Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1330/14.0TTLSB.L1-4
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTENCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
INTERESSE EM AGIR
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
DECLARAÇÕES DO TRABALHADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/08/2014
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: Frustrada a tentativa de conciliação na audiência de partes e tendo a trabalhadora, no início do julgamento, confirmado a posição da demandada, segundo a qual ambas mantém um verdadeiro contrato de prestação de serviços e que não pretende celebrar com a Ré qualquer contrato de trabalho, essa declaração exarada em Ata, face aos interesses de natureza pública que estão presentes na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não retira o escopo ou utilidade à mesma não constituindo aquela fundamento quer para a extinção da lide por inutilidade superveniente quer para a absolvição da instância, por falta de interesse em agir do Ministério Público.
         (Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


I – RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO colocado junto do Tribunal do Trabalho de Lisboa, veio propor, em 07/05/2014, ação declarativa de reconhecimento da existência de contrato de trabalho com processo especial regulada nos artigos 186.º-K e seguintes do Código do Processo do Trabalho, contra a Ré AA, SA, CIF n.º (…) e com sede na Avenida (…), n.º 125, Letra B, (…)Lisboa, alegando, com referência a BB, com o Cartão de Cidadão n.º (…), NIF (…), NISS (…) e residência na Rua (…), n.º 9, 8.º Direito, (…)Lisboa, o seguinte:

(…)

*

Tal petição inicial do Ministério Público fundou-se no Auto de Utilização indevida de contrato de prestação de serviços, levantado no dia 09/04/2014 por uma Inspetora da ACT e que se mostra junto a fls. 5 a 11.

O Auto de Notícia certificava o procedimento imputado à arguida (e aqui Ré), constatado no dia 27/02/2014 e que se traduzia no facto da mesma ter BB ao seu serviço profissional, como enfermeira comunicadora, desde 5/3/2007, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, quando a forma quotidiana como aquela desenvolvia a sua atividade indiciava a existência de uma relação de índole laboral. 

Notificada a arguida, veio a mesma apresentar o requerimento de fls. 22 e seguintes, onde pugnava pela natureza autónoma, entre diversos outros, do vínculo estabelecido com a referida enfermeira BB, tendo ainda arguido a nulidade do respetivo auto, por falta de indicação dos meios de prova sobre os quais a ACT formou a sua convicção.

A ACT, face a tal posição da AA, SA, procedeu à participação ao Ministério Público do expediente junto a fls. 2 a 35, nos termos n.º 3 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro. 

*

A Ré foi citada a fls. 43 e 44, por carta registada com Aviso de Receção, tendo apresentado a contestação + documentos de fls. 45 a 190, tendo suscitado uma questão prévia quanto a custas, arguido a exceção consistente no facto da aludida enfermeira BB ter declarado perante a ACT que pretendia manter o contrato de prestação de serviços com a Ré e, finalmente, impugnado os factos alegados pelo Ministério Público, pugnando pela inexistência da relação de trabalho subordinado invocada pelo Ministério Público e pedindo a sua absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, do pedido.     

*

Foi proferido, a fls. 193 e 194, despacho saneador, onde o juiz do processo relegou para final a fixação do valor da causa, considerou válida e regular a instância, estabeleceu o objeto do litígio, absteve-se de enunciar os temas da prova, admitiu os róis de testemunhas (fls. 41 e 45) e designou data para a Audiência de Discussão e Julgamento.

Procedeu-se à realização da Audiência de Discussão e Julgamento, com observância das legais formalidades, conforme melhor resulta da respetiva ata (fls. 200 e seguintes), tendo a aí chamada interveniente principal BB declarado o seguinte: «que o contrato que celebrou com a AA, SA é um contrato de prestação de serviços e que nunca pretendeu, nem pretende celebrar com a AA, SA um contrato de trabalho do qual decorrerão direitos e deveres que não poderá exercer e cumprir por ter já uma relação de trabalho subordinado com o Estado (é funcionária pública), exercendo funções num Centro de Saúde.

Por último, questionada pelo tribunal se as declarações que agora fez o foram de forma livre e consciente, afirmou que o fazia de forma livre e consciente não tendo sido pressionada ou condicionada por ninguém, nomeadamente pela Ré, para as fazer».       

*

Foi então proferida a fls. 201 a 207 e com data de 17/06/2014, saneador/sentença que, em síntese, decidiu o litígio nos termos seguintes:

“Nos termos e fundamentos expostos julgo verificada a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir do Ministério Público e, em consequência, absolve-se a ré AA, SA da instância (art.º 278.º, n.º 1 alínea e) NCPC)

Notifique e registe.

Sem custas por delas estar isento o autor.

*

A fundamentação jurídica desenvolvida, para o efeito, pelo Tribunal do Trabalho de Lisboa, foi a seguinte:

(…)


O ilustre magistrado do Ministério Público, inconformado com tal saneador/sentença, veio, a fls. 213 e seguintes, interpor recurso da mesma, que foi admitido a fls. 289 e 290 dos autos, como de Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo-se igualmente fixado, nesse mesmo despacho, o valor da ação: € 5.000,01 (art.º 186.º-Q do Código do Processo do Trabalho).
*
O Apelante Ministério Público apresentou, a fls. 214 e seguintes, alegações de recurso e formulou as seguintes conclusões:

(…)

*

A Ré apresentou contra-alegações, dentro do prazo legal, não tendo formulado, contudo, conclusões, limitando-se a pugnar pela manutenção do saneador/sentença recorrido (fls. 299 e seguintes).

*
Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – OS FACTOS

A Matéria de Facto com relevância para o objeto do presente recurso de Apelação mostra-se descrita no Relatório do presente Aresto, dando-se aqui o seu teor por integralmente reproduzido.


III – OS FACTOS E O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 639.º e 635.º n.º 4, ambos do Novo Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608.º n.º 2 do NCPC).

