Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2532/22.0T8VFX-A.L1-1
Relator: RENATA LINHARES DE CASTRO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
QUALIDADE DE SÓCIO
PRESUNÇÃO REGISTRAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A qualidade de sócio é pressuposto de legitimidade para requerer a providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, sendo que tal qualidade terá de existir na data em que a deliberação foi tomada e na data em que foi requerida a sua suspensão.
II. Não ficando demonstrada a qualidade de sócios dos requerentes carecem os mesmos de legitimidade ad substantium para o referido procedimento cautelar, o qual terá de ser julgado improcedente.
III. O princípio da presunção da verdade registral, consagrado no artigo 11.º do CRComercial (quanto à existência e veracidade da situação jurídica inscrita, seja quanto ao direito, seja quanto à titularidade do mesmo), apenas é válido para os casos de registo comercial por transcrição definitiva, e já não para os casos de registo por depósito. 
IV. Tal presunção pode ser ilidida, desde logo se, em face dos demais elementos probatórios (conjugação da prova documental com a demais prova produzida), resultar factualidade demonstrativa de ter existido um acordo simulatório quanto ao invocado negócio jurídico celebrado (transmissão de quotas).   
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
C…. e P … vieram instaurar contra E …, Lda providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 380.º, 381.º e 382.º, todos do CPC, conjugados com os artigos 53.º a 59.º do CSC.
Para tanto requereram que fosse “declarada a suspensão dos efeitos de todas as deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral Extraordinária de 18 de abril de 2022, por A…, sem audição prévia da Ré E …, Lda., nos termos do disposto nos artigos 366.º, n.º 1 e 380.º, ambos do Código do Processo Civil, com todas as devidas e naturais consequências.
Juntaram documentação.
A requerida deduziu oposição, pugnando no sentido de dever a providência ser indeferida.
O tribunal a quo ordenou o cumprimento do contraditório quanto às questões suscitadas na oposição – ilegitimidade substancial dos requerentes, assente na existência de simulação absoluta e inerente nulidade dos negócios de transmissão de quotas aos mesmos.
Os requerentes pronunciaram-se no sentido de as mesmas deverem improceder.
Realizou-se a audiência final, com produção de prova testemunhal.
Por decisão final proferida em 21/11/2022, o tribunal recorrido julgou a providência improcedente, por não provada, tendo absolvido a requerida do pedido.
Não se conformando com tal decisão, dela interpuseram RECURSO os requerentes, tendo para tanto formulado as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
“i. Os factos vertidos nos pontos 22 a 30 da matéria de facto provada, carecem de fundamentação de facto, porquanto não se mostram suficientes e até mesmo carentes para fundamentar os pressupostos da simulação prevista no disposto no artigo 240.º do Código Civil.
ii. Face à carência de prova dos pressupostos da simulação o Tribunal a quo, não poderia julgar como nulo o negócio de cessão de quotas da Recorrida sociedade por quotas E …, Lda. e de A… a P… e a C ….
iii. Sendo tal negócio válido e não ter sido ilidida a presunção registral e havendo prova do negócio efetiva e verdadeiramente realizado, os Recorrentes são parte legitima ativa no presente procedimento cautelar e especificado de suspensão de deliberações sociais.
iv. Devendo ser julgada procedente a referida legitimidade ativa dos Recorrentes pela demonstração da qualidade de sócios da sociedade por quotas E …, Lda., o Tribunal a quo deverá pronunciar-se sobre os pedidos formulados no presente procedimento cautelar especificado de suspensão das deliberações sociais e assim se fazendo justiça.
Termos em que e nos demais de Direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, revogada a decisão final e em consequência, serem os Recorrentes julgados como parte legitima ativa nos presentes autos, afim do prosseguimento dos mesmos para conhecimento dos pedidos nele formulados, designadamente a suspensão da deliberação social da Assembleia Geral Extraordinária de 18.04.2022, tudo com as legais consequências, fazendo-se, assim, a habitual e costumada JUSTIÇA.”
Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
O recurso foi correctamente admitido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes - artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC. Contudo, não está este tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio.
Assim, as questões a decidir são:
1. Aferir da pretensa impugnação à matéria de facto;
2. Aferir da legitimidade ad substantium (substancial) - qualidade de sócios - dos apelantes para requererem a presente providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, para tanto se tendo que apreciar as seguintes sub-questões:
a) presunção resultante do registo,
b) aferir da existência de simulação da transmissão das quotas da sociedade.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Na decisão impugnada consignou-se:
“III. Fundamentos de facto
III.1 Factos provados
III.1.a Sociedade
1. A sociedade E …, LDA., pessoa coletiva n.º …, tendo por objeto “Escola de condução”, obriga-se com a intervenção de um gerente.
III.1.b Gerência
2. Em 16-12-2013, inscreveu-se no registo a designação de A… como gerente, ato datado de 07-10-2013.
3. Em 14-04-2022, averbou-se a cessação da gerência por destituição.
4. Em 14-04-2022, inscreveu-se a designação de 3 gerentes, os filhos de A..., ora Requerentes, e sua mãe.
5. Os Requerentes declararam votar favoravelmente as deliberações identificadas em 3 e 4, cfr. ata 29, datada de 14-04-2021.
