionar com o menor.
24)   O arguido descreve uma vivência familiar difícil com o jovem em causa, a quem apontou a manutenção regular de comportamentos desajustados, sobretudo em meio escolar, onde aliás terá tido a necessidade de manter acompanhamento psicológico.
25) O motivo determinante da conduta do arguido, conexionado com o mau comportamento do menor, um comportamento censurável que, rotineiramente, tinha mau comportamento na escola, comprovado por toda a prova testemunhal que prestaram depoimento de forma isenta, coerente e segura, denotando razão de ciência e vivência directa dos factos que descreveram e em casa, sendo que a conduta do menor, que se mostrava recorrente, impunha este exercício do poder/dever de correcção.
26)   O arguido revelou ter interiorizado a censurabilidade da sua conduta.
27)   O menor já não vive com o arguido.
28)   A falta de reiteração, ou seja, não foram registados comportamentos idênticos aos descritos na matéria de facto provada.
29)   Sopesa-se positivamente a falta de antecedentes criminais do arguido, apos este acto.
30) O arguido está integrado profissional, familiar e socialmente.
31) Ou seja, em situações limite como a dos autos e depois de esgotados os métodos educativos preferenciais, há que admitir-se que esta actuação que o arguido revelou ter interiorizado a censurabilidade da sua conduta, é compatível com a inconsciência da ilicitude ou com a ausência do elemento volitivo do dolo.
32) O arguido actuou sem dolo, por ter actuado com finalidade educativa, sem querer praticar o ilícito, sustentando que essa finalidade educativa abrangeu um poder de correcção que poderá incluir castigos corporais, porquanto dir-se-á que, no caso em apreço é manifesto que o Recorrente quis exercer o poder de correcção ou atingir uma finalidade educativa, depois de esgotados os métodos educativos preferenciais.
33) A evidência da existência dessas boas intenções resulta claramente da não reiteração de tal acto, da manutenção da postura educativa e pedagógica que teve para com o menor, bem como a preocupação do seu futuro, porquanto o arguido emite, não obstante a instauração deste processo judicial, um discurso ponderado e sereno sobre o jovem em causa, perspetivando com muita apreensão o regresso do mesmo para Angola ocorrido em Agosto de 2018, e onde parece vir a acentuar a manutenção de um padrão comportamental inadequado.
34) Em face do exposto, julga-se adequado à culpa do arguido, à prova produzida em sede de audiência de julgamento, e às faladas exigências de prevenção, aplicar-lhe a pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo.
35) Assim, entende-se adequada uma pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
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O recurso foi admitido na primeira instância.
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O MP na primeira instância respondeu ao recurso defendendo a sua improcedência, dado que:
1.ª – Por decisão proferida em 7 de Março de 2019 foi o arguido e recorrente condenado pela prática de um crime de maus tratos, previsto e punido pelo art. 152-Aº, n.º 1, al. a) do CP, na pena de um ano e dois meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano e dois meses, nos termos do art. 50º do CP.
2ª – Inconformado, o recorrente insurge-se contra o facto do Tribunal não ter situado a pena concreta no limite mínimo da moldura abstracta aplicada pelo tipo legal inctiminador contido no art. 152º-A, nº 1, al. a) do CP, violando desse modo, o disposto nos arts. 40º, nº 1 e 2, 70º e 71º do CP.
3ª – Em nosso entendimento, a sentença posta em crise, pelo recorrente, encontra-se devida e exaustivamente fundamentado, pelo que nenhum reparo se nos merece oferecer quanto à opção pela aplicação da pena concreta de um ano e dois meses de prisão, suspensa na sua execução.
4ª –Não se mostram, pois, violados os dispositivos supra referidos, como pretende fazer crer o recorrente.
5ª – Não padece a sentença recorrida de qualquer erro ou vício, devendo por isso manter-se o seu teor.
6ª – Em face do exposto, bem andou a MMª Juiza a quo ao decidir como decidiu na douta sentença- que integralmente subscrevemos.
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A Sr.ª PGA junto desta Relação emitiu parecer contante de fls. 216/217, acompanhando a resposta apresentada pelo magistrado do MP na primeira instância, acrescentando “que o Tribunal fez, ao contrário do que defende o recorrente, uma análise ponderada da culpa e das exigências de prevenção e respeitou inteiramente os critérios fixados nos arts 40, 70 e 71, do Código Penal”.
