Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15282/17.0T8LSB.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ALTERAÇÃO OFICIOSA PELA RELAÇÃO
ADVOGADO
RESPONSABILIDADE CIVIL
FACTO ILÍCITO E VOLUNTÁRIO
PERDA DE CHANCE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Entre as situações suscetíveis de determinar intervenção oficiosa da Relação, independentemente, portanto:
- da iniciativa da parte interessada na alteração da decisão sobre a matéria de facto; e,
- da aplicação dos ónus previstos no art.º 640.º do CPC,
estão aquelas em que, nos termos da al. c) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC, tal decisão apresenta patologias que a tornam total ou parcialmente deficiente, obscura ou contraditória.
2. Impõe-se, naquele contexto, a intervenção oficiosa da Relação num caso em que, no âmbito de uma ação de indemnização por perda de chance processual, o tribunal a quo deu como provado que no dia 14 de fevereiro de um determinado ano, D outorgou procuração forense a favor de A, advogada, para que esta a representasse numa ação decorrente de acidente de trabalho do qual resultou a morte de um filho de D, ocorrido no dia 12 de abril do mesmo ano, ou seja, cerca de dois meses depois da outorga daquela procuração.
3. Nenhuma razão existe, epistemológica ou legal, que impeça o juiz de reconhecer, na prova por declarações de parte de que resultem factos favoráveis ao próprio depoente, um meio válido de formação da sua convicção, de forma lógica e esclarecida, ou seja, uma fonte válida de convencimento racional do juiz.
4. Trata-se de um meio de prova legalmente consagrado, sujeito à livre valoração do juiz, sem subalternidade a qualquer outro meio probatório, nada havendo que impeça que determinados factos sejam considerados provados apenas e só com base na concorrência única e exclusiva das declarações de parte.
5. Constitui um facto voluntário para efeitos de responsabilidade civil, a apresentação, por advogado, de uma petição inicial numa altura em que já se encontrava prescrito o direito que o seu constituinte pretendia fazer valer através da respetiva ação.
6. No entanto, para que esse facto voluntário possa ser considerado ilícito é necessário que sobre ele recaia um juízo de reprovação da conduta do advogado, embora num plano geral e abstrato em que a lei se coloca, numa primeira aproximação da realidade, pois a  ilicitude constitui como que um modo analítico do valor ou desvalor do facto considerado isoladamente face aos princípios defendidos pela ordem jurídica.
7. No âmbito da responsabilidade civil contratual, a ilicitude reside no incumprimento do contrato (art.º 798.º do CC).
8. O contrato celebrado entre o advogado e o seu cliente é, no direito português, um contrato de prestação de serviço que, além de sujeito às disposições do estatuto profissional do advogado, é diretamente regulado pelas regras do mandato, sendo-lhe diretamente aplicáveis, imediatamente ou por força da norma de extensão contida no art.º 1156.º do CC, as disposições do mandato e, entre elas, com especial relevância, a norma contida na al. a) do art.º 1161.º do CC: «O mandatário é obrigado (...) a praticar os atos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante.»
9. Num caso em que:
a) D só em dezembro de 2010 quis avançar com a ação, depois de findo um outro processo, e apenas contra determinados réus, por forma a não prejudicar um seu genro;
b) A, advogada, a alertou para a possibilidade de vir a ser declarado prescrito o direito pretendido fazer valer através dessa ação, a menos que se entendesse ser de 10 anos o prazo prescricional;
c) ainda assim, D quis avançar com a ação, para o que, no dia 9 de dezembro de 2010 outorgou procuração forense a favor de A, conferindo-lhe, com «os de subestabelecer», «os mais amplos poderes, em direito permitidos»;
d) a ação foi instaurada no dia 20 de dezembro de 2010;
e) a 1.ª instância proferiu sentença a julgar a ação improcedente, por verificação da exceção perentória de prescrição;
f) a Relação revogou a sentença da 1.ª instância, por entender ser aplicável ao caso, o prazo prescricional de 10 anos, ainda não decorrido, e condenou as rés a indemnizarem D);
g) o S.T.J. revogou o acórdão da Relação e repristinou a sentença da 1.ª por entender verificada a exceção de prescrição, inexiste incumprimento, por parte de A, advogada, do contrato de mandato ad litem celebrado com D, ou seja, inexiste facto voluntário ilícito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
D instaurou no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Cível de Lisboa, onde foi distribuída pelo Juiz 8, a presente ação declarativa de condenação contra M SEGUROS, S.A.[1], e A[2], alegando, em suma, que seu filho, de nome P, de quem era a única herdeira, faleceu no dia 12 de abril de 2005, vítima de um acidente de trabalho.
A autora contratou os serviços da 2.ª ré, advogada de profissão, para a patrocinar e representar no exercício dos seus direitos, decorrentes da morte do seu filho, para o que outorgou a seu favor procuração forense através da qual lhe concedeu os mais amplos poderes forenses em direito permitidos.
No dia 20 de dezembro de 2010, patrocinada pela 2.ª ré, a autora instaurou ação declarativa contra C, Lda., N, Lda., e Seguradora R, S. A., a qual, sob o n.º ____/__, correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Central Cível de Sintra – J2, pedindo a condenação das rés a indemnizarem-na no montante de €125.000,00, pelos danos por si alegadamente sofridos em consequência da morte do seu filho.
O direito que a autora pretendia fazer valer nessa ação foi declarado prescrito, o que sucedeu em consequência de a 2.ª ré não ter instaurado, como devia, a ação em tempo útil.
A descrita conduta da 2.ª ré retirou à autora a oportunidade de ver o seu alegado dito indemnizatório ser judicialmente apreciado naqueles autos, o que lhe causou prejuízos pelos quais pretende ser ressarcida por via da presente ação.
A Ordem dos Advogados Portugueses celebrou com a 1.ª ré um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, titulado pela apólice n.º ____, que cobre o risco decorrente de ações ou omissões no âmbito da atividade de advogado, e em que são segurados todos os membros daquela Ordem.
Por conseguinte, a 1.ª e a 2.ª rés são solidariamente responsáveis pelo pagamento à autora da indemnização por esta peticionada na presente demanda.
A autora conclui assim a petição inicial:
«Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exa. mui doutamente suprirá deverão as Rés ser solidariamente condenadas a pagar uma indemnização à Autora, no montante de 100.000,00 Euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, desde a citação até efectivo e integral pagamento.»
*
A 2.ª ré contestou, defendendo-se por via de impugnação.
Conclui pugnando para que:
- a ação seja julgada improcedente, por não provada, com a sua consequente absolvição do pedido; caso assim se não entenda;
- seja a sua responsabilidade considerada transferida para a 1.ª ré.
*
A 1.ª ré também contestou, alegando, em suma, que caso a ação venha a ser julgada procedente, sempre a 2.ª ré seria responsável pelo pagamento à autora do montante equivalente à franquia contratada no âmbito do contrato de seguro invocado.
O sinistro não lhe foi atempadamente comunicado pela 2.ª ré, o que constitui uma causa de exclusão da cobertura da responsabilidade civil da apólice celebrada entre si e a Ordem dos Advogados.
Trata-se de uma circunstância impeditiva do direito que a autora invoca contra si, configurando, por isso, uma exceção perentória, determinante da sua absolvição do pedido.
No mais, impugna a factualidade alegada pela autora.
«Nestes termos e nos mais de direito:
A) Deve a exceção perentória alegada ser julgada procedente, por provada, e, em consequência, a Ré absolvida do Pedido;
Caso assim não se entenda,
B) Deve a presente ação ser julgada totalmente improcedente, por não provada, com as consequências legais daí advenientes.»
*
No articulado apresentado no dia 7 de outubro de 2017, a autora:
- respondeu à matéria de exceção; e,
- deduziu o incidente de intervenção principal provocada da companhia de seguros AIC (Europe), Lda.
*
Por despacho datado de 19 de dezembro de 2017, foi julgada verificada a incompetência territorial do tribunal onde a ação foi inicialmente proposta, e julgado territorialmente competente para a sua preparação, o Tribunal da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Central Cível de Loures, para onde o processo foi remetido, tendo sido distribuído pelo Juiz 6.
*
Por decisão proferida no dia 13 de junho de 2018, foi julgado procedente o incidente de intervenção principal provocada da AIC (Europe), Lda.[3], e determinada a citação para, querendo, deduzir contestação, o que fez:
- invocando a inexistência de contrato de seguro aplicável ao caso sub judice;
- impugnando, no mais, a factualidade alegada pela autora.
Conclui assim a sua contestação:
«Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis, que v. exa. doutamente suprirá:
1- deverá a excepçao invocada ser julgada procedente por provada devendo em conesquencia a ora interveniente ser absolvida do pedido
2- devendo sempre a presente acção ser julgada improcedente por não provada, sendo a ré absolvida do pedido, com as legais consequências.»
*
Realizou-se a audiência prévia, diligência na qual, além do mais, se fixou o objeto do litígio e se enunciaram os temas da prova.
*
A autora faleceu na pendência da ação, tendo, na sequência da dedução do competente incidente de habilitação de herdeiros, sido proferida a decisão datada de 5 de janeiro de 2023, que julgou habilitados a ocuparem a posição processual daquela, os seus sucessores, AJ, MF, MC, CM e BC[4].
*
Na subsequente tramitação dos autos realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Pelo exposto, julga-se a presente ação improcedente por não provada e, em consequência, absolvem-se as rés “M Seguros, S. A.” e A, e a interveniente: “AIC (Europe), Lda.”, do pedido formulado pelos habilitados em nome da autora falecida D, AJ, MF, MC, CM e BC.»
*
Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«I
Entende a Recorrente que foram erroneamente julgados os pontos 19 e 20 da matéria de facto dada como provada, os quais não deveriam constar da “Matéria de facto dada como Provada” ou deveriam ter sido dados como NÃO PROVADOS:
(...)[5];
II
(...);
XXVIII
(...) o Tribunal a quo deveria ainda ter dado como provados os seguintes pontos constantes da Petição Inicial, 7º, 8º, 10º, 24º e 26º:
(...)[6];
XXIX
(...)
XXXVII
(...) devem igualmente ser aditados os factos vertidos pela Autora no requerimento de resposta às exceções deduzidas pelas Rés, de 09/10/2017, artigos 21º a 27º daquele articulado, com a referência citius 369801800:
(...)[7];
XXXVIII
(...)
XL
O Tribunal a quo andou mal, quer na decisão sobre a matéria de facto quer na decisão sobre a matéria de Direito.