*

A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS

(…)

B – OBJETO DO RECURSO DE APELAÇÃO

A única questão que se suscita no quadro do presente recurso de Apelação é a seguinte: face às declarações da “trabalhadora” prestadas de forma livre e espontânea no início da Audiência Final, deixou o Ministério Público de ter interesse em agir, implicando tal falta, que se configura como uma exceção dilatória inominada, a absolvição da Ré LCS da respetiva instância?       

C – REGIME LEGAL APLICÁVEL

Antes de respondermos a tal pergunta, importará ter em atenção o regime legal respeitante a esta nova ação de reconhecimento do contrato de trabalho, com processo especial, que foi aditado pela Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, vigente a partir de 1 de Setembro de 2013ao Código do Processo do Trabalho[1]:

Artigo 186.º-K

Início do processo

1 - Após a receção da participação prevista no n.º 3 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, o Ministério Público dispõe de 20 dias para intentar ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

2 - Caso o Ministério Público tenha conhecimento, por qualquer meio, da existência de uma situação análoga à referida no n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, comunica-a à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), no prazo de 20 dias, para instauração do procedimento previsto no artigo 15.º-A daquela lei.

Artigo 186.º-L

Petição inicial e contestação

1 - Na petição inicial, o Ministério Público expõe sucintamente a pretensão e os respetivos fundamentos, devendo juntar todos os elementos de prova recolhidos até ao momento.

2 - O empregador é citado para contestar no prazo de 10 dias.

3 - A petição inicial e a contestação não carecem de forma articulada, devendo ser apresentados em duplicado, nos termos do n.º 1 do artigo 148.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

4 - O duplicado da petição inicial e da contestação são remetidos ao trabalhador simultaneamente com a notificação da data da audiência de julgamento, com a expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário.

Artigo 186.º-M

Falta de contestação

Se o empregador não contestar, o juiz profere, no prazo de 10 dias, decisão condenatória, a não ser que ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente.

Artigo 186.º-N

Termos posteriores aos articulados

1 - Se a ação tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa.

2 - A audiência de julgamento realiza-se dentro de 30 dias, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 1 a 3 do artigo 151.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

3 - As provas são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas.

Artigo 186.º-O

Audiência de partes e julgamento

1 - Se o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los.

2 - Frustrando-se a conciliação, inicia-se imediatamente o julgamento, produzindo-se as provas que ao caso couberem.

3 - Não é motivo de adiamento a falta, ainda que justificada, de qualquer das partes ou dos seus mandatários.

4 - Quando as partes não tenham constituído mandatário judicial ou este não comparecer, a inquirição das testemunhas é efetuada pelo juiz.

5 - Se ao juiz parecer indispensável, para boa decisão da causa, que se proceda a alguma diligência, suspende a audiência na altura que reputar mais conveniente e marca logo dia para a sua continuação, devendo o julgamento concluir-se dentro de 30 dias.

6 - Finda a produção de prova, pode cada um dos mandatários fazer uma breve alegação oral.

7 - A sentença, sucintamente fundamentada, é logo ditada para a ata.

8 - A sentença que reconheça a existência de um contrato de trabalho fixa a data do início da relação laboral.

9 - A decisão proferida pelo tribunal é comunicada à ACT e ao Instituto da Segurança Social, I. P.

Artigo 186.º-P

Recurso

Da decisão proferida nos termos do presente capítulo é sempre admissível recurso de apelação para a

Relação, com efeito meramente devolutivo.

Artigo 186.º-Q

Valor da causa e responsabilidade pelo pagamento das custas

1 - Para efeitos de pagamento de custas, aplica-se à ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, alterado e republicado pela Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro.

2 - O valor da causa é sempre fixado a final pelo juiz tendo em conta a utilidade económica do pedido.

3 - Se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, deve este fixá-lo no despacho que admita o recurso.

4 - O trabalhador só pode ser responsabilizado pelo pagamento de qualquer quantia a título de custas se, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 186.º-L, tiver apresentado articulado próprio e se houver decaimento.

Artigo 186.º-R

Prazos

Os prazos previstos no n.º 1 do artigo 337.º e no n.º 2 do artigo 387.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, contam-se a partir da decisão final transitada em julgado.

Será portanto a partir de tal quadro legal que iremos analisar e decidir a problemática suscitada nos autos. 

D – INTERESSE EM AGIR

Como já anteriormente deixámos referido, o tribunal absolveu a Apelada da instância com fundamento na falta de interesse em agir por parte do Ministério Público.   

Ora, no que toca a essa exceção dilatória inominada, que não colhe unanimidade na nossa doutrina e jurisprudência (bem como no que respeita à espécie de ação que temos entre mãos), pensamos suficiente transcrever o que acerca dessa figura se acha redigido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/9/2014, processo n.º 1344/14.0TTLSB.L1-4, relatora: Isabel Tapadinhas[2],publicado em www.dgsi.pt, que iremos, aliás, seguir de perto:

«A lei processual estabelece determinados requisitos, indispensáveis, para que o tribunal possa pronunciar-se e decidir sobre o mérito da causa e portanto para que possa alcançar o fim principal imediato do processo.

 Trata-se dos “pressupostos processuais”, isto é, de condições cujo preenchimento a lei faz depender, para a prolação por um tribunal de uma decisão de mérito.

 Os pressupostos processuais são, pois, “questões prévias” que ao juiz importa resolver para poder ajuizar da possibilidade de conhecer de mérito, pelo que têm de ser apreciadas prioritariamente como condição de admissibilidade da apreciação do mérito da causa José João Baptista, “Processo Civil I, Parte Geral e Processo Declarativo”, 6.ª edição, pág. 84).

 Isto é assim, porque, como regra, eles constituem requisitos impostos pelo interesse público da correta administração da justiça, ou condições do exercício da função jurisdicional e, como tal, não podem ser postergados pela vontade das partes.

E são de interesse público porque a sua verificação é uma garantia de uma decisão idónea e útil sobre o mérito, aspeto essencial para uma justa composição do conflito de interesses privados e portanto essencial também para a prossecução da paz social (fim principal e mediato do processo, de interesses público (autor e obra citada págs. 84/85).

Consequentemente, a grande maioria dos pressupostos processuais são do conhecimento oficioso do tribunal.