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Foi cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP.
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Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.
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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar artºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 410º nº 2 CPP.
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Questões a decidir:
- Se a pena aplicada é exagerada e desproporcional, violando os art.ºs 40.º, 71.º e 50.º do CP, devendo a mesma ser fixada em 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
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Conhecendo e decidindo:
O Acórdão da primeira instância decidiu a matéria de facto (que se encontra definitivamente assente pois não foi impugnada nem se verifica qualquer dos vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP) nos seguintes termos:
1) EJ… nasceu em ….04.2005, e é filho de EF… e de SF….
2)Os pais do menor residem Angola.
 3) O arguido é primo do menor EJ….
 4)O arguido reside com o menor, em Vialonga, e encontra-se encarregue de cuidar deste e zelar pela sua educação e bem-estar.
5)O arguido, em data não concretamente apurada do ano de 2016, desferiu, com um chinelo, pancadas nas mãos do menor.
6)No dia 3 de março de 2018, no interior da casa onde habita com EJ…, o arguido deu diversas pancadas nas mãos e pulsos do menor, com o auxílio de uma mangueira.
7)Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, EA… sofreu traumatismo do punho direito, e lesões na face anterior do ante braço, e lesão da região anterior do punho esquerdo, que lhe determinaram 3 dias de doença.
8)Em ambas as ocasiões, o arguido agiu de tal forma como modo de castigar o menor por mau comportamento.
9)O arguido agiu com o propósito concretizado de atingir EJ… na sua integridade física, bem conhecendo a sua idade, e sabendo que este tinha 12 anos aquando da prática dos factos no ano de 2018.
10)Ao atuar da forma como o fez, sabia o arguido que estava a lidar com uma criança indefesa, e que a sua atuação lhe causaria perturbações, capazes de pôr em causa o seu harmonioso desenvolvimento físico e psíquico.
11)Fez o arguido uso do seu ascendente sobre o menor, do facto de lhe ter EA… sido entregue pelos progenitores para dele cuidar, em sua substituição.
12)Cabia ao arguido cuidar e zelar pelo bem-estar do menor, contribuir para o seu são desenvolvimento psicoafetivo, num ambiente harmonioso e sadio.
 13)O arguido, que atuou de forma livre e deliberada, perfeitamente consciente do ilícito da sua conduta, bem sabia que com a mesma causava mal-estar físico e psíquico ao menor.
Mais se provou que:
14)O menor EA… tinha mau comportamento na escola e em casa, assumindo uma postura agressiva com os colegas e professores e reagia mal sempre que era contrariado;
Provou-se ainda que:
15)O arguido é oriundo de Angola, é o mais velho dos três irmãos, mantendo-se inserido naquele país até aos 10 anos de idade, momento em que veio para Portugal, onde os progenitores já se encontravam organizados há alguns anos. Esta família era de média condição sócio económica, sendo ambos os progenitores trabalhadores assalariados.
16)O arguido sinaliza a vivência de uma dinâmica familiar, por vezes complexa, sobretudo após o pai ter registado um grave acidente de viação, em virtude do qual permaneceu em coma durante algum tempo.
17) Desde então, este familiar terá apresentado uma personalidade alterada, mais irascível, e que acabou por conduzir à separação do casal quando o arguido era adolescente.
18) O arguido está habilitado com o 12º ano de escolaridade, após conclusão de um curso de “desenhador projetista” que frequentou no CENFIC (Centro de Formação Profissional da Industria da Construção Civil e Obras Públicas), em Lisboa. Globalmente o arguido avaliou o seu trajeto escolar de modo positivo, ainda que o mesmo tenha decorrido de forma interpolada com alguns períodos em que esteve inserido no mercado de trabalho
19)Neste âmbito, ainda antes de ingressar na referida instituição, o arguido desenvolveu atividade como operador de armazém e como funcionário da empresa CT…, onde esteve por vários períodos de curta duração. O arguido trabalhou ainda de modo mais regular na empresa “Su…”(lavandaria industrial para unidades hospitalares), onde permaneceu cerca de 3 anos.
