Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2304/14.6YYLSB-A.L1-8
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - No domínio das relações imediatas, o avalista, desde que tenha tido intervenção no pacto de preenchimento, pode opor ao portador do título a violação do pacto de preenchimento.
2 - É sobre o embargante que recai o ónus de alegar e provar a inobservância do acordo de preenchimento.
3 - O legislador não prevê como possível a subscrição e entrega voluntária de uma livrança em branco sem acordo de preenchimento.
4 - A lei cambiária não impõe, como condição prévia do preenchimento da livrança ou do acionamento do avalista de livrança em branco, a prévia interpelação deste.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

Nos presentes embargos de executado deduzidos por S… e  C… na ação executiva que lhes move B…, o embargante C… interpôs recurso da sentença que julgou “os embargos deduzidos por C… totalmente improcedentes”.
Importa referir que, por despacho proferido a 18 de janeiro de 2019, foram declarados suspensos os embargos quanto à executada  S… com fundamento em ter a mesma sido declarada insolvente.
Na alegação de recurso, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
“1 - O Recorrente nunca deu qualquer autorização para o preenchimento da letra e muito menos para que fosse preenchida por terceiros nos termos em que o foi;
2 - As letras foram preenchidas abusivamente;
3 - E por isso falsas;
4 - Para além da manifesta má-fé por quem a preencheu;
5 - Uma vez que o Executado não deu o seu consentimento para o preenchimento das mesmas, nem foi notificado do vencimento como o impõe a Lei e a boa fé contratual;
6 - Quando a sua interpelação prévia é necessária e legalmente exigível nos termos da jurisprudência existente e que tem de ser aplicada ao caso, quando o título é entregue em branco;
7 - Não tendo existido tal notificação aos Executado, facto que tem de ser considerado como provado nestes autos, considera-se que as livranças dadas como títulos executivos nos autos não podem ser consideradas exequíveis por violação dos requisitos legais;
8 - Ou seja, repete-se, é ilegal e, consequentemente, nula;
9 - Neste contexto, deverão os autos executivos ser considerados nulos por nulidade e inexequibilidade dos títulos executivos que lhes deram origem,
10 - O Executado colocou em causa os títulos dados à execução apesar de terem neles inscritos uma quantia supostamente em dívida, o Tribunal a quo não cuidou de apreciar como as mesmas foram alcançadas, seja em termos de capital em dívida,
11 - Seja em termos de dias de mora,
12 - Seja em termos de taxa de juro aplicável,
13 - Seja em termos da denominada taxa Euribor,
14 - O Tribunal a quo não cuidou de esclarecer na sentença proferida porque motivo todos os factos, argumentos e discrepâncias dos documentos do Exequente que foram invocados e impugnados foram prova bastante para a sentença proferida;
15 - Pelo que, sem que as questões invocadas sejam esclarecidas, não pode proceder o argumento de o título ser válido só por ter uma quantia nele inscrita;
16 - Sem que se tenha cuidado de apurar como a mesma é alcançável;
17 - A própria sentença é contraditória entre os documentos e o valor supostamente em dívida, sendo que resulta de tudo que a quantia mutuada foi superior à peticionada,
18 - Como diria La Palisse, é evidente que pagamentos por parte do Executado ou da devedora inicial foram feitos;
19 - Sem que esse meio de prova requerido pelo Recorrente fosse atendido e satisfeito para,
20 - Em primeiro lugar se pudesse apurar o quantum da dívida;
21 - Pelo que a matéria de facto dada como provada, não o deveria ter sido;
22 - Como tal a dívida invocada nos presentes autos não é certa, líquida e, consequentemente, não é exigível como obriga o artigo 713º do Cód. Proc. Civil e demais disposições legais aplicáveis in casu;
23 - Não pode proceder porque, pura e simplesmente não existe dívida como e da forma invocada pelo Exequente e,
24 - Caso se entenda que a mesma existe, o que se concede por dever de patrocínio, a mesma jamais poderá ser considerada como sendo certa, líquida e exigível pelos factos demonstrados.
25 - Pelo que, os presentes autos deverão ser extintos por falta de legitimidade do Exequente, nos termos do artigo 53º do Código de Processo Civil;
26 - A oposição do Executado considerada procedente;
27 - O presente recurso ser considerado procedente e a sentença do Tribunal a quo revista no sentido de ser o Recorrente absolvido com as demais consequências legais”.
A recorrida não respondeu à alegação do recorrente.
São as seguintes as questões a decidir:
- do preenchimento abusivo;
- do valor da dívida; e
- da necessidade de interpelação do avalista.
*
Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
“1) A exequente é portadora das seguintes cinco livranças, juntas a fls. 25 a 29 da execução, que se dão por reproduzidas, subscritas pela primeira executada e avalizadas pelo segundo:
a) - Livrança emitida a 25.06.2012, que menciona o Contrato de Empréstimo sob a Forma de Mútuo 657861936172 -82203010783, no montante de € 77.805,92;
b) - Livrança emitida a 18.03.2011, que menciona o Contrato de Empréstimo PME Investe VI 657861710189-86063064509, no montante de € 25.973,88;
c) - Livrança emitida a 26.11.2010, que menciona o Contrato de Empréstimo PME Investe VI 657861629074-86063057200, no montante de € 55.922,96;
d) - Livrança emitida a 08.06.2010, por conta do Contrato de Empréstimo sob a Forma de Mútuo n.º 657861489453 - 86143001462, no montante de € 21.655,81; e
e) - Livrança emitida a 03.03.2010, que menciona o Contrato de Empréstimo sob a Forma de Mútuo 657861413404 -86143000590, no montante de € 18.754,37
2) Os executados não preencheram as letras dadas à execução.