XLI
É pacifico na Doutrina e na jurisprudência que constitui contrato de prestação de serviço, na modalidade de mandato, o acordo que atribui a advogado a propositura de acções judiciais;
XLII
No caso Sub Júdice a Recorrida violou o disposto nos artigos 97º e 100º do Estatuto da ordem dos Advogados;
XLIII
Não tendo instaurado a respectiva acção judicial, em tempo, em nome e representação da Autora, a Recorrida não cumpriu pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto da Ordem dos Advogados, bem como todos aqueles que os usos, os costumes e as tradições lhe impunham, designadamente para com o cliente.
XLIV
A Recorrida Dr.ª A, Ilustre Advogada, agiu sem a diligência que lhe era exigível e de que era capaz, em cumprimento dos deveres estabelecidos nos artigos 1157º e 1161º, do Código Civil e artigos 97º e seguintes do Estatuto da Ordem dos Advogados e 44º do C.P.C.
XLV
A omissão da Recorrida torna-a responsável civilmente pelo prejuízo causado à Autora, nos termos do disposto no artigo 798º do Código Civil.
XLVI
Ora, no caso Sub Judice, é manifesto que tendo que ser retirados da matéria de facto dada como provada os pontos 19 e 20 que o tribunal a quo considerou como provados, a Recorrida, Ilustre Advogada, não provou que o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.
XLVII
(...)
XLVIII
Se a Recorrida, Ilustre Advogada, tivesse intentado a respetiva ação judicial em tempo a mesma teria recebido, pelo menos, os referidos 100.000€ (...).
XLIX
Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os artigos 566º, 798º, 799º, 1157º e 1161º, do Código Civil e artigos 97º e seguintes do Estatuto da Ordem dos Advogados e 44º do C.P.C.»
Conforme refere Rui Pinto, «depois de formular conclusões, o recorrente termina deduzindo um pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial»[8].
No presente recurso, após a formulação das conclusões, os apelantes deduzem o seguinte pedido revogatório:
«Nestes termos e nos melhores de direito (...) deve o presente Recurso obter provimento e, em consequência, deve a Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser substituída por douto Acórdão que condene as Recorridas, solidariamente, a pagar aos Recorrentes:
O montante global de 100.000,00 (Cem Mil) Euros, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos calculados à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Assim decidindo farão v. Exas. a tão costumada e esperada
JUSTIÇA!»
*
As rés contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
*
A interveniente também contra-alegou, pugnando nos mesmos termos que as rés.
Além disso, procedeu, a título subsidiário, à ampliação do objeto do recurso, concluindo assim:
«Deve o recurso apresentado pelos AA. improceder na totalidade com fundamento no exposto, sendo que, apenas na eventualidade da douta sentença recorrida ser revogada, nomeadamente, na parte que respeita à pretensa responsabilização civil da Ré, Dra. A, relativamente aos factos alegados nos autos pelos AA. (o que não se admite, mas agora se equaciona por mero dever de patrocínio), requer-se, desde logo, a (...) ampliação do âmbito do recurso interposto, nos termos previstos no artigo 636.º, n.º 1 do CPC, devendo ser apreciada e julgada procedente a excepção peremptória de falta de cobertura temporal das apólices ____e ____, relativamente ao sinistro em apreço, com a consequente absolvição da Interveniente, só assim se fazendo,
VERDADEIRA JUSTIÇA!».
***
III – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
a) se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
b) se devem considerar-se verificados os pressupostos de que depende a pretensão indemnizatória dos autores, com fundamento na perda de chance processual.
Subsidiariamente, caso se mostrem verificados tais pressupostos, então, importa decidir da «falta de cobertura temporal das apólices ____e ____, relativamente ao sinistro em apreço», conforme pretendido pela interveniente AIC (Europe), Lda..
***
III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
3.1.1 – A sentença recorrida considerou provado que:
«1. P faleceu no dia 12 de abril de 2005 em consequência de um acidente de trabalho.
2. A falecida D era mãe de P e sua única e legítima herdeira.
3. A ré A é advogada, titular da cédula profissional n.º ____, e exerce a sua profissão desde 1993.
4. Em 14 de fevereiro de 2005 a falecida D outorgou procuração forense à ré A no âmbito do processo que, sob o n.º ____/__, correu termos no J1 do Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, no qual se discutiu o acidente de trabalho que vitimou P, mediante a qual lhe conferiu, com «os de subestabelecer», «os mais amplos poderes, em direito permitidos».
5. Nesta ação especial emergente de Acidente de Trabalho a falecida D assumiu a posição processual de beneficiária, sendo réus a “Companhia de Seguros A, S. A.”, a sociedade “C, Lda.”, a sociedade “N, Lda.” e DS, genro da falecida D.
6. A ré A esteve presente e acompanhou a falecida D na audiência de tentativa de conciliação ocorrida no Tribunal do Trabalho de Vila Franca de Xira, que se realizou no dia 17 de janeiro de 2008.
7. Em 9 de dezembro de 2010 a falecida D outorgou procuração forense à ré A, conferindo-lhe, com “os de subestabelecer”, “os mais amplos poderes, em direito permitidos”. E,
8. Em 13 de dezembro de 2010 requereu benefício de apoio judiciário para intentar ação de natureza cível.
9. Em 20 de dezembro de 2010, patrocinada pela ré A, conforme procuração forense descrita em 7., e juntando o requerimento de apoio judiciário descrito em 8., a falecida D intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário contra a sociedade “C, Lda.”, a sociedade “N, Lda.” e a “Seguradora R, S. A.”.
10. Ação que correu termos sob o n.º ____/__, no J2 do Juízo Central Cível de Sintra, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.
11. Nesta ação a falecida D pediu a condenação solidária das rés a pagarem-lhe uma indemnização no montante de €125.000,00 a título de danos não patrimoniais, pelo óbito do seu filho P, pelo sofrimento deste que precedeu a sua morte, e pela perda do direito à vida.
12. A referida ação foi instaurada com pedido de citação urgente com o fundamento de que «a presente petição baseia-se em acidente de trabalho ocorrido a 12 de Abril de 2005 e do qual proveio a morte de P. (…) Ora a autora somente teve conhecimento do seu direito a ser indemnizada, após cerca de um mês da data em que teve lugar e realização a Tentativa de Conciliação, realizada aos dias 17 de Janeiro de 2008 no âmbito do mencionado Processo n.º ____/__, no âmbito do processo laboral. É que a autora depois de ser representada naquela diligência veio a reunir com a mandatária, um mês depois, e nessa reunião ficou conhecedora de que poderia reclamar outros direitos noutras instâncias. A autora é pessoa reformada, iletrada, muito pouco esclarecida e sem quaisquer conhecimentos de direito e sem possibilidade de deles conhecer por outra via, atento à manifesta humildade da sua vida e modestíssima realidade da sua vida. Assim e atendendo a que o prazo prescricional poderá ocorrer, a autora receia que não seja já viável a citação atempada dos réus se for respeitado o normal procedimento previsto na lei processual para a distribuição e posterior citação processuais».
13. As rés contestaram a ação descrita em 9. e 10., entre elas a ré “C, Lda.” que, além do mais, excecionou a prescrição do direito invocado pela falecida D, por decurso do respetivo prazo.
14. A ré A foi notificada destas contestações em 29.04.2011.
15. No âmbito deste processo foi proferida sentença em 05.06.2014, nos termos da qual se julgou improcedente o pedido da falecida D, por se julgar verificada a exceção de prescrição invocada nos seguintes termos: «(…) não se apurou a verificação da situação prevista pelo n.º 3, do artigo. 498.º, do Código Civil: “que o facto ilícito constitua crime para o qual a lei estabeleça a prescrição sujeita a prazo mais longo”; o que, como referimos acima, se mostrava essencial para que julgássemos improcedente a excepção de prescrição invocada pelas rés. Assim, mostra-se claro que, entre a data do acidente objecto dos autos – 12 de Abril de 2005 e, desde logo, a data em que a presente acção foi interposta - 20 de Dezembro de 2010 - decorreram mais de três anos (art. 498º, nº 1, do Código Civil); como decorreram mais de cinco anos (para a eventualidade de podermos, sequer, considerar a possibilidade de existência de crime com o prazo de prescrição de cinco anos); termos em que, necessariamente, nas datas em que as Rés foram citadas na acção (cfr. art. 323º, nº 1, do C. Civil) tais prazos havia já decorrido. Consequentemente, impõe-se concluir que procede a invocada excepção de prescrição do direito da Autora. Por assim ser - o direito da Autora mostra-se extinto por prescrição - a pretensão da demandante não pode proceder já contra a Ré “C”; nem contra a Ré “L”, para a qual a Ré “N” transferira a sua responsabilidade civil por danos patrimoniais e não patrimoniais advenientes do exercício da sua actividade profissional».
16. Inconformada, a falecida D constituiu novo mandatário e recorreu desta sentença.
17. Por Acórdão proferido em 16.06.2015 o Tribunal da Relação de Lisboa julgou parcialmente procedente a apelação, alterando a decisão recorrida e, em consequência, condenou a (ali ré) “C, Lda.” a pagar à falecida D (ali autora/recorrente) a quantia de €100.000,00 (cem mil euros), acrescida de juros a contar da citação, à taxa de 4%, por ter entendido que, quanto a esta ré, existe «uma omissão de comportamentos que redunda num particular perigo por descuido de deveres legais que não pode deixar de ser reconduzida ao conceito de negligência grosseira» e, por conseguinte, «aquando da propositura da acção, não estava ainda prescrito o direito da autora ser indemnizada em razão do acidente dos autos.».
18. Na sequência de recurso interposto desta decisão pela “C, Lda.”, foi proferido Acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça em 21.04.2016, nos termos do qual foi concedido provimento à revista, revogando-se o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, por se entender que «as omissões imputáveis à ré, perante a matéria de facto apurada, implicando obviamente um provável juízo de negligência ou descuido, - e até, eventualmente, o cometimento de um homicídio por negligência – são manifestamente insuficientes para que se possa ter por preenchido o exigenteconceito – importado do direito penal – de negligência grosseira, stando, por isso, inviabilizado o preenchimento do tipo penal do homicídio com negligência grosseira e, consequencialmente, no plano civil, a aplicabilidade de um prazo de prescrição da obrigação de indemnizar de 10 anos. E assim sendo, resta julgar procedente a excepção peremptória de prescrição, oportunamente invocada pela recorrida, julgando, com fundamento nela, a acção improcedente.».
19. A ré A informou a falecida D sobre a necessidade de esta intentar a ação descrita em 9. e 10. antes de o seu direito prescrever. Contudo,
20. A falecida D só quis avançar com a referida ação em dezembro de 2010, e apenas contra os réus mencionados em 9., por não querer prejudicar o genro DS, que era, entre outros, também arguido num processo-crime relacionado com a morte do seu filho P, preferindo aguardar pelo desfecho deste processo.
