Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1946/19.8YRLSB-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: REDE ELÉCTRICA
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
FENÓMENO NATURAL
CAUSA DE FORÇA MAIOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-A distribuição de energia eléctrica, é uma actividade perigosa. E porque assim é, a lei impõe a quem beneficia dessa mesma actividade, que suporte – objectivamente - os respectivos riscos, reparando os danos ou prejuízos causados em consequência do exercício dessa actividade.
II-Porém, não obrigam a tal reparação, nos termos do nº2 do art.º 509.º do Código Civil, os danos que forem devidos a causa de força maior.
III- As trovoadas e os raios, porque fenómenos naturais comuns e correntes, não podem ser independentes do funcionamento e utilização da rede de distribuição, pelo que a empresa que explora a produção, o transporte e a distribuição de energia eléctrica tem forçosamente que contar com eles.
IV- Os raios não preenchem o conceito de causa de força maior, conforme é definido no nº2 do citado art.º 509º e como tal não fica excluída, por via disso, a responsabilidade objectiva da ré EDP, nos termos do disposto no nº1 do mesmo artigo.
V-A menos que se prove a excepcionalidade do fenómeno, circunstância cujo ónus da prova compete à empresa que explora o serviço em causa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
C.. requereu a condenação da EDP Serviço Universal, SA no pagamento da quantia de € 6.142, 94, em virtude de, segundo alegou, ter sofrido danos em equipamentos, na sequência de interrupções de fornecimento de energia eléctrica que afectaram a sua instalação. O processo seguiu termos no Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC).
No pedido dirigido ao CNIACC, o Requerente afirmou pretender a indemnização pelos danos provocados em aparelhos ligados à instalação eléctrica.
Alega, em síntese, que, em 22 de Junho de 2018, detectou remotamente várias falhas nos sistemas montados na sua habitação, localizada na R…, nomeadamente no alarme, vídeo- vigilância e automação. Acto contínuo, uma vez que se encontrava emigrado na Suíça, contactou um técnico que verificou no local, que existia uma voltagem de 330 volts à entrada da instalação monofásica da casa do requerente. Foi contactada a EDP pelo técnico, tendo a mesma colocado no local, um gerador diesel para substituir o posto de transformação. Teve com esta ocorrência prejuízos superiores a € 5.000,00. Mais alega que, em 16 de Março de 2018, em virtude de uma trovoada, até o equipamento de contagem instalado na sua casa foi destruído, não tendo sobrado praticamente nada intacto em sua casa.
Em comunicação remetida ao CNIACC, a 13 de Agosto de 2018, o Requerente concretizou o seu pedido, juntando aos autos a fls. 10-21, uma factura de compra de equipamento de domótica, no valor de € 4.852,94 e um orçamento de reparação de uma máquina de lavar roupa, um monitor, uma máquina de café e um frigorífico, no valor de € 1.290,00, num total de €6.142,94.
Citada a requerida EDP Serviço Universal esta veio aos autos informar que a questão é da exclusiva competência da EDP Distribuição uma vez que se trata de matéria técnica.
Após ser notificada da marcação da audiência, a Requerida veio contestar apresentando alegações que sustentam a posição já anteriormente apresentada aos autos, defendendo a separação jurídica entre o comercializador e o distribuidor, excepcionado com a alegação da sua ilegitimidade passiva no presente processo de consumo e consequente pedido de absolvição da instância.
Citada a requerida EDP Distribuição, veio esta invocar que não existe qualquer nexo de causalidade entre os danos reclamados pelo Requerente e qualquer acção ou omissão da EDP. Afasta a sua responsabilidade afirmando que a existirem danos estes são devidos a “ causas externas, incontroláveis e de força maior,…”.
Pede a improcedência da acção com a consequente absolvição da Requerida.
Após ser notificada da marcação da audiência, a requerida veio contestar apresentando alegações que sustentam a posição já anteriormente apresentada aos autos, acrescentando que fez medições de tensão de alimentação na instalação do requerente entre 26/0272019 e 04/03/2019 e que deles resulta que a onda de tensão se encontra dentro dos parâmetros normais.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença pelo Juiz – árbitro que julgou “totalmente procedente o pedido do requerente, condenando-se ambas as requeridas a indemnizar o requerente no valor dos prejuízos sofridos no montante de € 6.142,94.”