20)Já em 2102, e com o objetivo de dar continuidade às habilitações adquiridas no CENFIC, regressou a Angola, tendo-se então organizado junto dos familiares da eventual vítima deste processo judicial. O arguido permaneceu no seu país até ao final de 2015, voltando então a Portugal, segundo indica, devido ao acentuar da crise económica naquele país bem como ao fato de ter então sido pai, bem como à ausência de documentação necessária para poder permanecer naquele país.
21)Em Portugal voltou a integrar o seu núcleo familiar de referência, onde o menor em questão já estava inserido, alegadamente desde 2013. Neste âmbito, o arguido descreve uma vivência familiar difícil com o jovem em causa, a quem apontou a manutenção regular de comportamentos desajustados, sobretudo em meio escolar, onde aliás terá tido a necessidade de manter acompanhamento psicológico. O arguido emite, não obstante a instauração deste processo judicial, um discurso ponderado e sereno sobre o jovem em causa, perspetivando com muita apreensão o regresso do mesmo para Angola ocorrido em Agosto de 2018, e onde parece vir a acentuar a manutenção de um padrão comportamental inadequado.
22)Em Portugal, retomou o seu trajeto laboral, tendo permanecido um ano, aproximadamente, inserido na empresa de transporte logístico “Os Ur…”. Entretanto, e como forma de completar as suas competências, concluiu uma outra formação profissional na área da “Fisioterapia”.
23)O arguido tem uma filha com 2 anos de idade, inserida no respetivo agregado materno. O arguido mantém contato semanal com a descendente.
24)O arguido reside com o seu agregado familiar de origem em Vialonga. Esta família apresenta um relacionamento organizado e apoiante.
25)No plano profissional, o arguido ingressou em Maio de 2018 na empresa “A.G…..”, tendo celebrado contrato semestral e auferindo uma média de 700 euros mensais. Paralelamente, trabalha na equipa de massagistas de uma coletividade futebolística em Santa Iria da Azóia. Trata-se no entanto de uma atividade prestada a título quase gracioso, tendo apenas como objetivo completar os conhecimentos adquiridos na formação já sinalizada.
26)O quadro global material do seu agregado familiar foi percecionado como suficiente face às despesas quotidianas da família.
27)Na entrevista realizada, apresentou um discurso adequado e normativo, com capacidade critica para avaliar a conformidade dos seus comportamentos e sentido de descentração. O envolvimento nesta situação judicial é por si sentido com algum constrangimento ainda que devidamente contextualizado nas circunstâncias então experienciadas no seio do agregado familiar.
28)O arguido vive com a mãe e com o irmão em casa arrendada;
29)Ajuda nas despesas domésticas com a quantia de € 200,00;
30)Tem 1 filha, com 2 anos de idade, que vive com a progenitora, sendo o arguido que suporta o pagamento do infantário no valor de € 210,00;
31)Possui o 12.º ano de escolaridade;
32)O arguido foi condenado no processo n.º …/… por decisão transitada em julgado em 02.03.2009 pela prática em 07.09.2008 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, tendo sido aplicada uma pena de multa;
33)O arguido foi condenado no processo n.º …/… por decisão transitada em julgado em 04.03.2009 pela prática em 02.04.2004 de um crime de falsificação de documento, tendo sido aplicada uma pena de multa;
34)O arguido foi condenado no processo n.º …/… por decisão transitada em julgado em 29.09.2010 pela prática em 08.09.2007 de um crime de ofensa à integridade física, tendo sido aplicada uma pena de multa;
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B) FACTOS NÃO PROVADOS:
Da instrução e discussão da causa, e com interesse para a respectiva decisão, resultou não provado que:
a) A factualidade descrita no ponto 6) ocorreu no dia 4 de março de 2018;
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C) MOTIVAÇÃO DA DECISAO DE FACTO:
O tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos considerados provados e não provados na ponderação do conjunto probatório produzido em audiência de discussão e julgamento analisado de uma forma crítica e com o recurso a juízos de experiência comum.
O arguido admitiu os factos constantes do ponto 1) a 8), explicando que actuou desse modo de forma a corrigir o comportamento do arguido, uma vez que o mesmo tinha mau comportamento quer na escola, quer em casa. Explicou que a primeira situação ocorreu depois de ter recebido um telefonema da escola no qual lhe disseram que o ofendido tinha levado uma faca para a escola e que tinha andado atrás de um colega, sendo que actuou da forma descrita no ponto 5) para corrigir o comportamento do ofendido.