6. Em 12-05-2022, averbou-se a destituição dos 3 gerentes, e a nomeação de A … como gerente.
7. Na declarada qualidade de representante dos Requerentes, A… afirmou votar favoravelmente as deliberações identificadas em 7, ata 31, datada de 18-04-2021.
III.1.c Capital social
8. Em 16-12-2013, fez-se menção de depósito de ato de transmissão das quotas da Requerida, no valor de € 5 000,00, a A….
9. Em 27-01-2014, inscreveu-se aumento de capital para € 45 000,00, e aquisição total das quotas por A…, subscrição em numerário.
10. Em 27-01-2014, inscreveu-se alteração ao contrato de sociedade no seguinte sentido: sócio P…, quota de € 45 000,00.
11. No mesmo dia, fez-se menção de depósito de ato de transmissão das quotas de A… ao Requerente.
12. Para o efeito previsto no número anterior, A … declarou vender ao Requerente, e este comprar, as quotas da sociedade.
13. Por instrumento notarial datado de 24-01-2014, intitulado “Procuração”, declarou o Requerente P… “constituiu seu bastante procurador seu pai (…), a quem, com os de substabelecer, confere amplos poderes, gerais e (…), para ceder as quotas de ele mandante é titular (…), nas condições e preços que achar convenientes, receber e dar quitações, outorgar e assinar as competentes escrituras, contratos e contratos promessa, intervir ilimitadamente nas assembleias gerais da referida sociedade, exercendo todos os direitos societários que enquanto sócio a lei lhe atribui, designamente, apresentando propostas e votando deliberações, requerer nas Conservatórias de Registo Comercial quaisquer actos de registo (…), representá-lo junto de quaisquer repartições públicas, nomeadamente, Serviços de Finanças, para quaisquer efeitos emergentes deste contrato. [parágrafo]. A presente procuração é também outorgada para o mandatário representante celebrar negócio consigo mesmo, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º 1 do artigo 261.º do Código Civil [parágrafo] Esta procuração é conferida no interesse do próprio mandatário. pelo que não pode ser revogada sem o seu acordo, salvo ocorrendo justa causa, nos termos do n.º 3 do artigo 265.º do Código Civil, nem caduca por interdição, inabilitação ou morte do mandante, nos termos do artigo 1175.º do mesmo Código. [parágrafo]. Ao representante é atribuída a faculdade de, nos termos do artigo 264.º do Código Civil, se fazer substituir por outrem na prática dos actos para que se encontra mandatado.”.
14. Em 14-02-2019, fez-se menção de depósito de ato de transmissão de ½ das quotas do Requerente à Requerente.
15. Por escrito autenticado datado de 28-09-2021, a Requerente C… declara “(…) constitui seu bastante procurador o seu pai (…) a quem, com os de substabelecer, confere amplos poderes, gerais e ilimitados, para ceder a quota no valor nominal de 22.500,00 € de que ela mandante é titular na sociedade por quotas denominada "E …, Lda.", com o capital social de quarenta e cinco mil euros e matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Odivelas sob o número único de matricula e pessoa colectiva …, com sede na Avenida …, a qual não é proprietária de quaisquer bens imóveis, nas condições e preços que achar convenientes, receber e dar quitações, outorgar e assinar as competentes escrituras, contratos e contratos promessa, intervir ilimitadamente nas assembleias gerais da referida sociedade, exercendo todos os direitos societários que enquanto sócia a lei lhe atribui, designadamente, apresentando propostas e votando deliberações, requerer nas Conservatórias do Registo Comercial quaisquer actos de registo, provisórios ou definitivos, averbamentos e apresentar declarações complementares, representá-la junto de quaisquer repartições públicas, nomeadamente, Serviços de Finanças, para quaisquer efeitos emergentes deste acto. [parágrafo] A presente procuração é também outorgada para o mandatário representante celebrar negócio consigo mesmo, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º 1 do artigo 261.º do Código Civil. [parágrafo] Esta procuração é conferida no interesse do próprio mandatário, pelo que não pode ser revogada sem o seu acordo, salvo ocorrendo justa causa, nos termos do n.º 3 do art.º 265.º do Código Civil, nem caduca por interdição, Inabilitação ou morte da mandante, nos termos do art.º 1175.° do mesmo Código. [parágrafo]. Ao mandatário é atribuída a faculdade de, nos termos do artigo 264.º do Código Civil, se fazer substituir por outrem na prática dos actos para que se encontra mandatado.”.
16. Em 12-05-2022, fez-se menção de depósito de ato de transmissão das quotas a A….
17. Foi interveniente no ajuste A…, também na qualidade de representante dos Requerentes, ato datado de 18-04-2021, ata 31.
18. Em 12-04-2022, A… foi judicialmente notificado da revogação da procuração emitida por C….
19. Anunciou-se a publicação da revogação no Jornal Público, edição de ....
III.1.d A…
20. Em 04-03-2022, o pai dos requerentes foi acometido de AVC, tendo estado acamado até 22-04-2022 – documento 2 junto com a oposição.
21. Seguiu-se um período de internamento, no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, que se prolongou até 17-05-2022 – documento 2 junto com a oposição.
