Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2243/13.8TBSXL-K.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
ADMISSIBILIDADE
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1 - O caso julgado forma-se no processo de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos (ditos de jurisdição contenciosa) e com a mesma força e eficácia que ocorre nos exactos termos previstos nos artigos 620º e 621º do Código de Processo Civil.
2 - Apenas sucede que as resoluções tomadas nos processos de jurisdição voluntária, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”. Ou seja, qualquer resolução pode ser livremente alterada, embora haja transitado em julgado.
3 – Apenas se estará perante uma situação de caso julgado quando uma anterior decisão apreciou o mesmo ponto concreto, a mesma questão concreta, de direito ou de facto.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A, casado, titular do Cartão de Cidadão nº …, residente na Rua …, Lisboa, intentou contra B divorciada, residente na Rua …, Fernão Ferro, por apenso a acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente aos filhos de ambos, DR e VR, processo de jurisdição voluntária por falta de acordo em questão de particular importância, ao abrigo do disposto no art.º 44º., n.º 1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível[1], requerendo que seja proferida decisão que autorize a transferência de estabelecimento escolar e matrícula das crianças, suprindo o consentimento da requerida e, em consequência, ordene a respectiva matrícula nos estabelecimentos de ensino indicados na petição inicial, por tal se revelar conforme aos seus superiores interesses (cf. Ref. Elect. 36502243).
Alegou, para o efeito, o seguinte:
- Por sentença proferida a 13 de Julho de 2016, foi homologado o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais em que se estipulou, entre o mais, que os “progenitores exercerão conjuntamente as responsabilidades parentais relativamente às questões de particular importância para a vida dos filhos, tais como saúde, educação, actividades de lazer, formação moral e religiosa, administração do património e autorizações de saídas de território nacional, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível”;
- Foram introduzidas alterações posteriores no acordo, designadamente, que o cargo de encarregado de educação dos menores será exercido de modo alternado pelos progenitores, cabendo ao requerente no ano lectivo de 2023/2024 e, como tal, competindo-lhe proceder à inscrição e matrícula em estabelecimento de ensino, que deve ser escolhido por acordo entre os pais;
- O requerente transmitiu à requerida que, no seu entender, as crianças deveriam mudar de agrupamento escolar, atentas as avaliações curriculares e comportamentais, sem que esta respondesse, pelo que optou por iniciar o processo de matrícula dos filhos, escolhendo as 5 escolas que lhe pareciam mais adequadas, com o fito de saber se tinham ou não vagas;
- Entende que os actuais estabelecimentos de ensino dos filhos já não são os melhores para satisfazer as necessidades destes, face aos resultados e comportamentos, que vieram a piorar durante o último ano lectivo, sendo que os próprios filhos manifestaram junto de ambos os progenitores vontade de mudar de estabelecimento de ensino;
- Sugere diversos estabelecimentos que proporcionam melhor formação académica, na área de residência dos filhos, que é em Lisboa e no Seixal.
Em 21 de Julho de 2023 foi proferido despacho que, referindo que a questão relativa aos estabelecimentos de ensino a frequentar pelos filhos do requerente “parece estar decidida pelo despacho proferido a 26/06/2023 no Apenso H”, ordenou a notificação da requerida para se pronunciar, no prazo de cinco dias, quanto ao requerimento e informar se concorda com a mudança de estabelecimento de ensino ou se entretanto chegou a acordo com o pai (cf. Ref. Elect. 427703096).
Por requerimento de 31 de Julho de 2023 a requerida veio opor-se à pretensão do requerente, dando conta que, quando o Tribunal foi confrontado com a mudança de estabelecimento de ensino das crianças, sem audição destas ou da progenitora, proferiu decisão, no apenso H, em 26 de Junho de 2023, que resolveu definitivamente a situação, mantendo os menores nos estabelecimentos que frequentavam, decisão de que aquele não recorreu; a requerida não concorda com a mudança de escolas (cf. Ref. Elect. 36675284).
Em 2 de Agosto de 2023 o Ministério Público promoveu que fosse designada data para audição dos jovens (cf. Ref. Elect. 427893272).
Em 3 de Agosto de 2023 foi proferida decisão que considerou que a questão colocada foi resolvida pela decisão proferida em 26 de Junho de 2023, no apenso H, que não foi objecto de recurso, tendo transitado em julgado, sendo que a factualidade agora alegada não é superveniente à prolação desse despacho e se reporta a questões que já emergiam então dos autos, pelo que, invocando a excepção de caso julgado, absolveu a requerida da instância, com o consequente arquivamento dos autos (cf. Ref. Elect. 427909247).