Um desses pressupostos é o interesse em agir.

Este interesse processual desdobra-se em interesse em demandar (do autor) e num interesse em contradizer (do réu): o interesse em demandar é o interesse na tutela judicial e afere-se pelas vantagens decorrentes dessa tutela para a parte ativa; o interesse em contradizer é o interesse na não concessão dessa tutela e avalia-se pelas desvantagens impostas ao réu pela atribuição dessa tutela à contraparte (Miguel Teixeira de Sousa, “O Interesse Processual na Ação Declarativa”, 1989, pág. 6).

As ações declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas – art.º 10.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil.

As ações de simples apreciação visam obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto - art.º 10.º, n.º 3, alínea a) do Cód. Proc. Civil.

Na ação declarativa de simples apreciação, não se exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação. O autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica: incerteza sobre a existência de um direito (Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 15).

Como justificação das ações de simples apreciação, escreve ainda Alberto dos Reis (RLJ Ano 80.º, pág. 231): o estado de incerteza sobre a existência de um direito ou de um facto é suscetível de causar prejuízo a uma pessoa; deve, por isso, pôr-se à disposição dessa pessoa um meio de se defender contra tais prejuízos. Esse meio é a ação declarativa. Quer dizer, o prejuízo inerente à incerteza do direito ou do facto legitima e justifica o uso da ação de simples declaração positiva ou negativa.

      As ações desta espécie destinam-se a acabar com a incerteza, obtendo uma decisão que declare se existe ou não certa vontade da lei (...). Mas a incerteza a que nos referimos deve ter carácter objetivo; não interessa a simples dúvida existente no espírito do autor, desde que se não projete no exercício normal dos seus direitos (Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. I, edição, Lisboa, 1999, pág.51, em anotação ao art.4.º).

Pois bem.

No nosso caso, trata-se de uma ação de simples apreciação sob a forma positiva.

O facto cuja existência se pretende seja declarada não pode ser um facto qualquer.

Tem de ser, obviamente, um facto jurídico, ou seja, um facto juridicamente relevante (Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed, pág. 21).

É facto jurídico todo aquele de que promanam efeitos jurídicos, sendo juridicamente irrelevante todo o que nenhuma alteração produz na ordem jurídica (Galvão Telles, “Manual dos Contratos em Geral”, 2002, págs. 9, 11 e 17).

 Analisando o regime legal condensado na Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, que veio alterar a Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro e o Cód. Proc. Trab., observamos que o escopo, essencial e exclusivo, intencionalmente querido pelo legislador e por ele explicitado no art.º 1.º foi o de instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado.

 Em causa está a sempre atual problemática dos designados “falsos recibos verdes”, isto é, o enquadramento de colaboradores como independentes quando as características da atividade por eles exercida, confrontada com a moldura legal aplicável, impõe antes a sua qualificação como trabalhadores subordinados.

É neste contexto jurídico-processual que assiste ao Ministério Público legitimidade para a instaurar ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho – art.º 15.º-A, n.º 3.

Como se disse, numa ação deste tipo – de simples apreciação –, verifica-se o pressuposto do interesse em agir se o direito cuja existência ou inexistência se pretende que seja judicialmente declarada se encontrar numa situação de dúvida suscetível de causar prejuízos graves e objetivos ao seu titular.

Decorre, por indicação da própria lei, em face da natureza específica da ação, que o impulso processual cabe ao Ministério Público.

Questão distinta e aqui em causa é a de apurar se a declaração do trabalhador ao não aderir ao articulado do Ministério Público, antes confirmando a posição da ré, segundo a qual existe um verdadeiro contrato de prestação de serviços, retira o escopo ou utilidade à presente ação, utilidade que, definindo o conceito de legitimidade é também ele determinante de outro pressuposto processual, o interesse em agir, ou mesmo, quando superveniente, uma causa de extinção da lide, por inutilidade.

O interesse processual não se confunde com o pressuposto processual legitimidade: pode ter-se o direito de ação por se ser o titular da relação material, ou por a lei especialmente permitir a intervenção processual a quem não é o titular daquela relação e, todavia, perante as circunstâncias concretas do caso, não existir qualquer necessidade de recorrer ao tribunal para definir, reconhecer ou fazer valer o direito. Neste sentido, o Ac. do STJ de 05.02.2013, Revista nº 684/10.1YXLSB.L1.S1, relator Moreira Alves, disponível no respetivo site.

Pese embora o nosso legislador não haja concretizado a projeção processual do interesse em agir, o certo é que sempre que a pretensão em concreto formulada pelas partes não assume uma verdadeira dignidade jurisdicional, seja por falta de um direito subjetivo ou interesse legítimo a salvaguardar, ou quando estes possam ser salvaguardados por uma intervenção não judiciária, a jurisprudência tem defendido e reconhecido a falta de interesse em agir como pressuposto processual, de natureza atípica, que constitui uma exceção dilatória inominada, conducente à absolvição da instância. Neste sentido cfr. Ac. STJ de 3.05.1985, CJ/STJ, 1985, Tomo II, pág. 61.

De conhecimento oficioso como já antes referimos.

Em nosso entender a referida declaração é perfeitamente irrelevante uma vez que o trabalhador não apresentou articulado próprio nem constituiu mandatário, restringindo-se, assim, a sua intervenção processual à participação da tentativa de conciliação – art.º 186.º-O, n.º 1 do Cód. Proc. Trab. -, que, como se disse se frustrou, o que significa que trabalhador e entidade patronal não se conciliaram.

Tal não sucederia se em sede própria fossem produzidas as demais provas e exercido o contraditório.

De resto, é bom não esquecer que a Lei n.º 63/2013 ao instituir mecanismos de combate à utilização indevida de contratos de prestação de serviços não visou apenas combater a precaridade de emprego: caso a ação seja julgada procedente, o empregador não só terá de garantir ao colaborador, com efeitos retroativos e também para o futuro, os mesmos direitos que a lei confere aos trabalhadores vinculados por contrato de trabalho sem termo (tais como pagamento de férias, subsidio de férias e Natal, trabalho suplementar, etc.) como terá de se confrontar com uma contingência fiscal e contributiva, designadamente a liquidação de taxa contributiva prevista para o regime geral dos trabalhadores por conta de outrem.» 