III.1.e Conluio
22. A… exerceu individualmente a gerência de facto desde outubro de 2013 até 04-03-2022.
23. A… nunca quis alienar, e P… nunca quis adquirir as quotas da sociedade.
24. Com as declarações de compra e venda, quiseram colocar a salvo de eventuais penhoras fiscais o património de A….
25. A Requerente C... sempre soube de 22 a 24 e 26.
26. Os filhos subscreveram as denominadas procurações irrevogáveis em razão dos factos 22 a 25.
27. O Requerente P... foi bombeiro e estudante universitário de enfermagem.
28. Atualmente exerce funções de instrutor de condução.
29. A Requerente C... exerce funções de caraterizadora.
III.1.f
30. A nomeada gerente L… não tinha experiência na gerência de escolas de condução.
31. Foi apresentada participação criminal, documentos 10 e 11 juntos com o requerimento inicial.
III.2 Facto não provado
a) As deliberações impugnadas provocaram nos Autores um estado de ansiedade, tristeza, preocupação que foram causa direta e necessária de um sentimento depressivo que determinaram noites sem dormir, estado permanente de grande nervosismo e alteração profunda da sua vida normal.
*
Fundamentação de direito
Da impugnação da matéria de facto
Vieram os apelantes impugnar a matéria de facto considerada provada, designadamente a descrita nos n.ºs 22 a 30.
Para tanto alegam: “14. Da fundamentação expressa pelo Tribunal a quo, quer emergente da prova testemunhal, quer emergente da prova documental e salvo melhor opinião, os Recorrentes não vislumbram, de forma alguma que a matéria de facto provada, dos pontos 22 a 30 possa derivar, de forma segura e adequada, dos meios de prova considerados pelo Tribunal a quo. 15. Nem da prova documental, nem da prova testemunhal resulta qualquer prova de que A… o tivesse à data da cessão de quotas quaisquer eventuais penhoras fiscais, quaisquer eventuais ou efetivas penhoras do seu património ou da sociedade, ou que tivesse quaisquer dividas vencidas perante os seus credores ou os credores da Requerida sociedade, que o motivassem, obrigassem ou justificassem a colocação a salvo do seu património ou o da Requerida sociedade.”
Defendem que os factos 23 e 24 “carece totalmente de prova para a convicção do Tribunal a quo”.
Mais alegam:
“20. (…), para além de manifesta insuficiência da matéria de facto para a decisão, revela-se uma clara inexistência de matéria de facto alegada quanto ao elemento integrador da simulação qual seja o de enganar terceiros (e não se confunda em prejudicar terceiros). (…) 23. (…) os Recorrentes consideram exatamente o contrário, com base na prova produzida e, especialmente, a não produzida nos autos. 24. A vontade coincide com a declaração, (…) Esta é a verdadeira vontade, que foi declarada e consta do registo, cuja presunção não se mostra ilidida, por via da alegada simulação da transmissão das quotas. 25. A Recorrida sociedade e sobretudo A…, não produziram qualquer meio de prova adequado e suficiente para que o Tribunal a quo, pudesse dar como provado, a matéria de facto constante dos pontos 24 e 25 da matéria de facto provada (…)
“28. As declarações prestadas por P… em audiência de julgamento, o qual refere que entregou ao A…, a quantia de € 40.000,00 (…) para abrir a Escola, ora Recorrida sociedade, que o Tribunal a quo, não considerou nem provado nem não provado, é revelador de que se tratando de uma sociedade comercial por quotas este dinheiro apenas se destinava à aquisição da quota, o que efetivamente aconteceu. 29. Salvo melhor opinião os Recorrentes consideram que este facto se mostra relevante para a decisão porquanto é nele que assenta a verdadeira premissa do negócio efetivamente realizado e declarado, o qual foi alegado pelos ora Recorrentes e que se verifica uma clara omissão de pronuncia por parte do Tribunal a quo, uma vez que não considerou tal matéria factual, nem como provado nem como não provado. (…)”; “35. As procurações não demonstram nem delas se retira através da prova produzida em audiência de julgamento, de que fundamentam o alegado negócio simulado.”; “38. Para além do ora alegado é evidente a carência de prova quanto ao facto provado pelo Tribunal a quo, de que A…, nunca quis alienar e P… nunca quis adquirir as quotas da sociedade. (artigo 23.º da matéria de facto provada). 39. Fica também claro que carece de qualquer prova o facto provado segundo o qual os filhos subscreveram as denominadas procurações irrevogáveis, em razão dos factos 22 a 25. (artigo 26.º da matéria de facto provada).”; “40. (…) factos provados sob os números 27 a 29, não se mostram relevantes para a decisão, (…)” e “47. Das declarações de C… em audiência, resulta que esta comprou metade da quota ao irmão ora Recorrente P…, revelando conhecimento direto de que o seu irmão adquiriu a quota na sua totalidade ao seu pai A…, através da entrega de dinheiro - € 40.000,00 (…) que eram propriedade do seu irmão e que lhe foi dado pela sua avó e pela sua mãe, justificando deste modo que a titularidade da totalidade da quota do seu irmão, ora Recorrente P… foi adquirida por este com vontade inequívoca de aquisição, sabendo que o seu pai A… também a vendeu de livre vontade, desconhecendo por completo da eventual existência de eventuais penhoras do fisco ao seu pai ou à Recorrida sociedade. 48. Foram estes factos levados a registo por depósito, devidamente justificados pela ora Recorrente C…, a qual assim justificou e provou o facto registado.”