Esclareceu que na segunda situação houve várias situações de mau comportamento na escola, pois foi chamado na quarta-feira anterior porque tinha várias faltas disciplinares e não mostrava a caderneta, na quinta-feira foi também chamado à escola porque o menor foi malcriado com a professora e na sexta-feira foi mandado para casa porque tinha atacado um colega com um x-acto. Salientou que na sexta-feira, dada a gravidade da situação, não quis falar com o ofendido, mas que no sábado acordou por causa de uma discussão entre aquele e a sua mãe, pelo que chamou-o e perguntou o que se passava, tendo o ofendido respondido de forma ríspida e com falta de respeito. Explicou que nessa altura “passou-se” atenta a forma como o menor lhe respondeu e também por causa do que tinha acontecido no dia anterior e desferiu-lhe diversas pancadas com uma mangueira nas mãos, sendo que admitiu ter desferido entre 3 a 5 pancadas em casa mão. Admitiu que se excedeu, que foi um excesso da sua parte, mas que aquilo que pretendia era efectivamente corrigir o comportamento do menor.
A testemunha MC…, professora e que fazia parte da direcção da escola na data da prática dos factos, explicou a situação ocorrida na sexta-feira anterior à factualidade ocorrida no ponto 6) em que o menor cortou um colega com um x-acto e em que foi à direcção que decidiu mandar o menor para casa naquele dia. Relatou que o ofendido estava muito preocupado com a reacção que o arguido ia ter e pediu-lhe para não telefonar para ele, sendo que inclusivamente fez um gesto com uma tesoura como se quisesse espetá-la no pescoço, o que a deixou preocupada. Contudo, falou com o arguido sobre a situação e manteve com o mesmo uma conversa normal ao telefone, sendo certo que o menor depois de falar ao telefone com o arguido acalmou também e posteriormente foi para casa. Relatou que na segunda-feira seguinte a professora do menor E… ligou-lhe a dizer que ele tinha os braços marcados e que tinha sido agredido pelo arguido com uns cabos. Referiu que nessa altura viu o menor que tinha efectivamente vergões nos dois braços, junto aos pulsos, pelo que sinalizou a situação à CPCJ e o menor foi ao hospital para ser observado. Confirmou ainda que o menor tinha mau comportamento na escola e que sempre que era chamado à atenção reagia mal e vitimizava-se. Salientou que o arguido tinha sido chamado à escola na quarta-feira anterior a esta situação por causa do comportamento do menor.
A testemunha MJ…, mãe do arguido, explicou o comportamento que o menor tinha na escola e as queixas que recebiam dos professores, pois o mesmo era bastante agressivo com os colegas e tratava mal os professores, tendo chegado a levar uma faca para a escola. Salientou que também em casa era agressivo, pois sempre que era contrariado reagia mal. Referiu que o arguido já não sabia como lidar com o ofendido, pois os castigos também já não resolviam a situação. Acrescentou que não estava em casa quando a factualidade descrita no ponto 6) ocorreu.
A testemunha MR…, psicóloga na escola que era frequentada pelo menor, confirmou que o ofendido tinha mau comportamento na escola e com os colegas, que reagia mal, de forma agressiva quando era contrariado e que demonstrava ter carência afectiva por estar a viver longe da mãe. Referiu que a directora da escola lhe relatou o que se tinha passado na sexta-feira e como o ofendido tinha reagido ao facto de terem de contactar o encarregado de educação, o ora arguido, situação que a deixou preocupada, pois julgou que aquela reacção teria sido um acto de desespero do menor. Atestou que não viu as marcas nos braços do menor, nem falou com ele sobre esse assunto.
A testemunha HS…, que foi directora de turma do ofendida, explicou o comportamento daquele na sala de aula e com os colegas, confirmando aquilo que foi referido por todas as testemunhas, ou seja, que o menor reagia mal e de forma agressiva quando era contrariado, que não respeitava os professores e que era agressivo para os colegas. Relatou que na segunda-feira, dia 5 de março de 2018, o menor disse-lhe que não conseguia escrever o sumário porque lhe doíam as mãos, sendo que quando se aproximou do mesmo viu que tinha efectivamente as duas mãos inchadas. Explicou que o menor lhe disse que tinha sido o “tio” (o arguido) que lhe tinha batido e quando levantou a camisola viu várias marcas idênticas nos braços, junto aos pulsos, cerca de 5 marcas em cada um. Salientou que o menor verbalizou que tinha sido agredido com um fio. Explicou ainda que na quinta-feira anterior havia chamado o arguido por causa do comportamento do ofendido, sendo que nessa reunião o arguido mostrou-se calmo e preocupado com o menor, sendo que este nunca referiu ter receio do arguido. Atestou que ficou muito surpreendida quando viu aquelas marcas, pois não estava à espera desse comportamento por parte do arguido.