E – NATUREZA, FINALIDADE E CARACTERÍSTICAS DA AÇÃO ESPECIAL

Afigura-se-nos importante – como aliás faz o Aresto anteriormente transcrito – e antes de cruzarmos as considerações jurídicas que reproduzimos com os factos emergentes da presente ação, definirmos, ainda que de forma sintética, a natureza e principais características da presente ação de reconhecimento do contrato de trabalho que, como ficou antes afirmado, se reconduz a uma ação declarativa de mera apreciação positiva[3].

Ressalta desde logo do inerente regime legal que a mesma tem uma tramitação não somente especial como particular, com alguns pontos de contacto com as ações emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais (artigos 26.º, n.ºs 1, alínea e), 3 e 4 e 99.º a 155.º do C.P.T.) e de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento (artigos 26.º, n.ºs 1, alínea a), e 5 e 98.-B.º a 98.º-P do C.P.T.), dado que estas últimas não só possuem natureza urgente como têm por base uma participação ou um formulário, iniciando-se a sua instância com a apresentação/recebimento dos mesmos.

A diferença entre a fase conciliatória dos autos de acidentes de trabalho e aquela que tem inicialmente lugar, em termos latos e pouco rigorosos, no âmbito desta ação, é que aquela se integra, de pleno direito, na correspondente instância, ao passo que tal não acontece aqui, havendo uma fase prévia que decorre na ACT, que, ao invés do que com aquela fase conciliatória ocorre, não possui cariz judicial, muito embora uma e outra possam esgotar, por si e em si, o objeto do correspondente procedimento (cfr. n.º 2 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14/9 e 109.º, 111.º e 114.º do C.P.T.)[4].

O ato despoletador de um processo como este, à imagem do que se verifica com a ação especial de despedimento, é apenas um e de índole formal, radicando-se, nesta última, num formulário-tipo e naquele na participação da ACT.

Importa referir que a ACT é a única entidade competente para levantar o auto a que alude o número 1 do artigo 15.º-A do RPCOLSS e desenvolver as diligências preliminares igualmente aí elencadas (cfr., muito significativamente, o n.º 2 do artigo 186.º-K do Código do Processo do Trabalho) e que, com a participação ao Ministério Público do Tribunal do Trabalho, se «suspende até ao trânsito em julgado da decisão o procedimento contraordenacional ou a execução com ela relacionada», ou seja, os autos de contraordenação ou de execução relativos à dita infração (falso trabalho autónomo) ficam parados, a aguardar o julgamento definitivo na ação laboral.

O Ministério Público, por outro lado, recebe no tribunal do trabalho tal participação da ACT e tem o prazo de 20 dias para apresentar a petição inicial, desde que entenda haver elementos suficientes para o efeito, fazendo-o em representação do Estado e para defesa, em primeira linha, dos interesses públicos pelo mesmo prosseguidos (cfr. artigos 1.º, 2.º e 3.º, al. a) do EMP) e não (apenas) do interesse privado “trabalhador” que, convirá dizê-lo, pode nem sequer ter qualquer intervenção nos autos, conforme decorre da falta de contestação do empregador e do disposto no artigo 186.º-M do C.P.T. e nunca é (pode ser) patrocinado pelo Ministério Público mas apenas por advogado nomeado ou constituído.[5]                        

Tal interesse público acha-se descrito por Pedro Petrucci de Freitas[6] nos seguintes moldes:

«A Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, instituiu mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado através de um procedimento administrativo da competência da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e de um novo tipo de ação judicial, a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, passando esta última a constar no elenco do art.º 26.º do Código de Processo do Trabalho.

O objetivo indicado no art.º 1.º desta Lei, ou seja, a instituição dos referidos mecanismos, corresponde a uma intervenção marcadamente política de resposta a um grave problema social, e, quanto a nós, a um culminar de anteriores alterações legislativas ([7]/[8]) com o propósito de se atingir um nível de “decent work”([9]), — tal como propugnado por instâncias internacionais -, e de se eliminar o fenómeno da precariedade laboral.

A utilização indevida da figura do contrato de prestação de serviços em relação de trabalho subordinado não é um fenómeno novo, e conduz, inclusivamente, à concorrência desleal entre empresas. Conforme se refere no relatório elaborado pelo Grupo de Ação Interdepartamental da organização Internacional do Trabalho: “ (...) para a empresa empregadora, a possibilidade de subcontratar tarefas ao trabalhador por conta própria “dependente” constitui uma oportunidade de poupar custos e de -no fundo - partilhar o risco empresarial. A empresa empregadora não se vê obrigada a pagar contribuições para a segurança social, seguros ou direitos relativos a férias e dias feriados; as transações relacionadas com a gestão de recursos humanos estão reduzidas ao mínimo e não há lugar a procedimentos e pagamentos com o fim da relação negocial entre as partes” ([10]).

De acordo com este relatório, os trabalhadores por conta própria representam 17,1% do emprego total, dos quais 11,6% são trabalhadores por conta própria como isolados (sem empregados a cargo) ([11]), sendo que na Eu-27, a percentagem média do trabalho por conta própria relativamente ao emprego total é de 15,8%, sendo 10,2% os trabalhadores por conta própria como isolados ([12]). Por seu turno, uma análise dos dados divulgados pela ACT, no que respeita à ação inspetiva no âmbito do trabalho declarado e do trabalho irregular permite identificar 326 casos de regularização de contratos de trabalho dissimulados em 2009, 436 casos em 2010, 1144 casos em 2011 e 396 casos em 2012, tendo, neste último ano, sido efetuadas 64 advertências e registadas 219 infrações ([13]).

