Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
431/23.8T8LSB.L1-8
Relator: ANA PAULA NUNES DUARTE OLIVENÇA
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
RENDAS
PRESCRIÇÃO
PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: «1. O artigo 104º do CIRE, estabelece um regime especial fazendo depender expressamente a sua aplicabilidade ao contrato de locação da existência de «cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas;
2. Estando o contrato de locação financeira em vigor à data da declaração de insolvência, esta não tem efeito sobre tal vigência, em conformidade com o citado art.º 108º, n.º 1 do C.I.R.E;
3. De facto, as rendas da locação financeira não se enquadram na previsão da alínea b) do artigo 310.º, porque são diferentes das da locação e também não cabem na alínea e), porque são diferentes das do contrato de mútuo com juros. Daqui se há-de retirar que o prazo prescricional a aplicar é aquele previsto no art.º 309º do CCivil, ou seja, o prazo de vinte anos.»
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que compõem a 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
1- A - Transportes, LDA., pessoa colectiva nº …;
1- B, divorciado, …;
2- C, divorciada, …;
3- D, …;
4- E, …;
5- F, …,
vieram, nos termos dos artigos 362º e ss. Do C.P.C., intentar PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM, contra,
G…, S.A., Lisboa,
pedindo,
que seja ordenado à requerida que não proceda ao preenchimento de livranças subscritas pela 1ª requerente e avalizadas pelos restantes requerentes que estejam na sua posse em virtude de créditos de contratos de locação financeira mobiliária celebrados entre a 1ª requerente e «…leasing e Factoring - Instituição Financeira de Crédito, S.A.». Mais deve ser ordenado que as referidas livranças não devem ser entregues a terceiros ou caso estejam preenchidas não sejam postas em circulação nomeadamente através de endosso. Por fim deve ser ordenado à Requerida que se abstenha de executar judicialmente as referidas livranças.
Mais requereram a inversão do contencioso.
Alega para tanto:
A 1ª requerente outorgou em Julho de 2005 com …leasing e Factoring, Instituição Financeira de Crédito, S.A., dois contratos de locação financeira imobiliária, um com o número 2015713 tendo por objecto uma escavadora de marca Daewoo, modelo S225 LC V, no valor de €100.000,00 e outro com o número 2015712 que tinha por objecto um semi reboque ARB SPM com a matrícula L-17591 no valor de €40.000,00.(docs. 1 e 2).
Ficou acordado que a 1ª requerente pagaria o preço da aquisição dos bens e respectivos juros em 16 rendas trimestrais, constantes e antecipadas, durante o prazo do contrato;
Para garantia do pagamento das prestações contratadas a 1ª requerente subscreveu e entregou à locadora uma livrança a favor desta, com montante e data de pagamento em branco, que foi avalizada pelo 2º, 3º, 4º, 5º e 6º ora requerentes;
Em 15.03.2007 pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Cartaxo, foi declarada a insolvência da 1º requerente, tendo a partir da data da declaração ficado impossibilitada de proceder ao pagamento das prestações dos contratos de leasing;
Os credores da 1ª requerente foram notificados, para reclamarem créditos;
A leasing foi indicada para a Comissão de credores da 1ª requerente e aceitou o cargo;
Antes da apresentação do relatório pelo Sr. Administrador de insolvência existiram várias conversações entre este e os credores tendo havido um consenso que os contratos de leasing deveriam terminar a sua vigência com a entrega dos bens às locadoras;
Para formalizar o entendimento havido o Sr. Administrador comprometeu-se a apresentar uma proposta de rescisão dos leasings na reunião da Assembleia de credores -A Leasing aceitava receber os bens e não reclamar qualquer crédito ou direito proveniente dos contratos;
Em 28.05.2008, no Tribunal Judicial do Cartaxo, realizou-se a Assembleia de Credores da 1ª Requerente onde esteve presente a Leasing em que todos os credores presentes votaram favoravelmente, incluindo a locadora «Leasing e Factoring, S.A», a proposta do Sr. Administrador de rescindir os contratos de leasing;
Em cumprimento da decisão tomada pelos credores de rescindir os contratos de locação financeira imobiliária o Sr. Administrador de insolvência colocou os bens locados à disposição das locadoras;
Como os contratos de leasing haviam sido rescindidos pela deliberação dos credores não houve necessidade do A.I. tomar qualquer decisão nos termos do artigo 102º do CIRE quanto ao cumprimento desses contratos;
Apear dos bens se encontrarem à disposição da Besleasing esta não procedeu à sua remoção do local onde estes se encontravam - o estaleiro da 1ª requerente;
Em 21.03.2016 a 1ª requerente recebeu uma carta do Novo Banco, S.A. a comunicar que o contrato de locação financeira mobiliária que tinha por objecto o semi reboque ARB foi resolvido com fundamento em falta de cumprimento no pagamento de prestações;
Em 28.02.2019 a 1ª requerente recebeu de uma sociedade com a firma «…. Capital, Lda.» créditos e direitos, títulos e juros, bem como todas as importâncias a liquidar emergentes dos contratos AA XXXX e AA XXXX tendo vindo a saber mediante contacto directo, corresponderem estes, aos contratos extintos no âmbito do processo de insolvência;
Em 19.12.2022 a requerente recebeu uma carta da « G…, S.A..» na qual se referia que a «…, SARL» lhe havia cedido o crédito e informando-a de que em 31 de Dezembro de 2022 a G…, S.A. iria preencher as livranças, subscritas pela 1ª requerente e avalizadas pelos restantes requerentes, que tinha em seu poder, pelo valor global de €59.475,85, sendo o capital de €36.575,12, caso entretanto não existisse pagamento.
Conclui dizendo que a 1ª requerente nada deve à requerida já que os contratos de locação financeira celebrados em 2005 com a Leasing foram rescindidos em 2008, no âmbito de processo de insolvência, e deles não resultou qualquer crédito para a locadora em virtude da entrega a esta dos bens locados.
Por outro lado, a obrigação causal que o preenchimento das livranças na posse da requerida visa garantir encontra-se prescrita, por força do disposto no art.º 310º, alíneas b) ou e) do Código Civil ou por aplicação analógica desta disposição o crédito prescreveu no prazo de cinco anos, já decorridos, por não ter existido qualquer facto interruptivo.
Mais alegam que o preenchimento da, ou das livranças em causa causará aos requerentes um grande dano designadamente e no que à 1ª requerente diz respeito, provocará a destruição do bom nome e do crédito, razões que são extensíveis aos avalistas das livranças, que são comerciantes, gerentes de sociedades e pessoas com grande actividade económica.