21. A Ordem dos Advogados celebrou com a ré “M Seguros, S. A.” um contrato de seguro de grupo, temporário, anual, do ramo de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º ____, que cobria o risco decorrente de ação ou omissão no âmbito da atividade de advogado e em que eram segurados todos os membros da Ordem dos Advogados de Portugal.
22. Este contrato de seguro foi inicialmente celebrado para o ano de 2014, tendo sido renovado para os períodos seguros coincidentes com as anuidades dos anos de 2015, 2016 e 2017.
23. Neste contrato de seguro foi acordada a franquia de €5.000,00 por sinistro.
24. De 1 de janeiro de 2011 a 31 de dezembro de 2011, a Interveniente “AIC (Europe), Lda.” assumiu, perante o Tomador de Seguro (Ordem dos Advogados), a cobertura dos riscos inerentes ao exercício da atividade profissional desenvolvida pelos seus segurados (advogados com inscrição em vigor) garantindo, nos termos expressamente definidos nas condições especiais do contrato, o eventual pagamento de indemnizações resultantes da responsabilização civil dos seus segurados, em decorrência de erros e/ou omissões profissionais incorridas no exercício da sua atividade, tudo através das apólices ____e ____.
25. Nestes contratos de seguro foi acordada a franquia de €5.000,00 por sinistro.
26. Em 31 de dezembro de 2011, as referidas apólices chegaram ao seu termo, tendo a Ordem dos Advogados, celebrado novo contrato de seguro com a “Companhia de Seguros T, S. A.”, titulado pela apólice n.º ____.
27. A ré “M Seguros, S.A.” e a Interveniente “AIC (Europe), Lda.” só tiveram conhecimento dos factos alegados na p. i. aquando da sua citação para a presente ação.
28. A ré A informou a ré “M Seguros, S.A.” e a Interveniente “AIC (Europe), Lda.” dos termos da presente ação quando tomou conhecimento da mesma, aquando da sua citação.»
3.1.2 – (...) e não provado:
«a. o alegado nos artigos 5.º, 14.º e 25.º da p. i., para além do que foi dado como provado sob os pontos 4. e 7.;
b. o alegado no artigo 8.º da p. i., para além do que foi dado como provado sob o ponto 12.;
c. que a falecida D, ou os seus filhos, sempre tenham facultado à ré A todas as informações e documentos por esta solicitados (artigo 26.º da p. i.) e
d. que em virtude de a ré A, em violação dos seus deveres, ter intentado a ação descrita em 9. e 10. dos pontos de facto dados como provados fora do prazo imposto por lei, a falecida D tenha perdido a oportunidade de ser ressarcida pelos danos não patrimoniais causados pelo falecimento do seu filho P, ficando prejudicada no montante de, pelo menos, € 100.000,00 (artigo 32.º e 37.º da p. i.)»
*
3.2 – Fundamentação de direito:
3.2.1 – Em jeito de notas preambulares:
3.2.1.1 - A propósito das conclusões apresentadas pelos apelantes:
Conforme refere Abrantes Geraldes, «a lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da decisão. Com as necessárias distâncias, tal como a motivação do recurso pode ser associada à causa de pedir, também as conclusões, como proposições sintéticas, encontram paralelo na formulação do pedido que deve integrar a petição inicial.
Rigorosamente, as conclusões devem (deveriam) corresponder a fundamentos que, com o objetivo de obter a revogação, alteração ou anulação da decisão recorrida, se traduzam na enunciação de verdadeiras questões de direito (ou de facto) cujas respostas interfiram com o teor da decisão recorrida e com o resultado pretendido, sem que jamais se possam confundir com argumentos de ordem jurisprudencial que não devem ultrapassar o sector da motivação.
As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso como clara e inequivocamente resulta do art. 635.º, n.º 3. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do Tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo. Incluindo, na parte final, o resultado procurado, as conclusões devem respeitar na sua essência cada uma das alíneas do n.º 2, integrando-se as respostas a tais premissas essenciais no encadeamento lógico da decisão pretendida. Se para atingir o resultado declarado o tribunal a quo assentou em determinada motivação, dando respostas às diversas questões, as conclusões devem elencar os passos fundamentais que, na perspetiva do recorrente, deveriam ter sido dados para atingir um resultado diverso.
Todavia, com inusitada frequência se verificam situações irregulares: alegações deficientes, obscuras, complexas ou sem as especificações referidas no n.º 2. Apesar de a lei adjetiva impor o patrocínio judiciário, são triviais as situações em que as conclusões acabam por ser mera reprodução dos argumentos anteriormente apresentados, sem qualquer preocupação de síntese, como se o volume das conclusões fosse sinal da sua qualidade ou como se houvesse necessidade de assegurar, por essa via, a delimitação do objeto do processo e a apreciação pelo tribunal ad quem de todas as questões suscitadas.
Ainda que algumas das situações exemplificadas justificassem efeitos mais gravosos, foi adotada uma solução paliativa que possibilita a supressão das deficiências através de despacho de convite ao aperfeiçoamento.
Ao invés do que ocorre quando faltam pura e simplesmente as conclusões, em que o juiz a quo profere despacho de rejeição imediata do recurso, qualquer intervenção no sentido do aperfeiçoamento das irregularidades passíveis de superação foi guardada para o relator no tribunal ad quem, como se extrai, com toda a clareza, do n.º 3 do art. 639.º e da al. a) do n.º 3 do art. 652.º.
O relator a quem o recurso seja distribuído deve atuar por iniciativa própria, mediante sugestão de algum dos adjuntos ou, em último caso, em resultado do deliberado em conferência, nos termos do art. 658.º. Por isso, tal como se verifica na fase do saneamento do processo, no despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões o relator deve identificar todos os vícios que, no seu entender, se verificam, por forma a permitir que, sem margem para dúvidas, o recorrente fique ciente dos mesmos e das consequências que podem decorrer da sua inércia ou do deficiente acatamento do convite.»[9].
Tal como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 06-04.2017, Proc. n.º 297/13.6TTTMR.E1.S1 (Gonçalves Rocha), in www.dgsi.pt, dispõe o n.º 1 do art. 639º do CPC que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação de decisão.
As conclusões exercem, pois, a importante função de delimitação do objecto do recurso, conforme resulta do art. 635º, nº 3, do mencionado compêndio legal, devendo conter a identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do Tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo. Por isso, devem as conclusões integrar as razões invocadas para esse efeito e que constituirão as premissas essenciais do encadeamento lógico que conduzirá à decisão pretendida.
É cristalino, a este propósito, o Ac. do S.T.J. de 16.12.2020, Proc. n.º 2817/18.0T8PNF.P1.S1 (Tomé Gomes), in www.dgsi.pt: «o ónus de formulação de conclusões recursórias tem em vista uma clara delimitação do objeto do recurso mediante enunciação concisa das questões suscitadas e dos seus fundamentos, expurgadas da respetiva argumentação discursiva que deve constar do corpo das alegações, em ordem a melhor pautar o exercício do contraditório, por banda da parte recorrida, e a permitir ao tribunal de recurso uma adequada e enxuta enunciação das questões a resolver.»
É, porém, com inusitada frequência que as conclusões não satisfazem o imperativo legal de síntese dos argumentos do recorrente, conforme impõe o n.º 1 do artigo 639.º.
Ciente desta realidade, estabeleceu o legislador no nº 3 do artigo 639.º que, quando as conclusões sejam deficientes, obscuras ou complexas, o relator deve convidá-lo a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
E estaremos perante conclusões deficientes quando, nomeadamente, elas não refletem todas as questões abordadas na motivação, sofrendo por isso do vício da insuficiência; quando revelam incompatibilidade com o teor da motivação e sejam por isso contraditórias; quando não encontram apoio na motivação, sendo por isso excessivas; e quando sejam incongruentes por não corresponderem às premissas que logicamente conduzem ao resultado pretendido.
E serão obscuras quando são ininteligíveis, ou de difícil inteligibilidade, por não permitirem ao recorrido ou ao tribunal percecionar as razões invocadas para atingir o resultado que o recorrente pretende.
Por último, as conclusões serão complexas, nomeadamente, quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o n.º 1 daquele artigo.
No caso dos presentes autos, estamos, manifestamente, perante conclusões complexas, prolixas, que de modo algum cumprem o dever de síntese advindo do mencionado n.º 1 do art. 639.º.
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, compete ao recorrente:
a) em sede de motivação do recurso:
- especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
- indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda;
- tomar posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
b) em sede de conclusões:
- concretizar que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto;
- especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
Assim, versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, nas conclusões apenas importa que o apelante proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados.
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, as conclusões não têm, obviamente, que reproduzir todos os elementos do corpo das alegações, nem delas deve constar a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e nem mesmo as respostas pretendidas.
Nas conclusões, por evidentes razões de objetividade e de certeza, apenas devem ser indicados os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação.
Os apelantes dedicam inúmeros pontos das conclusões, sem que se perceba com que objetivo ou utilidade, a indicar meios de prova gravados e a especificar as passagens das respetivas gravações, antecedidos de afirmações absolutamente irrelevantes, tendo em conta os concretos pontos da matéria facto cuja decisão, em sede de motivação, impugnou com respeito pelos ónus que lhe são impostos pelo art. 640.º.
Tal como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6T8MGD.P2.S1 (Tomé Gomes), in www.dgsi.pt, «enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória».
Afirma ainda Abrantes Geraldes, com toda a pertinência, que «(...) a experiência confirma que se entranhou na prática judiciária um verdadeiro círculo vicioso: em face do número de situações em que se mostra deficientemente cumprido o ónus de formulação de conclusões, os Tribunais Superiores acabam por deixá-las passar em claro, preferindo, por razões de celeridade (e também para que a parte recorrente não seja prejudicada), avançar para a decisão, na qual é feita a triagem do que verdadeiramente interessa em face das alegações e da sentença recorrida. Agindo deste modo, os Tribunais Superiores colocam os valores da justiça, da celeridade e da eficácia acima de aspetos de natureza formal»[10].
No caso concreto, seria, evidentemente, caso para determinar o aperfeiçoamento das conclusões.
No entanto, é exatamente pela razão apontada por Abrantes Geraldes que não se determina o aperfeiçoamento das conclusões da alegação dos apelantes, antes se optando, face ao que consta das alegações e da sentença recorrida, por fazer uma triagem daquilo que verdadeiramente interessa para a decisão do recurso, expurgando-as, por conseguinte, dos pontos em que as mesmas não cumprem, de todo, o fim a que se destinam.
Deixa-se, no entanto, expresso, que as conclusões apresentadas pelos apelantes constituem um texto extenso e prolixo, que desvirtua o sentido da lei quando impõe que o recorrente conclua a sua alegação de forma sintética, indicando os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
3.2.1.2 - A propósito enunciação factológica:
Na fundamentação de facto da sentença recorrida, e no que tange à «enunciação dos factos não provados», consta, além do mais, o seguinte:
«Dos que se entendem relevantes, consideram-se não provadas as seguintes alegações da petição inicial:
a. o alegado nos artigos 5.º, 14.º e 25.º da p. i., para além do que foi dado como provado sob os pontos 4. e 7.;
b. o alegado no artigo 8.º da p. i., para além do que foi dado como provado sob o ponto 12.»