Já em sede de conclusões, limitaram-se a consignar: “i. Os factos vertidos nos pontos 22 a 30 da matéria de facto provada, carecem de fundamentação de facto, porquanto não se mostram suficientes e até mesmo carentes para fundamentar os pressupostos da simulação prevista no disposto no artigo 240.º do Código Civil. ii. Face à carência de prova dos pressupostos da simulação o Tribunal a quo, não poderia julgar como nulo o negócio de cessão de quotas da Recorrida sociedade por quotas E …Lda. e de A… a P… e a C…. (…)”.
Desde já importa realçar que, no nosso ordenamento jurídico, vigora o princípio da livre apreciação da prova – cfr. artigo 607.º, n.º 5 do CPC, segundo o qual: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”
Partindo do exame e avaliação dos meios de prova carreados para os autos, o juiz decide de acordo com a sua convicção, só assim não sucedendo quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. artigo 371.º do CCivil).[1]
Para a formação dessa convicção contribuirá a experiência de vida do julgador, podendo, porém, o mesmo, nos termos dos artigos 349.º e 351.º do CCivil, socorrer-se de presunções judiciais, as quais correspondem a ilações que aquele retira de factos conhecidos para firmar factos desconhecidos (o seu funcionamento depende da conexão entre factos, em que a verificação de factos provados, atentas as regras da experiência comum, os princípios da lógica corrente e os dados da intuição humana, faz admitir a existência de factos não provados).
Sem prejuízo de assim ser, nos termos previstos pelo artigo 662.º, n.º 1 do CPC, a decisão sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação - “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documentos superveniente impuserem decisão diversa[2].
Contudo, para que ocorra reapreciação da prova, exige o n.º 1 do artigo 640.º do mesmo código que seja cumprido determinado formalismo – “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”. Aludindo expressamente o seu n.º 2 à especificação dos meios probatórios - “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Da conjugação destas duas normas resulta, em síntese, que o recurso da matéria de facto pode envolver, entre outros aspectos, a alteração de tal matéria (seja considerando provados factos que o tribunal a quo considerou não provados, seja o inverso), o que sucederá a partir da reapreciação dos meios de prova ou quando os elementos constantes do processo impuserem decisão diversa.
Como refere Abrantes Geraldes[3], caso esteja em causa a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, impõe-se, em síntese, que o recorrente: a) indique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões); b) especifique, na motivação, os meios de prova que determinam uma decisão diferente (que constem do processo ou que nele estejam registados); c) tratando-se de prova gravada, indique com exactidão as passagens relevantes da gravação (e, se assim o entender, transcreva os excertos que julgue oportunos); e d) deixe expresso, na motivação, a decisão que entende que deverá ser proferida sobre as questões impugnadas.
Consequentemente, como refere o mesmo Conselheiro[4], deverá ter lugar a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto – sem que, previamente, haja lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento - se se verificar: a) falta de conclusões sobre tal impugnação – artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, al. b), ambos do CPC; b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – artigo 640.º, n.º 1, al. a); c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios; d) falta de indicação exacta, na motivação, das passagens de gravação em que se funda[5]; e) falta de decisão expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
Acresce que, como tem vindo a ser pacificamente entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores, não se considera cumprido o ónus de especificação imposto no artigo 640.º, n.º 1, al b), quando o recorrente procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspectiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o tribunal de 1.ª instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas.[6]
Reportando tais considerações ao caso, desde já se dirá que os apelantes:
- não procederam à indicação exacta, na motivação, das passagens de gravação em que se funda a impugnação; e
- não referiram expressamente, na motivação, qual o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
Não basta afirmar que a factualidade que se pretende impugnar “carece totalmente de prova para a convicção do tribunal a quo” ou que os “recorrentes consideram exatamente o contrário, com base na prova produzida e, especialmente, a não produzida nos autos”, assim como que terá ocorrido “erro no julgamento da matéria de facto” ou, ainda, que terão sido considerados provados factos que “não se mostram relevantes para a decisão“ (mesmo quando se tenha feito referência aos factos em causa, apesar de, com relação a alguns, tal referência o ter sido em bloco).
Exigir-se-ia, pelo contrário, que os recorrentes tivessem referido, de forma expressa, qual a pretensão a alcançar – se algum dos factos provados deverá ver a sua redacção alterada (e, na afirmativa, qual a redacção proposta), se algum deles deverá passar a ser considerado como não provado (ou se matéria dada por não provada, deverá passar a ser considerada assente) e se deverá ser aditada qualquer outra concreta factualidade (novamente com a respectiva redacção proposta).[7]
Ou seja, não basta identificar os pontos da matéria de facto que se considera incorrectamente julgados, sendo ainda imprescindível especificar, de forma concreta e individualizada, o sentido da resposta diversa que – em face da prova produzida -, se entende ser a adequada/acertada, com relação a cada um dos factos impugnados.
Assim não procederam os recorrentes, pelo que, não tendo sido dado cumprimento integral às exigências consagradas no artigo 640.º do CPC, mostra-se inviável valorar a pretensão dos mesmos como correspondendo a uma impugnação da matéria de facto, a qual vai, pois, rejeitada.