Qualquer suspeita de uma situação de dificuldade económica, nomeadamente o incumprimento de obrigações causará aos requerentes uma grave lesão.
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Foi requerida a dispensa de citação prévia, que não mereceu deferimento, tendo sido ordenada a citação da parte contrária.
Devidamente citada, veio a requerida, apresentar oposição alegando, em síntese, que no processo de insolvência da 1ª Requerente, não obstante os credores terem votado favoravelmente a rescisão dos contratos de locação financeira, isso não veio a acontecer, sendo certo que, nos contratos dos autos, ficou estipulada a possibilidade de aquisição dos bens pelo locatário pelo valor residual, pelo que o regime legal aplicável é o disposto no artigo 108º do C.I.R.E. (e não o artigo 102º, invocado pelos Requerentes), sempre sendo devidas as rendas vencidas desde que a denúncia do contrato produziu efeitos até ao término do mesmo.
Mais dizem que, tendo a insolvência sido levantada em 2009, por efeito da procedência de embargos à insolvência, a sociedade 1ª Requerente continuou a laborar até hoje e permaneceram em dívida as rendas vencidas e não pagas até à denúncia dos contratos, correspondentes ao período que decorreu entre Abril de 2007 e Maio de 2008.
Os Requerentes foram, em tempo, devidamente interpelados para pagamento.
Relativamente à prescrição desses créditos, encontrando-se os contratos já resolvidos por incumprimento (e já não em mora), é aplicável o prazo ordinário de 20 anos.
No mais, impugna a factualidade por desconhecimento.
*
Foi produzida a prova requerida, tendo-se procedido à audição das testemunhas.
A final foi proferida decisão final de cujo dispositivo consta:
«IV. DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal julga a presente providência cautelar totalmente improcedente, absolvendo a Requerida dos pedidos formulados.
Custas pelos Requerentes, por terem dado causa à presente instância cautelar e ter decaído na totalidade (artigo 539º, n.º 1 do C.P.C.).»
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Devidamente notificados não se conformaram os requerentes com a decisão proferida e da mesma interpuseram o presente recurso tendo, a final, alinhado as seguintes conclusões:
«CONCLUSÕES:
1- Os contratos cujo incumprimento daria causa ao preenchimento das livranças subscritas pela Requerente sociedade e avalizadas pelos demais Requerentes singulares eram contratos típicos de Locação financeira.
2- Em caso de insolvência do locatário os contratos de locação financeira ficam suspensos até que o Administrador da insolvência opte pelo seu não cumprimento, nos termos do disposto no artigo 102º, nº 1 do CIRE.
3- Nos termos do artigo 104º, nº 5 do CIRE, aplicável aos contratos de locação financeira, os efeitos da declaração de não cumprimento que o Administrador da Insolvência da Requerente sociedade emitiu e enviou à Locadora são os previstos no n.º 3 do artigo 102.º, entendendo-se que o direito consignado na respectiva alínea c) tem por objecto o pagamento, como crédito sobre a insolvência, da diferença, se positiva, entre o montante das prestações ou rendas previstas até final do contrato, actualizadas para a data da declaração de insolvência por aplicação do estabelecido no n.º 2 do artigo 91.º, e o valor da coisa na data da recusa, se a outra parte for o vendedor ou locador, ou da diferença, se positiva, entre este último valor e aquele montante, caso ela seja o comprador ou o locatário.
4- Esta norma que fixa as compensações a que têm direito os credores da insolvente, como é caso da locadora, em caso de resolução de contratos são imperativas.
5- Sendo a insolvente a ora Recorrente sociedade a locatária, o direito da Recorrida com base nos contratos de locação financeira que a sua antecessora celebrou com a insolvente, corresponde à diferença, se positiva, entre o valor das prestações ou rendas e o valor da coisa, na data da recusa.
6- Tendo os bens locados sido colocados à disposição da Locadora esta deles não tomou posse porque não quis e não os vendeu também porque não quis.
7- Enquanto não for determinado o valor dos bens locados que foram colocados à disposição do locadora não pode esta exigir da locatária insolvente ou dos avalistas o pagamento de qualquer importância.
8- É de aplicar analogicamente o prazo prescricional de cinco anos às rendas do contrato de locação financeira, considerando os interesses em jogo, o facto de se tratar socialmente de um contrato de financiamento (que o aproxima do mútuo) e as circunstâncias de a prestação da empresa locadora ter um carácter continuado (integrando-se num negócio considerado globalmente de natureza duradoura) e de se fazerem sentir exactamente as mesmas necessidades de evitar insolvências de devedores (não deixando que se acumulem as dívidas, de forma incontrolada e excessiva) (Ac. do TRL Citado).
9- As obrigações que a Recorrente pretende fazer valer através do preenchimento das livranças subscritas e avalizadas pelo ora Recorrentes encontram-se, assim, prescritas e não são exigíveis.
10- Verificam-se, no caso presente todos os requisitos legais para que seja decretada a providência cautelar solicitada.
11. A douta sentença recorrida violou o que se encontra disposto no artigo 102º e 104º do CIRE, ao decidir não fazer a sua aplicação ao caso concreto.
Termos em que o presente recurso deverá ser julgado totalmente procedente, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se por outra que decrete a providência cautelar solicitada. Assim se fazendo justiça»
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Notificada, a requerida apresentou contra-alegações concluindo como segue:
EM CONCLUSÃO:
I. O tribunal a quo julgou totalmente a providência cautelar, absolvendo a requerida dos pedidos formulados.
II. Porquanto, a douta sentença foi proferida nos termos e parâmetros da lei, assim que, à mesma se deve dar o devido provimento.
III. Desta feita, A 18-07-2005, os aqui Requerentes celebraram com o Leasing e Factoring Instituição Financeira de Crédito, S.A. um contrato de locação financeira mobiliária, pelo preço de 100.000,00€, no âmbito do qual foi locado o seguinte bem: Escavadora, de marca DAEWOO e modelo S225 LC-V – Contrato nº XXXX (com o ID Externo XXXXXXX).
IV. No âmbito do referido contrato, foi subscrita uma Livrança em branco pela aqui A –Transportes, Lda. e avalizada pelos aqui Requerentes B, C, D, E, F, para garantia e segurança do bom e pontual cumprimento das obrigações decorrente do mesmo.
V. Na mesma data, foi também celebrado entre as mesmas partes, um contrato de locação financeira mobiliária pelo preço de 40.000,00€, no âmbito do qual foi locado o seguinte bem: Semi-Reboque, de marca ARB e modelo SPM 3D/8.95 ES Reboque, com a matrícula XXXX – Contrato nº XXXX (com o ID Externo XXXX).