Independentemente da leitura que se possa fazer destes dados, não pode naturalmente a ordem jurídica deixar de criar mecanismos de combate e penalização de situações inequivocamente violadoras da lei com efeitos nocivos transversais, e com um impacto mais abrangente do que aquele que se possa identificar à partida, se incluirmos neste raciocínio a problemática da sustentabilidade dos sistemas de pensões em face da entrada tardia dos jovens no mercado de trabalho propriamente dito, e pela menor entrada de contribuições que o trabalho dissimulado (e também o trabalho não declarado) representam.»

Julgamos este excerto doutrinário assaz expressivo dos interesses de cariz não privado ou particular que se visam acautelar através da consagração deste novo tipo de ação (convindo ainda realçar a origem popular desse regime legal) e que moldam inequivocamente a interpretação das correspondentes normas jurídicas e a tramitação adjetiva que delas deriva.     

F – POSIÇÃO DO TRABALHADOR E DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA AÇÃO

Argumentar-se-á, contudo, que a “trabalhadora” visada nesta ação prestou declarações no sentido de nunca ter mantido uma relação de índole laboral com a Ré e nem sequer pretender um vínculo dessa natureza com ela, por força do contrato que mantém com o Estado, igualmente no setor da saúde.

Será que a intervenção superveniente do “trabalhador” nos autos altera as regras de jogo processuais, com a substituição do Ministério Público por ele ou, ao menos, a sua secundarização/minimização em termos de posição e papel a desempenhar no âmbito da ação em análise, passando aquele interveniente a ter a posição principal nos autos e prevalecendo a sua vontade sobre a daquele magistrado? E, a ser assim, a emissão de uma declaração como a dos autos pode gerar o imediato arquivamento dos autos, por via da falta de interesse em agir do Ministério Público, da inutilidade superveniente da lide ou de outra causa legítima da extinção da instância (desistência da mesma, por exemplo)?

Afigura-se-nos que a resposta a todas essas dúvidas tem de ser negativa, em função do que já anteriormente se deixou exposto e defendido, nunca deixando o Ministério Público de ser o Autor da dita ação e de ter uma posição de charneira em todo o seu processamento, sem prejuízo da possibilidade de o “trabalhador “ também aí ser chamado a intervir, com a adesão ao articulado do Ministério Público ou apresentação de articulado autónomo e constituição de advogado (n.º 4 do artigo 186.º-L do C.P.T.), muito embora, não o fazendo, a ação não deixe de prosseguir os seus termos normais, com a oportuna produção de prova e julgamento da causa, em termos favoráveis ou desfavoráveis à entidade demandada.

No que concerne à posição processual do Ministério Público e do trabalhador, veja-se o que Diogo Ravara e Viriato Reis[14] defendem a este respeito, com fundamento, designadamente, no interesse público subjacente a este tipo de ação:     

«Questão mais complexa e delicada parece ser a da determinação da posição processual do trabalhador.

Com efeito, o art. 186.º-L, n.º 4 do CPT estipula que o mesmo é notificado da petição inicial e da contestação, podendo constituir mandatário e aderir ao articulado do MP ou apresentar articulado próprio.

Uma tal modelação indicia que o trabalhador terá a posição processual de assistente (arts. 326.º e segs. do CPC2013). A ser assim, não poderá o mesmo sustentar posição conflituante com a defendida pelo MP, e o efeito de caso julgado da ação apenas o vincula se intervier no processo (vd. arts. 327.º, n.º 1, 328.º, n.º 1 e 2, e 332.º do CPC2013).

Deve ter-se presente que toda a regulamentação do regime legal aponta no sentido de se ter de considerar que na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho estão subjacentes interesses de ordem pública.

Com efeito, a mesma é despoletada pela intervenção da ACT no âmbito da sua atividade inspetiva, devendo o inspetor da ACT lavrar um auto sempre que verificar “a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas ao contrato de trabalho, nos termos descritos no art.º 12.º do Código do Trabalho” (n.º 1, do art.º 15.º-A do RPCLSS), e tendo a ACT de remeter a participação ao Ministério Público se, depois de dar a oportunidade ao empregador de regularizar a situação, este o não fizer. Sendo certo, que também decorre com clareza da lei, que a “regularização” exige a assunção da existência relação laboral por parte do empregador, conforme resulta do conjunto das previsões dos n.ºs 1, 2 e 3, do art.º 15.º-A, mas muito especialmente do disposto no n.º 2, que prevê expressamente que o empregador faça a “prova da regularização da situação do trabalhador”, através do contrato de trabalho ou de outro documento que comprove a sua existência.

Acresce que, entendendo o Ministério Público que os elementos com que está instruída a participação da ACT são de molde a permitir a apresentação da petição inicial da ARECT, a intervenção do MP nesta ação se fará em homenagem à defesa da legalidade democrática e não propriamente, ou não em primeiro lugar, para proteção do interesse particular do trabalhador, prevalecendo, por isso, a defesa do interesse público, que aqui se traduz na exigência imposta pela Constituição e pela Lei de que as relações de trabalho subordinado sejam como tal reconhecidas e tratadas pelas partes nas mesmas.

O que deve ser feito tendo em vista, por um lado, a garantia dos direitos constitucionais dos trabalhadores e o cumprimento das normas legais que disciplinam as relações laborais e, por outro, evitar que seja distorcida a concorrência leal entre as empresas, impedindo o “dumping social”. Trata-se, no fundo, de combater a economia informal e de promover o trabalho digno, conforme tem sido defendido pela OIT ([15]),e bem assim de dar cumprimento às orientações das instituições da União Europeia quanto às medidas a tomar pelos Estados Membros relativamente ao trabalho não declarado.([16])

Assim, estando em causa interesses de ordem pública na ARECT, afigura-se que da conciliação prevista no art.º 186.º-O do CPT, apenas pode resultar um acordo de “estrita legalidade”, à semelhança do que sucede no processo emergente de acidente de trabalho, não podendo relevar a eventual manifestação de vontade das partes contrária aos indícios de subordinação jurídica e, por isso, à verificação da presunção de laboralidade que motivaram a participação dos factos feita ao Ministério Público pela ACT e integram a causa de pedir invocada na petição inicial da ação.