Inconformado com esta decisão, o requerente veio interpor o presente recurso cuja motivação concluiu do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 36805240):
a) O ora recorrente, no presente ano lectivo de 2023/2024, assume o cargo de Encarregado de Educação dos menores DR e VR, em cumprimento do acordo alcançado em 23 de Setembro de 2020, no âmbito do Apenso H, no qual se discutia a alteração do regime das responsabilidades parentais.
b) Destrate, é àquele que compete, de acordo com a Lei 51/2012, de 05 de Setembro [Estatuto do Aluno e Ética Escolar], mormente nos artigos 43º. e 5º, e com o Despacho Normativo n.º 1-B/2017, de 17 de Abril, mormente no artigo 4.º, n.º 2, alínea a), proceder à inscrição e matrícula em estabelecimento de ensino.
c) Tendo em consideração uma série de factores, considerou o ora recorrente que os menores DR e VR deveriam no presente ano lectivo transitarem para diferentes estabelecimentos escolares dos que tinham frequentado no ano transacto, sendo, porém, certo que, para tanto, carece do consentimento expresso da recorrida.
d) Aconteceu, porém, que, chegado o período para realizar as matrículas escolares – de 22 a 28 de Junho, o ora recorrente não tinha, ainda, logrado o acordo da recorrida para a alteração dos estabelecimentos escolares, pelo que, e temendo perder a oportunidade de ver os seus filhos frequentar as escolas que no seu entender melhor assegurariam o seu desenvolvimento e progressão, deu, ainda assim, início ao processo de matrícula procedendo no dia 23 de Junho de 2023 ao registo daqueles nos estabelecimentos escolares pretendidos.
e) Fê-lo, é certo, sem requerer antecipadamente a intervenção do Tribunal para dirimir tal questão, considerando que, no entretanto, a recorrida pudesse dar o seu consentimento sem necessidade de, mais uma vez, recorrer aos meios judiciais, não perdendo deste modo as vagas naqueles estabelecimentos.
f) No dia 26 de Junho de 2023 – ou seja, três dias após aquele registo matricular – realizou-se, coincidentemente, a 2ª. sessão de julgamento no âmbito dos autos de alteração do regime das responsabilidades parentais que constitui o Apenso H, momento em que, o Mmo. Juiz que presidia o julgamento tomou conhecimento do início do processo de matrículas por banda do ora recorrente, através de requerimento que a recorrida havia dado entrada, naquele Apenso H, ainda no mesmo dia 23 de Junho.
g) Sendo que, e não obstante tal questão não constituir thema decidendum daquele apenso como o próprio fez questão de sublinhar, aquele Mmo. Juiz proferiu o despacho cuja transcrição, para uma melhor compreensão da discordância do ora recorrente com a sentença ora recorrida, se revela importante deixar em sede de conclusões:
h) Considerando que a matéria referente à frequência de estabelecimento de ensino circunscreve-se às questões de particular importância na vida dos menores e resultando dos autos que assim sendo tais alterações implicam um acordo que inexistiu entre os progenitores, não tendo sido requerida a intervenção do Tribunal, nos termos do disposto no artigo 44, do RGPTC, significa que os menores manterão o estabelecimento de ensino onde se encontram inscritos e matriculados, no ano de 2022/23 para 2023/24. Esta comunicação deve ser dirigida, de imediato, por ofício que assinarei, no dia de hoje, ao estabelecimento de ensino da matrícula de 2022/2023, comunique aos demais estabelecimentos de ensino, reforçando que a decisão do progenitor foi à revelia de qualquer acordo, devendo ser sustado o acto de matrícula.
i) Consequentemente, no pretérito dia 10 de Julho de 2023, o ora requerente fez, então, dar entrada da providência tutelar cível que deu origem ao presente Apenso, ao abrigo e nos termos do disposto no artº. 44º. do RGPTC, clamando pela transferência e matrícula dos menores DR e VR nos estabelecimentos de ensino que ali melhor identificou.
j) Mais ali requereu o ora recorrente que se procedesse a produção de prova, ouvindo-se para tanto os menores DR e VR e uma testemunha e ainda juntando documentos.
k) Após notificação da recorrida para se pronunciar e apresentação da resposta desta, veio, a final, a ser proferida a sentença de que ora se recorre, sem que qualquer outra diligência fosse feita, através da qual a Mma. Juiz a quo determinou o arquivamento dos autos por, no seu entender, se verificar a excepção do caso julgado.
l) Na verdade, considerou aquela Mma. Juiz a quo a questão ora suscitada pelo recorrente através dos competentes autos de providência tutelar cível com vista à resolução de diferendo relativo a questão de particular importância já se encontrava decidida pelo despacho proferido no dia 26 de Junho de 2023 pelo Mmº. Juiz de Julgamento no Apenso H, cujo teor se deixou transcrito supra.
m) Para tanto, alicerçou a sua decisão na convicção de que o Juiz do julgamento do Apenso H, com o despacho transcrito, havia feito um julgamento de mérito sobre a matéria que, só agora, através do presente Apenso K, foi submetida pela primeira vez a Juízo.
n) Convicção esta que, no entender do ora recorrente, inquinou, irremediavelmente, toda a decisão.
o) Pois que, ao assim entender, entendeu também que, o ora recorrente se havia conformado com o referido despacho, dele não tendo interposto recurso e que, por isso, se encontrava transitado em julgado, verificando-se, assim, a excepção do caso julgado
p) Acontece que, o despacho do Mmo. Juiz que presidia ao julgamento no âmbito do Apenso H, não decidiu sobre o mérito da causa.
q) Tratou-se, isso sim, de uma decisão provisória que visava tão só a sustação do processo de matrícula iniciado pelo ora recorrente, situação que apenas havia tomado conhecimento naquele exacto momento.
r) Tratando-se antes do tipo de despacho previsto no artº. 28º. do RGPTC, que no seu nº. 1 admite que o Tribunal decida provisoriamente de questão que deva vir a ser apreciada.
s) Sendo que, de tal despacho apenas caberia recurso no caso de o Mmo. Juiz o ter proferido sem antes ouvir as partes, o que sucedeu como se pode retirar da mera leitura da respectiva acta de julgamento (artº. 28º., nº. 5 a contrario sensu).