VI. No âmbito do referido contrato, foi subscrita uma Livrança em branco pela aqui A – Transportes, Lda. e avalizada pelos aqui Requerentes B, C, D, E, F, para garantia e segurança do bom e pontual cumprimento das obrigações decorrente do mesmo.
VII. Em ambos os casos, ao Leasing era reservado o direito de preencher as respectivas Livranças entregues em branco, podendo fixar o montante e data de vencimento em momento que considerasse oportuno.
VIII. Sucede que, em 15/03/2007, foi decretada a insolvência da primeira Requerente.
IX. Resultando da Assembleia de Credores, realizada no dia 28-05-2008, que “pelos credores presentes/representados foi deliberado por unanimidade que o Sr. Administrador de Insolvência e procederá, no prazo de uma semana à rescisão de todos os contratos de leasing (mobiliários e imobiliários) com o BANCO Crédito, Leasing”
X. Da leitura da ata, verifica-se que nada mais se menciona quanto à denúncia dos contratos com a aqui requerida, muito menos quanto ao alegado entendimento de que o Besleasing se consideraria totalmente ressarcido quanto aos créditos em questão contra a entrega dos bens locados, nada mais lhe sendo, por isso, devido.
XI. Tal não consta da referida ata, porque não aconteceu!
XII. Ademais, se efetivamente tivesse existido qualquer tipo de acordo entre o Leasing e o Administrador de Insolvência, em que o primeiro se consideraria totalmente ressarcido contra a entrega dos bens locados, não faria sentido sequer o credor fazer representar-se na Assembleia nem sequer permanecer como credor nos autos e votar inclusivamente propostas apresentadas.
XIII. Desta feita, decorre do 102.º do CIRE o princípio geral da suspensão do cumprimento quanto aos negócios ainda não cumpridos até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento dos mesmos.
XIV. Repare-se que, o referido preceito legal apenas se aplica nos casos em que não seja previsto um normativo especial, conforme se retira da letra da lei: “sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes (…)” – Artigo 102.º, nº 1 do CIRE.
XV. No caso em apreço, a lei prevê uma solução específica.
XVI. In casu, ficou estipulado entre as partes a possibilidade de aquisição dos bens pelo locatário, no termo do contrato ou até antes do mesmo.
XVII. Veja-se, o que consta da Cláusula Décima, número 1, alínea c) sob a epígrafe TERMO DO CONTRATO: “1. O Locatário poderá, no termo do CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA, optar por: c) adquirir o BEM LOCADO pelo seu valor residual, tal como fixado nas cláusulas particulares, acrescido do imposto que for devido.”
XVIII. E quando assim é, entende igualmente a nossa jurisprudência, que o regime a aplicar é regime especial previsto no artigo 108.º do CIRE e não o geral previsto no artigo 102º do mesmo código.
XIX. Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07-09-2021, Processo nº 4278/15.7T8CBR-F.1.C2, disponível em http://www.dgsi.pt/: «Um contrato de locação de equipamentos que não concede a faculdade de aquisição do bem pelo locatário no termo do contrato, não fica sujeito ao regime especial previsto no artigo 108.º do CIRE para o contrato de locação, ficando, antes, sujeito ao regime geral do artigo 102º do CIRE – suspensão automática do contrato e qualificação dos créditos do locador como créditos sobre a insolvência.»
XX. Assim, determina o n. º1 do artigo 108.º do CIRE que a “A declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador por sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior.”
XXI. É por isto que a decisão recorrida estabelece que “(…) para os contratos de locação, a lei da insolvência prevê uma solução específica, que é consequência, eminentemente, do facto de os bens em causa nesse contrato serem propriedade da locadora e não da massa. De facto, dispõe o artigo 108º do C.I.R.E., para os casos de locação em que o locatário é o insolvente: «1 - A declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias (…). 3 - A denúncia do contrato pelo administrador da insolvência facultada pelo n.º 1 obriga ao pagamento, como crédito sobre a insolvência, das retribuições correspondentes ao período intercedente entre a data de produção dos seus efeitos e a do fim do prazo contratual estipulado, ou a data para a qual de outro modo teria sido possível a denúncia pelo insolvente (…). 5 – Não tendo a coisa locada sido ainda entregue ao locatário à data da declaração de insolvência deste, tanto o administrador da insolvência como o locador podem resolver o contrato, sendo lícito a qualquer deles fixar ao outro um prazo razoável para o efeito, findo o qual cessa o direito de resolução.»
XXII. Concluindo que “quando o AI opte pela denúncia do contrato de locação financeira, são sempre devidas as rendas vencidas e não pagas até essa denúncia (na medida em que, contrariamente ao disposto no artigo 102º do C.I.R.E., o artigo 108º rege no sentido em que a declaração de insolvência não suspende os contratos de locação).”
XXIII. Neste sentido, é salientado no Acórdão da Relação de Coimbra 07.09.2021 (www.dgsi.pt), citado pela Requerida, ao explicitar o âmbito de aplicação do artigo 108º do C.I.R.E.: «A declaração de insolvência não afecta, em si mesmo, o contrato de locação em que o insolvente é arrendatário, conferindo, tão só, ao administrador de insolvência a possibilidade de lhe por termo mediante denúncia. (…) A razão de ser para tal regime [é que] uma vez que o locatário continua a usufruir do gozo do bem, deverá continuar a pagar a respectiva renda ou aluguer, como crédito sobre a massa (art.º 51º, n.º 1, e) e f)). Quanto ao locador, o n.º 4 limita a faculdade de resolução do contrato que lhe caberia, não permitindo a resolução com fundamento na falta de pagamento de rendas ou alugueres relativos ao período anterior a essa declaração ou na deterioração da situação financeira do locatário. (…) E é também na atribuição da faculdade ao Administrador de Insolvência, não de execução ou incumprimento (como no artigo 102º), mas de denúncia do contrato, figura privativa dos contratos duradouros, que se renovam por vontade (real ou presumida) das partes ou por determinação da lei ou que foram celebrados por tempo indefinido, que encontraremos o seu campo de aplicação».
XXIV. Resulta do supracitado que seriam sempre devidas as rendas vencidas desde que a denúncia dos contratos em apreço produziu efeitos até ao término acordado do mesmo.
XXV. Acontece que, conforme se retira da letra da lei “A declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário” - nº 1 do Artigo 108.º do CIRE.”
