Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1004/09.3TBAGH.L3-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
HERANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1Numa acção de reivindicação apesar do incidente de habilitação dos herdeiros do primitivo réu, não se verifica a transmissão das obrigações, rectius, das situações jurídicas passivas que os autores, na petição inicial, imputavam ao primitivo réu: a ocupação, por este, sem título e por isso ilícita do prédio e, a responsabilidade pelo prejuízo que lhes advém dessa ocupação ilícita do terreno.

2 Se a acção não foi instaurada contra a “herança” do primitivo réu, com a morte deste, essa “herança” não é parte na acção e, por isso, nela não pode nessa ser condenada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


I-RELATÓRIO.


1AMG e mulher, LMG, instauraram acção declarativa, com processo sumário, contra JCF (entretanto falecido e sendo habilitados os seus filhos, JVF e, JEF), pedindo:

- Se declare os autores proprietários do prédio rústico, sito na…, freguesia de…, Concelho de…, composto de dezanove ares …, inscrito na matriz sob o artº …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … nº …;
- Condenar-se o réu a reconhecer os autores como proprietários do prédio;
- Condenar-se o réu no pagamento da quantia de 2 000€ relativos a dois anos de ocupação indevida do prédio e em 1 000€ por cada ano que perdurar essa ocupação ou duodécimos dessa verba até à entrega definitiva, desde a citação acrescida de juros.

Alegaram, em síntese, que adquiriram o mencionado prédio por escritura de compra e venda de 05/03/2007; os vendedores eram proprietários do prédio há mais de 20 anos; registaram a seu favor a aquisição do prédio. Quando pretenderam instalar-se no prédio, foram expulsos pelos filhos dos réus que afirmavam que o prédio era do pai deles, ora réu; a exploração do prédio permite um rendimento de 1 000€/ano.

2Citado, o réu contestou.
Invocou que desde 1958 trazia o prédio de renda até 1994, altura em que passou o seu filho JVF a explorar o prédio mediante pagamento de renda, pelo que ele, réu, é parte ilegítima.

3Por óbito do réu, por sentença de 27/05/2014, foram habilitados os seus filhos JVF e, JEF.

4Em sede de despacho saneador, datado de 15/05/2015, foi oficiosamente julgada procedente a excepção dilatória de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir e, em consequência, os réus habilitados absolvidos da instância.
Inconformados, os autores interpuseram recurso dessa decisão e, esta Relação, por acórdão de 07/04/2016, revogou essa decisão e ordenou o prosseguimento dos autos.

5Posteriormente, foram indeferidas nulidades processuais invocadas pelos habilitados e foi proferida sentença a julgar a acção procedente, com reconhecimento dos autores como proprietários do prédio e condenados os réus habilitados a reconhecerem essa propriedade e a restituírem-na aos autores bem como condenados a pagarem 2 000€ de indemnização por ocupação indevida do prédio e ainda em 1 000€ de indemnização por cada ano em que se mantiverem na posse do prédio até à data da restituição.

6Inconformados os réus habilitados interpuseram recurso desse indeferimento de nulidades, bem como da sentença.
Por acórdão desta Relação, de 07/11/2019, relatado pelo ora relator, foi decidido:

-Anular os seguintes actos processuais:
- Despacho que considerou sem efeito a contestação apresentada pelo primitivo réu e que considerou confessados os factos alegados pelos autores;
- A sentença proferida na sequência desse despacho:
-Ordenada a repetição dos seguintes actos:
-Notificação aos réus habilitados para apresentarem requerimentos probatórios;
-Realização do despacho saneador, conforme determinado pelo acórdão da Relação de 07/04/2016.

7Em 16/05/2020 foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade invocada pelo primitivo réu.
Foram enunciados o objecto do litígio e os temas de prova.

8Realizada a audiência final, com data de 18/11/2020,foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:

IV―DECISÃO
Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente, e, em consequência:
a)-Declaro o autor AMG, casado com LMG, como dono e legítimo proprietário do prédio rústico, sito …, freguesia de …, concelho de …, que se compõe de dezanove ares …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número …, registada a aquisição pela inscrição G- um,
b)-Consequentemente, decide-se condenar a herança aberta por óbito de JCF, aqui representada por JVF e JEF, a reconhecer o autor AMG, casado com LMG, titular desse direito;
c)-No mais, absolvo a herança aberta por óbito de JCF, aqui representada por JVF e JEF, do pedido.
*
Custa da acção por ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 2/3 para os Autores e 1/3 para o Réu – cfr. artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.”