Sem prejuízo do acabado de decidir, importa aferir se, no caso, se imporia alguma modificação (oficiosa) da decisão de facto.
Citando, uma vez mais, Abrantes Geraldes[8], deverá a Relação modificar a decisão da matéria de facto “quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova”, esclarecendo que assim sucederá “quando, apesar de ter sido junto ao processo um documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto (arts. 371.º, n.º 1, e 376.º, n.º 1 do CC), o considere não provado, relevando para o efeito prova testemunhal produzida ou presunções judiciais.”
E, continua, também assim se deverá proceder quando o tribunal recorrido “tenha considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimento testemunhal, nos termos dos arts. 351.º e 393.º do CC), situação em que a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (art. 364.º, n.º 1, do CC). Em qualquer destes casos, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas do direito probatório material, deve integrar na decisão o facto que a 1.ª instância considerou não provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (sem prejuízo, neste caso, da sua sustentação noutros meios de prova), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte”.
Dito isto, importa realçar que o ponto 23 da matéria de facto encerra em si mesmo um juízo de cariz conclusivo.
Sucede que, a natureza conclusiva de um facto não acarreta necessariamente a sua eliminação – nesse sentido, veja-se o acórdão do STJ de 13/10/2020[9] no qual se pode ler: “(…) VI - Factos conclusivos traduzidos na consequência lógica retirada de outros factos uma vez que, ainda assim, constituem matéria de facto, devem permanecer na factualidade provada quando facilitem a apreensão e compreensão da realidade visando uma melhor adequação e ponderação de todas as circunstâncias na resolução do litígio (…)”.
Vejamos, então, se, na presente situação, será o mesmo de manter, analisando, desde logo, o que na decisão se consignou em sede de motivação da decisão de facto.
Após relatar o que resultou dos depoimentos das testemunhas inquiridas[10] e das declarações de parte dos requerentes[11], argumentou-se em tal decisão:
“Os factos 22 a 30 resultam da conjugação da prova produzida em audiência com os documentos juntos aos autos.
Quanto aos factos 22 a 26:
Não olvidamos o estabelecido pelo artigo 394.º do Código Civil, no seu n.º 1: “É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.”. // Destarte, está vedada a prova do conluio simulatório por testemunhas, ou por quaisquer outros meios assimilados à prova testemunhal, como sejam as presunções judiciais (artigo 351.º do Cód. Civil) e a confissão extrajudicial verbal (artigo 358.º, n.º 3 do Cód. Civil). // Admite-se a prova da simulação por confissão, e através de qualquer escrito que não obedeça aos requisitos legais, nos termos do artigo 366.º do Cód. Civil (p. ex., documento não assinado ou uma simples minuta). // O impedimento probatório previsto no artigo 394.º foi suavizado pela doutrina e jurisprudência, acolhendo exceções: // a. quando existe um princípio de prova por escrito, proveniente da pessoa contra quem é dirigida a demanda; // b. quando o contraente ficou impossibilitado de munir-se de prova escrita; // c. quando o contraente, sem culpa, perdeu o documento que lhe fornecia a prova.
Nestes casos, releva, excecionalmente, a prova testemunhal.
Nos autos, as procurações ditas irrevogáveis configuram princípio de prova por escrito do conluio simulatório, convenção contrária à declarada alienação de quotas. // A tal escrito acresce:  // - O indício necessitas, a ausência de motivo para o negócio; // - O indício affectio; // - O indício subfortuna, em função das atividades exercidas pelos Requerentes, não geradoras, em regra, de rendimentos de relevo; // - O indício retentio possessionis, a manutenção da posse pelo transmitente. “Como situações fáticas indicadoras da inexistência de ius disponendi e de ius vindicandi podem apontar-se (…) o facto do comprador conferir ao vendedor procuração conferindo-lhe amplos poderes para vender os bens adquiridos por aquele.” // - O indício previssio, ou seja, o acautelar da simulação pelo transmitente, protegendo-a de eventuais infidelidades, através das denominadas procurações irrevogáveis.
Ainda, indício endoprocessual de relevo: “Se o simulador é demandado enquanto tal e não veicula para o processo qualquer explicação justificativa do negócio, o silêncio pode ser valorado como indício endoprocessual em seu desfavor porquanto não se outorgam negócios sem qualquer razão justificativa.”. Assim ocorre nos autos: invocada a simulação a título de exceção, respondem os Requerentes reafirmando a titularidade das participações sociais em função do registo, nada acrescentando. // Não alegam factualidade declarada em audiência pela Requerente: “comprou metade da quota ao irmão. Em função da compra, emprestou € 45 000,00 ao pai (…) O dinheiro tinha por destino a compra do Alvará à segunda testemunha, a reconstrução de casa, e a Escola de Condução X …” [destaques da nossa autoria]. Ora, se a contraprestação da aquisição é entregue ao pai, é este o real vendedor.
Tudo indicia que, na pendência de passivo tributário, e ameaçada a sua participação social e gerência na sociedade, A… declarou transmitir as quotas a seu filho com o único fito da salvaguarda do património. Este ultimo interveio no negócio com igual finalidade.