XXVI. E, no mais, o processo de insolvência em apreço terminou em 2009, não tendo sido provado que a sociedade A – Transportes, Lda. se encontrava em situação de insolvência, por não se entender que a mesma estava impossibilitada de cumprir com a generalidade das suas obrigações, decidiu-se não declarar a insolvência da sociedade em apreço.
XXVII. Sendo certo que a referida sociedade continua a laborar e a prestar contas até os dias de hoje, ou seja, volvidos 14 anos.
XXVIII. Assim é por isto que a decisão recorrida estabelece que “Em conclusão, na medida em que, estando o contrato de locação financeira em vigor à data da declaração de insolvência, esta não tem efeito sobre tal vigência (cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 27.04.2017, in www.dgsi.pt) – artigo 108º, n.º 1 do C.I.R.E. –, cai por terra o fundamental argumento em que os Requerentes alicerçavam a sua posição, falhando, portanto, a demonstração do direito que pretenderiam acautelar preventivamente através da presente providência.”
XXIX. Vêm ainda os recorrentes alegar que a obrigação se encontra prescrita.
XXX. Ora, olvidam uma vez mais os recorrentes que a locação financeira “é o contrato pelo qual é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”, cfr. artigo 1º do DL 149/95, de 24/06.
XXXI. O contrato de locação financeira não é uma compra e venda porque a propriedade se não transfere por mero efeito do contrato, mas também não é uma locação típica, pois o locatário tem o direito de acabar por adquirir o respetivo bem.
XXXII. Desta feita, a renda a cujo pagamento o locatário fica vinculado não corresponde ao valor locativo do bem, que não é a contrapartida da sua utilização, pois deve permitir, dentro do período da vigência, a amortização do bem locado e cobrir os encargos e a margem de lucro do locador por forma a facultar ao locatário, findo o prazo do contrato, a aquisição do bem pelo seu valor residual.
XXXIII. Assim sendo, na locação financeira acaba por existir uma obrigação única do devedor, correspondente ao custo do bem, encargos e margem de lucro, com prestações fracionadas no tempo.
XXXIV. E, no mais, sempre se dirá que os contratos aqui em apreço já não se encontram em mora, mas sim incumpridos definitivamente.
XXXV. E como tal, não é aplicável às rendas de locação financeira o disposto na al. b) do artigo 310º do Código Civil, mas antes o prazo ordinário da prescrição previsto no artigo 309º do CC – 20 anos.
XXXVI. Veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05-06-2003, Processo nº 4372/2003-6, disponível em http://www.dgsi.pt/: “3. Além disso, na locação as rendas são prestações periódicas correspondentes a períodos sucessivos, dependentes da duração do contrato, em termos de desaparecido o bem, desaparecer a obrigação; pelo contrário, na locação financeira há (economicamente) uma obrigação única do devedor, correspondente ao custo do bem, encargos e margem de lucro, com prestações fraccionadas no tempo. 4. Logo as rendas de locação financeira não têm, portanto, a natureza das rendas locatícias, razão por que o prazo quinquenal da prescrição estabelecido no artigo 310º, n.º 1, al. b) do CC não é aplicável às rendas emergentes do contrato de locação financeira, às quais se aplica antes o prazo ordinário da prescrição (20 anos) estabelecido no artigo 309º do mesmo Código”
XXXVII. Veja-se ainda neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-03-2005, Processo 05B378, disponível em http://www.dgsi.pt/: “1. O contrato de locação definido pelo artigo 1.022º do Código Civil e o contrato de locação financeira definido pelo artigo 1º Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, não têm natureza jurídica idêntica. 2. As “rendas” relativas ao contrato de locação financeira são todos os encargos - custos, juros, riscos do crédito, margem de lucro do locador e outras despesas - que representam uma obrigação única, embora possa ser paga por forma repartida por tempo certo. 3. Logo, à obrigação de as pagar, não se aplica o regime de prescrição quinquenal previsto pelo artigo 310º, alíneas b) e d), do Código Civil, mas o regime do prazo geral de prescrição, na falta de lei especial que disponha de forma diferente.”
XXXVIII. Veja-se que a sentença recorrida acompanha o alegado pela requerida “o crédito que a Requerida eventualmente pretenderá fazer valer através do preenchimento das livranças não está prescrito: não só porque as rendas devidas no âmbito do contrato de locação financeira, designadamente após a resolução do contrato operada pela locadora (cf. Ponto 10. dos factos indiciariamente provados) estão sujeitas ao prazo de prescrição ordinária, mas também na medida em que, nos termos do artigo 91º, n.º 1 do C.I.R.E., a declaração de insolvência implica o vencimento de todas as obrigações, incluindo as que se vencem periodicamente ou as de cobrança fraccionada.”.
Nestes termos e nos demais de Direito, que V. Exas. Doutamente suprirão, requer-se:
A procedência da sentença proferida que determina a improcedência total do procedimento cautelar, por infundado, não existindo probabilidade séria da existência do direito que os requeridos se pretendem fazer valer.
ASSIM FAZENDO, V/ EXAS, JUÍZES DESEMBARGADORES,
A COSTUMADA JUSTIÇA!»
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O recurso foi admitido e mostrando-se cumpridos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.
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2. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. art.ºs 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 662º, nº 2, todos do CPCivil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art.º 5º, nº 3, do mesmo Código).
In casu cumpre decidir:
-Efeito da declaração de insolvência do locatário, nos contratos de locação financeira;
-Do prazo prescricional a aplicar às rendas do contrato de locação financeira.
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3. Fundamentação de Facto
Não tendo sido interposto recurso da matéria de facto, tem-se como definitivamente fixada a matéria considerada indiciariamente demonstrada em 1ª instância:
1. A 1ª Requerente outorgou em 18 de Julho de 2005 com a «Leasing e Factoring, L S.A.», dois contratos de locação financeira mobiliária, um com o n.º XXX tendo por objecto uma escavadora de marca Daewoo, modelo S225 LC V, no valor de €100.000,00, e outro com o número XXXX que tinha por objecto um semi-reboque ARB SPM com a matrícula XXX, no valor de €40.000,00 – docs. 1 e 2 juntos com o requerimento inicial.
2. Nos termos de tais contratos, ficou acordado que a 1ª requerente pagaria o preço da aquisição dos bens e respectivos juros em 16 rendas trimestrais, constantes e antecipadas, durante o prazo do contrato.
3. Para garantia do pagamento das prestações contratadas a 1ª requerente subscreveu e entregou à locadora uma livrança a favor desta, com montante e data de pagamento em branco, que foi avalizada pelo 2º, 3º, 4º, 5º e 6º ora requerentes.