Sendo os factos de que se dispõe na ação até esse momento da tramitação processual os mesmos que a ACT havia apurado, enquanto indícios da subordinação jurídica, aquando da elaboração do auto previsto no n.º 1, do art.º 15.º-A, do RPCLSS, a conciliação a realizar no processo judicial apenas pode ter como objetivo a “regularização da situação do trabalhador” que o empregador podia ter efetuado antes de a participação ter sido remetida pela ACT ao Ministério Público. Nesta perspetiva, o Ministério Público deverá manifestar a sua oposição a um eventual acordo entre o trabalhador e o empregador que passe pela recusa da aceitação da existência de uma relação de trabalho subordinado e, por sua vez, o juiz não poderá dar como verificada a legalidade de um acordo celebrado nesses termos (cfr. o disposto no art.º 52.º, n.º 2, do CPT). Questão diferente é a do resultado final da ação, o qual depende, naturalmente, da prova produzida no processo, designadamente na audiência de julgamento, e que pode conduzir à improcedência da ação.

Já se se admitir que o trabalhador tem a posição processual de parte principal, haverá que reconhecer que o mesmo pode sustentar posição oposta à defendida pelo MP, na medida em que sendo parte principal será forçosamente abrangido pelo efeito de caso julgado da sentença, ainda que não tenha qualquer intervenção no processo.

O que não pode é sustentar-se que o trabalhador é parte principal, mas não pode divergir substancialmente da posição do MP, na medida em que tal violaria frontalmente o princípio do acesso à justiça, e o direito a um processo equitativo, consagrados no art. 20.º da CRP e no art. 6.º da CEDH.»

Sendo o Ministério Público a única entidade com legitimidade para propor esta ação e fazendo-o em representação do Estado e, fundamentalmente, na prossecução de interesses e finalidades de índole coletiva (designadamente, para a defesa da legalidade democrática, nos termos da Constituição, do correspondente Estatuto e da lei - artigo 1.º do EMP), surgindo, nessa medida e em termos adjetivos, a defesa por essa magistratura dos interesses privados do “trabalhador” num plano acessório e mediato, é inevitável que a posição do Ministério Público prevaleça sobre a posição desse “trabalhador”, quando da sua intervenção formal ou informal nos autos, dado os interesses particulares que este defende não se poderem sobrepor aos objetivos e resultados de cariz público que são perseguidos pelo Estado, através desta ação especial e da sua propositura pela referida magistratura.

Logo, nunca será possível equiparar o papel e a posição processuais do Ministério Público, enquanto Autor da ação, e do “trabalhador”, mero assistente daquele no quadro e tramitação da mesma (cfr. artigos 326.º e seguintes do NCPC)[17].                  

Mais, admitir, na arquitetura adjetiva da presente ação e atendendo às razões de natureza material que estão na sua génese e implementação, que basta a intervenção, formal ou informal, do “trabalhador” concretamente visado pela mesma para, através de uma declaração favorável à entidade beneficiária dos seus serviços, obstar ao seu prosseguimento é subverter em absoluto a filosofia que presidiu à sua criação pelo legislador (laboral?) bem como o conteúdo, sentido e alcance de tal instrumento processual de combate à praga que são os “falsos recibos verdes” ou os pretensos “profissionais liberais”.                      

Tal significa que o Ministério Público terá sempre uma palavra decisiva a dizer em tudo o que discuta ou acorde em tal ação (designadamente, no âmbito da conciliação prevista no número 1 do artigo 186.º-O do C.P.T.) sendo juridicamente irrelevante qualquer declaração ou atitude levada a cabo pelo trabalhador, que não seja acompanhada e sancionada por aquele magistrado, que está ali em representação do Estado.                             

G – ANÁLISE DO LITÍGIO DOS AUTOS 

Chegados aqui e face ao que se deixou antes exposto, fácil se torna concluir pela procedência do presente recurso de Apelação do Ministério Público, pois não somente as declarações prestadas pela “trabalhadora” são juridicamente irrelevantes – tanto mais que a mesma nem sequer teve uma intervenção formal através de adesão à Petição Inicial do Ministério Público, apresentação de uma articulado autónomo e constituição de um advogado, passando por essa via a ter a posição processual de assistente, como vimos - e não afetaram minimamente os interesses de índole coletiva prosseguidos por aquele magistrado, que nem sequer figura nos autos como mero representante ou no exercício do patrocínio da dita trabalhadora mas antes como Autor “tout court”, com uma posição autónoma e independente da dela.

Sendo assim, limitamo-nos a reproduzir o Sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/9/2014 já antes identificado e transcrito em termos de fundamentação, com o seguinte teor:

«I – Analisando o regime legal condensado na Lei nº 63/2013, de 27 de agosto, que veio alterar a Lei nº 107/2009, de 14 de setembro e o Cód. Proc. Trab., observamos que o escopo, essencial e exclusivo, intencionalmente querido pelo legislador e por ele explicitado no art.º 1.º foi o de instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado.

II – Com o mecanismo instituído o legislador não visou apenas combater a precaridade de emprego: caso a ação seja julgada procedente, o empregador não só terá de garantir ao colaborador, com efeitos retroativos e também para o futuro, os mesmos direitos que a lei confere aos trabalhadores vinculados por contrato de trabalho sem termo (tais como pagamento de férias, subsidio de férias e Natal, trabalho suplementar, etc.) como terá de se confrontar com uma contingência fiscal e contributiva, designadamente a liquidação de taxa contributiva prevista para o regime geral dos trabalhadores por conta de outrem.

III – Sempre que a pretensão em concreto formulada pelas partes não assume uma verdadeira dignidade jurisdicional, seja por falta de um direito subjetivo ou interesse legítimo a salvaguardar, ou quando estes possam ser salvaguardados por uma intervenção não judiciária, a jurisprudência tem defendido e reconhecido a falta de interesse em agir como pressuposto processual, de natureza atípica, que constitui uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso conducente à absolvição da instância ou, quando superveniente, uma causa de extinção da lide, por inutilidade.