Inconformada coma sentença arbitral, a EDP DISTRIBUIÇÃO – ENERGIA, S.A interpôs recurso para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões:
A alimentação ao local de consumo do recorrido, referente ao LC 10351653 é efectuada através do PT MCN 0340 Folhada, Merelhe Pequeno, o qual encontrava-se e encontra-se em condições normais de exploração dentro do seu tempo de vida útil e instalado de acordo com as regras técnicas de segurança legalmente  previstas, sendo alvo de manutenções técnicas anuais.
A rede eléctrica que abastece a referida instalação está protegida com os mais recentes equipamentos de protecção, nomeadamente a rede de média tensão está protegida com descarregadores de sobretensão (DST) que absorvem e conduzem eventuais sobretensões à terra.
Por sua vez, o quadro geral de baixa tensão do PT ABT 0498D está protegido com fusíveis do tipo alto poder de corte (APC), que actuam em caso de sobreintensidade ou curto - circuito, sendo certo que estes equipamentos não só protegem a rede eléctrica, como também as próprias instalações particulares de anomalias derivadas de sobretensões.
Acontece que, para o dia 22 de Junho de 2018, a recorrente verificou que existiu um incidente no Posto de Transformação (PT) que abastece a instalação do Recorrido, em virtude de descargas atmosféricas – vulgo trovoada – que afectaram a região.
Assim sendo, o Sr. Dr. Juiz do Centro de Arbitragem veio considerar que os danos reclamados pelo Recorrido são consequência directa e necessária de tal evento.
Por conseguinte, a Recorrente e a Reclamada EDP Serviço Universal vieram a ser condenadas solidariamente no pagamento do montante de € 6.142,94, a título indemnizatório pelos prejuízos sofridos pelo Recorrido.
No entanto, atenta a matéria de facto assente é suficiente, por si só, para à recorrente não lhe ser assacada qualquer responsabilidade pelos prejuízos sofridos pelo Recorrido.
Isto porque tal evento teve origem em condições atmosféricas adversas – em concreto, descargas atmosféricas directas – decorrentes de fortes trovoadas que ocorreram na região de Marco de Canaveses.
Assim sendo, à luz do postulado na norma do artigo 483.º e seguintes do Código Civil, não se verificam reunidos os pressupostos necessários para imputar a responsabilidade civil extracontratual à recorrente, sendo que esta não praticou nenhum acto ilícito e agiu isenta de toda e qualquer espécie de culpa.
Na realidade, tratou-se de um evento associado a causas externas ao funcionamento da rede de distribuição de energia eléctrica, sendo essas incontroláveis e de força maior.
Tais factos são susceptíveis de integrarem a categoria de casos fortuitos ou de força maior, cfr. o disposto no art.º 8.º do Regulamento da Qualidade de Serviço do Sector Eléctrico e do Sector do Gás Natural, ou seja aqueles que reúnem simultaneamente nas condições de exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade face às boas práticas ou às regras técnicas aplicáveis e obrigatórias.
Bem como nos termos do art.º 152.º do D.L. 43335 de 19/11/1960.
Certo é que o n.º2 do art.º 509.º do Código Civil exclui a responsabilidade civil objectiva sempre que os danos verificados nas instalações sejam devidos a causa de força maior.
Relativamente à imprevisibilidade da ocorrência da causa de força maior, a Recorrente discorda da análise que é feita pelo sr. Dr. Juiz Árbito, na medida em que, se por um lado a zona geográfica da instalação do reclamante é propensa à existência destes fenómenos desta natureza, por outro lado existem limitações humanas, técnicas e tecnológicas que não permitem a total assimilação dos efeitos provocados por tais forças da natureza em estado bruto.
Isto porque conforme foi dito pela testemunha que não teve dúvidas que a descarga de 22 de junho de 2018 terá provocado danos na instalação do requerente e dos vizinhos pois pelo estado em que ficaram os DST e o PT a mesma terá sido muito violenta – daí a irresistibilidade do evento.