Com efeito, não obstante o registo da transmissão, os filhos subscrevem procurações a favor do pai, de grande amplitude, qualificando-as de irrevogáveis, assim mantendo o status fáctico.
Não há notícia do exercício de direitos sociais pelos Requerentes (salvo após doença do pai, em 2022). “
Daqui não resulta que tenha sido violada qualquer regra de direito probatório material.
Como tem vindo a ser reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência[12], se é verdade que, invocado um acordo simulatório, o artigo 394.º, n.ºs 1 e 2 do CCivil impede o recurso exclusivo à prova testemunhal - e, acrescentar-se-á, às declarações de parte e às presunções judiciais -, será já possível valorar todos estes meios probatórios desde que conjugados com prova documental que constitua um princípio de prova desse mesmo acordo simulatório, dessa forma viabilizando ao julgador formar convicção nesse sentido.
Como se pode ler no sumário do acórdão da Relação do Porto de 15/11/2018[13], “(…) III – As limitações probatórias à produção da prova testemunhal são extensivas à prova por presunções (artigo 351º do Código Civil) e, por identidade de razão, à prova por declarações de parte sempre que sujeitas à livre apreciação do tribunal, ou seja, quando não tenham caráter confessório (artigo 466º, n 3, do Código de Processo Civil). IV – A doutrina e a jurisprudência têm flexibilizado a previsão do nº 1, do artigo 394º, do Código Civil, admitindo a produção de prova testemunhal nos casos aí previstos, pelo menos, sempre que exista um começo de prova por escrito.”
No caso, invocou-se o teor da procuração notarial outorgada pelo apelante P… e ponderou-se tal documento em conjugação com a restante prova produzida, afastando-se, assim, a proibição plasmada no citado artigo 394.º do CCivil e permitindo à Mma. Juíza a quo tomar posição quanto à matéria de facto nos moldes em que o fez.
Conclui-se, assim, nada haver a alterar no que concerne à fundamentação de facto consignada na decisão recorrida.
Do erro de julgamento – da (i)legitimidade substancial dos recorrentes
Os procedimentos cautelares representam uma “antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal”, assentando “numa análise sumária (summaria cognitio) da situação de facto que permita afirmar a provável existência do direito (fumus boni juris) e o receio justificado de que o mesmo seja seriamente afetado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar (periculum in mora).[14]
Constituem, pois, instrumentos jurídicos destinados a acautelar o efeito útil das acções de que dependem – cfr. artigos 2.º, n.º 2 e 364.º, n.º 1 do CPC -, mediante a composição provisória dos interesses conflituantes, mantendo/restaurando a situação de facto necessária à eventual realização efectiva do direito.[15]
Não são, pois, aptos à resolução ou composição em definitivo de interesses, antes se destinando a antecipar determinados efeitos das decisões judiciais, a prevenir prejuízos ou a manter determinado statu quo, enquanto tardar a decisão definitiva do conflito. Não efectivam, assim, direitos, mas apenas os asseguram, realizando, por conseguinte, uma função instrumental face à tutela declarativa.
Essa total dependência com relação à acção principal apenas se altera nas situações nas quais ocorra inversão do contencioso, hipótese em que o tribunal pode decidir, desde logo, sobre a existência do direito acautelado, ficando o requerente dispensado de instaurar acção principal (para reconhecimento do mesmo).
A situação de perigo da qual o requerente se pretenda defender deverá ser actual e não estar ainda consumada (sem prejuízo de poderem estar em causa situações nas quais as lesões não estejam ainda inteiramente consumadas ou de se tratar de lesões continuadas e repetidas).
No que respeita ao procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, dispõe o artigo 380.º, n.º 1 do CPC que “se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável”.
Já nos termos do n.º 2 do artigo seguinte, “ainda que a deliberação seja contrária à lei, aos estatutos ou ao contrato, o juiz pode deixar de suspendê-la, desde que o prejuízo resultante da suspensão seja superior ao que pode derivar da execução”.
São portanto requisitos cumulativos da providência cautelar de suspensão de deliberações sociais: a) que o requerente justifique a sua qualidade de sócio (com relação à sociedade que tomou a deliberação); b) que tenha sido tomada pela sociedade uma deliberação contrária à lei, aos estatutos ou ao contrato (ilegalidade da deliberação); c) que a execução da deliberação cause um dano apreciável (perpectivado apenas em função da demora do julgamento da acção principal)[16]; e d) que o prejuízo da suspensão não seja superior ao prejuízo da execução da deliberação.
A não verificação de algum destes requisitos implica que o procedimento cautelar requerido não seja decretado.
Reportando tais considerações ao caso concreto, resulta da decisão recorrida que o tribunal a quo entendeu não ter ficado demonstrada a qualidade de sócios dos apelantes. Nessa sequência, concluiu pela ilegitimidade substancial de ambos para requererem a suspensão da deliberação social, julgando improcedente o procedimento cautelar.[17]
Vejamos se tal conclusão é ou não passível de censura.
A qualidade de sócio é pressuposto de legitimidade para requerer a providência aqui em causa, sendo que tal qualidade terá de existir na data em que a deliberação foi tomada e na data em que foi requerida a sua suspensão.