IV – Frustrada a conciliação na audiência de partes, o facto de o trabalhador, no início do julgamento ter declarado não aderir ao articulado do Ministério Público, antes confirmando a posição da ré, segundo a qual existe um verdadeiro contrato de prestação de serviços não retira o escopo ou utilidade à ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não constituindo tal declaração fundamento quer para a extinção da lide por inutilidade quer – menos ainda - para a absolvição da instância.»

Logo, este recurso de Apelação, pelos motivos expostos, tem de ser julgado procedente, com a revogação do despacho recorrido e a determinação do normal prosseguimento dos autos.                

IV – DECISÃO

Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 713.º do Código de Processo Civil, acorda-se, neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto por MINISTÉRIO PÚBLICO, revogando-se, nessa medida, o despacho recorrido e ordenando-se anormal e subsequente tramitação dos autos.                          

*

Sem custas.

Registe e notifique.

Lisboa, 08 de Outubro de 2014     

 

José Eduardo Sapateiro

Sérgio Almeida (votou a decisão)

Jerónimo Freitas


[1] Cfr., também o artigo  26.º, alínea i) do Código do Processo do Trabalho
, que atribui natureza urgente a essa nova ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, convindo ainda atentar no número 6 da mesma disposição legal, quando estatui que «Na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a instância inicia-se com o recebimento da participação.»
Não será despiciendo realçar as alterações que a referida Lei n.º 63/2013, de 27/08 introduziu na Lei n.º 107/2009, de 14/09, que aprovou o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social, tendo aditado um número 3 ao seu artigo 2.º, bem como aditado um artigo 15.º-A a esse diploma, com o seguinte teor:
Artigo 2.º
Competência para o procedimento de contraordenações
1 - O procedimento das contra -ordenações abrangidas pelo âmbito de aplicação da presente lei compete às seguintes autoridades administrativas:

a) À Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), quando estejam em causa contraordenações por violação de norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito de relação laboral e que seja punível com coima;

b) Ao Instituto da Segurança Social, I. P. (ISS, I. P.), quando estejam em causa contra -ordenações praticadas no âmbito do sistema de segurança social.

2 - Sempre que se verifique uma situação de prestação de atividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado ou a falta de comunicação de admissão do trabalhador na segurança social, qualquer uma das autoridades administrativas referidas no número anterior é competente para o procedimento das contra -ordenações por esse facto

3 - A ACT é igualmente competente e deve instaurar o procedimento previsto no artigo 15.º -A da presente lei, sempre que se verifique uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, que indicie características de contrato de trabalho, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro.

Artigo 15.º -A

Procedimento a adotar em caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviços

1 - Caso o inspetor do trabalho verifique a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas ao contrato de trabalho, nos termos descritos no artigo 12.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.

2 - O procedimento é imediatamente arquivado no caso em que o empregador faça prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral.

3 - Findo o prazo referido no n.º 1 sem que a situação do trabalhador em causa se mostre devidamente regularizada, a ACT remete, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público da área de residência do trabalhador, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

4 - A ação referida no número anterior suspende até ao trânsito em julgado da decisão o procedimento contraordenacional ou a execução com ela relacionada.
[2] Este Aresto foi igualmente subscrito, na sua qualidade de segundo Adjunto, pelo relator do presente recurso de Apelação. 
[3] Consultar, em termos gerais e a respeito deste tipo de ação, não somente os autores e textos que iremos identificar ao longo deste Aresto, mas ainda os seguintes: Paulo Sousa Pinheiro, “Curso Breve de Direito Processual do Trabalho”, 2.ª Edição Revista e Atualizada, Junho de 2014, Coimbra Editora, páginas 173 e seguintes, Luís Gonçalves da Silva, “LEI N.º 63/2013, DE 27 DE AGOSTO: INSTITUIÇÃO DE MECANISMOS DE COMBATE À UTILIZAÇÃO INDEVIDA DO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EM RELAÇÕES DE TRABALHO SUBORDINADO”, publicado em Setembro de 2013, no Fórum Jurídico, Abreu e Advogados, Instituto do Conhecimento, Direito do Trabalho, em www.abreuadvogados.com/oqf_inst_conhecimento_forum_juridico.php e Rita Bettencourt, “Mecanismos de Combate à Utilização Indevida do Contrato de Prestação de Serviços em Relações de Trabalho Subordinado (Lei n.º 63/2013 de 27 de Agosto de 2013), de 9 de Setembro de 2013, no sítio da sociedade de advogados Coelho Ribeiro e Associados, em http://www.cralaw.com/cra_lisbon/pt/publics_Artigos.html.      
[4] «O novo procedimento administrativo (regulado no artigo 15.º-A do regime processual aplicável às contraordenações laborais, constante da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro) traduz-se na possibilidade de a ACT, ao ser confrontada com uma situação que, no seu entender, configure uma relação de trabalho subordinado disfarçada sob a aparência de um contrato de prestação de serviço (ou seja, de trabalho autónomo), notificar o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação ou, caso o não entenda fazer, se pronunciar sobre a situação. Se o empregador se conformar com a posição da ACT e regularizar a situação – reconhecendo a existência de um contrato de trabalho, apresentando o correspondente contrato ou outro documento comprovativo da existência do mesmo, e reportando os efeitos à data do início da prestação de trabalho – o procedimento é arquivado. Tal significa que o mesmo é encerrado sem aplicação de qualquer coima». (Pedro Furtado Martins/Maria Ana Fonseca em “NOVOS PROCEDIMENTOS PARA COMBATER A UTILIZAÇÃO INDEVIDA DE CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO EM SITUAÇÕES DE TRABALHO SUBORDINADO (LEI N.º 63/2013,DE 27 DE AGOSTO) ”, publicado em 10/9/2013, em www.servulo.com (“Momentum Laboral”).  