O Tribunal atendeu ainda ao acervo documental junto aos autos, designadamente documentos de fls. 3 a 5, 13 a 47, documentação clinica de fls. 48 a 49 e de fls. 86 a 88, documentos de fls. 50 a 67 e relatório médico-legal de fls. 117 a 119.
Ora, tendo em consideração a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, designadamente a conjugação das declarações do arguido com o depoimento das testemunhas inquiridas em julgamento e ainda o acervo documental junto aos autos, o tribunal logrou criar a convicção segura de que os factos ocorreram conforme descritos na factualidade dada como provada.
De facto, o arguido admitiu a factualidade que lhe é imputada e que consta descrita nos pontos 1) a 8). Contudo, referiu que apenas pretendeu corrigir o menor e o comportamento daquele, dado que tinha um mau comportamento quer na escola, quer em casa e que a sua actuação foi no âmbito do dever de correcção ou no dever educacional.
Porém, e no que respeita à factualidade vertida nos pontos 9) a 13), o tribunal valorou a conjugação das regras de experiencia comum com a prova produzida em audiência de julgamento e demais factualidade dada como provada, cumprindo notar que o meio utilizado pelo arguido para corrigir o menor – uma mangueira - foi desproporcionado e excessivo, sendo evidente para o mesmo que actuou com a intenção de atingir a integridade física do menor, sabendo que o mesmo apenas tinha 12 anos de idade e que, nessa medida estava a lidar com uma criança indefesa e que desta forma lhe causava mal-estar físico e psíquico.
De facto, o meio empregado pelo arguido não foi adequado, pois aquilo que seria admissível no âmbito do seu poder/dever de correcção era eventualmente dar uma palmada ao menor, para o repreender, com a sua própria mão e não várias palmadas com a utilização de um objecto que, só por si, acarreta uma brutalidade desnecessária, exagerada e desproporcionada, susceptível de provocar não só dores físicas de alguma intensidade, mas também uma lembrança psicológica de verdadeiro temor
Aliás, o próprio arguido admitiu que se excedeu na situação ocorrida em Março de 2018, o que está demonstrado atentas as lesões físicas que tal actuação provocou no menor e que estão comprovadas no relatório pericial médico-legal, não se podendo olvidar que tais lesões eram visíveis dois dias depois dos factos terem ocorrido, conforme resultou do depoimento da testemunha HS… e MC…, o que demonstra a violência e a força que foi empregue quando foram desferidas essas pancadas.
Com efeito, a factualidade dada como provada resultou desse modo por ter sido manifesto que existiu um excesso por parte do arguido e que a sua actuação ultrapassou os limites do dever de correcção que é conhecido e que deve ser aplicado ao menor, não obstante o mau comportamento daquele, que ficou também demonstrado em julgamento e resultou provado no ponto 14).
De referir que as lesões descritas no ponto 7) resultaram demonstradas face ao teor da documentação clinica junta aos autos e ao relatório pericial médico-legal.
A matéria atinente aos antecedentes criminais dos arguidos resultou demonstrada face ao teor do certificado de registo criminal junto aos autos e no que concerne às condições socioeconómicas do mesmo atendeu-se às suas declarações conjugadas com o relatório social junto aos autos.
O facto não provado resultou desse modo por ter sido atestado pelo arguido que os factos em causa ocorreram no sábado e não no domingo”.
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Através do presente pretende o arguido/recorrente que a pena que lhe foi aplicada pela prática de um crime de maus tratos, p.p. art.º 152º-A, n.º 1, al. a) do Código Penal, seja diminuída para 1 ano de prisão suspensa na sua execução por igual período, porquanto a que foi determinada, 1 ano e 2 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, é, em seu entender, excessiva e desproporcional.