9Inconformados, os réus habilitados interpuseram recurso dessa decisão, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A.Não pode JCF, Réu na acção por (errada) configuração dos Autores, sem qualquer interesse directo em a contradizer na data da sua interposição (22/10/2009), ou até a herança (aberta ou aceite) pelo facto da sua morte (ocorrida na pendência da acção, em 09/01/2012), ser condenado no pedido (qualquer dos formulados na PI).
B.Muito embora o haja aflorado na fundamentação que desenvolve em “B – DO DIREITO DE OBTER A RESTITUIÇÃO DO PRÉDIO” e “C - DO DIREITO DOS AUTORES A SEREM RESSARCIDOS PELO RÉU”, a sentença deveria pronunciar-se em definitivo sobre a excepção de ilegitimidade arguida pelo Réu JCF na sua contestação e depois de ter dado como provados os factos C. e D. da sua “Fundamentação de Facto”.
C.Desde este instante cessou para a Mª Juíza a quo a dúvida de saber por quem e a que título era explorado o prédio referido em A. e B. dos Factos Provados.
D.E que tal se fazia por JVF, filho do Réu, “em nome próprio”, desde o ano de 1994, e já não pelo Réu JCF que o havia deixado por esta mesma data.
E.Na data de 22/10/2009 (data da entrada da acção em juízo), e até já antes dela, era JVF quem explorava o prédio, em nome e interesse próprios, pelo que é o Réu/recorrente JCF parte ilegítima nesta acção.
F.A sentença, na base da prova produzida, que afasta em definitivo as dúvidas que poderiam ter subsistido até à fase do saneador, usando dos mesmos fundamentos que ali determinaram a improcedência da excepção arguida, deve pronunciar-se sobre a excepção de ilegitimidade colocada pelo Réu.
G.Não o fazendo a sentença viola, entre outros, o disposto nos artigos 6º, 30º e ss, 278º, nº 1, alínea d), 576º, nº 2, 577º, alínea e), 578º, 607º, nº 2, 608º e 615º, nº 1, alínea d) do nCPC.
H.A legal consequência da apreciação da excepção de ilegitimidade do Réu/recorrente só pode ser a de abstenção do conhecimento dos pedidos, in totum, absolvendo-se o Réu da instância, tal como decorre do disposto no nº 1 do artigo 278º e nº 2 do artigo 576º do nCPC.
I.Não se pronunciando a sentença definitivamente sobre a excepção de ilegitimidade do Réu fica ferida de nulidade, por omissão de pronúncia sobre uma questão processualmente relevante, que deve ser conhecida antes de tudo o resto, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica, tal como é previsto nos artigos 608º e 615º, nº 1, alínea d) do nCPC.
J.Não pode a sentença condenar no pedido o Réu JCF e/ou a herança aberta pelo facto da sua morte (ocorrida na pendência da acção, em 09/01/2012), nos termos em que o faz em a) e b) de “IV-DECISÃO”.
K.Aplicando o direito aos factos provados a sentença DECLARA o autor como dono e legítimo proprietário do prédio referido em A. e B. dos Factos Provados; CONDENA a herança aberta por óbito de JCF a reconhecer o autor titular desse direito; ABSOLVE a herança aberta por óbito de JCF do mais pedido e, finalmente, condena o Réu em custas de parte na proporção de 1/3.
L.Mal andou a sentença, também, nesta singularidade de assim decidir o(s) pedido(s) sem conter os fundamentos de facto e de direito que os sustentem ou, até, de manter alguns fundamentos em manifesta oposição com a decisão, sendo também por isso ambígua.
M.Sendo a declaração do autor como dono e legítimo proprietário do prédio referido em A. e B. dos Factos Provados a resposta a um pedido formulado pelos Autores/recorridos na sua PI contra o Réu JCF, que é parte ilegítima na acção, manda a coerência (de fundamentação e de decisão) que a consequência a retirar na sentença seja a da absolvição do Réu da instância e a abstenção do conhecimento do pedido.
N.Pois é essa a natural decorrência do que sobre esta matéria dispõem os artigos 278º e 576º e ss do nCPC.
O.A sentença não deve fundamentar de direito como o faz em “B - DO DIREITO A OBTER A RESTITUIÇÃO DO PRÉDIO”, sem que, mutatis mutandis, aplique o mesmo raciocínio lógico em relação a todos os pedidos formulados pelos Autores/recorridos na acção.
P.A sentença não só distingue (a apreciação dos pedidos) como vai (contraditoriamente) mais longe e estende os efeitos do decidido sobre a declaração do domínio e legitimidade sobre o prédio à herança aberta por óbito de JCF, representada por JVF e JEF, condenando-a a reconhecer o autor/recorrido como o titular desse direito.
Q.Trata-se de um facto inesperado (e até contraditório) da mesma sentença, posto que nem a “herança” é parte na acção, nem existe no processo o conhecimento, de facto, de que a mesma se encontra (ou não) aberta (ou jacente) ou, até, que os habilitados JVF e JEF ajam em nome dela na acção ao abrigo de um qualquer poder de representação.
R.Nem a “habilitação” ocorrida na pendência da acção, pelo facto da morte do Réu JCF, releva para este efeito uma vez que esta se destinou tão só a permitir o prosseguimento dos termos da demanda, não tendo qualquer outro efeito.
S.Entendimento que a própria sentença acolhe na fundamentação que desenvolve em “B - DO DIREITO A OBTER A RESTITUIÇÃO DO PRÉDIO”.
T.Nem a herança é parte nesta acção nem os habilitados JVF e JEF aqui agem em sua representação e nem a sentença, com base nos Factos Provados e sob pena de contradição quanto aos seus fundamentos, pode deixar de extrair as mesmas consequências para todos os pedidos formulados pelos Autores na acção.
U.Que só pode ser a absolvição do Réu JCF dos mesmos, e pelos mesmos fundamentos que na sentença levaram à improcedência dos pedidos “B - DO DIREITO DE OBTER A RESTITUIÇÃO DO PRÉDIO” e “C – DO DIREITO DOS AUTORES A SEREM RESSARCIDOS PELO RÉU”.
V.Quanto aos primeiros (ou “B - DO DIREITO DE OBTER A RESTITUIÇÃO DO PRÉDIO”), ao que nela assim se fundamenta: “Sendo demandado o Réu JCF e provando-se que, à data da demanda, sendo o mesmo vivo, não detinha a exploração daquele terreno, nem era detentor de qualquer título para tanto, mas sim JVF (que não invocou qualquer transmissão da posição contratual, assumindo-se arrendatário de modo próprio), cristalino é que carece o Réu JCF de legitimidade material sendo, desta feita, forçosa a sua absolvição do pedido. (…) De forma coloquial: se o Réu ainda fosse vivo, sendo o filho o detentor, aquele era absolvido do pedido; tendo ocorrido o seu óbito, a mesma e exacta situação fáctica não pode conduzir à condenação do Réu (herança aberta por óbito de JCF). (…) Concluindo, não se pode estender, naturalmente, os pedidos (e seus efeitos) formulados contra ao Réu a terceiros que não são parte na acção, que apenas nela figuram para assegurar a continuidade e regularidade da instância do seu lado passivo.” (sic);
W.E quanto aos segundos (ou “C - DO DIREITO DOS AUTORES A SEREM RESSARCIDOS PELO RÉU”), ao que nela, ao concluir-se pela improcedência da totalidade deste pedido, se fundamenta assim “… uma vez que o pedido formulado vinha dirigido ao Réu JCF, o qual não explorava aquele prédio à data da sua aquisição pelos Autores, mais não resta concluir que fica prejudicada a apreciação do pedido formulado.” (sic).
X.Quer porque estejam os analisados fundamentos em oposição com a decisão (no seu todo), quer porque seja ambígua quanto à apreciação que faz dos pedidos formulados, quer, finalmente, porque não especifique os fundamentos que justificam a decisão de condenação da herança aberta por óbito do Réu, a sentença terá de ser declarada nula.
Y.Também em uso do que vai disposto no artigo 615º, nº 1, alíneas b), c) d) do nCPC.