4. Em 15.03.2007 pelo então 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Cartaxo, foi declarada a insolvência da 1ª requerente – cf. doc. 3 junto com o requerimento inicial.
5. No âmbito dessa insolvência, os credores da 1ª requerente foram notificados, nos termos da lei, para reclamarem créditos e a Besleasing foi indicada para a Comissão de credores da 1ª requerente, tendo aceitado o cargo.
6. Em 28.05.2008, no Tribunal Judicial do XXX, realizou-se a Assembleia de Credores da 1ª Requerente onde esteve presente a Besleasing e Factoring, S.A., representada pelo Sr. XXX, que apresentou credencial.
7. Nesta Assembleia, todos os credores presentes votaram favoravelmente, incluindo a locadora «Leasing e Factoring, S.A», a proposta do Sr. Administrador de rescindir os contratos de leasing – cf. doc. 4 junto com o requerimento inicial.
8. Em cumprimento da decisão tomada pelos credores de rescindir os contratos de locação financeira imobiliária o Sr. Administrador de insolvência colocou os bens locados à disposição das locadoras.
9. O AI da 1ª Requerente enviou à Besleasing uma carta, datada de 04.06.2008, com o seguinte conteúdo, além do mais que ora se dá por reproduzido: «Assunto: Insolvência de A - Transportes, LDA.. Conforme é do conhecimento de V.Exa., no dia 28 do passado mês de Maio, realizou-se a Assembleia de Credores de Apreciação do Relatório a que alude o artigo 155º do C.I.R.E.. Na mesma (…) foi deliberado (…) pela não execução dos contratos de locação financeira mobiliária n.ºs 2015712 e 201713, celebrados entre a ora insolvente e essa instituição. (…) venho, nos termos do art. 102º do C.I.R.E., comunicar a V.Exa. que a massa não vai cumprir os referidos contratos. Posto isto, desde já me disponibilizo para (…) proceder a entrega das máquinas/equipamentos objecto dos contratos em causa (…).»
10. Em 21.03.2016 a 1ª requerente recebeu uma carta do Novo Banco, S.A. a comunicar que o contrato de locação financeira mobiliária que tinha por objecto o semi-reboque ARB foi resolvido com fundamento em falta de cumprimento no pagamento de prestações (doc. 5).
11. Depois de vários contactos telefónicos que foram inconclusivos a 1ª requerente respondeu por escrito informando que deveria haver um lapso por parte do Banco tendo em conta a situação de insolvência na data de vencimento das prestações ditas incumpridas e a deliberação da Assembleia de credores em extinguir os contratos (doc. 6).
12. Em 28.02.2019 a 1ª requerente recebeu de uma sociedade com a firma «A. Capital, Lda.» uma carta registada com aviso de recepção na qual era informada que o «Novo Banco» e «Banco B» haviam cedido a «… SARL» todos os «créditos e direitos, títulos e juros, bem como todas as importâncias a liquidar» emergentes dos contratos AA XXXX e AA XXXX (doc. 7).
13. Apesar de não ser possível fazer a correspondência entre os créditos ditos cedidos e os contratos de locação financeira celebrados em 2005 com a Besleasing, a requerente enviou uma carta à «A… Capital», em 20.03.2019, na qual, prevenindo a hipótese de os créditos cedidos serem coincidentes informava que não era devedora de qualquer importância dado o facto de os contratos terem sido extinguidos no âmbito do processo de insolvência (doc. 8).
14. Em 19.12.2022, a requerente recebeu uma carta enviada pela Dra. JPR, na qualidade de mandatária de «G…, S.A.», na qual se referia que a PP, SARL havia cedido o crédito à mandante. Mais informava que, em 31.12.2022, a G…, S.A. iria preencher as livranças, subscritas pela 1ª requerente e avalizadas pelos restantes requerentes, que tinha em seu poder pelo valor global de €59.475,85, sendo o capital de €36.575,12, caso entretanto não existisse pagamento (doc. 9).
15. O processo de insolvência da 1ª Requerente terminou em 2009, após terem sido julgados procedentes os embargos deduzidos por diversos credores da sociedade, continuando a mesma a laborar e a prestar contas até à actualidade.
16. A declaração de insolvência causou à Requerente prejuízo reputacional e ainda hoje luta para conseguir ultrapassar todas as vicissitudes que a mesma lhe causou, reconstruindo o seu bom nome e crédito no giro comercial.
17. Os demais Requerentes, avalistas das livranças, são tidos no meio empresarial em que se movimentam como pessoas sérias, honradas e de boas contas.
18. O preenchimento das livranças e sua consequente execução é susceptível de lesar o bom nome dos Requerentes e causar-lhes sentimentos de angústia, incerteza e vergonha.
19. Os Requerentes foram interpelados, mais do que uma vez, para pagamento das rendas vencidas e não pagas referentes ao período entre a declaração de insolvência e a denúncia dos respectivos contratos, decidida na Assembleia de Credores, a saber, entre 20.04.2007 e 20.04.2008 (contrato n.º 2015712) e entre 20.05.2007 e 20.05.2008 (contrato n.º XXX), através de missivas escritas que foram pelos mesmos recebidas.
20. Os bens objecto dos contratos de locação financeira só vieram a ser removidos das instalações da Requerente por efeito da ordem de apreensão emitida por decisão judicial de 29.09.2022 no âmbito da providência cautelar proposta no Tribunal Judicial de Santarém – Juízo Central Cível de Santarém, no âmbito da qual a ora Requerente foi citada em 13.04.2023 – cf. certidão de 20.04.2023 (ref.ª 35742485).
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4. Fundamentação de Direito
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 362.º do Código de Processo Civil:
«Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.»
Partindo do respectivo fundamento normativo, pode considerar-se que as providências cautelares, em geral, são o tipo de medidas que são requeridas e decretadas tendo em vista acautelar o efeito útil da acção, mediante a composição provisória dos interesses conflituantes, mantendo ou restaurando a situação de facto necessária à eventual realização efectiva do direito.
Nos termos do disposto no art.365º do mesmo diploma legal, o requerente oferece prova sumária do direito ameaçado e justifica o receio da lesão.
Requisitos do decretamento de um tal procedimento serão sempre:
a) a probabilidade séria da existência de um direito, isto é, não que o mesmo é certo ou indiscutível, mas sim que há grandes probabilidades de ele existir, e por isso bastando que a existência do direito se apresente como verosímil (Alberto dos Reis, B.M.J., nº 3, p. 51).
b) o fundado receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação, isto é, não basta um juízo de probabilidade, um simples receio correspondente a um estado de  espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, tornando-se necessário um juízo de realidade ou de certeza ou, pelo menos, um receio fundado.