t) De resto, não é demais referir que aquela decisão foi tomada no âmbito de um julgamento que apenas dizia respeito à alteração do regime das responsabilidades parentais, tendo naquele dia a questão das inscrições escolares dos menores surgido a título meramente incidental.
u) Não entendendo, deste modo, o ora recorrente o que levou a Mma. Juiz a quo que proferiu a sentença ora sob recurso a considerar que sobre a questão de mudança de estabelecimento escolar, já as partes teriam antes levado ao conhecimento do Tribunal qualquer tipo de factos ou matéria e que, por isso, se estaria agora, nos presentes autos, meramente a repeti-los, forçando, desta forma, o argumento de que apenas seria possível modificar a “decisão anterior” “com base em alteração superveniente das circunstâncias que a determinaram”.
v) Quando o que, efectivamente, aconteceu foi que o Mmo. Juiz que presidia naquele dia ao julgamento do Apenso H, tendo tomado conhecimento, nesse mesmo dia de um acto praticado pelo ora recorrente três dias antes, proferiu um despacho cautelar, único que poderia ter proferido face ao inusitado conhecimento daquele acto, uma vez que, como ele próprio nele sublinha não havia sido requerida a intervenção do tribunal através do meio próprio, o qual é o procedimento previsto no artº. 44º. do RGTPC, ou seja, o que ora constitui o presente apenso.
w) Ainda assim, e não obstante a cuidada redacção daquele despacho, a Mma. Juiz a quo partiu da premissa de que o mesmo constituía uma decisão de mérito da causa e não uma decisão sobre uma questão incidental, trazida a latere no âmbito de um julgamento em que a causa de pedir, o pedido e os factos não tinham qualquer correspondência com o que ora está em causa, com o que inquinou a decisão final de arquivamento dos autos por verificação da excepção do caso julgado.
x) Assim sendo – como é – não pode considerar-se que a matéria ora trazida aos presentes autos se encontre julgada, por um despacho proferido cautelarmente com o único escopo de sustar as matrículas.
y) Pelo que, com a prolação da sentença ora sob recurso, não deu cumprimento, como deveria, ao disposto no artº. 44º., n.ºs 2 e 3, denegando, deste modo, a defesa dos interesses dos menores, fazendo uma errada interpretação e aplicação dos art.ºs 576º., nº. 2, 577º., alínea i), 580º., nºs. 1 e 2, 581º., 666º., nº. 1, 571º., 986º. e 988, nº. 1, todos do Código de Processo Civil, bem como dos art.ºs 28º., nºs. 1 e 5 e 44º. do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, a qual deverá, por isso, ser por Vossas Excelências revogada.
Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos com vista à resolução do diferendo atinente à mencionada questão de particular importância.
A requerida/recorrida contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida (cf. Ref. Elect. 36906737).
O Ministério Público contra-alegou também sustentando que foi proferida decisão sem que os autos lhe tivessem sido apresentados para se pronunciar e que a decisão de 26 de Junho de 2023 constitui um despacho de mero expediente, com a natureza apenas de esclarecer o regime do exercício das responsabilidades parentais quanto às questões de particular importância, não existindo identidade entre a intervenção solicitada pelos progenitores naquele apenso H e o decidido nessa matéria, sendo que o senhor juiz nem sequer estava na posse dos elementos necessários para decidir, pelo que não se verifica uma situação de caso julgado, devendo os autos prosseguir os seus trâmites habituais (cf. Ref. Elect. 37007811).
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[2], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, pág. 135.
Assim, perante as conclusões da alegação do apelante/requerente, a questão que se coloca consiste em saber se se verifica uma situação de caso julgado impeditiva do prosseguimento dos autos para apreciação e decisão sobre a pretensão do progenitor pai de mudança de estabelecimento de ensino relativamente aos filhos DR e VR.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra, sendo ainda de considerar os seguintes factos que os elementos constantes dos autos e seus apensos evidenciam:
1. DR, nasceu no dia 23 de Agosto de 2009 e é filho de A e de B.
2. VR, nasceu no dia 20 de Novembro de 2011 e é filho de A e de B.
3. Por sentença proferida em 13 de Julho de 2016, no âmbito do apenso B (processo n.º 2243/13.8TBSXL-B) de alteração da regulação do exercício das responsabilidade parentais foi homologado o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, no âmbito do qual ficou estipulado, entre o mais, que:
“Ponto 2º - 2.1 Os progenitores exercerão conjuntamente as responsabilidades parentais relativamente às questões de particular importância para a vida dos filhos, tais como saúde, educação, actividades de lazer, formação moral e religiosa, administração do património e autorizações de saídas de território nacional, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível”;
2.2 Cada um dos progenitores exercerá as responsabilidades parentais relativamente aos actos da vida corrente dos menores durante o tempo em que os tiver sob a sua guarda e entregue aos seus cuidados.” (cf. acta de 13 de Julho de 2016 lavrado no apenso B com a Ref. Elect. 355784466).
1. Em 18 de Janeiro de 2018 o progenitor pai apresentou novo requerimento para alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais que originou o apenso H (2243/13.8TBSXL-H)
2. Em 21 de Março de 2018, no contexto de conferência de pais realizada no apenso H foi proferida decisão, a título provisório, que, entre o mais, estabeleceu que as crianças DR e VR residirão conjuntamente com ambos os progenitores, em semanas alternadas, mais se estipulando os dias de entrega e recolha das crianças e os períodos de férias, sendo suprimido o pagamento de pensão de alimentos em face da guarda partilhada e sendo comparticipadas por ambos os progenitores as despesas escolares (cf. Ref. Elect. 374830128 do apenso H).