Nestes termos e nos melhores de direito que Vexas. proficientemente suprirão, requer-se:
a)-Que seja concedido provimento ao recurso e anulada a decisão recorrida e, consequentemente, ser substituída por outra que conhecendo da excepção dilatória de ilegitimidade invocada pelo Réu JCF se abstenha de conhecer do pedido e absolva o Réu da instância, OU, caso assim não se entenda,
b)-seja concedido provimento ao recurso e anulada a decisão recorrida, quer porque estejam os fundamentos da sentença em oposição com a decisão (no seu todo), quer porque seja ambígua quanto à apreciação que faz dos pedidos formulados, quer, finalmente, porque não especifique os fundamentos que justificam a decisão de condenação da herança aberta por óbito do Réu.

10Igualmente inconformados, os autores interpuseram recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:

1- A acção foi julgada parcialmente procedente.
2- O Tribunal recorrido declarou os autores donos e legítimos proprietários do prédio rústico, sito …, freguesia de …, concelho de …, que se compõem de dezanove ares…, inscrito na respectiva matriz sob o artigo…, descrito na Conservatória do Registo Predial de… sob o número …, registada a aquisição pela inscrição G-um.
3-Consequentemente condenou a herança aberta por óbito de JCF, representada por JVF e JEF, a reconhecer os autores titulares desse direito.
4-Mas não condenou os réus habilitados na restituição do prédio nem na indemnização peticionada de € 1.000,00 (mil euros), por cada ano de ocupação indevida.
5-A sentença enferma pois de nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, estando os fundamentos em oposição com a decisão.
6-O Tribunal a quo reconhece que AMG, casado com LMG, é proprietário do prédio rústico.
7-De resto, de toda a prova produzida em audiência de julgamento (testemunhal e documental) não resultou provado que os Réus habilitados detinham a seu favor qualquer título válido, designadamente, contrato de arrendamento escrito e que procedesse ao pagamento de qualquer quantia a título de renda, nesse sentido o ponto I e II dos factos não provados.
8-Efetivamente o Tribunal recorrido dá como provado que o Réu, JCF, deixou de pastorear o seu gado naquele terreno, passando a fazê-lo o seu filho, em nome próprio, sem que detivesse qualquer título para o efeito (diga-se como o pai também não tinha); não lhe sendo autorizada tal exploração pelos então proprietários e, desde o ano de 2007, pelos Autores.
9-E que os Autores por via disso, estão impedidos de explorar o terreno.
10-Referindo na sua fundamentação: “Mas daí a retirar a conclusão que se trata de um arrendamento, vai um espaço que não foi possível ser preenchido com a prova produzida”.
11-Mal andou a sentença, de assim decidir o(s) pedido(s) sem conter os fundamentos de facto e de direito para tal ou, até, de manter alguns fundamentos em manifesta oposição com a decisão.
12-Pois, nos termos do artigo 1311.º, n.º 1 do Código Civil, “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”;
13-Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada com base em qualquer relação obrigacional ou real que confira a posse ou detenção da coisa.
14-O Tribunal a quo entende que da factualidade provada não se vislumbra qualquer título que permitisse a JCF explorar aquele terreno, nem posteriormente ao filho.
15-Mas referindo que JVF não é parte na presente demanda e a sua intervenção é apenas na qualidade de habilitado, em representação da herança aberta por óbito de JCF, seu pai.
16-E como tal, entendeu não poder estender os pedidos (e seus efeitos) formulados contra o Réu a terceiros que não são parte na acção, que apenas nela figuram para assegurar a continuidade e regularidade da instância do seu lado passivo.
17-Ora a sentença não só distingue (a apreciação dos pedidos) como vai (contraditoriamente) mais longe e estende os efeitos do decidido sobre a declaração do domínio e legitimidade sobre o prédio à herança aberta por óbito de JCF, representada por JVF e JEF, condenando-a ainda a reconhecer o autor/recorrido como o titular desse direito, no que entramos agora em mais um facto inesperado (senão contraditório), posto que nem a “herança” é parte na acção, nem existe no processo o conhecimento, de facto, de que a mesma se encontra (ou não) aberta (ou jacente) ou, até, que os habilitados JVF e JEF ajam em nome dela na acção ao abrigo de um qualquer poder de representação.
18-Pelo que decidiu – mal - o Tribunal recorrido pela não restituição do prédio e pela absolvição do pedido de indemnização.
19-Em clara violação da lei.
20-Ora, os Autores instauraram uma acção de reivindicação contra o falecido réu, prevista no artigo 1311.º do Código Civil.
21-A acção de reivindicação deverá ser exercida pelo proprietário não possuidor contra o detentor ou possuidor que não é proprietário, incumbindo ao autor demonstrar que tem o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e que esse direito se encontra na posse ou detenção de outrem.
22-Assim, provada a propriedade da coisa, a entrega desta só será recusada, se o demandado (o possuidor ou detentor) invocar (e provar) que lhe assiste a posse ou a detenção da coisa em virtude de uma relação obrigacional ou real que impeça o exercício pleno da propriedade, facto que, a ser alegado, constitui excepção peremptória ao direito invocado pelo autor.
23-No caso dos autos mostra-se provado que os autores são donos e legítimos proprietários do bem reivindicado, conforme consta da certidão da Conservatória do Registo Predial de … junta aos autos e dos factos provados.
24-Por outro lado, o réu alegou que ocupa o prédio reivindicado como arrendatário rural do mesmo e que é susceptível de ser oposto ao pedido de reivindicação feito pelos proprietários.
25-Contudo, não demonstrou por contrato escrito a existência de tal qualidade.
26-E com os pedidos próprios da acção de reivindicação - reconhecimento do direito de propriedade e restituição da coisa, podem cumular-se outros pedidos acessórios, designadamente como no caso dos autos o pedido de indemnização.
27-Os Autores, como proprietários do prédio em questão, foram privados do seu uso, o que implicou uma perda patrimonial que deve ser considerada, sendo a quantia peticionada de mil euros anuais ajustada e razoável.
28-Ora, o Tribunal recorrido deveria ter condenado os habilitados réus não só a reconhecer os Autores como donos e legítimos proprietários do prédio rústico supra referido, mas também à sua restituição e no pagamento da indemnização peticionada.
29-O que de resto consta do facto F. dado como provado.
30-Ao não decidir dessa forma, o Tribunal recorrido incorreu em nulidade da decisão com fundamento na contradição intrínseca que se verifica na falta de coerência com as respetivas premissas de facto e de direito
31-Vícios esses que consubstanciam verdadeiras nulidades, capazes de influenciar a apreciação e decisão da causa, nos termos do artº 615º do CPC.
32-Devendo, em consequência, a mesma ser revogada e substituída por outra que condene os réus não só a reconhecer os autores como legítimos proprietários como também a restituírem o prédio em causa e, ainda, no pagamento da quantia peticionada de 1000,00 euros anuais, por cada ano de ocupação indevida a título de indemnização.
33-Nestes termos e nos demais de Direito, deve a decisão recorrida ser revogada e em conformidade, serem os réus condenados também à restituição do prédio rústico e ainda no pagamento da indemnização peticionada.