Estamos, salvo o devido respeito, perante uma inadequada técnica processual de fundamentar uma sentença em termos de facto, ainda que em sede de matéria de facto não provada.
O julgador deve assumir uma posição clara sobre o julgamento de facto, decidindo o que deve decidir, de modo a não deixar quaisquer dúvidas quanto ao teor e sentido da sua decisão, enunciando, como anteriormente referido, linear, lógica e cronologicamente, facto a facto, aqueles que considera provados e não provados, dentro dos temas da prova anteriormente enunciados, atendo-se, reitera-se, aos factos essenciais alegados no processo por cada uma das partes, de modo a cobrir todas as soluções plausíveis da questão ou questões de direito; por outras palavras, o julgador deve pronunciar-se positiva, negativa, restritiva ou explicativamente, sempre de forma linear, lógica e cronológica, facto a facto, acerca da sobredita factualidade essencial alegada para sustentar a causa de pedir ou fundar as exceções.
No caso concreto não é, obviamente, clara, a decisão da matéria de facto vertida nos apontados segmentos a. e b. da «Enunciação dos factos não provados».
Por outro lado, o enunciado descrito em d. dos factos não provados é manifestamente conclusivo.
*
3.2.2 – Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Considera a apelante que:
a) devem ser excluídos da matéria de facto provada os enunciados ali descritos sob os pontos 19. e 20.;
b) devem ser incluídos na matéria de facto provada os enunciados alegados:
ba) nos arts. 7.º, 8.º, 10.º, 24.º e 26.º, da petição inicial;
bb) nos arts. 21.º a 27.º da peça processual por si apresentada no dia 9 de outubro de 2017 (Ref.ª Citius 369801800).
*
3.2.2.1 – Por uma questão de simplificação, vamos começar pela situação referida em bb).
Os enunciados vertidos nos arts. 21.º a 26.º da peça processual apresentada pelos autores no dia 9 de outubro de 2017 (Ref.ª Citius 369801800), têm a seguinte redação:
«21º
Logo após ter sido proferido o Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o então mandatário, por dever de patrocínio, e porque o recurso tinha efeito meramente devolutivo, imediatamente instaurou a competente ação executiva (Vide doc. 8)
22º
A referida ação deu origem ao processo executivo n.º ____/__, que correu termos no Juízo de Execução de Sintra, Juiz 2 Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste (Vide doc. 8);
23º
No âmbito do processo foi penhorado à sociedade C, Lda, todo o montante constante da execução, 100.000€ de indemnização mais juros de mora (Vide doc. 8, 10 a 12);
24º
Acontece, porém, que, em consequência da declaração de prescrição proferida pelo STJ, a A. ficou sem título executivo;
25º
Pelo que, em 16/03/2017 a execução foi declarada extinta (Vide doc. 9);
26º
E o montante penhorado teve que ser restituído à sociedade Executada (Vide docs. 10 a 12).»
Primeiro:
Tal como sobre as partes recai o dever de alegação de factos essenciais que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as exceções invocadas (arts. 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d) e 572.º, al. c)), a enunciação linear, lógica e cronológica dos factos, tanto dos provados, como dos não provados, feita pelo tribunal dentro dos limites dos temas da prova anteriormente enunciados, deve ater-se igualmente aos factos essenciais alegados no processo por cada uma das partes, de modo a cobrir todas as soluções plausíveis da questão ou questões de direito; ou seja, a enunciação factológica efetuada pelo juiz na sentença deve abarcar necessariamente uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa), linear, lógica e cronológica, sobre factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou fundar as exceções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com a fattispecie da norma jurídica aplicável, se revelem necessários para a procedência da ação ou da exceção.
Além de que, sendo necessária, deve ainda fazer-se a enunciação dos factos concretizadores, também eles essenciais, da factualidade que se apresente difusa, sendo importante referir que a enunciação dos factos complementares e/ou concretizadores, repete-se, também eles essenciais, deve fazer-se desde que se apresentem como imprescindíveis para a procedência da ação ou da defesa, à luz dos diversos segmentos normativos relevantes para a decisão do caso concreto[11].
Segundo:
O direito à impugnação da decisão sobre a matéria de facto não subsiste a se mas assume um caráter instrumental face à decisão de mérito do pleito.
Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processuais, o tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação forem insuscetíveis de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, assumirem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente[12].
Dito de outra forma, o princípio da limitação dos atos, consagrado no art. 130º do C.P.C., deve ser observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir[13].
Conforme refere Carlota Spínola «(...) o TR[14] está eximido do exercício do dever de modificabilidade da decisão de facto nas situações de irrelevância processual que ficam, por conseguinte, excluídas do campo de aplicação do art. 662.º. Esta constatação lapalissiana baseia-se no princípio da limitação dos atos expressamente previsto no art. 130.º, enquanto manifestação do princípio da celeridade e da economia processual, acolhidos nos arts. 2.º/1 e 6.º/1.
Como é aludido nos acs. do TR de Guimarães (TRG) de 20/10/2016 (proc. n.º 2967/2012, ID 369508) e de 26/11/2018 (proc. n.º 272/2017, ID 400002), a Relação não deve reapreciar a matéria factual quando os concretos factos objecto da impugnação forem insuscetíveis, “face às circunstância(s) próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito”, de ter “relevância jurídica”, sob pena de executar uma atividade processual que já previamente sabia ser “inútil” ou “inconsequente”. Por outras palavras, o exercício dos poderes-deveres de investigação pela Relação só é admissível se recair sobre factos com interesse para o recurso, i. e., factos que a serem demonstrados, modificados ou dados como provados alteram a solução ou o enquadramento jurídico do objeto recursório.»[15].
No mesmo sentido, afirma Henrique Antunes que «de harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância, seja qual for a modalidade considerada, só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 130 do nCPC).
Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância, a anulação da decisão ou o reenvio do processo para essa instância para que seja fundamentada, a renovação ou a produção de novas provas. Isso sucederá sempre que, por exemplo, mesmo com a substituição da decisão da matéria de facto impugnada, a solução ou enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, v.g., mesmo com a modificação, os factos adquiridos são insuficientes ou inidóneos para modificar a decisão de procedência ou de improcedência, da acção ou da excepção, contida no despacho ou na sentença recorrida.
Portanto, a actuação dos apontados poderes de controlo só deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da acção.»[16].
Os enunciados atrás transcritos:
- não constituem, obviamente, no âmbito da presente ação, à luz do pedido formulado na petição inicial e da causa de pedir que lhe subjaz, e segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, factos essenciais, sejam nucleares, sejam complementares ou concretizadores, do quer que seja;
- não têm a mais pequena importância para a decisão da causa.
O enunciado vertido no art. 27.º da mesma peça processual, tem a seguinte redação:
«Assim, não restam quaisquer dúvidas que caso não tivesse sido declarada a prescrição a A. receberia, pelo menos, o montante o montante global de 100.000€ (Cem Mil Euros), montante que chegou a estar penhorado.»
Factos, em processo civil, significa factos jurídicos ou juridicamente relevantes atinentes sobretudo, ainda que não em exclusivo, conforme afirma Antunes Varela[17], a ocorrências da vida real, assim como ao estado, à qualidade ou à situação real das pessoas ou das coisas.
Na exemplar definição de Rosenberg, factos jurídicos são os acontecimentos (e circunstâncias) concretos, determinados no espaço e no tempo, passados e presentes, do mundo exterior e da vida anímica humana que o direito objetivo converteu em pressuposto de um efeito jurídico[18].
Para Alberto dos Reis, juridicamente relevantes são os factos que constituem «ocorrências da vida real, isto é, os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos humanos (…) vistos à luz das normas e critérios do direito.»[19].
O enunciado aqui e agora em causa não configura um qualquer facto jurídico, mas, antes, notoriamente, um mero juízo conclusivo, que, uma vez dado como provado determinaria, por si só, em definitivo e sem mais, o desfecho da causa.
Trata-se, pois, de um enunciado insuscetível de integrar a fundamentação de facto da sentença.
Pelo exposto, rejeita-se, nesta parte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
*
3.2.2.2 – Ainda por uma questão de simplificação, prosseguimos com a situação referida em ba).
Os enunciados vertidos nos arts. 7.º, 8.º, 10.º, 24.º e 26.º, da petição inicial, têm a seguinte redação:
«7º
Abalada pela angústia e pela dor de ter perdido o filho, desconhecia a Autora que teria direito ao que quer que fosse.

A A. não sabe ler nem escrever;
10º
Em 07/02/2008 a A. intentou no Tribunal de Trabalho de Vila Franca de Xira “Acção Especial Emergente de Acidente de Trabalho” contra:
Companhia de Seguros A, S.A.;
C – Construções do Zêzere Lda;
N Lda.;
DS;” (Vide doc.3)
24º
O desfecho do referido processo e a consequente absolvição das Autoras resulta no facto da 2ª R. ter deixado decorrer os prazos para intentar a ação de responsabilidade civil;
26º
A Autora ou os seus filhos sempre facultaram á A. todas as informações e documentos solicitados.»
O transcrito enunciado vertido no art. 7.º da petição inicial configura, também ele, matéria vaga e conclusiva, insuscetível de integrar a fundamentação de facto.
A conclusão de que o lesado só a partir de determinada data teve conhecimento do direito que lhe compete e, portanto, que só a partir dela se iniciou o prazo especial curto de prescrição previsto no art. 498.º, n.º 1, do CC, depende da alegação e prova de factos concretos nesse sentido, pelo que, alegar-se, para esse efeito, que «abalada pela angústia e pela dor de ter perdido o filho, desconhecia a Autora que teria direito ao que quer que fosse», é, a bem dizer, a mesma coisa.
O transcrito enunciado vertido no art. 8.º da petição inicial é, por si só, irrelevante para o desfecho da causa.
O desconhecimento, pelo lesado, do direito que lhe assiste, por ignorância da lei, saiba ou não saiba «ler nem escrever», seja uma pessoa letrada ou iletrada, não lhe aproveita, conforme flui ao art. 6.º do CC.
O transcrito enunciado vertido no art. 10.º da petição inicial:
Trata-se, igualmente, de um enunciado sem qualquer relevo para a decisão da causa, sendo certo, porém, que na sentença recorrida já se encontra provado que:
«4. Em 14 de fevereiro de 2005 a falecida D outorgou procuração forense à ré A no âmbito do processo que, sob o n.º ____/__, correu termos no J1 do Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, no qual se discutiu o acidente de trabalho que vitimou P, mediante a qual lhe conferiu, com «os de subestabelecer», «os mais amplos poderes, em direito permitidos».