3. Em nova conferência de pais de 22 de Setembro de 2020, por acordo dos progenitores, foram introduzidas algumas novas cláusulas ao regime provisório anteriormente fixado, entre elas a seguinte:
“2. O cargo de encarregado de educação dos menores será no corrente ano letivo de 2020/2021 exercido quanto aos dois menores pela progenitora que deverá informar o pai de todas as informações que obtenha no exercício de tais funções. No ano lectivo de 2021/2022 será o progenitor a exercer o cargo de encarregado de educação de ambos os menores, devendo igualmente prestar por escrito à progenitora todas as informações que obtenha no exercício de tais funções.
Nos anos lectivos seguintes será da mesma forma, alternada e sucessivamente.”
4. Esta alteração foi homologada a título provisório, pelo período de seis meses (cf. acta de 22-09-2020 com a Ref. Elect. 398923205 do apenso H).
5. O progenitor exerce as funções de encarregado de educação relativamente aos jovens DR e VR no presente ano lectivo de 2023/2024.
6. No âmbito do apenso H, constatando-se a inviabilidade de acordo por parte dos progenitores, em 25 de Outubro de 2022, foi ordenada a notificação destes para apresentarem alegações ou arrolarem testemunhas (cf. Ref. Elect. 419956694 do apenso H).
7. A audiência de julgamento teve início no dia 18 de Abril de 2023 e prosseguiu por diversas sessões (cf. Ref. Elect. 425089787 do apenso H).
8. Por requerimento de 23 de Junho de 2023, a progenitora transmitiu aos autos ter tomado conhecimento, através da escola dos menores, que o pai estaria a tentar mudá-los de estabelecimento de ensino, o que fez sem consultar a mãe, tratando-se de questão a ser decidida em comum (cf. Ref. Elect. 36343622 do apenso H).
9. No âmbito da sessão da audiência de julgamento de 26 de Junho de 2023, o senhor juiz a quo, após ter tomado conhecimento da inscrição dos jovens em novos estabelecimentos de ensino promovida pelo progenitor e depois de referir que os estabelecimentos de ensino não constituíam uma questão a apreciar no contexto do apenso H, razão pela qual, aquando da audição do DR e do VR, tal matéria não tinha sido abordada nem estes sobre ela inquiridos e depois de afirmar, após audição dos progenitores: “Não é um acordo possível de alcançar entre os pais. Ponto número um. Não é um thema decidendum deste Tribunal neste preciso momento. Estamos entendidos?” proferiu o seguinte despacho:
Considerando que a matéria referente à frequência de estabelecimento de ensino circunscreve-se às questões de particular importância na vida dos menores e resultando dos autos que assim sendo tais alterações implicam um acordo que inexistiu entre os progenitores, não tendo sido requerida a intervenção do Tribunal, nos termos do disposto no artigo 44, do RGPTC, significa que os menores manterão o estabelecimento de ensino onde se encontram inscritos e matriculados, no ano de 2022/23 para 2023724.
Esta comunicação deve ser dirigida, de imediato, por ofício que assinarei, no dia de hoje, ao estabelecimento de ensino da matrícula de 2022/2023, comunique aos demais estabelecimentos de ensino, reforçando que a decisão do progenitor foi á revelia de qualquer acordo, devendo ser sustado o acto de matrícula.” (cf. acta com a Ref. Elect. 426975925 do apenso H e audição dos ficheiros multimédia relativos à gravação da audiência em causa).
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3.2. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Da verificação da excepção de caso julgado
O Tribunal recorrido absolveu a requerida da instância atinente ao presente processo de jurisdição voluntária, deduzido por apenso à acção de fixação do regime das responsabilidades parentais, que constitui o apenso K, mediante o qual o requerente, pai dos jovens DR e VR, veio requerer que o Tribunal decidisse sobre questão de particular importância – os estabelecimentos de ensino que devem frequentar – relativamente à qual não logrou alcançar um acordo com a requerida, considerando que tal questão já fora apreciada e decidida pelo Tribunal, no despacho que proferiu em 26 de Junho de 2023, no âmbito do apenso H.
Para o efeito, o Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:
“II - A questão colocada nos autos pelo Requerente nestes autos, a nosso ver, salvo melhor opinião relativa aos estabelecimentos de ensino a frequentar pelos seus filhos DR e VR no ano letivo 2023/2024 mostra-se já decidida pelo despacho proferido a 26/06/2023 no Apenso H) - despacho transitado em julgado.
Na verdade deste despacho consta que “ a matéria referente à frequência de estabelecimento de ensino circunscreve-se às questões de particular importância na vida dos menores e resultando dos autos que assim sendo tais alterações implicam um acordo que inexistiu entre os progenitores, não tendo sido requerida a intervenção do Tribunal, nos termos do disposto no artigo 44, do R.G.P.T.C., significa que os menores manterão o estabelecimento de ensino onde se encontram inscritos e matriculados, no ano de 2022/23 para 2023/24.