Tal pressupõe, é claro, que o titular do direito se encontra perante simples ameaças; se a lesão já está consumada, a providência não tem razão de ser, uma vez que já não há prejuízo a evitar ou a acautelar.  Contudo, se a violação cometida  for índice de que  outras se seguirão, o titular  do direito pode invocar a lesão efectuada como fundamento de justo receio de outras lesões idênticas, mantendo-se a actualidade do fundado receio (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed, reimpressão, Coimbra 1982, p. 684).
c) a adequação da providência requerida para  evitar a  lesão, isto é‚ a natureza do perigo determinar  a natureza da  providência, devendo a mesma ser idónea para assegurar a conservação do   «status  quo»  de  facto  e  de direito relativamente  a uma situação da qual resultam interesses que o  direito protege (L. P. Moitinho de Almeida, Providências Cautelares Não Especificadas, Coimbra Editora, Lda, 1981, p. 19).E  isto significa igualmente que a providência cautelar requerida não pode estar abrangida por qualquer dos outros processos cautelares  especificados, do  Capítulo IV do Título I  do  Livro III  do  C.P.C.,  só assim se  mostrando  assegurado  o  seu  carácter subsidiário.
d) e não ser o prejuízo resultante da concessão da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar, isto é, na presença de dois interesses em conflito dever o julgador sacrificar o interesse menor em benefício do interesse maior (Alberto dos Reis, ob. cit., p. 678).
Tecidas as considerações genéricas que se impõem em sede de procedimentos cautelares, para decidir da matéria da presente apelação temos de assentar no conceito de locação financeira.
Segundo o artigo 1º do DL 149/95, de 24 de Junho, a locação financeira é «o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o preço acordado, por um preço determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios fixados».
Sendo um contrato bilateral, dele emergem os seguintes elementos constitutivos:
- a indicação da coisa a comprar ou a construir (e também do fornecedor) por parte do locatário;
- o dever de aquisição da coisa ao fornecedor que incumbe ao locador (envolvendo aqui uma operação triangular);
- o dever de (o locador) conceder temporariamente o gozo da coisa previamente escolhida (ou mandada construir) pelo locatário;
- a faculdade de aquisição da coisa locada no termo do contrato pelo locatário.
Fernando de Gravato Morais distingue, ainda, a locação financeira de amortização integral – em que a soma dos pagamentos a realizar pelo locatário cobre os montantes pagos pelo locador com a aquisição da coisa e outros encargos, assim como o lucro que este obtém, o valor previsto no contrato (que corresponde à soma que não foi objecto de amortização) para o caso de compra do bem pelo locatário é, portanto, muito reduzido – da locação financeira de amortização parcial, em que a importância global a pagar pelo locatário fica, em regra, muito aquém do valor despendido com a aquisição da coisa pelo locador  e dos outros custos (ex. despesas com a aquisição); só cobre portanto uma parte desse montante, o valor residual é, nesta hipótese, superior e relevante. Cfr. «Manual de Locação Financeira», 2011-2ª ed., Almedina, p. 54-55.
Para Rui Pinto Duarte, esta última modalidade configura uma verdadeira locação, embora acoplada a uma promessa unilateral de venda, enquanto para Diogo Leite de Campos esta modalidade está mais próxima do renting, a ponto de aparecerem confundidas na prática e nos autores. Cfr. «Escritos sobre Leasing e Factoring», Cascais 2001, p. 200 e «Ensaio de Análise tipológica do contrato de locação financeira», FBD, 1097, p.5.
Embora a locação financeira tenha alguns pontos de contacto com a locação ordinária (artigo 1022º CC) – dever temporário de concessão do gozo da coisa, carácter temporário e oneroso do negócio e o facto de a propriedade do objecto pertencer ao locador na vigência do contrato –, dela se afasta nas seguintes características:
- a obrigação de proporcionar o gozo da coisa (artigo 1022º CC) tem um conteúdo diverso do dever de conceder o gozo do bem do art.º 1º DL 149/95;
- a retribuição tem funções diversas numa e noutra hipótese– se na locação corresponde à mera contrapartida do gozo da coisa, no leasing financeiro engloba outras vertentes; as rendas são prestações periódicas na locação e prestações fraccionadas no leasing financeiro;
- a coisa a adquirir ou a construir é indicada ou é escolhida pelo locatário financeiro;
- o risco de perda ou deterioração do bem corre por conta do locatário financeiro, salvo estipulação em contrário, encontrando-se este obrigado a efectuar seguro do bem locado (artigos 15º e 14º do DL nº149/95);
-  o contrato deve prever a opção de compra pelo locatário financeiro, no final do contrato, por um determinado preço.
No caso em apreço, dúvidas não subsistem que no cerne da presente providência estão dois contratos de locação financeira em que a apelante figura como locatária e encontrando-se a apelada na posição de locadora.
Conforme flui da exposição da factualidade inserta na petição inicial e subsequente oposição, está em causa o pagamento -ou a falta dele- do valor correspondente às rendas vencidas e não pagas referentes ao período entre a declaração de insolvência e a denúncia dos respectivos contratos, decidida na Assembleia de Credores.
A insolvência foi declarada em 15.3.2007 (ponto 4 da matéria de facto) e, com data de 4.6.2008, o Administrador de Insolvência enviou à Besleasing uma carta, comunicando que, nos termos do art.º 102º do C.I.R.E., a massa não vai cumprir os contratos de locação, disponibilizando-se para proceder à entrega das máquinas/equipamentos objecto dos contratos em causa (ponto 9 da matéria de facto).
Ora, o artigo 102º do CIRE convocado pelos apelantes, estabelece um regime geral para os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso, relativamente a «qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja total cumprimento, nem pelo insolvente nem pela outra parte».
A aplicação de tal preceito legal pressupõe, tão só, o preenchimento cumulativo de três requisitos:
- existência de um contrato bilateral (sinalagmático);
- não ter havido cumprimento total ou parcial;
- que tal falta de cumprimento se reporte a ambos os contraentes: Cfr. neste sento. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª ed. Almedina, p.207, e Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2016-2ª ed., Almedina, p.172, Catarina Serra, «Lições de Direito da Insolvência», p.225, Gisela César, «Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-Promessa em Curso», Almedina, pp.74-76, e Luís A. Carvalho Fernandes, «Efeitos Substantivos Privados da Declaração de Insolvência», in «Colectânea de Estudos sobre a Insolvência», Quid Iuris, p.212.