11Nenhuma das partes apresentou contra-alegações
***

IIFUNDAMENTAÇÃO.

1-Objecto do Recurso.

É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Considerando que foram interpostas duas apelações, vejamos as questões que importa analisar e decidir em cada uma delas.

Assim:

A)-Apelação interposta pelos réus habilitados:
i)- As Nulidades da Sentença;
ii)- A Revogação da sentença com absolvição dos pedidos.
B)- Apelação interposta pelos autores:
i)- As Nulidades da sentença;
ii)- A Revogação da sentença com condenação dos réus nos pedidos.

Previamente importa recordar a matéria de facto decidida pela 1ª instância.

***

2- Matéria de Facto.

2.1- Factos Provados:
A)Por escritura pública, outorgada em 05 de Março de 2007, no Cartório Notarial de …, FSS e MDF, representados no acto por JFM, declararam vender, e o Autor AMG, casado com LMG, no regime de comunhão de adquiridos, declarou comprar, o prédio rústico, sito…, freguesia de …, concelho de …, que se compõem de dezanove ares…, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial de…sob o número …, registada a aquisição pela inscrição G- um.
B)O referido prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de …do Autor AMG, casado com LMG, sob a descrição número …, pela apresentação número 1 de …, apresentando as seguintes confrontações: do norte com…; do sul com…; de nascente com… e de poente com ….
C)Desde data não apurada, mas que se situa entre 1967 e 1970, JCF passou a pastorear gado de vacas no prédio referido em A).
D)Desde 1994 JVF, filho de JCF, passou, em nome próprio, a pastorear gado no prédio identificado em A) sem qualquer autorização para tanto.
E)Após a celebração da escritura mencionada em A), os Autores foram impedidos por JVF, filho de JCF, de entrarem no identificado prédio.
F)Em consequência do referido em E), os Autores estão impedidos de explorar o prédio referido em A).
G)JCF faleceu a 09.01.2012.
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2.2Factos Não Provados.
I)JCF pastoreava o gado no prédio referido em A), dos factos provados ao abrigo de acordo verbal celebrado com terceiro que representava os proprietários daquele terreno, que o autorizou a explorar aquele prédio mediante o pagamento de uma renda anual.
II)JVF desde o ano de 1994 entregava anualmente quantias monetárias a título de renda por conta da exploração do prédio mencionado em A), dos factos provados.
III)Os Autores pretendiam semear erva e milho no terreno mencionado em A), dos factos provados.
IV)Cultura que lhes renderia cerca de €1.000,00 anuais, ou seja, €500,00 por alqueire.
V)Os Autores foram expulsos do prédio referido em A) pelos filhos do Réu, que invocaram ser o prédio do pai.
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3- As Questões Enunciadas.

3.1- Da Apelação dos réus habilitados.

3.1.1- As Nulidades da Sentença.

Os réus habilitados invocam que a sentença é nula por, segundo eles, enfermar de três causas de nulidade:
i)- Omissão de pronúncia;
ii)-Contradição entre fundamentos e decisão;
iii)-Falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito.

Vejamos cada uma destas pretensas nulidades.

3.1.1.1- A omissão de pronúncia.