Esta comunicação deve ser dirigida, de imediato, por ofício que assinarei, no dia de hoje, ao estabelecimento de ensino da matrícula de 2022/2023, comunique aos demais estabelecimentos de ensino, reforçando que a decisão do progenitor foi à revelia de qualquer acordo, devendo ser sustado o ato de matrícula.
Oficie e notifique.” (todos os destacados da nossa autoria).
Não vemos, pois, como pode o requerente em data posterior a tal decisão, a qual não foi impugnada vir intentar o presente incidente, o qual antes não havia feito nem suscitado com base em factos já anteriores à mesma - sendo que em cumprimento da decisão judicial as escolas já terão formalizado as matrículas nas escolas que os menores frequentavam.
Na verdade, é aceite por todos que em matéria de critérios de julgamento os processos de jurisdição voluntária, como é o caso dos autos, não estão sujeitos a regras de legalidade estrita, mas sim a ditames “ex-aequo et bono”.
Para além disso, os mesmos processos têm também outras características singulares de que se destaca a predominância do princípio do inquisitório na investigação dos factos e na obtenção das provas (art.º 986º, n.º 1 do CPC) e a alterabilidade das decisões com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art.º 988º, n.º 1 do CPC).
Assim, nos processos de jurisdição voluntária, as decisões, ao invés do que sucede nos outros tipos de processo, não são, após o seu trânsito em julgado, definitivas e imutáveis. Elas são alteráveis “sempre que se alterarem as circunstâncias em que se fundaram” (destacado nosso). Trata-se duma espécie de caso julgado, sujeito a uma cláusula “rebus sic stantibus”, ou seja, um caso julgado com efeitos temporalmente limitados.
No entanto, desta natureza específica, a da alterabilidade das resoluções, voluntária, não decorre, porém, um menor valor, uma menor força ou menor eficácia da decisão.
E enquanto não for alterada, nos termos e pela forma processualmente adequada, pelo Tribunal competente, a decisão impõe-se tanto às partes, como a terceiros afectados pela mesma (art.º 671º do CPC) e até ao próprio Tribunal – caso julgado material e formal – na medida em que proferida a decisão fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 666º n.º 1 do CPC) - só podendo ser alterada nos termos prescritos na lei.
Enquanto isso não suceder a decisão tem a plena força do caso julgado material- como sucede no caso dos autos. (Neste sentido cf. o Acórdão do STJ de 13.09.2016, no processo 67/12.5TBBCL.G1. S1, em www.dgsi.pt., onde a dado passo se defende o seguinte:
“(…)
“Na verdade, o caso julgado forma-se no processo chamado de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos (ditos de jurisdição contenciosa) e com a mesma força e eficácia. Apenas sucede é que as resoluções tomadas no âmbito do incidente em apreço, como as decisões proferidas nos demais processos de jurisdição voluntária, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como se admite no normativo contido no art.º 988º do CPC.
Como parece evidente, sob pena de desrespeito do prestígio dos tribunais, da certeza do direito e da prevenção do risco da decisão inútil, a especificidade não faz desaparecer a eficácia do caso julgado da decisão anteriormente produzida em processo de jurisdição voluntária tal como sucede no caso dos autos. Tal particularismo apenas sujeito o caso julgado a uma espécie de cláusula rebus sic stantibus e, por isso, a uma eventual condição temporal).
Pelo que nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, mas com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração.
Como é sabido a exceção do caso julgado tem de opor fim evitar que “o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior” (cf. art.º 580º nº 2 do CPC).
Como vimos tratando-se de um processo de jurisdição voluntária, rege o disposto no artigo 988º, nº1, segundo o qual: «Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.»
Conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2020, Almedina, p. 438:
«A modificação da decisão anterior implica que o requerente indique a factualidade que sustenta a alteração das circunstâncias, após o que o tribunal efetua uma análise comparativa entre o estado atual das coisas e o que existia aquando da prolação da decisão vigente (RG 19-3-13, 6558/05). Os factos alegados devem ser concludentes e inteligíveis, “sob pena de manifesta inviabilidade, na exata medida da análise comparativa entre o estado atual das coisas e aquele que existia aquando da decisão que se pretende alterar” (António J. Fialho, Conteúdo e Limites …, p. 94). As circunstâncias supervenientes hão de reconduzir-se aos factos em si mesmos, a realidades sobrevindas, com reflexo na alteração substancial da causa de pedir, nada tendo a ver com a eventual posterior invocação de uma diversa qualificação atribuída ou com uma diferente interpretação das situações de facto, sendo a publicitação dum acórdão uniformizador de jurisprudência insuscetível de constituir alteração da situação de facto existente no momento da decisão inicial (STJ 13-9-16, 671/12).»
Ora o requerente não reagiu ao despacho judicial aludido acima com a interposição de recurso, e tal despacho transitou em julgado.
A factualidade alegada neste incidente não é (claramente) superveniente à prolação do despacho em causa, tratando-se de questões que já emergiam do estado dos autos à data da prolação do mesmo despacho.
Assim sendo, a sua dedução para efeitos de modificação do despacho proferido mostra-se inatendível e deveria ser objeto de indeferimento imediato, nos termos do nº 1 do art.º 988º do CPC.
A exceção dilatória do caso julgado é de conhecimento oficioso e determina a absolvição da instância – cf. Artigos 576º, nº2, 577º, al. i), 578º e 580º, nº1, do Código de Processo Civil.