Em tal caso, os contratos abrangidos por esta disposição legal, ficam com o seu cumprimento suspenso até que o administrador da insolvência declare que opta pela execução do contrato ou pela recusa do cumprimento, constituindo os créditos do contraente não insolvente meros créditos sobre a insolvência, caso o administrador opte pela recusa do cumprimento (als. c) e d) do nº3). Opera, nesse caso e desde logo uma suspensão dos contratos.
Porém, nem todos os negócios incumpridos estão sujeitos a tal regime já que no CIRE vêm previstos regimes específicos para outras situações e, para o que ao caso sub judice diz respeito, cumpre atentar no preceituado nos artigos 104º a 108º do CIRE.
O artigo 104º, sob a epígrafe, «Venda com reserva de propriedade e operações semelhantes» preceitua:
«1 - No contrato de compra e venda com reserva de propriedade em que o vendedor seja o insolvente, a outra parte poderá exigir o cumprimento do contrato se a coisa já lhe tiver sido entregue na data da declaração da insolvência.
2 - O disposto no número anterior aplica-se, em caso de insolvência do locador, ao contrato de locação financeira e ao contrato de locação com a cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas. (sublinhado nosso)
3 - Sendo o comprador ou o locatário o insolvente, e encontrando-se ele na posse da coisa, o prazo fixado ao administrador da insolvência, nos termos do n.º 2 do artigo 102.º, não pode esgotar-se antes de decorridos cinco dias sobre a data da assembleia de apreciação do relatório, salvo se o bem for passível de desvalorização considerável durante esse período e a outra parte advertir expressamente o administrador da insolvência dessa circunstância.
4 - A cláusula de reserva de propriedade, nos contratos de alienação de coisa determinada em que o comprador seja o insolvente, só é oponível à massa no caso de ter sido estipulada por escrito, até ao momento da entrega da coisa.
5 - Os efeitos da recusa de cumprimento pelo administrador, quando admissível, são os previstos no n.º 3 do artigo 102.º, entendendo-se que o direito consignado na respectiva alínea c) tem por objecto o pagamento, como crédito sobre a insolvência, da diferença, se positiva, entre o montante das prestações ou rendas previstas até final do contrato, actualizadas para a data da declaração de insolvência por aplicação do estabelecido no n.º 2 do artigo 91.º, e o valor da coisa na data da recusa, se a outra parte for o vendedor ou locador, ou da diferença, se positiva, entre este último valor e aquele montante, caso ela seja o comprador ou o locatário.»
Este preceito legal prevê as situações dos contratos de compra e venda com reserva de propriedade, mas, também, a situação dos contratos de locação financeira e de locação com a cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas as rendas acordadas. Já os art.ºs 108º e 109º prevêem a regulação de situação diversa. Aqui pretende regular-se os efeitos da declaração de insolvência sobre o «contrato de locação», o primeiro no caso de insolvência do locatário e o segundo nos casos em que é insolvente o locador.
O artigo 108º CIRE, correspondia ao art.169º do CPEREF, e se agora estabelece um regime para a locação em geral, no anterior regime regia unicamente o contrato de arrendamento.
Na verdade, a declaração de insolvência não afecta, o contrato de locação, em que o insolvente é locatário apenas conferindo, ao administrador da insolvência a possibilidade de lhe pôr termo mediante denúncia. Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, «Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado», 2ª ed., Quid Juris, pág.502.
O facto de a locação financeira poder ser qualificada como um contrato atípico, tal não significa que o mesmo vá recair, sem mais, no regime «geral» previsto no artigo 102º, como pretendem os apelantes, havendo que aferir, partindo da ponderação de interesses efectuada pelo legislador, de entre o regime previsto no art.º 102º, ou o que dos artigos 102º e 104º resulta para o contrato de compra e venda com reserva de propriedade e contratos análogos, ou do regime previsto no artigo 108º para a locação comum, qual o regime que melhor se adaptará ao contrato em apreço, tendo em vista as suas características específicas.
E o artigo 104º do CIRE, estabelece um regime especial fazendo depender expressamente a sua aplicabilidade ao contrato de locação da existência de «cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas».
Vejamos, então, se aos contratos de locação financeira aqui em causa tem aplicação o regime «geral» previsto no artigo 102º ou o regime especial previsto no art.º 108º.
Não sofre dúvidas que os contratos de locação celebrados e dados como provados em 1, resulta que à requerente locatária era permitido no final dos contratos, adquirir os bens locados.
Para optarmos pela aplicação de um regime ou outro, haverá que atentar nas diferenças essenciais nas soluções encontradas em cada um deles – o artigo 102º prevê a suspensão do cumprimento do contrato até que o administrador declarar se opta pela sua execução ou recusa o cumprimento; o artigo 108º estabelece a manutenção do contrato até ao momento em que o administrador opte pela sua extinção mediante denúncia – e nas razões pelas quais o legislador fez questão de dele se afastar no contrato de locação.
Maria do Rosário Epifânio a propósito do artigo 169º do CPEREF, quanto à falência do arrendatário (regime este agora alargado à locação em geral) defendia em argumentação actual: «A consagração deste regime de continuidade do arrendamento deve-se à natureza do contrato: uma vez que se trata de um contrato duradouro, enquanto o liquidatário judicial não optar pela extinção do contrato, ao arrendatário continua a ser necessariamente a proporcionado o gozo da coisa e, correspondentemente, ao senhorio deve continuar a ser reconhecido o direito ao pagamento das rendas na íntegra. Isto significa, por outras palavras, que a solução de manutenção do contrato (sem qualquer suspensão da sua execução), se e enquanto o liquidatário não optar pela extinção do contrato, não apresenta a sua razão de ser directa ou imediata na tutela do senhorio in bonis (maxime do pagamento integral das rendas após a declaração de insolvência): pelo contrário, ela fundamenta-se antes na necessidade de proteção do interesse da massa falida, id quod plerumque accidit – ou seja, da necessidade de permitir à massa falida a manutenção do gozo dos bens integrantes da massa falida». Cfr. «Os Efeitos Substantivos da Falência», Publicações Universidade Católica, Porto 2000, pp. 355-356.
In casu, a obrigação da 1ª requerente, é fraccionada quanto ao seu cumprimento, mas unitária em si mesma já que cada uma das prestações a cujo pagamento se obrigou reconduz-se a uma fracção do montante global, previamente definido, a reembolsar ao locador. Satisfeitas as prestações e pago o valor residual, o locatário adquire a propriedade do bem. Assim e levando em conta tais características, teremos de concluir pela aplicabilidade ao caso do art.108º do CIRE e não o art.102º como defende a requerente.