5. Nesta ação especial emergente de Acidente de Trabalho a falecida D assumiu a posição processual de beneficiária, sendo réus a “Companhia de Seguros A, S. A.”, a sociedade “C, Lda.”, a sociedade “N, Lda.” e DS, genro da falecida D.
6. A ré A esteve presente e acompanhou a falecida D na audiência de tentativa de conciliação ocorrida no Tribunal do Trabalho de Vila Franca de Xira, que se realizou no dia 17 de janeiro de 2008»,
nada mais havendo a acrescentar a este respeito.
O transcrito enunciado vertido no art. 24.º da petição inicial:
Remete-se para tudo quanto se afirmou relativamente ao enunciado vertido no art. 27.º da peça processual apresentada pelos autores no dia 9 de outubro de 2017 (Ref.ª Citius 369801800).
Pelo exposto, rejeita-se, também nesta parte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
*
3.2.2.4 – Ainda por uma questão de simplificação, e também de lógica, é este o contexto para proceder, oficiosamente, à alteração do enunciado descrito em 4. dos factos provados:
Parece evidente que aquele enunciado não pode subsistir tal como se encontra redigido, pois assenta num evidente equívoco, devendo, por isso, ser oficiosamente alterado, quer por força do disposto no n.º 1 do art. 662.º[20], quer ao abrigo da al. c) do n.º 2 do mesmo artigo[21].
Tal como decidido no Ac. do S.T.J. de 17.10.2019, Proc. n.º 3901/15.8T8AVR.P1.S1 (Bernardo Domingos), in www.dgsi.pt, «as patologias da sentença previstas no artigo 662º, n.º 2 al. c), do CPC, apenas dão lugar à anulação da decisão proferida quando do processo não constem todos os elementos probatórios necessários ao seu suprimento pelo Tribunal da Relação; Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder, enquanto tribunal de substituição, à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas.
A intervenção do Tribunal da Relação nesse âmbito ocorre a título oficioso, independentemente, portanto, da iniciativa da parte interessada na alteração da decisão de facto, pelo que não são aplicáveis os ónus previstos no art.º 640 do CPC.»
Entre as situações suscetíveis de determinar, neste contexto, a intervenção oficiosa do Tribunal da Relação, estão aquelas em que a decisão sobre a matéria de facto apresenta patologias que as tornam total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias.
Conforme refere Abrantes Geraldes, há decisões que «podem revelar-se total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias, resultantes da falta de pronuncia sobre factos essenciais ou complementares, da sua natureza ininteligível, ou reveladora de incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso.»[22].
A decisão sobre o ponto 4. dos factos provados é obscura e contraditória.
Está provado que:
- P faleceu no dia 12 de abril de 2005 em consequência de um acidente de trabalho;
- (...) na sequência do foi instaurada no Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira, onde foi distribuído pelo Juiz 1, ação especial emergente de acidente de trabalho, a que foi atribuído o n.º ____/__, na qual se discutiu aquele acidente;
- Nesse processo a falecida D assumiu a posição processual de beneficiária;
- (...) sendo réus a “Companhia de Seguros A, S. A.”, a sociedade “C, Lda.”, a sociedade “N, Lda.” e DS, genro da falecida D;
- A ré A esteve presente e acompanhou a falecida D na tentativa de conciliação ocorrida no Tribunal do Trabalho de Vila Franca de Xira, no âmbito daquele processo, realizada no dia 17 de janeiro de 2008.
Não pode, assim, óbvia e logicamente, dar-se como provado, como faz o tribunal a quo no ponto 4. dos factos provados, que no dia 14 de fevereiro de 2005, a falecida D outorgou procuração forense a favor da 2.ª ré, no âmbito do processo que, sob o n.º ____/__, correu termos no J1 do Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, no qual se discutiu o acidente de trabalho que vitimou P, ocorrido no dia 12 de abril de 2005, portanto, cerca de dois meses depois da outorga daquela procuração, mediante a qual lhe conferiu, com “os de subestabelecer”, “os mais amplos poderes, em direito permitidos”.
O que faz aqui sentido, o que tem lógica, neste contexto, é o afirmado pela 2.ª ré em sede de declarações de parte na audiência final, donde resulta que:
- foi pela primeira vez contactada pela falecida D no mês fevereiro de 2005, para tratar de uma questão relacionada com um seguro de vida outorgado por um outro seu filho, de nome F, falecido em setembro de 2004, com a companhia de seguros L;
- foi no âmbito desse contacto, e com vista à instauração de uma ação contra aquela seguradora, relacionada com o referido seguro de vida, que D outorgou a seu favor, no dia 14 de fevereiro de 2005, a procuração referida em 4. dos factos provados.
É isto, e só isto, que faz sentido, e nunca, como é elementarmente óbvio e lógico, para que a 2.ª ré a representasse no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho que vitimou o seu P, ocorrido cerca de dois meses depois da outorga daquela procuração.
Assim, altera-se o ponto 4. dos factos provados, que se subdivide em dois, nos seguintes termos:
«4-A. No dia 14 de fevereiro de 2005, a falecida D outorgou procuração forense à ré A, a quem, com “os de substabelecer”, conferiu “os mais amplos poderes, em direito permitidos”[23];
4-B. Sob o n.º ____/__, correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira – Juiz 1, ação especial emergente de acidente de trabalho, no qual se discutiu o sinistro laboral ocorrido no dia 12 de abril de 2005, que vitimou P
*
3.2.2.5 – Finalmente, a exclusão da matéria de facto provada dos enunciados ali descritos sob os pontos 19. e 20..
Têm a seguinte redação:
- 19. «A ré A informou a falecida D sobre a necessidade de esta intentar a ação descrita em 9. e 10. antes de o seu direito prescrever.»
- 20. «A falecida D só quis avançar com a referida ação em dezembro de 2010, e apenas contra os réus mencionados em 9., por não querer prejudicar o genro DS, que era, entre outros, também arguido num processo-crime relacionado com a morte do seu filho P, preferindo aguardar pelo desfecho deste processo.»
A recorrente começa por afirmar que o enunciado descrito sob o ponto 19. não configura sequer uma questão de facto, se se quiser, um facto jurídico, mas, antes, «(...) um misto de matéria conclusiva e de direito, deve ser retirado da matéria de facto dada como provada».
A decisão sobre a matéria de facto, não deverá conter formulações vagas, genéricas, conclusivas ou de direito, antes se exigindo que o juiz se pronuncie sobre os factos essenciais e ainda os instrumentais que assumam pertinência para a questão a decidir, sendo que é sobre os concretos factos jurídicos, materiais, constantes dos articulados, que deve incidir a produção da prova, a atuação dos meios de prova carreados para os autos, desde que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo juiz, na sentença.
No caso concreto, dando-se aqui por reproduzido o que acima se expendeu quanto ao significado de facto jurídico, conclui-se que neste ponto assiste razão à apelante!
O enunciado descrito em 19. dos factos provados é vago e genérico.
Impõe-se, desde logo, questionar:
Quando é que a 2.ª ré informou a falecida D sobre a necessidade de esta intentar a ação descrita em 9. e 10. antes de o seu direito prescrever?
Não se sabe!
O que é que a 2.ª ré disse, nesse contexto, concretamente à falecida D?
Não se sabe!
Qual a data que a 2.ª ré indicou à falecida D como sendo aquela em que prescreveria o seu alegado direito?
Não se sabe!
Trata-se, pois, de um enunciado de cariz vago e genérico, que nada elucida ou esclarece.
Tratar-se-ia até, por si só, de um enunciado inútil.
Ele está, no entanto, em relação direta com o enunciado subsequente, o descrito em 20. dos factos provados, sendo até como que “anulado” ou, talvez melhor dizendo, absorvido por este enunciado.
Assim, dada a relação lógica e sequencial existente entre os dois enunciados, far-se-á de seguida a apreciação conjunta de ambos.
O tribunal a quo motivou assim a decisão sobre aqueles dois enunciados:
«- sob os pontos n.ºs 19. e 20., o Tribunal convenceu-se com as declarações de parte da ré A, que as prestou de forma muito clara, consistente e assertiva na parte relativa às circunstâncias em que acordou com a falecida D a instauração da ação descrita sob os pontos 9. e 10. dos factos dados como provados, circunstâncias que foram confirmadas pela testemunha PF, que depôs de forma isenta, serena e detalhada; a convicção do Tribunal saiu ainda reforçada pelas datas da outorga da procuração descrita no ponto de facto provado n.º 7 e da entrada do requerimento de pedido de apoio judiciário descrito no ponto de facto provado n.º 8 que, no entender do Tribunal, confirmam as alegações da ré A - de que a falecida D só lhe pediu para avançar com a ação em causa em dezembro de 2010.»
Impõe-se, desde já, uma palavra quanto ao valor probatório das declarações de parte.
A prova por declarações de parte está prevista no art. 466.º, cujo n.º 3 dispõe que «o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.»
Nenhuma razão existe, epistemológica ou legal, que impeça o juiz de reconhecer, na prova por declarações de parte de que resultem factos favoráveis ao próprio depoente, um meio válido de formação da sua convicção, de forma lógica e esclarecida, ou seja, uma fonte válida de convencimento racional do juiz.
Trata-se de um meio de prova legalmente consagrado, sujeito à livre valoração do juiz, sem subalternidade a qualquer outro meio probatório.
Por outras palavras, nada há que impeça que determinados factos sejam considerados provados apenas e só com base na concorrência única e exclusiva das declarações de parte.
Os apelantes consideram que o enunciado descrito em 20. dos factos provados deve transitar para o elenco dos factos não provados, começando por afirmar que «a constituição de alguém como arguido em processo crime, assim como o parentesco, porque são atos formais, provam-se por documento, não sendo, nos termos do artigo 393º, n.º 1 do C. Civil, suscetíveis de ser provados por prova testemunhal.»
Resulta provado:
- do ponto 12. dos factos provados; e,
- dos Acs. da R.L. e do do S.T.J., proferidos no processo identificado nos pontos 9. e 10. dos factos provados,
que «P trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização de DS, seu patrão.»
Sob o ponto 5. dos factos provados, e que não foi objeto de impugnação neste recurso, está assente que na ação especial emergente do acidente de trabalho que vitimou P, «a falecida D assumiu a posição processual de beneficiária, sendo réus a “Companhia de Seguros A, S. A.”, a sociedade “C, Lda.”, a sociedade “N, Lda.” e DS, genro da falecida D».
Além isso, resulta inequivocamente das declarações de parte prestadas na audiência final por MF, filha de D, que o seu marido era a entidade patronal de P.