Assim sendo deste modo, tendo em conta que a questão suscitada foi já decidida judicial por decisão judicial transitada em julgado, acima aludida julga-se verificada exceção dilatória do caso julgado, razão pela qual se absolve a requerida B da presente instância, com o consequentemente arquivamento dos autos, o que em conformidade, se decide.”
Acompanhando o recorrente e o Ministério Público, não se pode deixar de discordar do assim decidido.
É sabido, tal como se discorre na decisão impugnada, que em sede de processos de jurisdição voluntária, como é o caso, a decisão proferida pode sempre ser alterada, em função de circunstâncias supervenientes - cf. art.ºs 3º, c) e 12º do RGPTC e art.º 988º, n.º 1 do CPC.
Os processos de jurisdição voluntária regem-se pelos princípios fundamentais do inquisitório, no domínio da instrução do processo (cf. art.º 986º do CPC), pelo predomínio dos critérios da equidade sobre os critérios de legalidade estrita (art.º 987º), pela livre modificabilidade das decisões (resoluções) ou providências de jurisdição voluntária (art.º 988º, n.º 1), pela inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade, que não sejam, pois, de mera legalidade (art.º 988º, n.º 2) – cf. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume I, 2ª Edição, pág. 148.
A revogabilidade das resoluções proferidas nos processos de jurisdição voluntária não significa que em tais processos não se forma o caso julgado (que ocorre nos exactos termos previstos nos art.ºs 620º e 621º do CPC), mas apenas que o caso julgado não reveste a característica da irrevogabilidade. Ou seja, qualquer resolução pode ser livremente alterada, embora haja transitado em julgado – cf. José Alberto dos Reis, Processos Especiais, Volume II – Reimpressão, 1982, pág. 403.
Veja-se, neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de Setembro de 2021, processo n.º 3470/14.6TBLRA-A.G1[3]:
“[…] tratando-se de decisões proferidas em processos de jurisdição voluntária - cf. artigos 3.º, al. d), 12.º, 42.º, 45.º, e 65.º do RGPTC - podem as mesmas ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, entendendo-se como supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso (artigo 988.º, n.º 1, do CPC).
Daqui não resulta, porém, a incondicional alterabilidade das decisões tomadas neste tipo de processos pois, tal como se explicita no Ac. STJ de 13-09-2016 (22), «o caso julgado forma-se no processo chamado de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos (ditos de jurisdição contenciosa) e com a mesma força e eficácia. Apenas sucede é que as resoluções tomadas no âmbito do incidente em apreço, como as decisões proferidas nos demais processos de jurisdição voluntária, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como se admite no normativo contido no art.º 988º do CPC). (…) E, por outro lado, para além de o princípio da alterabilidade das resoluções tomadas em processos de jurisdição voluntária não ter carácter absoluto, devendo, pois, ser aplicado com especial prudência, as «circunstâncias supervenientes», a que o preceito citado alude, justificativas da modificação daquela anterior decisão, hão-de reconduzir-se aos factos em si mesmos, a realidades sobrevindas, com reflexo na alteração substancial da «causa de pedir» – no conceito previsto no art.º 581º do CPC (…)».”
No caso em apreço, o busílis da questão não é tanto sobre a possibilidade de alteração de uma decisão anterior emitida sobre a mesma matéria, e, por inerência, a aferição sobre a existência ou não de alegação de factualidade superveniente, situando-se, antes, num momento anterior, qual seja, o de determinar se a decisão convocada apreciou e decidiu, efectivamente, a questão que o progenitor pai introduziu nos autos com o seu requerimento de 10 de Julho de 2023 e que deu origem ao presente apenso K.
Como se referiu, também em sede de processo de jurisdição voluntária há lugar à formação de caso julgado, o que deve ser aferido em função dos mesmos termos aplicáveis no contexto do processo contencioso.
O art.º 577º, i) do CPC classifica o caso julgado como uma excepção dilatória, ou seja, a verificar-se obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (cf. art.º 576º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
O caso julgado, tal como a litispendência, implica a repetição de uma causa, sendo que o primeiro se verifica quando a repetição tem lugar depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário – cf. art.º 580º, n.º 1 do CPC.
A excepção do caso julgado tem como objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – cf. art.º 580º, n.º 2 do CPC.
O art.º 581º do CPC identifica as situações em que existe repetição de uma causa: quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir; há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico; há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico – cf. art.º 581º, n.ºs 2 a 4 do CPC.
Como refere o Professor Alberto dos Reis “[] o caso julgado exerce duas funções: a) uma função positiva; b) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade; exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal”, sendo que em ambas as funções, por princípio, são necessárias as três identidades mencionadas no art.º 581º do CPC - cf. Código de Processo Civil Anotado, volume III, 4ª edição, reimpressão, pág. 93.
O art.º 619º, n.º 1 do CPC estabelece que, transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º do mesmo diploma legal, de onde decorre que, efectivamente, é sempre necessário que ocorra a tríplice identidade acima mencionada.
As sentenças constituem caso julgado nos precisos limites e termos em que julgam – cf. art.º 621º do CPC.
De acordo com a doutrina tradicional, para efeitos da excepção de caso julgado apenas importa a existência de caso julgado material, isto é, o caso julgado que se forma mediante uma sentença de mérito, ou seja, uma sentença que conheça da relação jurídica substancial, declarando os direitos e obrigações respectivos.
Importa reter que apenas se estará perante uma situação de caso julgado quando uma anterior decisão apreciou o mesmo ponto concreto, a mesma questão concreta, de direito ou de facto.