[5] Cfr., neste preciso sentido, o seguinte excerto retirado da página da Internet do Jornal Económico, de 26/9/2014, da autoria do advogado Rui Tavares Correia: 
«Esta nova forma de processo laboral traz uma inovação de relevo: se antes a questão apenas poderia ser suscitada em ação movida pelas partes que haviam celebrado o contrato em discussão, agora, a legitimidade para instaurar essa ação pertence ao Ministério Público após participação feita pela A.C.T.. O exercício dos direitos em questão sai, por isso, da esfera privada das partes, passando a ser cometido ao Estado, através do seu representante, o Ministério Público. Deste modo, deixou de ser relevante saber se o alegado trabalhador, que não teve a iniciativa de iniciar a ação, pretendia ou discutir a questão em causa…» (sublinhado nosso)
[6] No texto intitulado «DA ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO: BREVES COMENTÁRIOS», datado de 9/1/2014 e publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73 - Vol. IV - Out./Dez -2013, páginas 1423 e seguintes e que pode ser consultado no sítio da Ordem dos Advogados, em “Publicações”.
O autor do referido texto informa, em Nota de Pé de Página, que o mesmo «corresponde parcialmente ao desenvolvimento da exposição do tema “Novas armas no combate aos falsos recibos verdes e a renovação extraordinária de contratos de trabalho a termo”, apresentado no dia 11 de Dezembro de 2013 na conferência “Novos desafios das relações laborais”, organizada pela Confederação do Turismo Português, que teve lugar no Hotel Tivoli, em Lisboa.».     

[7] «A Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, que instituiu o atual Código do Trabalho, estabeleceu no art.º 12.º um regime que potencia uma maior restrição/dissuasão quanto à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relação de trabalho subordinado ao presumir (presunção iuris tantum) a existência de um contrato de trabalho quando se verifiquem algumas das características indicadas nas als. a) a e) do n.º 1 deste art.º, agravando, ao mesmo tempo, a punição pela referida utilização (indevida), e sancionando o beneficiário da atividade/empregador com contraordenação muito grave punível com coima. A isto acresce a sanção acessória de privação do direito a subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público até dois anos, em caso de reincidência, para além de determinar que pelo pagamento de coima são solidariamente responsáveis o empregador, as sociedades que com este se encontrem em relações de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, bem como o gerente, administrador ou diretor, nas condições a que se referem os arts. 334.º e 335.º do Código do Trabalho (v. n.ºs 2 a 4 do art.º 12.º do Código do Trabalho). Sobre a presunção prevista no art.º 12.º do Código do Trabalho vide a explicação dada no Livro branco das Relações Laborais, MTSS, 2007, pp. 102 e 103.» (Nota de Rodapé do autor transcrito)
[8] «Outra medida legislativa com idêntico objetivo, ainda que indireto, encontra-se refletida no n.º 5 do art.º 150.º da Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro (Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social), a qual prevê a notificação dos serviços de inspeção da ACT ou dos serviços de fiscalização do Instituto da Segurança Social, I.P., nos casos em que se constitui a obrigação contributiva das entidades contratantes, o mesmo é dizer, sempre que as pessoas coletivas e as pessoas singulares, independentemente da sua natureza e das finalidades que prossigam, beneficiem, no mesmo ano civil, de pelo menos 80% do valor total da atividade do trabalhador independente (v. n.º 1 do art.º 140.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social). Em suma, o legislador considerou que da prestação, por um trabalhador independente, em mais de 80% do valor da sua atividade a uma única entidade contratante (na aceção acolhida pelo Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social) resultaria indiciada uma eventual relação subordinada de trabalho, conduzindo ao acionamento de mecanismos de fiscalização. Não obstante, a nossa experiência profissional tem demonstrado a criatividade das entidades contratantes em contornar a lei, nomeadamente através da imposição aos prestadores de serviços da criação de sociedades unipessoais por quotas, a quem, formalmente, passam a pagar o valor dos serviços prestados.» (Nota de Rodapé do autor transcrito)
[9] «Recorremos a uma expressão em voga em diversos documentos de instâncias internacionais que analisam o tema do emprego e do mercado de trabalho, e que pode ser traduzido para português por “trabalho digno”». (Nota de Rodapé do autor transcrito)
[10] «Relatório preparado pelo Grupo de Ação Interdepartamental da OIT sobre os países em crise para a conferência “Enfrentar a Crise do Emprego em Portugal: que caminhos para o futuro?”, Lisboa, 4 de Novembro de 2013, p. 19, disponível para consulta em «www.ces.uc/ficheiros/files2/versaofinal_OIT_Relat_EnfrentarCriseEmprego_20131101.pdf». (Nota de Rodapé do autor transcrito)
[11] «Reproduzimos os conceitos referidos neste relatório» (Nota de Rodapé do autor transcrito).
[12] «Idem, p. 20. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística constantes deste relatório estimava-se em 77.000 o número de “falsos recibos verdes” em Portugal no ano de 2010 (v. p. 23 deste Relatório).» (Nota de Rodapé do autor transcrito)
[13] «Atividade de Inspeção do Trabalho, Relatório de 2012, pp. 123 e 124, disponível para consulta em www.act.gov.pt.» (Nota de Rodapé do autor transcrito)
[14] No texto por ambos elaborado, denominado de “Reforma do Processo Civil e do Processo do Trabalho, que pode ser encontrado no seguinte link: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Caderno_IV_Novo%20_Processo_Civil_2edicao.pdf

[15]  «Sobre esses conceitos e as tomadas de posição da OIT relativamente a esta matéria, particularmente a Recomendação n.º 198 da OIT, de 2006, sobre a relação de trabalho, pode ver-se “Trabalho não declarado e fenómenos conexos”, Escolar Editora, 2013, máxime pp. 20 e segs. e 282 e segs., da autoria de António J. Robalo dos Santos, que atualmente exerce funções como Subinspetor-geral da ACT.» -Nota de Rodapé dos autores.

[16]  «Para uma análise desenvolvida da intervenção das instituições da União Europeia no que toca à problemática do trabalho não declarado, veja-se a obra citada na nota anterior, pp. 30 e segs. e 296 e segs.» -Nota de Rodapé dos autores.

[17] Cfr., igualmente neste sentido, Alcides Martins, “Direito do Processo Laboral – Uma síntese e Algumas Questões”, 2014, Almedina, página 237.

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