3) O Banco Exequente preencheu a livrança aludida em 1.a) supra, subscrita pela Executada Sociedade e avalizada pelo aqui oponente C…, pelo montante de € 77.805,92, fixou-lhe o seu vencimento para 26.12.2013, e apresentou-a a pagamento.
4) Vencida não foi paga por nenhum dos seus devedores.
5) O Banco Exequente preencheu a livrança aludida em 1.b) supra, subscrita pela Executada Sociedade e avalizada pelo aqui oponente C…, pelo montante de € 25.973,88, fixou-lhe o seu vencimento para 26.12.2013 e apresentou-a a pagamento.
6) Vencida não foi paga por nenhum dos seus devedores.
7) O Banco Exequente preencheu a livrança aludida em 1.c) supra, subscrita pela Executada Sociedade e avalizada pelo aqui oponente C…, pelo montante de € 55.922,96, fixou-lhe o seu vencimento para 26.12.2013 e apresentou-a a pagamento.
8) Vencida não foi paga por nenhum dos seus devedores.
9) O Banco Exequente preencheu a livrança aludida em 1.d) supra, subscrita pela Executada Sociedade e avalizada pelo aqui oponente C…, pelo montante de € 21.655,8, fixou-lhe o seu vencimento para 26.12.2013 e apresentou-a a pagamento.
10) Vencida não foi paga por nenhum dos seus devedores.
11) O Banco Exequente preencheu a livrança aludida em 1.e) supra, subscrita pela Executada Sociedade e avalizada pelo aqui oponente C…, pelo montante de € 18.754,37, fixou-lhe o seu vencimento para 26.12.2013 e apresentou-a a pagamento.
12) Vencida não foi paga por nenhum dos seus devedores.”
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Na sentença recorrida, foram dados como não provados os seguintes factos:
“a exequente tenha preenchido as livranças sem qualquer autorização dos executados, conforme alegam estes, ou antes de acordo com os pactos de preenchimento constantes dos contratos anexos à contestação, conforme alega a exequente.”
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Resulta da matéria de facto provada que os executados não preencheram as livranças que servem de base à execução, mas sim que foi a exequente que procedeu ao preenchimento.
Nos termos do art. 10º da LULL, aplicável às livranças por força do art. 77º do citado diploma, “se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.
No domínio das relações imediatas, ou seja, quando o título ainda não entrou em circulação, o avalista, desde que tenha tido intervenção no pacto de preenchimento, pode opor ao portador do título a violação do pacto de preenchimento (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 13 de novembro de 2018, processo 2272/05.5YYLSB-B.L1; Acórdão do STJ de 25 de maio de 2017, processo 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1).
Nos termos do art. 378º do C.C., “se o documento tiver sido assinado em branco, total ou parcialmente, o seu valor probatório pode ser ilidido, mostrando-se que nele se inseriram declarações divergentes do ajustado com o signatário ou que o documento lhe foi subtraído.”
Assim, e conforme Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 14 de maio de 1996 (www.dgsi.pt Acórdãos do STJ, processo 084633), é sobre o embargante que recai o ónus de alegar e provar a inobservância do acordo de preenchimento.
Quem invoca a exceção da violação do pacto de preenchimento não pode limitar-se a afirmar que o preenchimento foi abusivo, tendo de alegar factos concretos dos quais se possa extrair o preenchimento abusivo.
O embargante C… alegou que a exequente preencheu as livranças sem qualquer autorização dos executados.
Se “sem qualquer autorização” do avalista significa que este não teve intervenção no acordo de preenchimento, então o embargante C… não podia opor à exequente o preenchimento abusivo.
Se “sem qualquer autorização” significa que não houve convenção de preenchimento entre a subscritora das livranças e a exequente, então não faz sentido a invocação pelo embargante C… do preenchimento abusivo, porque este pressupõe a existência de uma convenção de preenchimento.
Quer o art. 10º da LULL quer o art. 378º do C.C. preveem a inobservância da convenção de preenchimento, mas não a inexistência de tal convenção.
O legislador não prevê como possível a subscrição e entrega voluntária de uma livrança em branco sem acordo de preenchimento.
O tribunal recorrido considerou não provado que a exequente preencheu as livranças sem qualquer autorização dos executados e o embargante C… não impugnou a decisão sobre a matéria de facto nessa parte.
Na oposição à execução, o embargante C… impugnou os montantes peticionados.
Contudo, não cabia à exequente alegar e provar como alcançou os valores que apôs nas livranças, mas cabia ao embargante C… alegar e provar a existência de acordo de preenchimento entre a subscritora das livranças e a exequente; a intervenção do embargante C… nesse acordo; e o preenchimento pela exequente do espaço das livranças destinado à importância em desconformidade com o acordado.
A lei cambiária não impõe, como condição prévia do preenchimento da livrança ou do acionamento do avalista de livrança em branco, a prévia interpelação deste (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 25 de maio de 2017, processo 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1; de 28 de setembro de 2017, processo 779/14.2TBEVR-B.E1.S1).
Essa interpelação só será necessária se tal for convencionado no pacto de preenchimento, facto este que o embargante C… não alegou.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente.
Lisboa, 19 de novembro de 2020
Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães
Ferreira de Almeida