Esse facto – a violência da descarga – é tal facto notório que até os próprios mecanismos de protecção da Recorrente não resistiram, estando esses preparados para absorver tais eventos naturais
Desta feita, não está, de modo algum, na esfera de acção da Recorrente poder evitar, apesar de todas as medidas preventivas, a acção e as consequências de uma descarga atmosférica de tamanha grandeza.
Por conseguinte, tais danos a terem ocorrido, foram resultado, expresso e inequívoco do evento de força maior supra descrito.
Perante a decisão ora impugnada, não pode deixar de considerar a aqui recorrente que foram violadas as disposições legais supra citadas, uma vez que não se faz delas uma correcta aplicação, nem tão pouco de toda a prova produzida se faz uma idónea valoração.
Termos em que pede a revogação da sentença recorrida, determinando-se a absolvição da Recorrente.
Não foram apresentadas contra alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II-OS FACTOS
Na sentença recorrida foi fixada a seguinte matéria de facto provada:
1-O contrato de fornecimento de energia eléctrica ao domicílio em causa nos autos foi celebrado entre o requerente e a requerida EDP Serviço Universal
2-A residência do requerente, sita à R…. é abastecida através do posto de transformação (PT) 0340 Folhada – Merelhe Pequeno.
3-A 22 de Junho de 2018, o requerente detectou falhas em vários equipamentos na sua residência designadamente nos sistemas de alarme, videovigilância e automação.
4-Verificou através do técnico remetido ao local que a tensão eléctrica que entrava na sua instalação estava mais elevada que o normal.
5-Em 16 de março de 2018, em virtude de uma trovoada, o equipamento de medição instalado na casa do requerente ficou destruído/queimado, tendo este reclamado junto da sua seguradora os danos que sofreu em praticamente todos os equipamentos que tinha ligados à rede eléctrica.
6--Existe numa serra próxima da instalação do requerente (serra da Aboboreira) um parque eólico conhecido como o parque da Abogalheira.
7-O PT 0340 é o primeiro posto de transformação a seguir a este parque eólico, sendo um PT recente com cerca de 7 anos, colocado por necessidade de explorar a rede de baixa tensão por aumento do aglomerado populacional.
8-O PT 0340 foi substituído duas vezes em 2018, em função de avaria provocada por descargas atmosféricas.
9-A linha que abastece o PT 0340 foi feita em 2015 e, desde então, não foram feitas alterações ou reforços de descargas à mesma.
10-O parque eólico da Abogalheira é ponto usual de descargas atmosféricas que entram na rede e descarregam para o PT 0340, uma vez que a localização geográfica em serra comporta várias tempestades anualmente.
11-No dia 22 de Junho de 2018 o PT 0340 queimou e os descarregadores de sobre tensão (DST) estoiraram em resultado de descargas atmosféricas ocorridas no parque eólico da Abogalheira.
12-Foi colocado um gerador de substituição do PT0340 enquanto duraram os trabalhos de troca do mesmo que lá tinha sido colocado após o incidente de 16 de Março de 2018.
13-O requerente sofreu danos em equipamento de domótica no valor de € 4.852,94 e de reparação/substituição de uma máquina de lavar roupa, um monitor, uma máquina de café e um frigorífico, no valor de € 1290,00, num total de € 6.142,94.
III-O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, a questão a apreciar consiste fundamentalmente em saber se a Requerida é responsável pelos danos sofridos pelo Autor, ora Apelante, ou se pelo contrário, esses danos são devidos a causa de força maior que exclui a responsabilidade daquela.
Estabelece o art.º 509.º do Código Civil o seguinte:
Aquele que tiver a direcção efectiva de instalação destinada à condução ou entrega da energia eléctrica ou do gás e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que derive da condução ou entrega da electricidade ou do gás, como pelos danos resultantes da própria instalação, excepto se ao tempo do acidente esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação.”
Não há dúvida de que a distribuição de energia eléctrica, é uma actividade perigosa. E porque assim é, a lei impõe a quem beneficia dessa mesma actividade, que suporte – objectivamente - os respectivos riscos. Estamos perante um caso de responsabilidade civil objectiva[1].
Contudo, estabelece o n.º2 daquele preceito legal que “não obrigam a reparação os danos devidos a causa de força maior; considera-se de força maior toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa.”