Entendem os réus habilitados/apelantes que a sentença padece de nulidade por falta de pronúncia definitiva sobre a excepção de ilegitimidade do réu (primitivo), porque ficou demonstrado que desde pelo menos 1994 não era já o réu quem explorava o prédio mas o seu filho JVF, pelo que deveria ser absolvido da instância.
Será assim?
As nulidades da sentença, são as elencadas nas diversas alíneas do artº 615º nº 1, de que se salienta, com relevância para a questão em análise, a omissão de pronúncia, mencionada na al. d): o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
Ora, quando no preceito se comina com nulidade a sentença, em que o juiz “…deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…” está a referir-se às questões que constituem o objecto da sentença. Na verdade, o artº 615º nº 1, al. d) deve ser conjugado com o artº 608º, relativo às questões a resolver na sentença. Essas questões, que se impõem ao juiz que resolva na sentença são, em primeira linha, por uma ordem de precedência lógica, as questões de forma (vícios de natureza processual, excepções dilatórias) susceptíveis de conduzir à absolvição da instância e consequente ineficácia do processo e que não tenham sido resolvidas no despacho saneador (artº 608º nº 1), quer tenham sido alegadas pelas partes, quer devam ser apreciadas oficiosamente. Depois e principalmente, o juiz aprecia e decide às questões de fundo, que constituem o mérito da causa, suscitadas pelas partes como fundamento do pedido ou como fundamento das excepções e, ainda, das que o juiz possa, rectius, deva conhecer ex officio (artº 608º nº 2). Na lição de Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, Almedina, pág. 142)A palavra questões deve ser tomada aqui em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e à causa de pedir (melhor, à fungibilidade ou infungibilidade de umas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem.”.
Pois bem, no caso dos autos, contrariamente ao que os réus habilitados/apelantes invocam, o juiz decidiu a excepção de ilegitimidade passiva logo no despacho saneador.
Na verdade, a 1ª instância, no despacho saneador proferido com data de 16/05/2020, apreciou a excepção dilatória de ilegitimidade passiva que havia sido suscitada pelo primitivo réu nos pontos 4º a 10º da sua contestação, julgando-a improcedente.
Portanto, é fácil perceber que os réus habilitados/apelantes não têm razão ao invocarem esta pretensa nulidade da sentença.

Afigura-se-nos parecer existir alguma confusão entre ilegitimidade processual e ilegitimidade substantiva.
Em termos simples, a legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação jurídica processual tal como é apresentada, rectius, exposta pelo autor (artº 30º nº 3). Se não o for, é parte ilegítima e o tribunal abstém-se de conhecer dessa relação jurídica processual e absolve o réu da instância, conforme decorre dos artºs 278º nº 1, al. d), 577º al. e) e, 576º nº 2).
Já a legitimidade substantiva reporta-se à efectiva titularidade da relação jurídica invocada no processo. Demonstrando-se que o réu não é o titular da relação jurídica em litígio, o juiz conhece do mérito da acção e absolve o réu do pedido.
A esta luz, se o autor afirma que o réu ocupa o terreno, o réu é parte processualmente legítima na acção e, foi isso que a 1ª instância decidiu.
Parece-nos é que os réus discordam da decisão/sentença na parte em que condenou “a herança” de JCF a reconhecer os autores como proprietários do prédio em causa nos autos, defendendo que a “herança” não é parte na acção e, por isso, não podia ser condenada a reconhecer que os autores são proprietários do terreno. Mas essa discordância não consubstancia uma nulidade da sentença; quando muito, um erro de julgamento.
Seja como for, a sentença não enferma da pretendida nulidade por omissão de pronúncia.
***

3.1.1.2- A Contradição entre os fundamentos e a decisão.

Segundo os réus habilitados/apelantes, a sentença será nula por conter fundamentos em oposição com a decisão. Dizem que, se se demonstrou, nos pontos C) e D) dos factos provados, que o réu, desde 1994, deixou usar o prédio e foi o seu filho, JVF quem, desde então e em nome próprio, passou a fazê-lo; então, por uma questão de coerência de fundamentação da decisão não podia a herança do primitivo réu ser condenada a reconhecer os autores como proprietários do terreno e deveria ser absolvida do pedido à semelhança do que sucedeu com os restantes pedidos.
Padecerá a sentença desta invocada nulidade?
Ora bem, para efeitos da al. c) do nº 1 do artº 615º, a nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão, ocorre quando se verifica uma contradição real entre os fundamentos invocados e a decisão alcançada: a decisão é viciosa por os fundamentos referidos pelo juiz conduzirem, necessariamente, a uma decisão de sentido oposto ou diferente (Cf. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág.54). Quer dizer, quando a norma, no artº 615º nº 1, al. c) refere contradição entre os fundamentos e a decisão, está a referir-se aos fundamentos jurídicos, aos elementos e passos do raciocínio jurídico que o juiz foi explanando na fundamentação da sentença e não aos fundamentos de facto que seleccionou. Isto é, o erro de contradição relevante reporta-se raciocínio que o juiz foi expondo na sentença: o julgador segue determinada linha de raciocínio que, em termos lógicos, aponta para uma determinada conclusão mas, em vez de a tirar decide noutro sentido, oposto ou divergente. (Cf. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, pág. 298).
Diferente é o erro de julgamento. Isto é, não se pode confundir o vício de contradição entre a decisão e os fundamentos, gerador da nulidade da sentença, com o erro judiciário que tem como consequência a revogação ou a modificação da decisão.
O erro de julgamento ou erro judiciário pode resultar da violação da lei, substantiva ou processual, podendo consistir em errada interpretação ou aplicação da norma ou em erro na determinação da norma aplicável. Ou em erro de previsão ou determinação da norma aplicável que consiste num equívoco quanto à norma que deve ser aplicada no caso concreto e pode ocorrer quer por erro de qualificação ou por erro na subsunção. O erro de qualificação verifica-se quando o tribunal selecciona mal a norma aplicável ao caso concreto. O erro de subsunção verifica-se quando os factos apurados são subsumidos de uma forma errada, integrando o tribunal, na previsão normativa, factos ou situações que ela não comporta. Pode ainda ocorrer erro na estatuição, isto é, quando se verifica um entendimento erróneo das consequências determinadas pela norma aplicável.
Assim, quando o juiz, embora mal, entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante um erro de julgamento e não perante uma oposição geradora de nulidade da sentença. (Cf. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, pág. 298).
Ora, estas considerações permitem perceber que os réus habilitados/apelantes estarão a confundir contradição entre fundamentos e decisão com erro de julgamento.O vício da sentença que os réus invocam – não poder ser condenada a herança a reconhecer os autores como proprietários do terreno por se ter apurado que o réu primitivo não usava o terreno desde 1994 – não constitui uma nulidade da sentença nos termos do artº 615º al. c) do CPC.
Assim, resta concluir pelo indeferimento desta pretendida nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão.
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3.1.1.3- Falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito.