Incumbindo aos requerentes/apelantes o ónus da prova da qualidade de sócios (artigo 342.º do CCivil), invocaram os mesmos a presunção resultante do registo, mais concretamente do artigo 11.º do CRComercial, segundo o qual, “O registo por transcrição definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida.
Já o tribunal recorrido afastou tal presunção, afastamento esse cujo fundamento não foi o mesmo para cada um dos requerentes.
No que concerne à requerente C…, escreveu-se:
“O registo da cessão das quotas à Requerente C… foi lavrado por depósito - artigo 53.º-A do Código de Registo Comercial. // Do registo por depósito não decorre a presunção da existência da situação jurídica registada – artigo 11.º do Código de Registo Comercial. // Repetimos, cabia à Requerente C… o ónus da prova do facto registado – artigo 342.º do Código Civil. // Nada alegou e documentou neste âmbito.”
Já com relação ao requerente P…, pode ler-se:
“Quanto ao Requerente P …, manifesta-se a presunção do registo, através da inscrição vertida em 10. // A Requerida pretende ilidir a presunção do registo, excecionando a nulidade, por simulação, da transmissão das quotas ao Requerente. // (…) No caso em apreço, concluiu-se por divergência entre as vontades e as declarações (factos 23 e 24). // Os declarantes não pretendiam transmitir as quotas da sociedade, a vontade declarada, mas, nada mais, proteger o património do declarado transmitente, enganando e defraudando os seus credores. // Destarte, a transmissão padece do vício da simulação absoluta, que conduz à sua nulidade. // (…) O artigo 286.º esclarece que a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal. // Quanto aos seus efeitos, prescreve o artigo 289.º a obrigação de restituição retroativa: na ordem jurídica, repor-se-á a realidade anterior ao negócio nulo. // Resta concluir pela nulidade da transmissão de quotas ao Requerente P… (…)”
Comecemos pela primeira situação.
Prescreve o artigo 53.º-A do CRComercial: “1 - Os registos são efectuados por transcrição ou depósito. 2 - O registo por transcrição consiste na extractação dos elementos que definem a situação jurídica das entidades sujeitas a registo constantes dos documentos apresentados. 3 - Sem prejuízo dos regimes especiais de depósito da prestação de contas, o registo por depósito consiste no mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a registo. (…)”  
Como decorre deste n.º 2, no registo por transcrição[18] existe um controlo, o qual é efectuado pelo conservador que promove o mesmo e que deverá diligenciar nos moldes previstos pelo artigo 47.º do mesmo código.[19]
Já o registo por depósito consiste no mero arquivamento dos documentos[20], pelo que não está o mesmo sujeito a qualquer controlo da legalidade por parte do conservador – este último apenas deverá rejeitar o registo nos casos previstos no artigo 46.º do CRComercial (ou seja, com base em fundamentos meramente formais).[21]
Como resulta do citado artigo 11.º do CRComercial, apenas goza de presunção registral (presunção da existência e veracidade da situação jurídica) o registo comercial por transcrição definitiva.
 O registo por depósito já não beneficia dessa presunção, tratando-se de um registo de publicidade em que se dá notícia de determinado facto (não gozando, pois, de presunção de verdade, até porque, em face da ausência de controlo do documento levado a registo, em última escala, o mesmo até poderá conter inexactidões, erros ou mesmo falsidades).
Ora, como consta da factualidade provada e da documentação junta aos autos, o registo da cessão de quotas à requerente C… foi lavrado por depósito, pelo que a mesma não beneficia da presunção legal de titularidade da mesma (reitera-se que apenas goza desse valor presuntivo o registo por transcrição definitivo).
Tal facto, acrescentaremos, em conjugação com a demais factualidade, não permite, pois, concluir no sentido de ser a recorrente C... sócia da requerida, tanto mais que, como se demonstrará em seguida, a sua participação social ter-lhe-á advindo por transmissão efectuada pelo seu irmão, pelo que sempre estará dependente de este ser, ele próprio, sócio da requerida.
Porém, também quanto a este último tal qualidade foi afastada, como se tratará de seguida.
Dúvidas inexistem de o recorrente P… beneficiar da presunção do registo.
Sendo certo que, como já referido, o registo definitivo constitui presunção da existência do direito (tal como consta do respectivo assento), constitui igualmente presunção de que o mesmo pertence ao titular inscrito (nos precisos termos definidos pelo registo). Nessa medida, o titular registral nem necessita de alegar e provar os factos demonstrativos da existência, validade e eficácia do direito registado, nem factos pertinentes à qualificação, conteúdo e amplitude do referido direito, assim como que esse direito lhe pertence – artigo 350.º, n.º 1 do CCivil.
Sucede que, mesmo nos casos em que existe a presunção do registo, pode tal presunção ser afastada mediante prova em contrário – artigo 350.º, n.º 2 do CCivil.
No caso, considerou a 1.ª instância que a transmissão de quotas ao requerente P… mais não passou de um negócio simulado, porquanto A… nunca quis alienar e aquele nunca quis adquirir as quotas da sociedade.
Afirma-se na decisão recorrida existir “divergência entre as vontades e as declarações (factos 23 e 24)”, bem como que “Os declarantes não pretendiam transmitir as quotas da sociedade, a vontade declarada, mas, nada mais, proteger o património do declarado transmitente, enganando e defraudando os seus credores.