Aliás, ouvidas na íntegra as declarações de parte prestadas por MF, não deixa de impressionar a sua preocupação na afirmação de que o marido «não tem nada a ver com isto».
Não subsiste, assim, qualquer dúvida na afirmação de que a entidade patronal de P, à data do sinistro laboral que o vitimou, era DS, genro da falecida autora, D.
Só por via de uma litigância a raiar a má-fé processual pode agora, em sede de impugnação da decisão sobre o ponto 20. dos factos provados, pretender pôr-se em causa que DS, era genro da falecida autora, D.
E quanto à questão do processo crime?
Na verdade, a pendência de um processo crime e a constituição, no seu âmbito, de uma pessoa como arguida, apenas pode ser provada por via de certidão extraída do respetivo processo.
Além de que, se bem constatamos, em nenhum articulado produzido ao longo dos autos é alegada a pendência de um processo crime no âmbito do qual DS tenha sido constituído arguido.
Ainda que a 2.ª ré tivesse feito, em sede de declarações de parte, referência à pendência de um processo crime e à constituição, no seu âmbito, de DS como arguido, isso nunca poderia justificar, sem mais, apenas e só com base naquelas declarações, a prova de tal facto.
Vejamos, no entanto, o que foi alegado, pela 2.ª ré a este propósito!
No art. 11.º da sua contestação, alega a 2.ª ré que «o processo emergente de acidente de trabalho, único processo em que a 2.ª R. havia sido constituída mandatária, correu os seus termos, tendo sido proferida sentença, sendo que, após recurso, interposto pelo genro da A. e patrão do falecido filho da mesma, patrocinado por advogada já com anteriores ligações ao mesmo e à família, acabou por transitar em julgado, com a condenação da seguradora em causa, e absolvição do DS, conforme documentos que se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidos (docs. n.ºs 1 e 2)», acrescentando no art. 12.º que «só então, após o trânsito em julgado da aludida sentença, a A., já em dezembro de 2010, voltou ao contacto da 2.ª R., no intuito de se avançar com a ação de responsabilidade civil, contudo, deixando de fora o genro, já atrás identificado, e apenas pretendendo que a ação fosse intentada contra o dono da obra, a empresa proprietária da máquina envolvida no acidente e respetiva companhia de seguros, o que, em conformidade, a 2.ª R. assim fez.»
Como se vê, a própria 2.ª ré não faz qualquer referência à existência de um processo crime e à constituição, no seu âmbito, de DS como arguido.
Prosseguindo, não assiste razão aos apelantes quando afirmam que «as declarações de parte prestadas pela Recorrida não tiveram a segurança que o Tribunal a quo lhe pretendeu atribuir, mostrando-se a mesma insegura, diremos mesmo comprometida, em todas as declarações que prestou.»
Ouvidas na íntegra as declarações de parte prestadas pela 2.ª ré na audiência final, não podemos deixar de concordar com a senhora juíza a quo quando afirma que elas foram prestadas de «forma muito clara, consistente e assertiva na parte relativa às circunstâncias em que acordou com a falecida D a instauração da ação descrita sob os pontos 9. e 10. dos factos dados como provados».
É certo que nalgumas passagens essas declarações foram prestadas com alguma exaltação e algum nervosismo, o que, diga-se, não pode deixar de se considerar justificado, se tivermos em consideração que quem estava a prestá-las era a própria pessoa contra quem vem formulado um pedido indemnizatório de €100.000,00, acrescido de juros; num tal circunstancialismo, difícil seria essa pessoa estar calma e serena.
As declarações de parte 2.ª ré foram prestadas de forma que se nos afigurou:
- autêntica, honesta e espontânea, procurando reproduzir fielmente aquilo que efetivamente se passou;
- fluente e natural;
- segura;
- percetível, inteligível, sem ambiguidades;
- coerente, pois as diferentes afirmações que proferiu foram intrinsecamente compatíveis, sem contradições;
- verosímil, deixando a convicção de que aquilo que disse corresponde à verdade do ocorrido, à luz das regras da lógica e da experiência;
- razoável, podendo, tudo aquilo que disse ser aceite por uma razão esclarecida.
Assim, resultou das suas declarações:
- foi pela primeira vez contactada por D em fevereiro de 2005, na sequência da morte de um outro seu filho, de nome F, ocorrida em setembro de 2004, para resolução de uma questão relacionada com um seguro de vida que aquele havia celebrado com a seguradora L;
- (...) na sequência do que D emitiu a seu favor a procuração forense datada de 14 de fevereiro de 2005, com vista à instauração de uma ação contra aquela seguradora, procuração essa que, assim, nada teve a ver com qualquer questão decorrente da morte de P;
- mais tarde, em novembro de 2007, foi novamente contactada por D para que a acompanhasse na tentativa de conciliação realizada no dia 17 de janeiro de 2008, no âmbito do processo de trabalho emergente do acidente de trabalho ocorrido em 12 de abril de 2005, que vitimou P;
- acompanhou, efetivamente, D naquela diligência, altura em que esta lhe disse que o patrão do seu falecido filho P, era o seu genro, DS, marido da sua filha MF;
- (...) o que veio a confirmar-se no decurso da própria diligência;
- nessa ocasião, D, constrangida, dizia-lhe que não queria problemas com o genro e com a filha, pois já tinha perdido dois filhos, e não queria ter problemas com esta;
- por essa altura, informou D que além da ação emergente de acidente de trabalho, havia uma outra ação, de natureza civil, que podia ser instaurada e no âmbito da qual poderia ser ressarcida relativamente a outros danos sofridos em consequência da morte do filho P;
- no entanto, não voltaram a falar sobre a possibilidade de instauração de qualquer outra ação;
- só bastante mais tarde, no dia 9 de dezembro de 2010, depois do trânsito em julgado da decisão final proferida na ação laboral, ocorrido em novembro de 2010, que absolveu DS do pedido, é que D se deslocou ao seu escritório, sozinha, para lhe transmitiu qualquer coisa como isto: “Agora o meu genro está livre de tudo isto; agora sim, eu estou pacificada para que Dr.ª me diga se há alguma coisa que ainda possa ser feita”;
- logo nessa ocasião informou D acerca da possibilidade do direito a fazer valer através de uma ação cível já se encontrar prescrito;
- explicou a D que havia dois prazos, um de três e outro de cinco anos, que já se encontravam “esgotados” havia muito tempo;
- mas que podia ainda ocorrer a possibilidade de o prazo para a instauração dessa ação se estender até dez anos, tendo em conta os factos em causa e o seu possível enquadramento criminal;
- ainda assim, D quis avançar com a ação cível, na condição de, dela ser excluído o seu genro;
- (...) na sequência do que, nessa mesma data, com vista à instauração dessa ação, D emitiu a seu favor a procuração forense referida em 7. dos factos provados, datada precisamente de 9 de dezembro de 2010;
- (...) e requereu a concessão do benefício do apoio judiciário, conforme referido em 8. dos factos provados;
- instaurou a ação cível referida em 9. e 10. dos factos provados, na data ali indicada, por se lhe afigurar, face à natureza dos factos em causa, que o prazo de prescrição do direito que D através dela pretendia exercer, pudesse ser de 10 anos;
- embora, tanto ela como D, tivessem cientes de que havia o risco de esse direito vir a ser declarado prescrito;
- ainda assim, na audiência prévia realizada naquela no âmbito dessa ação, não foi logo julgada procedente tal exceção, sinal de que a questão também não era líquida para o tribunal.
Conforme afirmado, estas declarações, conjugadas desde logo:
- com a procuração forense referida em 8. dos factos provados, datada de 9 de dezembro de 2010;
- o documento consubstanciado no formulário que constitui o requerimento através do qual D requereu a concessão do benefício do apoio judiciário, datado de 13 de dezembro de 2010,
fazem todo o sentido, têm lógica, são coerentes, percetíveis, inteligíveis, verosímeis e razoáveis.
Tem, por isso, inteira razão a senhora juíza a quo quando afirma que as declarações de parte da ré A foram prestadas «de forma muito clara, consistente e assertiva na parte relativa às circunstâncias em que acordou com a falecida D a instauração da ação descrita sob os pontos 9. e 10. dos factos dados como provados.»
Sobretudo, acrescentamos nós, se comparadas com as declarações de parte prestadas pelos autores BC e MF, na qualidade de sucessores habilitados da falecida D, pois, das mesmas, nada resultou de útil ou relevante.
Afirmaram que, foi sempre na companhia de um ou de outro que a mãe de ambos, D, se deslocou ao escritório da 2.ª ré, assistindo eles, por isso, às respetivas conversas.
No entanto, não conseguiram:
- precisar, nem as datas, nem as vezes que acompanharam D ao escritório da 2.ª ré;
- descrever, ainda que de forma imprecisa ou vaga, o teor dessas conversas.
Não demonstraram sequer terem a noção do(s) processo(s) em causa, instaurados na sequência da morte de P.
Nesta sequência, altera-se a decisão sobre os pontos 19. e 20. dos factos provados, que passarão a ter a seguinte redação:
«19. A falecida D só quis avançar com a ação referida em 9. e 10., em dezembro de 2010, depois de findo o processo laboral identificado em 4-B, e apenas contra os réus identificados em 9., por forma a não prejudicar o seu genro, DS, patrão do seu filho P, à data do acidente de trabalho do qual resultou a morte deste;
20. Logo nessa ocasião, a 2.ª ré informou a falecida D acerca da possibilidade de já se encontrar prescrito o direito pretendido fazer valer através dessa ação.»
*
Considerando as alterações efetuadas na decisão do tribunal a quo sobre a matéria facto, por uma questão de clareza, passa a descrever-se, para efeitos de subsequente enquadramento jurídico, a factualidade que se considera definitivamente provada e não provada:
Provado:
«1. P faleceu no dia 12 de abril de 2005 em consequência de um acidente de trabalho.
2. A falecida D era mãe de P e sua única e legítima herdeira.
3. A ré A é advogada, titular da cédula profissional n.º ____, e exerce a sua profissão desde 1993.
4-A. No dia 14 de fevereiro de 2005, a falecida D outorgou procuração forense à ré A, a quem, com “os de substabelecer”, conferiu “os mais amplos poderes, em direito permitidos”;
4-B. Sob o n.º ____/__, correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira – Juiz 1, ação especial emergente de acidente de trabalho, no qual se discutiu o sinistro laboral ocorrido no dia 12 de abril de 2005, que vitimou P.
5. Nesta ação especial emergente de Acidente de Trabalho a falecida D assumiu a posição processual de beneficiária, sendo réus a “Companhia de Seguros A, S. A.”, a sociedade “C, Lda.”, a sociedade “N, Lda.” e DS, genro da falecida D.