Entendem os réus habilitados/apelantes que a sentença é nula porque condenou a “herança” de JCF, representada pelo JVF e pelo JEF a reconhecer os autores como proprietários do terreno quando a “herança” não é parte na acção e sem que existam no processo elementos de facto de que resulte se a “herança” se encontra ou não aberta ou jacente ou que o JVF e o JEF ajam em nome dessa herança, o que constitui nulidade da sentença por falta de fundamento de facto e de direito.
Será assim?
Ora bem, para efeitos da al, b) do nº 1 do artº 615º do CPC, a falta de fundamentação susceptível de consubstanciar a nulidade da sentença ocorre apenas quando se verifica uma falta absoluta de fundamentos, quer de facto quer de direito. A motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade da sentença, apenas afecta a sua valia doutrinal, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso. (Cf. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 53).
Assim, para que ocorra falta de fundamentação de facto susceptível de gerar a nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considera provados, de acordo com o que estabelece o artº 607º nº 4 do CPC.
No que toca à falta de fundamentação de direito, importa referir que não é forçoso que o juiz indique as disposições legais em que baseia a sua decisão, bastando que mencione as regras e os princípios jurídicos que a apoiam (Cf. Amâncio Ferreira, Manual…, cit., pág. 53).
No caso dos autos, não se verifica uma falta absoluta de fundamentação de facto nem uma falta absoluta de fundamentos jurídicos. E só uma destas faltas absolutas de fundamentos levaria à nulidade da sentença.
Mais uma vez, o que se verifica é uma discordância com o que foi decidido e, como vimos, a discordância não é fundamento de nulidade da sentença.
Por conseguinte, conclui-se que a sentença não enferma desta pretendida nulidade.
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Por uma questão de precedência lógica, passa-se, de imediato, a apreciar as nulidades da sentença invocadas pelos autores/apelantes. E, só posteriormente, se analisarão as pretendidas revogações da sentença, quer a solicitada pelos réus habilitados quer a solicitada pelos autores.
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3.2- A apelação dos autores.

3.2.1- As Nulidades da sentença.
Os autores invocam que a sentença é nula por, segundo eles, enfermar de duas causas de nulidade que abordam em conjunto:
i)- Contradição entre fundamentos e decisão;
ii)-Falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito.
Dizem que da prova produzida não resultou provado que o réu detinha a seu favor qualquer título válido para usar o terreno, designadamente contrato de arrendamento e, ao não condenar os réus a restituírem o terreno e a pagarem indemnização, a sentença contém fundamentos em oposição com a decisão e falta de fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Será assim?
Pois bem, já verificámos em que consiste a nulidade da sentença por contradição. Repete-se, o que acima se disse: para efeitos da al. c) do nº 1 do artº 615º, a nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão, ocorre quando se verifica uma contradição real entre os fundamentos invocados e a decisão alcançada: a decisão é viciosa por os fundamentos referidos pelo juiz conduzirem, necessariamente, a uma decisão de sentido oposto ou diferente. Isto é, o erro de contradição relevante reporta-se raciocínio que o juiz foi expondo na sentença: o julgador segue determinada linha de raciocínio que, em termos lógicos, aponta para uma determinada conclusão mas, em vez de a tirar decide noutro sentido, oposto ou divergente. Diferente é o erro de julgamento. E não se pode confundir o vício de contradição entre a decisão e os fundamentos, gerador da nulidade da sentença, com o erro judiciário que tem como consequência a revogação ou a modificação da decisão. Quando o juiz, embora mal, entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante um erro de julgamento e não perante uma oposição geradora de nulidade da sentença.
Estas considerações permitem perceber que os autores/apelantes estarão a confundir contradição entre fundamentos e decisão com erro de julgamento. O vício da sentença que invocamnão ter sido provado título que legitime a utilização do terreno e, por conseguinte deveriam os réus ter sido condenados a restituírem o terreno e a indemnizarem os autoresnão constitui uma nulidade da sentença nos termos do artº 615º al. c) do CPC.

O mesmo se diga relativamente à pretendida nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito.
Na verdade, referimos, supra, em que consiste esta nulidade da sentença: para efeitos da al, b) do nº 1 do artº 615º do CPC, a falta de fundamentação susceptível de consubstanciar a nulidade da sentença ocorre apenas quando se verifica uma falta absoluta de fundamentos, quer de facto quer de direito. A motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade da sentença, apenas afecta a sua valia doutrinal, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso. E para que ocorra falta de fundamentação de facto susceptível de gerar a nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considera provados, de acordo com o que estabelece o artº 607º nº 4 do CPC. E, no que toca à falta de fundamentação de direito, repete-se, que não é forçoso que o juiz indique as disposições legais em que baseia a sua decisão, bastando que mencione as regras e os princípios jurídicos que a apoiam.
No caso dos autos, não se verifica uma falta absoluta de fundamentação de facto nem uma falta absoluta de fundamentos jurídicos. E só uma destas faltas absolutas de fundamentos levaria à nulidade da sentença.
Mais uma vez, o que se verifica é uma discordância com o que foi decidido e, como vimos, a discordância não é fundamento de nulidade da sentença.
Por conseguinte, conclui-se que a sentença não enferma destas pretendidas nulidades invocadas pelos autores.
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3.3- A Pretendida Revogação da sentença.

Por uma questão de apreciação unitária de ambos os recursos, proceder-se-á a uma análise conjunta das posições de cada um dos apelantes, retirando-se, posteriormente, as respectivas consequências dessa análise.

Vejamos então.