Nos termos do nº1 do artigo 108º, a declaração de insolvência do locatário não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja o locatário, mas o administrador pode denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, sendo que, se o não fizer, o direito às rendas que se vençam após a declaração de insolvência constitui crédito sobre a massa. Sendo assim, se os créditos reclamados forem integrados no artigo 108º, não há dúvida que a requerida terá direito às rendas vencidas entre 15.3.2007 (data da declaração de insolvência) e 4.8.2008, data em que produziu efeito a denúncia do contrato por parte do A.I.. Estando o contrato de locação financeira em vigor à data da declaração de insolvência, esta não tem efeito sobre tal vigência, em conformidade com o citado art.º 108º, n.º 1 do C.I.R.E.. Cfr.neste sent. Acórdão da Relação de Lisboa de 27.04.2017, disponível in, www.dgsi.pt..
Aliás, não se compreende a respeito a declaração da requerida de resolução do contrato por falta de cumprimento das prestações acordadas quando e conforme flui dos factos dados como provados, o contrato já havia cessado por força da declaração do Sr. A.I. que produziu efeitos sessenta dias após a sua transmissão.
De todo o exposto não pode deixar de considerar-se, em consonância com o decidido em 1ª instância que assim, fica por demonstrar, ainda que indiciariamente, o direito que os requerentes pretendiam fazer valer com a presente providência.
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Vejamos, ainda, a questão da prescrição suscitada pelos requerentes.
Recordemos que insurgem-se contra o decidido em 1ª instância alegando que será de aplicar analogicamente o prazo prescricional de cinco anos às rendas do contrato de locação financeira. As obrigações que a Recorrente pretende fazer valer através do preenchimento das livranças subscritas e avalizadas pelo ora Recorrentes encontram-se, assim, prescritas e não são exigíveis.
Antes de mais cumpre anotar que em sede de petição inicial os requerentes fazem alusão apenas a uma livrança e foi a existência de uma livrança e não «livranças» que foi dado como indiciariamente provado.
É certo que resulta provado que a livrança a que os requerentes fazem alusão no seu requerimento inicial e que a final pedem que seja ordenado à requerida que não proceda ao seu preenchimento -livrança/s subscrita/s pela 1ªrequerente e avalizadas pelos restantes requerentes que estejam na sua posse em virtude de créditos de contratos de locação financeira mobiliária celebrados entre a 1ª requerente e «Leasing e Factoring - Instituição Financeira de Crédito, S.A.» e que seja ordenado que não sejam entregues a terceiros ou caso estejam preenchidas não sejam postas em circulação nomeadamente através de endosso e que se abstenham de as executar- foram entregues à Leasing em branco, comprometendo-se os requerentes a pagá-la na data do seu vencimento.
A livrança é um título de crédito à ordem, pelo qual alguém se compromete para com outrem a pagar-lhe determinado montante em data determinada. Trata-se de promessa de pagamento que o emitente deve cumprir.
Nos termos do disposto no art.77º, parágrafo 2º da L.U.L.L., é admitida a livrança em branco, remetendo-se para o art.10º do citado diploma legal.    O pacto de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo de vencimento, a sede de pagamento, a estipulação de juros, etc. Subjacente à subscrição da livrança estão os contratos de locação financeira cuja disciplina acima se deixou definida.
Vejamos, assim, se estará prescrita a relação subjacente.
A este propósito e apesar de haver jurisprudência dissonante na 2ª instância, a verdade é que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, pelo menos desde 2003, tem sido praticamente unânime defendendo que às rendas dos contratos de locação financeira se aplica o prazo prescricional mais longo de vinte anos.
Entende unanimemente o STJ  não se poder aplicar o curto prazo de prescrição de 5 anos do Código Civil de 1966 previsto na al. b) do art.310º do C. Civil para «As rendas e alugueres devidos pelo locatário, ainda que pagos por uma só vez;», face à diversidade da natureza do contrato de locação civil dos arts.1022º ss do C. Civil (existente na altura da aprovação do Código Civil de 1966 e à qual se reportou a historicidade da norma), no qual a renda corresponde a uma obrigação periódica e de tracto sucessivo e do contrato de locação financeira, regulado pelo DL nº149/95, de 24 de Junho, no qual a renda respeita a uma única prestação pré-fixada e fraccionada no tempo, composta por capital, juros e despesas e se aproxima do regime de amortização de um financiamento. Veja-se Ac. STJ de 11.12.2003, Ac. STJ de 17.03.2005, Ac. STJ de 12.01.2010 e, recentemente, em recurso de revista, Ac. STJ de 13.10.2022, revogando o entendimento distinto adoptado no Ac. TRLisboa, de 26.4.2022, no sentido de se aplicar o prazo prescricional de cinco anos previsto no art.º 310º, c) e e) analogicamente. Todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Assim, e seguindo a orientação jurisprudencial do nosso Supremo Tribunal, também se entende conforme se escreve no Ac. STJ de 13.10.2022 « O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado constantemente que deve distinguir-se entre os alugueres ou rendas devidos por causa de um contrato de locação e as rendas devidas por causa de um contrato de locação financeira: I. — Os alugueres ou rendas devidas pelo locatário por causa de um contrato de locação representam simplesmente a contrapartida da utilização de um bem; correspondem a prestações periódicas ou reiteradas II. — As rendas devidas pelo locatário por causa de um contrato de locação financeira não representam simplesmente a contrapartida da utilização de um bem (da utilização do bem locado), “relevando […] na sua composição, o valor correspondente à amortização do capital investido, isto é, [o] custo do bem, os custos de gestão e os riscos próprios da locação financeira”; correspondem a uma prestação única, “embora possa ser paga por forma repartida por tempo certo».
De facto, as rendas da locação financeira não se enquadram na previsão da alínea b) do artigo 310.º, porque são diferentes das da locação e também não cabem na alínea e), porque são diferentes das do contrato de mútuo com juros. Daqui se há-de retirar que o prazo prescricional a aplicar é aquele previsto no art.309º do CCivil, ou seja, o prazo de vinte anos.
Em face do exposto, conclui-se que soçobram todos os argumentos recursivos aventados pelos apelantes, cumprindo concluir, como acertadamente se concluiu em 1ª instância, que não existe qualquer probabilidade séria da existência do direito invocado pelos requerentes, assim se mantendo in totum a decisão recorrida.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, mantêm a decisão proferida em 1ª instância.
Custas a cargo dos apelantes.
Notifique e registe.

LISBOA, 6.7.2023
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Rui Manuel Pinheiro Oliveira
Teresa Prazeres Pais