Para tanto invoca que o ofendido tinha mau comportamento na escola e em casa; Assumia uma postura agressiva com os colegas e professores, tendo inclusivamente necessidade de ter acompanhamento psicológico; O arguido interiorizou a censurabilidade da sua conduta; O ofendido já não vive consigo; A falta de reiteração, os antecedentes criminais do arguido respeitam a factos praticados há muito tempo atrás, o arguido está integrado profissional, familiar e socialmente; O arguido atuou sem dolo pois atuou com finalidade educativa, sem querer praticar o ilícito, mas apenas quis exercer o poder-dever de correção, sendo a evidência dessa boa intenção o facto de não ter reiterado o seu comportamento.
O tribunal a quo realizou a subsunção dos factos ao direito tendo concluído que os factos praticados pelo arguido preenchem o tipo legal de crime de maus tratos, p.p. art.º 152º-A, n.º 1, al. a) do Código Penal e condenou-o na pena de 1 ano e dois meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Os factos apurados não foram colocados em crise pelo arguido, que não impugnou de facto a decisão da primeira instância, nem a própria qualificação jurídica. Deste modo, é com surpresa que se verifica que o arguido defenda nas suas alegações que não agiu com dolo e tente justificar o seu comportamento. Assim, abordaremos igualmente estes dois aspetos, ainda que de forma sintética dada a simplicidade da análise tendo em conta a matéria de facto apurada.
Na verdade, da simples leitura da matéria de facto provada impõe-se concluir que o arguido agiu com dolo. Na verdade, está provado que o mesmo conhecia a ilicitude da sua conduta, tal como está provado que o mesmo quis praticar os factos descritos na pessoa do jovem E…. Ou seja, estão apurados quer o elemento intelectual (no sentido de perceção antecipada do facto que preenche um tipo de crime) quer o volitivo do dolo (no sentido de que tem de haver uma resolução voluntária).
O arguido quis bater no ofendido. Isso mesmo resulta da tese que defende. Assume o seu comportamento embora o tente justificar.
E nem se diga que não conhecia a ilicitude da sua conduta, pois igualmente não é isso que resulta da matéria de facto apurada, a qual, porque não enferma do vício a que se refere o art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP e não foi impugnada nos termos previstos no art.º 412.º, n.º 3, ambos do CPP, está definitivamente assente.
O argumento utilizado de que apenas pretendia através do castigo corrigir o comportamento do ofendido poderia, quando muito, servir de justificação para o ato, nunca para afastar o dolo. Este verifica-se na sua forma mais grave, direta. A matéria de facto impõe que assim se entenda. Mas mesmo que assim não fosse, ainda que a tese do arguido colhesse, sempre se verificaria dolo necessário. Mas não colhe esta versão, nem serve este argumento como de justificação.
Os actos praticados pelo arguido são inaceitáveis.
E não. Não se podem enquadrar no poder-dever de correção. Aliás este poder dever de correção foi eliminado do nosso ordenamento jurídico civil[2] já em Novembro de 1977!
Por força das recomendações da ONU e exigências do Conselho da Europa, que foi firmando jurisprudência sólida, os direitos da criança mais não são que direitos humanos adaptados à sua especial condição CRIANÇA, verdadeiro sujeito de direitos. Os pais e educadores têm para com as suas crianças a responsabilidade de os educar através do recurso a formas e modelos educacionais positivos onde predomine o empoderamento, o incentivo e o (bom) exemplo. Na sequência destes novos desenvolvimentos a própria lei 61/2008 de 31 de outubro substituiu a expressão poder paternal por responsabilidades parentais, colocando a criança no seu devido lugar na família e enquanto titular de direitos face aos próprios pais/guardião de facto e educadores.
A criança tem o direito e os pais e educadores ou quem tenha a guarda de facto têm o dever de lhe impor regras e limites, porquanto os mesmos são estruturantes da sua personalidade. Mas em caso algum estas regras podem incluir castigos corporais. Castigos não são regras. São punições.
E nem se argumente “que já assim foi”. Pois não pode ser agora, nem o podia no passado (não obstante os usos e costumes vigentes) pois consubstancia um tratamento desumano e degradante violador dos direitos humanos da criança[3].
“O Comité vem reiteradamente deixando claro nas suas observações conclusivas que o uso do castigo físico não respeita a dignidade inerente à criança nem os limites estritos da disciplina…”[4].