6. A ré A esteve presente e acompanhou a falecida D na audiência de tentativa de conciliação ocorrida no Tribunal do Trabalho de Vila Franca de Xira, que se realizou no dia 17 de janeiro de 2008.
7. Em 9 de dezembro de 2010 a falecida D outorgou procuração forense à ré A, conferindo-lhe, com “os de subestabelecer”, “os mais amplos poderes, em direito permitidos”. E,
8. Em 13 de dezembro de 2010 requereu benefício de apoio judiciário para intentar ação de natureza cível.
9. Em 20 de dezembro de 2010, patrocinada pela ré A, conforme procuração forense descrita em 7., e juntando o requerimento de apoio judiciário descrito em 8., a falecida D intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário contra a sociedade “C, Lda.”, a sociedade “N, Lda.” e a “Seguradora R, S. A.”.
10. Ação que correu termos sob o n.º ____/__, no J2 do Juízo Central Cível de Sintra, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.
11. Nesta ação a falecida D pediu a condenação solidária das rés a pagarem-lhe uma indemnização no montante de €125.000,00 a título de danos não patrimoniais, pelo óbito do seu filho P, pelo sofrimento deste que precedeu a sua morte, e pela perda do direito à vida.
12. A referida ação foi instaurada com pedido de citação urgente com o fundamento de que “a presente petição baseia-se em acidente de trabalho ocorrido a 12 de Abril de 2005 e do qual proveio a morte de P. (…) Ora a autora somente teve conhecimento do seu direito a ser indemnizada, após cerca de um mês da data em que teve lugar e realização a Tentativa de Conciliação, realizada aos dias 17 de Janeiro de 2008 no âmbito do mencionado Processo n.º ____/__, no âmbito do processo laboral. É que a autora depois de ser representada naquela diligência veio a reunir com a mandatária, um mês depois, e nessa reunião ficou conhecedora de que poderia reclamar outros direitos noutras instâncias. A autora é pessoa reformada, iletrada, muito pouco esclarecida e sem quaisquer conhecimentos de direito e sem possibilidade de deles conhecer por outra via, atento à manifesta humildade da sua vida e modestíssima realidade da sua vida. Assim e atendendo a que o prazo prescricional poderá ocorrer, a autora receia que não seja já viável a citação atempada dos réus se for respeitado o normal procedimento previsto na lei processual para a distribuição e posterior citação processuais”.
13. As rés contestaram a ação descrita em 9. e 10., entre elas a ré “C, Lda.” que, além do mais, excecionou a prescrição do direito invocado pela falecida D, por decurso do respetivo prazo.
14. A ré A foi notificada destas contestações em 29.04.2011.
15. No âmbito deste processo foi proferida sentença em 05.06.2014, nos termos da qual se julgou improcedente o pedido da falecida D, por se julgar verificada a exceção de prescrição invocada nos seguintes termos: «(…) não se apurou a verificação da situação prevista pelo n.º 3, do artigo. 498.º, do Código Civil: “que o facto ilícito constitua crime para o qual a lei estabeleça a prescrição sujeita a prazo mais longo”; o que, como referimos acima, se mostrava essencial para que julgássemos improcedente a excepção de prescrição invocada pelas rés. Assim, mostra-se claro que, entre a data do acidente objecto dos autos – 12 de Abril de 2005 e, desde logo, a data em que a presente acção foi interposta - 20 de Dezembro de 2010 - decorreram mais de três anos (art. 498º, nº 1, do Código Civil); como decorreram mais de cinco anos (para a eventualidade de podermos, sequer, considerar a possibilidade de existência de crime com o prazo de prescrição de cinco anos); termos em que, necessariamente, nas datas em que as Rés foram citadas na acção (cfr. art. 323º, nº 1, do C. Civil) tais prazos havia já decorrido. Consequentemente, impõe-se concluir que procede a invocada excepção de prescrição do direito da Autora. Por assim ser - o direito da Autora mostra-se extinto por prescrição - a pretensão da demandante não pode proceder já contra a Ré “C”; nem contra a Ré “L”, para a qual a Ré “N” transferira a sua responsabilidade civil por danos patrimoniais e não patrimoniais advenientes do exercício da sua actividade profissional».
16. Inconformada, a falecida D constituiu novo mandatário e recorreu desta sentença.
17. Por Acórdão proferido em 16.06.2015 o Tribunal da Relação de Lisboa julgou parcialmente procedente a apelação, alterando a decisão recorrida e, em consequência, condenou a (ali ré) “C, Lda.” a pagar à falecida D (ali autora/recorrente) a quantia de €100.000,00 (cem mil euros), acrescida de juros a contar da citação, à taxa de 4%, por ter entendido que, quanto a esta ré, existe «uma omissão de comportamentos que redunda num particular perigo por descuido de deveres legais que não pode deixar de ser reconduzida ao conceito de negligência grosseira» e, por conseguinte, «aquando da propositura da acção, não estava ainda prescrito o direito da autora ser indemnizada em razão do acidente dos autos.».
18. Na sequência de recurso interposto desta decisão pela “C, Lda.”, foi proferido Acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça em 21.04.2016, nos termos do qual foi concedido provimento à revista, revogando-se o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, por se entender que «as omissões imputáveis à ré, perante a matéria de facto apurada, implicando obviamente um provável juízo de negligência ou descuido, - e até, eventualmente, o cometimento de um homicídio por negligência – são manifestamente insuficientes para que se possa ter por preenchido o exigenteconceito – importado do direito penal – de negligência grosseira, stando, por isso, inviabilizado o preenchimento do tipo penal do homicídio com negligência grosseira e, consequencialmente, no plano civil, a aplicabilidade de um prazo de prescrição da obrigação de indemnizar de 10 anos. E assim sendo, resta julgar procedente a excepção peremptória de prescrição, oportunamente invocada pela recorrida, julgando, com fundamento nela, a acção improcedente.».
19. A falecida D só quis avançar com a ação referida em 9. e 10., em dezembro de 2010, depois de findo o processo laboral identificado em 4-B, e apenas contra os réus identificados em 9., por forma a não prejudicar o seu genro, DS, patrão do seu filho P, à data do acidente de trabalho do qual resultou a morte deste;
- 20. Logo nessa ocasião, a 2.ª ré informou a falecida D acerca da possibilidade de já se encontrar prescrito o direito pretendido fazer valer através dessa ação.
21. A Ordem dos Advogados celebrou com a ré “M Seguros, S. A.” um contrato de seguro de grupo, temporário, anual, do ramo de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º ____, que cobria o risco decorrente de ação ou omissão no âmbito da atividade de advogado e em que eram segurados todos os membros da Ordem dos Advogados de Portugal.
22. Este contrato de seguro foi inicialmente celebrado para o ano de 2014, tendo sido renovado para os períodos seguros coincidentes com as anuidades dos anos de 2015, 2016 e 2017.
23. Neste contrato de seguro foi acordada a franquia de € 5.000,00 por sinistro.
24. De 1 de janeiro de 2011 a 31 de dezembro de 2011, a Interveniente “AIC (Europe), Lda.” assumiu, perante o Tomador de Seguro (Ordem dos Advogados), a cobertura dos riscos inerentes ao exercício da atividade profissional desenvolvida pelos seus segurados (advogados com inscrição em vigor) garantindo, nos termos expressamente definidos nas condições especiais do contrato, o eventual pagamento de indemnizações resultantes da responsabilização civil dos seus segurados, em decorrência de erros e/ou omissões profissionais incorridas no exercício da sua atividade, tudo através das apólices ____e ____.
25. Nestes contratos de seguro foi acordada a franquia de €5.000,00 por sinistro.
26. Em 31 de dezembro de 2011, as referidas apólices chegaram ao seu termo, tendo a Ordem dos Advogados, celebrado novo contrato de seguro com a “Companhia de Seguros T, S. A.”, titulado pela apólice n.º ____.
27. A ré “M Seguros, S.A.” e a Interveniente “AIC (Europe), Lda.” só tiveram conhecimento dos factos alegados na p. i. aquando da sua citação para a presente ação.
28. A ré A informou a ré “M Seguros, S.A.” e a Interveniente “AIC (Europe), Lda.” dos termos da presente ação quando tomou conhecimento da mesma, aquando da sua citação.»
Não provado:
«a. o alegado nos artigos 5.º, 14.º e 25.º da p. i., para além do que foi dado como provado sob os pontos 4. e 7.;
b. o alegado no artigo 8.º da p. i., para além do que foi dado como provado sob o ponto 12.;
c. que a falecida D, ou os seus filhos, sempre tenham facultado à ré A todas as informações e documentos por esta solicitados (artigo 26.º da p. i.) e
d. que em virtude de a ré A, em violação dos seus deveres, ter intentado a ação descrita em 9. e 10. dos pontos de facto dados como provados fora do prazo imposto por lei, a falecida D tenha perdido a oportunidade de ser ressarcida pelos danos não patrimoniais causados pelo falecimento do seu filho P, ficando prejudicada no montante de, pelo menos, €100.000,00 (artigo 32.º e 37.º da p. i.)»
*
3.2.3 – Do enquadramento jurídico:
Na sucinta fundamentação jurídica da sentença recorrida, afirma-se, no essencial, que:
- inexiste demonstrada a prática de um ato ilícito, e culposo, por parte da ré A;
- mostra-se, por isso, prejudicada a apreciação dos demais pressupostos da responsabilidade civil;
- não se mostram preenchidos os pressupostos para condenar esta ré, como peticionado.
Não oferece dúvida que esta é, no seu cerne, uma ação de responsabilidade civil fundada no alegado incumprimento de um mandato judicial.
Nela, a falecida primitiva autora, D, pede a reparação dos danos que afirma ter sofrido devido a um mau desempenho dos deveres profissionais da advogada que contratou, a aqui 2.ª ré.
Uma vez que estamos inequivocamente perante uma ação de responsabilidade civil, o seu provimento dependerá, naturalmente, da verificação em concreto de uma imputação de danos.
Os pressupostos, de cuja verificação depende o surgimento da obrigação de indemnizar, resultam do estatuído nos artigos 483.º e 563.º do CC. São eles o facto, a ilicitude, a culpa (nexo de imputação do facto ao agente), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O primeiro desses pressupostos, é o facto, o facto voluntário do agente lesante.
Conforme ensina Antunes Varela, «o elemento básico da responsabilidade é o facto do agente – um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana - pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia da ilicitude, o requisito da culpa, e a obrigação de reparar o dano nos termos em que a lei impõe.
(...). A responsabilidade baseada em factos ilícitos (...) assenta sempre sobre um facto da pessoa obrigada a indemnizar.
Esse facto consiste, em regra, num acto, numa ação, ou seja, num facto positivo (...), que importa a violação de um dever geral de abstenção, do dever de não ingerência na esfera de acção do titular do direito absoluto. Mas pode traduzir-se também num facto negativo, numa abstenção ou numa omissão (art. 486.º).