Ora, tal como resulta da matéria de facto provada, os danos sofridos pelo Autor em equipamento de domótica, de reparação/substituição de uma máquina de lavar roupa, um monitor, uma máquina de café e um frigorífico, foram causados por descargas atmosféricas (trovoada), ocorrida no dia 22 de Junho de 2018, em consequência do que o Posto de Transformação (PT) 0340 queimou e os descarregadores de sobre tensão (DST) estoiraram, causando uma sobretensão na rede eléctrica, e provocando os referidos estragos.
Não sofre discussão que a Ré ora apelante EDP - Distribuição Energia, S.A. detinha a direcção efectiva e a utilização no próprio interesse do sistema da instalação, condução e entrega da energia eléctrica destinado a abastecer as instalações do Apelado.
A questão está em saber se, na situação descrita- descargas eléctricas atmosféricas, ou seja os raios produzidos pelas trovoadas, deverá considerar-se  excluído o risco por causa independente do funcionamento da instalação de quem conduz e entrega a energia que vem definida no n.º2 do art.º 509.º do Código Civil, ou seja, se estamos perante um caso de força maior.
O que seja um caso de força maior define o referido n.º2 do art.º 509.º : “ toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa”. “O caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o acontecimento natural ou acção humana que, embora previsível ou até presumido, não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências.” [2].
Como observa o Supremo Tribunal de Justiça[3]: “as trovoadas e os raios não são independentes do funcionamento e utilização da rede de distribuição. Podem ser – são – exteriores, mas não são independentes dessa utilização e funcionamento porque fenómenos naturais comuns e correntes com os quais a empresa que tem o negócio, tem que contar em absoluto na montagem dele.
Não preenchem, por isso, o conceito de causa de força maior, tal como o define o nº2 do art.509º como excludente da responsabilidade objectiva prevista no nº1 do artigo. A menos que – admite-se - tivessem algo de especial, algo de fora do comum.
Mas essa
excepcionalidade competiria à empresa alegá-la e prová-la e isso não está feito”.
Concordamos com este ponto de vista que, aliás, fez vencimento, no acórdão supra citado, embora é certo, tal entendimento não tenha sido unânime, pois em duas declarações de voto foi entendido que o raio produzido pela trovoada, deverá ser integrado no conceito de “causa de força maior”. Porém, sem argumentos a nosso ver tão convincentes como aqueles que foram apresentados pela tese que prevaleceu.
No seguimento desse mesmo raciocínio, teremos de concluir que, sendo a trovoada um fenómeno natural comum e corrente com o qual a Ré tem de contar na sua actividade de distribuidora de energia eléctrica, necessariamente, deverá estar apta a dominar as suas consequências, embora não possa evitar a respectiva ocorrência.
Na verdade, também assim foi entendido, em caso semelhante ao presente, pelo Tribunal da Relação de Coimbra[4], ali se argumentando que “ as trovoadas e os raios, porque fenómenos naturais comuns e correntes, não podem ser independentes do funcionamento e utilização da rede de distribuição, pelo que a empresa que explora a produção, o transporte, a distribuição de energia eléctrica tem forçosamente que contar com eles”. Só assim não será se vier a demonstrar-se que tal fenómeno atmosférico ultrapassou os níveis habituais, expectáveis, sendo que esse ónus competirá à empresa que explora o negócio de fornecimento da electricidade.[5]
Improcedem, pois, as conclusões da Apelante, sendo de confirmar a decisão recorrida que apreciou com acerto o presente litígio.
IV-DECISÃO
Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso e, por consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2020
Maria de Deus Correia
Maria Teresa Pardal
Anabela Cesariny Calafate
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[1] Vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-11-2007, Processo 06B2640, disponível em www.dgsi.pt. e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol.I, Almedina, 3.ª edição, p.586.
[2] Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-09-1994, Processo 084991, disponível em  www.dgsi.pt
[3] Vide acórdão de 08-11-2007, já citado.
[4] Vide Acórdão do TRC de 22-10-2013, disponível em www.dgsi.pt
[5] Em conformidade com este entendimento decidiu também o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-04-2013, Processo 6391/11.0, disponível em www.dgsi.pt