Violência não para violência. Nem educa. Só transmite modelos desadequados, desumanos e degradantes inculcando simultaneamente sentimentos de culpabilização desorganizam e marginalizam cada vez mais o maltratado.
Tudo isto assume maior gravidade, ainda, quando a violência é exercida sobre uma criança. Não só pelo sofrimento que lhe inflige e que prejudica o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade mas também pela mensagem e modelo educacional que lhe transmite.
A este propósito veja-se o Ac. da Relação de Coimbra de 29-01-2009, Relator Jorge Raposo, in www.dgsi.pt .
Em conclusão: não existe qualquer justificação para a prática do ato.
Nem existe qualquer bondade ou boa intenção na sua prática, ao contrário do que (surpreendentemente) defende o arguido.
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Da Medida da pena.
No entender do arguido a pena que lhe foi aplicada é excessiva. Analisemos:
O crime que o arguido pelo qual o arguido foi condenado é punido com uma pena com pena de prisão de um a cinco anos (art.º 152.º-A, n.º 1, al. a) do CP).
O tribunal a quo aplicou a pena de um ano e dois meses, justificando a determinação da pena concreta do seguinte modo:
Definido o enquadramento jurídico da conduta do arguido, há que determinar a medida da pena a aplicar ao mesmo.
O ilícito penal em apreço é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
O art. 40º do Código Penal estabelece as finalidades da punição, consagrando que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e estabelecendo um limite à determinação da medida da pena quando estatui que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Assim, é entre os limites máximo e mínimo fixados na lei que deve ser determinada a medida concreta da pena, apelando ao critério da culpa, com a sua função fundamentadora e limitadora, e aos critérios de prevenção – especial e geral.
“A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é encarada e interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral), será sempre a finalidade principal a prosseguir no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade das normas violadas, e o máximo, que a culpa do agente consente: entre esses limites, no equilíbrio entre as prevenções (geral e especial) e no respeito a conferir à culpa (no já adequado a ela, no ainda adequado a ela, e no correctamente ajustado a ela), se satisfarão as finalidades das penas” – Ac. STJ de 11/11/1999, Proc. nº 959/99, citado por Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, in Código Penal Anotado, 1º volume, Editora Rei dos Livros, 2002, pág.575.
 De facto, a determinação concreta da pena acha-se, antes de mais, em função da culpa do agente, das exigências de prevenção especial, ligadas à reinserção social e a fins de prevenção geral, pugnando pela defesa da sociedade com consequente contenção de criminalidade. A estes motores de determinação da medida da pena acrescem todos os outros que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente de modo a proporcionar uma dupla função à pena a aplicar: por um lado, a mesma tem de ser justa e adequada ao caso concreto, por outro lado, tem de ser suficiente para desmotivar a generalidade das pessoas de seguirem ou enveredarem por comportamentos semelhantes.
Por outro lado, estabelece o art. 71º do C.P. que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº1), devendo atender o tribunal, na determinação concreta da pena, “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (nº2).
Nestes termos, atentas as disposições conjugadas dos art.s 40º e 71º do Código Penal, são de considerar os seguintes factos:
- A ilicitude da conduta é assinalável, atendendo à actuação do arguido, à idade da vítima e ao objecto utilizado para molestar fisicamente aquele, não se podendo olvidar, contudo, o mau comportamento do menor e a gravidade desse mesmo comportamento que esteve subjacente à actuação do arguido;
- O dolo é intenso, assumindo a forma de dolo directo, já que o arguido pretendeu o fim por si alcançado;
- O arguido sofreu três condenações pela prática de crime de condução sem habilitação legal, falsificação de documento e ofensa à integridade física, mas são condenações que ocorreram há vários anos, o que tem de ser valorado pelo Tribunal;
- O arguido está inserido social, profissional e familiarmente;
- O arguido admitiu a generalidade dos factos que lhe são imputados, colaborando para a descoberta da verdade material;
Ponderados todos estes elementos, não podemos deixar de assinalar, ao nível da prevenção geral, as prementes necessidades de pôr cobro a comportamentos do tipo do assumido pela arguida, consabido que o fenómeno de maus tratos constitui uma violação dos direitos humanos, sendo um problema especialmente complexo, com facetas que entram na intimidade das famílias e das pessoas, agravado por não ter, regra geral, testemunhas, e de ser exercida em espaços privados.