Posição dos réus habilitados/apelantes.
Entendem os réus habilitados que a “herança” de JCF não podia ter sido condenada a reconhecer os autores como proprietários do prédio, porque a “herança” do JCF não é parte na acção e, se o tribunal absolveu os réus habilitados dos pedidos de condenação a restituírem o prédio e a indemnizarem os autores, por não se lhes ter transmitido a posição do primitivo réu, então deveria ter absolvido, igualmente, a “herança” do pedido de reconhecimento dos autores como proprietários do terreno.

Posição dos autores.
Já os autores, por sua vez, defendem que os réus habilitados deveriam ter sido condenados na totalidade dos pedidos porque não demonstraram possuir título válido que lhes legitime a utilização do terreno.

Pois bem, para perceber o problema em discussão coloca-se a questão de saber se a posição que os autores atribuíram no litígio ao primitivo réu, JCF, se transmitiu para os réus habilitados como sucessores daquele.
Com efeito, os autores desenharam o litígio afirmando ser o primitivo réu, JCF, quem explorava o terreno e se recusa a sair dele.
Porém, na contestação, o primitivo réu afirmou ter deixado de explorar o prédio em 1994, passando a ser o seu filho JVF a fazê-lo, por si próprio, pagando rendas.
Ou seja, na petição inicial, os autores imputavam ao primitivo réu, JCF, a ocupação sem título e ilícita do prédio e a responsabilidade pelo prejuízo que lhes advém dessa ocupação ilícita do terreno.
Com a morte do primitivo réu transmitiu-se aos seus herdeiros, os réus habilitados, a responsabilidade civil pela imputada exploração ilícita e danosa do prédio?
Não nos parece.
Na verdade, a habilitação é a prova da aquisição, por sucessão ou transmissão, da titularidade de um direito ou complexo de direitos, ou de uma situação jurídica, ou um complexo de situações jurídicas (Cf. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 11ª edição, 2020, pág. 190). Quer dizer, no caso de falecimento de uma parte no processo, a habilitação dos sucessores pressupõe que a situação jurídica em litígio seja transmissível aos sucessores do falecido. Ou dito de outro modo O incidente de habilitação de sucessores constitui o meio processual de operar a modificação subjectiva da instância, através da substituição da parte primitiva pelos respectivos sucessores na relação substantiva em litígio (artigo 262.º do CPC).Trata-se, portanto, de uma excepção ao princípio da estabilidade da instância caracterizada pelo falecimento da parte e transmissão por via sucessória da posição que ela ocupava na relação substantiva. A habilitação de sucessores tem assim como requisitos o falecimento de uma parte na acção e que a relação substantiva de que ele era titular não se tenha extinto com o respectivo óbito. Os sucessores da parte falecida são chamados a substituir a parte falecida porque lhe sucederam na titularidade da relação substantiva em litígio e por isso têm interesse em ocupar a posição de parte. (Ac. da Rel. do Porto, 10/07/2019, Aristides Rodrigues de Almeida, www.dgsi.pt).
Quer isto significar que a habilitação de herdeiros visa o prosseguimento da lide com os habilitados, e não a atribuição, àqueles, da titularidade da relação material controvertida em causa, ou seja, não determina o âmbito da responsabilidade dos herdeiros habilitados relativa ao objecto da acção. Em suma, por via deste incidente promove-se a substituição de uma parte primitiva pelo seu sucessor na situação jurídica litigiosa em causa, mas sem implicar a transmissão de direitos ou obrigações que eram da titularidade da primeira.(Salvador da Costa, Os Incidentes…, cit., pág. 191).
Por conseguinte, no caso dos autos, apesar do incidente de habilitação dos herdeiros do primitivo réu, não se verificou a transmissão das obrigações, rectius, das situações jurídicas passivas que os autores, na petição inicial, imputavam ao primitivo réu: a ocupação, sem título, e por isso ilícita do prédio e, a responsabilidade pelo prejuízo que lhes advém dessa ocupação ilícita do terreno.

Por outro lado, como mencionam os réus habilitados, a “herança” (jacente?) do primitivo réu, JCF, não é parte na acção.

Vejamos.

Em princípio, quem tem personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária (artº 11º nº 2 do CPC/13, anteriormente, artº 5º nº 2 do CPC/95). Ou seja, por regra, a personalidade judiciária coincide com personalidade jurídica; trata-se do reconhecimento/atribuição da personalidade judiciária mediante o critério da coincidência.
Mas nem sempre assim sucede.
Podem existir, rectius, existem determinados entes a quem a lei reconhece existência mas nega personalidade jurídica. Pense-se em certas associações, ou nas sociedades civis, nas sociedades comerciais antes do respectivo registo, ou no condomínio, entre outras. É igualmente o caso da herança em estado de jacência (artº 2046º do CC).
Atribui-se personalidade judiciária a quem não tem personalidade jurídica porque, pode suceder que por virtude da existência daqueles entes, haja necessidade de acautelar tutela judicial para certos interesses que lhes dizem respeito. O tráfego jurídico pode exigi-lo. As relações que estabelecem com outros entes podem tornar-se litigiosas. Carecendo de recorrer a juízo, atribui-se-lhes (a lei) personalidade judiciária. Surge, deste modo, o fenómeno da extensão da personalidade judiciária: a lei processual civil cria pessoas judiciárias, às quais reconhece a susceptibilidade de ser parte. Para tanto encontraram-se mecanismos, melhor dizendo, critérios de atribuição dessa personalidade judiciária, diferentes do critério da coincidência. Quer dizer, para além do critério da coincidência a lei lança mão de outros critérios determinativos ou atributivos da personalidade judiciária (Cf. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 136), de entre eles, o critério da diferenciação patrimonial previsto no artº 12º al. a) do CPC/13, anteriormente, artº 6º al. a) CPC/95: “Têm ainda personalidade judiciária a herança jacente e patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado.”
Assim, pelo critério da diferenciação patrimonial, a personalidade judiciária é atribuída (ficticiamente) a determinados patrimónios autónomos como sucede, entre outros, com a herança jacente: conjunto de situações jurídicas, activas e passivas que integravam, rectius, pertenciam à esfera jurídica do de cuius e, com o seu óbito e até que se determine para quem se transmitem essas situações jurídicas (activas e passivas) ficam em estado de jacência.
 A personificação judiciária é o expediente técnico que permite o exercício de situações jurídicas que, sem esse instrumento de personalização estariam paralisadas. É o que sucede com a herança jacente e outros patrimónios autónomos cujos titulares não estejam determinados (Cf. Paula Costa e Silva, O Manto Diáfano da Personalidade Judiciária, Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. II, AAVV, Almedina, pág. 1877).
Ora, no caso dos autos, a acção não foi instaurada contra a “herança” de JCF, o mesmo é dizer que a herança” não é parte na acção.
Além disso, como vimos, não se verificou a transmissão das obrigações, rectius, das situações jurídicas passivas que os autores, na petição inicial, imputavam ao primitivo réu.
De resto, provou-se que Desde 1994 JVF, filho de JCF, passou, em nome próprio, a pastorear gado no prédio identificado em A) sem qualquer autorização para tanto.”. E essa factualidade foi invocada na contestação.