(...)
Quando  se alude a facto voluntário do agente, não se pretende restringir os factos humanos relevantes em matéria de responsabilidade aos actos queridos, ou seja, àqueles casos em que o agente prefigurado mentalmente os efeitos do acto e tenha agido em vistas deles. Há, pelo contrário, inúmeros casos (a começar pela chamada negligência inconsciente) em que não existe semelhante representação mental e, todavia, ninguém contesta a obrigação de indemnizar. (...).
Por isso, faco voluntário significa apenas (...) facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade. Para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o acto ou omissão; não é necessária uma conduta premeditada, uma acção ou omissão orientada para certo fim (uma conduta finalista) (...).»[24].
No caso concreto, não oferece dúvida a ocorrência de um facto voluntário praticado pela 2.ª ré, no exercício da sua profissão de advogada e ao abrigo do mandato judicial que lhe foi conferido pela falecida D no dia 9 de dezembro de 2010, através da procuração forense mencionada em 7. dos factos provados.
Esse facto voluntário consistiu na apresentação em juízo, no dia 20 de dezembro de 2010, da petição inicial com que foi introduzida a ação identificada em 9. e 10. dos factos provados, numa altura em que já se encontrava prescrito, conforme nessa mesma ação veio a ser declarado, o direito que a falecida D através dela pretendia fazer valer.
Ou seja, e vendo as coisas de outro ângulo, esse facto voluntário, no caso concreto, consistiria na omissão de instauração daquela ação antes de decorrido o prazo de prescrição do direito que D através dela pretendia fazer valer.
Mas poderá considerar-se ilícito esse facto?
Como vimos, a sentença recorrida, ainda que, salvo o devido respeito, de uma forma muito singela, entendeu que não.
Não merece censura esse entendimento, pois, na verdade, não se vislumbra que a instauração, no dia 20 de dezembro de 2010, da ação identificada em 9. e 10. dos factos provados, configure um ato voluntário ilícito.
Conforme refere ainda Antunes varela, «a ilicitude traduz (...) a reprovação da conduta do agente, embora num plano geral e abstracto em que a lei se coloca, numa primeira aproximação da realidade.»[25].
A ilicitude funciona, assim, «como que um modo analítico do valor ou desvalor do facto considerado isoladamente face aos princípios defendidos pela ordem jurídica.»[26].
Como é sabido:
a) no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do art. 483.º, n.º 1, do CC, a ilicitude pode revestir duas modalidades:
- pode traduzir-se na violação do direito de outrem, ou seja, na infração de um direito subjetivo;
- pode consistir na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
b) no âmbito da responsabilidade civil contratual, a ilicitude reside no incumprimento do contrato (art. 798.º do CC).
No caso sub judice, entre a falecida D e a 2.ª ré, na qualidade de advogada, foi celebrado um contrato para que esta patrocinasse judiciariamente aquela no âmbito da ação identificada em 9. e 10. dos factos provados.
Tratou-se de um contrato de mandato ad litem, do qual derivavam para a 2.ª ré, determinados deveres, impostos, quer pelo Código Civil, quer pelo Estatuto da Ordem dos Advogados.
O contrato celebrado entre o advogado e o seu cliente é, no direito português, um contrato de prestação de serviço que, além de sujeito às disposições do estatuto profissional do advogado, é diretamente regulado pelas regras do mandato, sendo-lhe diretamente aplicáveis, imediatamente ou por força da norma de extensão contida no art. 1156.º do CC[27], as disposições do mandato.
Entre elas, com especial relevância para o caso, o disposto na al. a) do art. 1161.º do CC: «O mandatário é obrigado (...) a praticar os atos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante.»
É aqui, nesta norma que, como sói dizer-se, que bate o ponto.
Está provado que
-  A falecida D só quis avançar com a ação referida em 9. e 10., em dezembro de 2010, depois de findo o processo laboral identificado em 4-B, e apenas contra os réus identificados em 9., por forma a não prejudicar o seu genro, DS, patrão do seu filho P, à data do acidente de trabalho do qual resultou a morte deste;
- Logo nessa ocasião, a 2.ª ré informou a falecida D acerca da possibilidade de já se encontrar prescrito o direito pretendido fazer valer através dessa ação.
Ainda assim:
- D outorgou a favor da 2.ª ré, no dia 9 de dezembro de 2010, a procuração forense referida em 7. dos factos provados;
- (...) no dia 13 de dezembro de 2010 requereu benefício de apoio judiciário para intentar aquela ação (8. dos factos provados);
A ação foi instaurada no dia 20 de dezembro de 2010, tendo-lhe sido o atribuído o n.º ____/__, e correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Central Cível de Sintra – Juiz 2 (9. e 10. dos factos provados).
Nesse processo ocorreu o seguinte:
a) em 1.ª instância, foi proferida sentença datada de 5 de junho de 2014, que julgou a ação improcedente e absolveu as rés do pedido, por considerar verificada a exceção perentória de prescrição do direito invocado por D (15. dos factos provados);
b) em 2.ª instância, neste Tribunal da Relação de Lisboa, foi proferido acórdão datado de 16 de junho de 2015, que:
ba) julgou parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por D;
bb) alterou a sentença referida em a):
- considerando não se encontrar prescrito o direito invocado por D;
- condenando a ali ré “C, Lda.” a pagar a D a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros), acrescida de juros de mora (17. dos factos provados).
c) o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão datado de 21 de abril de 2016, revogou o acórdão da relação referido em b), e repristinou a sentença da 1.ª instância referida em a), por considerar verificada a exceção perentória de prescrição do direito pretendido fazer valer por D (18. dos factos provados).
Perante isto, não se vislumbra qualquer incumprimento, por parte da 2.ª ré, do contrato de mandato ad litem celebrado com a falecida D, a que nos vimos reportando.
Ou seja, e por outras palavras dizendo, não está provada a prática, pela 2.ª ré, por ação ou omissão, de qualquer facto voluntário ilícito.
Tal como referido na sentença recorrida, recaia sobre os autores, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC, o ónus da prova da ocorrência de tal facto, o que, manifestamente, não lograram fazer.
Inverificado o referido pressuposto da responsabilidade civil, teria a ação, sem necessidade de mais considerandos, ou seja, de análise dos demais pressupostos daquele instituto, de ser julgada improcedente, como efetivamente foi, o que aqui e agora se confirma.
*
Fica, consequentemente, prejudicado o conhecimento da questão atinente à ampliação do objeto do recurso, subsidiariamente requerida pela interveniente AIC (Europe), Lda..
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IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
4.1 - em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a sentença recorrida;
4.2 – em julgar prejudicado o conhecimento da questão atinente à ampliação do objeto do recurso, subsidiariamente requerida pela interveniente AIC (Europe), Lda..
As custas do recurso, na vertente de custas de parte, são a cargo dos apelantes (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2).

Lisboa, 19 de março de 2024
José Capacete
Carlos Oliveira
Cristina Coelho
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[1] Doravante identificada como “1.ª ré”.
[2] Doravante identificada como “2.ª ré”.
[3] Doravante identificada apenas por “interveniente”.
[4] Os identificados habilitados sucessores da autora serão, eles próprios, doravante, referidos como autores.
[5] Os apelantes transcrevem, desnecessariamente, em sede de conclusões, os enunciados descritos na sentença recorrida sob os pontos 19. e 20. dos factos provados.
[6] Os apelantes transcrevem, desnecessariamente, em sede de conclusões, os enunciados transcritos nos arts. 7.º, 8.º, 10.º, 24.º e 26., da petição inicial.
[7] Os apelantes transcrevem, desnecessariamente, em sede de conclusões, os artigos 21.º 1 27º da peça processual em causa.
[8] Manual do Recurso Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 293.
[9] Recursos em Processo Civil, 7.ª Ed., Almedina, 2022, pp. 185-188.
[10] Ob. e loc. cit.
[11] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, 2022, pp. 770-771.
[12] Cf. Ac. da R.C. de 27.5.2014, Proc. nº. 104/12.0T2AVR.C1 (Moreira do Carmo), in www.dgsi.pt.
No Acórdão da mesma Relação, datado de 24.4.2012, Proc. nº. 219/10.6T2VGS.C1 (Beça Pereira), in www.dgsi.pt, escreveu-se a este propósito:
«A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B, visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.
Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º».
No acórdão da mesma Relação de 14.01.2014, Proc. nº 6628/10.3TBLRA.C1 (Henrique Antunes), a mesma ideia é assim expressa:
«De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC).
Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição, a solução o enquadramento jurídico do objeto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a ação, ou pelo réu, com a contestação.
Portanto, a reponderação apenas deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objeto da ação.»
[13] Cfr. Ac. do S.T.J. de 17.05.2017, Proc. nº 4111/13.4TBBRG (Isabel Pereira), in www.dgsi.pt.
[14] Tribunal da Relação.
[15] O segundo grau de jurisdição em matéria de facto no processo civil português, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pp. 44-45.
[16] Recurso de apelação e controlo da decisão da questão de facto, pp. 44-45, in www.stj.pt.
[17] Cfr. Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 406-407, e RLJ, Ano 122º, nº 3784, p. 219, a quem pertencem os exemplos indicados nas notas seguintes.
[18] Tratado de Derecho Procesal Civil, tomo II, tradução espanhola de Angela Romera Vera, 1995, apud Montalvão Machado, O Dispositivo e os Poderes do Tribunal À Luz do Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra, Almedina, 2001, p. 113, nota 210.
[19] Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª Ed., 1985, p. 209.
[20] «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
[21] «A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente (...) anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.»
[22] Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, 2022, p. 356.
[23] Nada mais se acrescenta a este enunciado, uma vez que a morte de uma pessoa apenas é suscetível de ser provada mediante documento idóneo, deixando-se, no entanto, assim, expressamente afirmado que a procuração outorgada por D a favor da 2.ª ré no dia 14 de fevereiro de 2005, não foi, obvia e logicamente, emitida para que esta a representasse no âmbito do processo laboral instaurado na sequência do acidente de trabalho que vitimou o seu filho P, ocorrido no dia 12 de abril de 2005.
[24] Das Obrigações em geral, Vol. I, 10:.º Edição, Almedina, 2003, pp. 527-529.
[25] Das Obrigações em Geral cit., p. 543.
[26] Cfr. António Pedro santos Leitão, Da Perda de Chance – Problemática do Enquadramento Dogmático, Dissertação em Ciências Jurídico-Civilísticas, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016, p. 13. acessível na Internet em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/40891/1/Tese%20-%20Perda%20de%20Chance1.pdf
[27] «As disposições sobre o mandato são extensivas, com as necessárias adaptações, às modalidades do contrato de prestação de serviço que a lei não regule especialmente.»