É sabido que o caso julgado material se forma unicamente sobre a decisão relativa ao objecto da acção mas, em certos casos, deverá abranger ainda as decisões preparatórias. Será pelo teor da decisão que se deverá determinar a extensão objectiva do caso julgado. “Se ela não estatuir de modo exaustivo sobre a pretensão do autor (o thema decidendum), não excluindo, portanto, toda a possibilidade de outra decisão útil, essa pretensão poderá ser novamente deduzida em juízo” – cf. Manuel Andrade apud José Alberto dos Reis, op. cit., volume V, pág. 174.
Assim, para que se constate a existência de duas decisões sobre a mesma pretensão é necessário que a parte dispositiva das duas sentenças ou de dois despachos tenha resolvido o mesmo ponto concreto, a mesma questão concreta, de direito ou de facto – cf. neste sentido, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7-05-2008, processo n.º 07S4005 e de 12-07-2011, processo n.º 129/07.4TBPST.S1; cf. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, 2015, pág. 623 – “A sua autoridade «faz lei» para qualquer processo futuro, mas só em estrita correspondência com o respectivo conteúdo, nada obstando a que numa nova acção, «se discuta e dirima aquilo que ela mesma não definiu»”.
Todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas na sentença, por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, estão compreendidas na expressão “precisos termos em que julga”, a que alude o art.º 621º, n.º 1 do CPC, ao definir o alcance do caso julgado material.
A identidade jurídica das partes não tem de coincidir com a identidade física dos sujeitos relevando antes que actuem como titulares da mesma relação substancial – cf. Jacinto Rodrigues Bastos, Código de Processo Civil Anotado, volume III, 3ª edição Revista e Actualizada, Lisboa 2001, pág. 47.
O pedido consiste no efeito jurídico que se pretende obter, isto é, a enunciação do direito que o autor quer fazer valer em juízo e da providência que para essa tutela requer.
A causa de pedir consiste, conforme resulta do art.º 581º, n.º 4 do CPC, nos factos concretos da vida a que se virá a reconhecer, ou não, força jurídica bastante e adequada para desencadear os efeitos pretendidos pelo autor, é o facto jurídico concreto em que se baseia a pretensão deduzida em juízo, isto é, o facto ou conjunto de factos concretos articulados pelo autor e dos quais dimanarão o efeito ou efeitos jurídicos que, através do pedido formulado, pretende ver juridicamente reconhecidos.
A causa de pedir, independentemente do entendimento que se perfilhe acerca dos factos que a integram - nomeadamente se abrange todos os necessários à procedência da acção ou apenas, conforme defende o Professor Miguel Teixeira de Sousa, aqueles que se reconduzam aos elementos essenciais de um determinado tipo legal[4] –, cumpre sempre uma função individualizadora do pedido e, portanto, do objecto do processo.
Na apreciação, em concreto, da verificação da identidade de acções, existindo dúvidas, haverá que seguir o princípio de que as acções são idênticas se a decisão da segunda fizer correr ao tribunal o risco de contradizer ou reproduzir a decisão proferida na primeira – cf. Professor Alberto dos Reis, op. cit., pág. 95.
Não existem dúvidas, neste caso, como é evidente, que os sujeitos intervenientes quer neste apenso K, quer naquele outro (H), são os mesmos, ou seja, os progenitores dos jovens cujos interesses estão em causa na presente acção, resultando óbvia a identidade das partes.
Já no que diz respeito ao pedido e à respectiva causa de pedir importa ter presente que no apenso H aquilo que se visava era a alteração do regime das responsabilidades parentais, para o que foi alegado, muito em síntese, que a progenitora, ao contrário do acordado, teima em decidir sozinha questões de particular importância na vida dos menores, sendo que a matéria atinente à assistência médica das crianças e escolha dos médicos deve ser decidida por ambos os pais, tendo a mãe procedido à sua alteração sem consultar o pai e sem lhe transmitir todas as informações, assim como escolhe a escola e as actividades extracurriculares a frequentar e o local da sua prática, sem atender à opinião do pai, para além de ter sido alegado que não foi respeitado o acordado quanto à divisão do tempo entre os progenitores no período de férias escolares. O recorrente, ali requerente, terminou pedindo a alteração da regulação, pugnando pela estipulação de guarda conjunta e residência alternada, cabendo a ambos as responsabilidades parentais atinentes às questões de particular importância e propondo regime de visitas e em período de férias (cf. Ref. Elect. 17611652 do apenso H).
Como tal, o tema a apreciar e a decidir tinha que ver com a visada alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais, e, designadamente, no que respeita às questões de particular importância.
No caso presente, é muito diversa a situação.
Aqui, o progenitor pai vem solicitar ao Tribunal a resolução de um diferendo que mantém com a requerida quanto a uma concreta questão de particular importância, qual seja, a escolha dos estabelecimentos de ensino que o DR e o VR devem frequentar no ano lectivo de 2023/2024, sendo que, na ausência de acordo entre os progenitores e face ao regime fixado (de responsabilidade conjunta), essa decisão tem de ser tomada pelo Tribunal.
Como se afigura de meridiana clareza não era este o tema em apreciação no apenso H, nem sobre ele o Tribunal tinha de se pronunciar, como, aliás, disso o senhor juiz a quo deu expressa conta no contexto da sessão de audiência de julgamento que teve lugar no dia 26 de Junho de 2023.