Pois bem, afigura-se-nos que os autores, perante aquela alegação do primitivo réu, poderiam ter lançado mão do incidente de intervenção principal provocada do JVF a fim de, perante a dúvida suscitada na contestação sobre quem ocupava o terreno, poderem obter uma decisão, ainda que subsidiária, de reconhecimento do direito de propriedade e de condenação na restituição do terreno e na indemnização dos prejuízos.

Vejamos.

Com efeito, de acordo com o (então) artº 31º-B do CPC/95 (actualmente, artº 39º do CPC/13) com epígrafe Pluralidade subjectiva subsidiária”:
É admitida a dedução subsidiária do mesmo pedido, ou a dedução de pedido subsidiário, por autor ou contra réu diverso do que demanda ou é demandado a título principal, no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida.

Consagra-se no preceito a possibilidade de, em caso de dúvida fundamentada e razoável, sobre a efectiva titularidade da relação material controvertida, nomeadamente quando a parte ignora, sem culpa, a que título ou em que qualidade terá o devedor intervindo no acto que serve de causa de pedir à acção, designadamente se o faz por si próprio, ou em nome de terceiro, ou se é um terceiro quem praticou os actos em causa na petição e que servem de fundamento à acção.
Faculta-se, pelo preceito, seja dada prevalência ao interesse do demandante em ver apreciada, unitariamente, a responsabilidade dos possíveis devedores “alternativos(Cf. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 79).
A pluralidade subjectiva subsidiária prevista no preceito origina uma situação de pluralidade de partes principais, já que a parte que demanda ou é demandada a título subsidiário só vê a pretensão que contra ela é dirigida ser apreciada se improceder o pedido deduzido a título principal ou contra a parte passiva originária.
Ora, o artº 325º nº 2 do CPC/95, actualmente, artº 316º nº 2 do CPC/13, permitia que o autor lançasse mão do incidente de intervenção principal provocada do réu subsidiário em situações de surgimento de uma superveniente pluralidade subjectiva subsidiária passiva, consentindo que o autor pudesse chamar a intervir como réu o terceiro contra quem pretende formular pedido subsidiário: tal possibilidade justifica-se pelo facto de a “dúvida fundada” sobre a titularidade da relação material controvertida poder surgir como decorrência da contestação deduzida pelo primitivo réu (Cf. Lopes do Rego, Comentários…cit., pág. 71 e seg.)
Era o que poderia ter sucedido no caso dos autos: perante a dúvida surgida em consequência da contestação do primitivo réu sobre quem era o efectivo titular da relação material controvertida, rectius, o efectivo ocupante do terreno, poderiam os autores ter lançado mão do incidente de intervenção principal provocada do JVF a fim de verem apreciada, subsidiariamente, a responsabilidade deste.
Porém, não o fizeram e optaram por manter, apenas, o primitivo réu na acção, quando ele disse que quem usava o terreno desde 1994 era o JVF (o que, de resto, se veio a provar).

Temos assim as seguintes três conclusões:
-(i)os autores optaram por não chamar à demanda o JVF, a fim de verem apreciada a responsabilidade deste a título subsidiário pela ocupação do terreno e condenação na respectiva desocupação;
-(ii)apesar do incidente de habilitação de herdeiros, não se verificou a transmissão das obrigações, rectius, das situações jurídicas passivas que os autores, na petição inicial, imputavam ao primitivo réu;
-(iii)a acção não foi instaurada contra a “herança” de JCF, o mesmo é dizer que a “herança” não é parte na acção e, por isso, nela não pode ser condenada.

Ora, perante estas conclusões é fácil perceber que a apelação dos autores não pode proceder: nem os réus habilitados nem a “herança” respondem pelos pedidos deduzidos.
Assim, apenas se mantém a sentença na parte em que reconheceu os autores proprietários do terreno, improcedendo os demais pedidos.

quanto à apelação dos réus habilitados, temos de concluir que têm razão: a “herança” não pode ser condenada a reconhecer os autores como proprietários do terreno, mantendo-se, por isso, a sentença apenas na parte em que reconheceu os autores como proprietários do terreno, improcedendo os demais pedidos.

Em suma: improcede o recurso dos autores e, procede o recurso dos réus habilitados.
***

III-DECISÃO.

Em face do exposto, acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar improcedente o recurso dos autores e, procedente o recurso dos réus habilitados e, em consequência, mantém a sentença recorrida apenas na parte em que reconheceu os autores como proprietários do terreno, improcedendo os demais pedidos.

Custas: em ambos os recursos pelos autores.


Lisboa, 17/06/2021


(Adeodato Brotas)
(Vera Antunes)
(Aguiar Pereira)