É urgente desincentivar eficazmente este tipo de comportamento, que causa alarme e insegurança na comunidade, por colocar frequentemente em causa valores de particular relevo, como a vida ou a integridade física, e por via disso se revestir de acentuada perigosidade.
Pelo exposto, entende este tribunal, tendo sempre em conta o limite da culpa do arguido e as circunstâncias em que os factos ocorreram, não obstante as considerações de prevenção geral tecidas, condenar o mesmo com uma pena próxima do limite mínimo, ou seja, com uma pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, a qual se mostra justa e adequada.”
Em nosso entender a pena aplicada não se mostra excessiva. Antes pelo contrário. Sendo a moldura penal abstratamente aplicável de um a cinco anos de prisão, a pena que foi fixada, apenas dois meses acima do limite mínimo, afigura-se-nos bastante benevolente.
Com efeito, estamos perante uma situação em que a criança estava a viver com o arguido, num país diferente do seu e sem os seus pais, que residiam em Angola.
Sofreu lesões em consequência da atuação do arguido.
Esta atuação do arguido repetiu-se por duas vezes, como se verifica da matéria de facto apurada, e sempre com o auxílio de objetos: chinelo e mangueira.
Significa assim que o tribunal a quo ponderou (muito) a favor do arguido todos os elementos que se encontram na decisão recorrida não se afigurando relevantes os argumentos invocados pelo arguido, porquanto alguns deles são se encontram demonstrados nos autos, como seja que o ofendido teve inclusivamente necessidade de ter acompanhamento psicológico, nem que o arguido interiorizou a censurabilidade da sua conduta e que não reiterou o seu comportamento.
Dito isto, a pena não se afigura excessiva. Se é desadequada é por defeito. Pois este tipo de práticas, pela dimensão dos riscos e das consequências que comporta faz surgir, neste domínio, uma particular saliência das finalidades de prevenção geral – prevenção de integração para recomposição dos valores afetados e para a afirmação comunitária da validade das normas que, punindo este tipo de crime, especialmente quando praticados sobre crianças, protegem a infância, a integridade física e emocional da criança e a família em si mesma.
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Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Lisboa, em:
Julgar não provido o recurso interposto por EI…, mantendo-se na íntegra a decisão proferida.
b) Custas pelo recorrente fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça.

Lisboa, 5 de junho de 2019

[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e  na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271);  o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363. 

[2] No Cód. Civil de 1966 encontrava-se consagrado no art.º 1884.º, tendo sido retirado do Código Civil com a revisão operada pelo DL n.º 496/77, de 25 de Novembro, sendo especialmente relevantes os pontos 3 e 4 da Exposição de Motivos deste diploma.
[3] V. Manual de legislação europeia sobre os Direitos da Criança, pag. 124 (disponível in https://www.echr.coe.int/Documents/Handbook_rights_child_POR.PDF).
Comentário Geral n.º 8 (2006), do Comité dos Direitos da Criança (2007), ONU: O direito da criança à proteção contra os castigos corporais e outras formas de penas cruéis ou degradantes (artigos 19.º; 28, parágrafo 2; e 37.º, inter alia), CRC/C/GC/8, 2 de março de 2007.
Estratégia do Conselho da Europa sobre os Direitos da Criança (2016-2021)
Albuquerque, Catarina, As Nações Unidas e a Protecção das Crianças contra a Violência, disponível in http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/crc_and_vac.pdf
A abolição dos castigos corporais infligidos às crianças, disponível https://rm.coe.int/16806a456a..
Alves, Diego Gomes, Violência física contra crianças: uma análise jurídica e crítica acerca do limite entre e o poder‑dever de educar e a prática do delito de maus tratos (artigo 152‑A do Código Penal).
Convenção sobre os Direitos da Criança, tradução das Observações finais sobre o terceiro e quarto relatórios periódicos de Portugal, disponível in http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/cdc_recomendacoes_a_portugal.pdf
[4] COMENTÁRIO GERAL N. 8 (2006), O direito da criança à proteção contra o castigo físico e outras formas cruéis ou degradantes de castigo (artigos 19, 28(2) e 37, inter alia), Disponível in http://www.naobataeduque.org.br/documentos/d9891e21b98d60dfce7318f013c0091d.pdf