Todavia, tal como alerta o próprio recorrente e sustenta o Ministério Público nas suas contra-alegações, o Tribunal recorrido foi confrontado, em 26 de Junho de 2023, com uma actuação do progenitor que violava o regime então vigente quanto ao exercício das responsabilidades parentais e aquilo que decorre da própria lei, pois que, à revelia da progenitora, sem ter obtido o assentimento desta, promoveu a transferência dos filhos dos estabelecimentos de ensino que frequentavam para outros que entendeu mais adequados.
Ora, a constatação dessa circunstância, com notícia das diligências para inscrição dos jovens noutros estabelecimentos de ensino em contrariedade ao legalmente determinado, exigiu ao Tribunal que, naquele exacto momento, encetasse uma imediata tomada de posição de modo a evitar que se concretizasse uma violação do regime estipulado, daí que tenha proferido o despacho referido no ponto 12. do elenco factual supra enunciado.
Nesse despacho, como se afigura de meridiana clareza, o senhor juiz não apreciou qualquer pretensão de mudança das crianças de estabelecimentos de ensino, não ponderou qualquer factualidade que houvesse sido alegada pelo progenitor (que não foi) para sustentar tal pretensão e não emitiu qualquer pronúncia sobre se o interesse superior dos jovens justificaria ou não a alteração visada.
Pelo contrário, como resulta de modo cristalino seja da sequência processual verificada no apenso H, seja da identificação das questões que ali importava decidir, seja ainda, mais do que isso, do próprio conteúdo do despacho proferido em 26 de Junho de 2023, o que com este se pretendeu foi deixar claro que a matéria da escolha dos estabelecimentos de ensino é uma questão de particular importância que depende da existência de acordo – que no caso não existiu – entre os progenitores ou de decisão do Tribunal – cuja intervenção, no caso, não tinha sido requerida –, daí que, por consequência necessária e óbvia, tudo se haveria de manter como estava até então, ou seja, os jovens mantinham a frequência no estabelecimento de ensino em que estiveram integrados no ano lectivo de 2022/2023.
Crê-se que maiores ou mais densas elucubrações sobre o sentido de tal decisão se afiguram totalmente despiciendas, sendo claro que o Tribunal não proferiu qualquer decisão – provisória ou definitiva - sobre questão de particular importância, que lhe haja sido apresentada, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 44º do RGPTC.
Na sequência desse despacho, que assevera o que não podia deixar de asseverar – isto é, que na ausência de qualquer requerimento nesse sentido ou de acordo dos pais, os menores se mantinham no mesmo estabelecimento de ensino –, o progenitor veio então desencadear o procedimento necessário à alteração que pretende alcançar, precisamente, com a instauração do presente processo de jurisdição voluntária para resolução de questão de particular importância relativamente à qual os pais não estão de acordo.
Assim, a pretensão aqui deduzida nada tem que ver com a apresentada no apenso H, não foi ali suscitada, não foram ali invocados os factos que aqui vêm a ser relatados, pelo que não se verifica a repetição de causa de pedir e pedido e não estão preenchidos os pressupostos da excepção de caso julgado em que a decisão recorrida se louvou para absolver a requerida da instância.
Retome-se a ideia de que a excepção de caso julgado não origina a preclusão do fundamento não alegado no momento adequado, sendo, pelo contrário, um meio para impor a estabilização decorrente da preclusão desse fundamento.
Assim, a excepção de caso julgado também ocorre quando a diferença entre o objecto da primeira acção e o da segunda acção decorre da alegação na última de um fundamento não invocado naquela primeira.
Quando a excepção de caso julgado impede a apreciação de um aliud com base num facto precludido, obsta-se ainda à contradição do decidido numa causa anterior com fundamento na alegação do facto precludido, como previsto no art.º 580º, n.º 2 do CPC.
Para além disso, a excepção de caso julgado opera ainda como meio de fazer valer a preclusão extraprocessual, ou seja, não se torna necessário convocar qualquer outra excepção dilatória para obstar à admissibilidade de uma acção na qual é alegado um facto que se encontra precludido.
Neste caso, a situação que se coloca é, precisamente, a de saber se o requerente vem agora invocar ou concretizar factos integradores do seu direito a obter a apreciação sobre a mudança do estabelecimento de ensino frequentado pelos seus filhos, que já tenham sido invocados no apenso H e que ali tenham sido apreciados, o que, conforme decorre do atrás explanado, manifestamente não se verifica.
Em consonância, impõe-se revogação da decisão recorrida, para que os presentes autos prossigam os seus trâmites normais, em observância do estatuído no art.º 44º do RGPTC.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art.º 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A pretensão que o apelante trouxe a juízo merece provimento. Dado que a mãe/recorrida é a parte vencida, as custas (na vertente de custas de parte) ficam, pois, a cargo da apelada.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação, e, em consequência, revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos nos seus trâmites normais, nos termos do disposto no artigo 44º do RGPTC.
Custas a cargo da apelada.
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Lisboa, 24 de Outubro de 2023
Micaela Marisa da Silva Sousa
Diogo Ravara
Cristina Silva Maximiano
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[1] Aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro, adiante designado pela sigla RGPTC.
[2] Adiante designado pela sigla CPC.
[3] Acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[4] Cf. Blog IPPC em https://blogippc.blogspot.com/2014/07/factos-complementares-e-causa-de-pedir.html.