Argumenta-se na mesma decisão que as procurações outorgadas pelos recorrentes “configuram princípio de prova por escrito do conluio simulatório, convenção contrária à declarada alienação de quotas.
Como se mostra assente, a invocada transmissão de quotas de A… para o filho P… ocorreu em 27/01/2014, tendo sido igualmente nesta data que o segundo, por instrumento notarial, constituiu o pai como “seu bastante procurador”, conferindo-lhe poderes para, entre outras coisas, “ceder as quotas de ele mandante é titular (…), nas condições e preços que achar convenientes, receber e dar quitações, outorgar e assinar as competentes escrituras, contratos e contratos promessa, intervir ilimitadamente nas assembleias gerais da referida sociedade, exercendo todos os direitos societários que enquanto sócio a lei lhe atribui, designadamente, apresentando propostas e votando deliberações, requerer nas Conservatórias de Registo Comercial quaisquer actos de registo (…), representá-lo junto de quaisquer repartições públicas, nomeadamente, Serviços de Finanças, para quaisquer efeitos emergentes deste contrato. (…)”.
Em tal procuração fez-se, ainda, constar ser a mesma “também outorgada para o mandatário representante celebrar negócio consigo mesmo, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º 1 do artigo 261.º do Código Civil.”, bem como ser “conferida no interesse do próprio mandatário, pelo que não pode ser revogada sem o seu acordo, salvo ocorrendo justa causa, nos termos do n.º 3 do artigo 265.º do Código Civil (…)” – cfr. factos n.º 10 a 13.[22]
Estar-se-á perante um acordo simulatório, como defendido pela 1.ª instância?
Dispõe o artigo 240.º do CCivil: “1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. 2. O negócio simulado é nulo.[23]
Sendo a simulação um vício atinente à declaração negocial, para que se possa concluir pela sua existência, exige-se o preenchimento de três requisitos cumulativos: a) divergência entre a vontade real e a vontade declarada (entre o “querido” e o “declarado”, sendo que o declarante assim procede de forma livre, consciente e intencional); b) acordo simulatório entre declarante e declaratário (pactum simulationis – as partes, em conluio, declaram, de forma intencional e concertada, ter realizado um negócio que, na realidade, não realizaram, nem queriam realizar); c) com o intuito de enganar terceiros (animus dicepandi).
Em face da factualidade que resultou indiciariamente apurada (já que, estando em causa um procedimento cautelar, é disso que se trata), todos os requisitos acabados de elencar mostram-se verificados – cfr. factos n.º 23, 24 e 26 -, pelo que se está perante uma situação de simulação absoluta[24], a qual acarreta a nulidade da transmissão de quotas em causa. Sendo esta nulidade é invocável a todo o tempo e por qualquer interessado, assim como podendo ser declarada oficiosamente – artigo 286.º do CCivil.
Consequentemente, em face dessa mesma factualidade, à qual esta Relação está vinculada, também ao recorrente não será de reconhecer a qualidade de sócio, porquanto a presunção de que o mesmo beneficia se mostra ilidida.
Sendo certo que o registo aqui em causa constitui um documento autêntico (cfr. artigos 363.º e 369.º, ambos do CCivil), nada obstava a que a presunção do mesmo resultante se considerasse ilidida nos moldes defendidos pela decisão recorrida.
Para além do já referido anteriormente aquando da apreciação da fundamentação de facto da decisão recorrida, veja-se, ainda, em reforço, o defendido pelo acórdão do STJ de 22/05/2012[25], segundo o qual, “(…) mesmo em documentos autênticos com força probatória plena, é admissível prova testemunhal para precisar o sentido e o contexto da declaração negocial – nº 3 do art. 393º do Código Civil. Também, embora seja proibida a produção de prova testemunhal quando a simulação é invocada pelos próprios simuladores, se admite, em interpretação restritiva do art. 394º do Código Civil, que possa ser produzida prova testemunhal desde que o acordo simulatório contenha um mínimo de prova, um começo de prova de natureza documental. A prova do pacto simulatório não pode ser realizada por testemunhas quando o negócio simulado for celebrado por documento autêntico, ou por algum dos documentos particulares mencionados nos arts. 373.° e 379.° e aquele pacto seja invocado pelos simuladores - art. 394°, nº2, do Código Civil. Este preceito deve ser interpretado restritivamente (…)
Em síntese, como resulta do acabado de expor, ter-se-á que subscrever o entendimento defendido pelo tribunal a quo, no sentido de não gozarem os requerentes de legitimidade ad substantium para o procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, por não possuírem a qualidade de sócios da requerida.
Termos em que terá o presente recurso de improceder. 
***
IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes da Secção do Comércio deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.

Lisboa, 06 de Junho de 2023
Renata Linhares de Castro
Nuno Magalhães Teixeira
Rosário Gonçalves
_______________________________________________________
[1] Cfr. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, Coimbra Editora, 1987, reimpressão, págs. 566 e ss. e ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, 2ª. edição, revista e actualizada, págs. 660 e ss.
[2] Podendo, ainda, o recorrente requerer à Relação a renovação da produção de certos meios de prova ou mesmo a produção de novos meios probatórios – artigo 662.º, n.º 2, als. a) e b) do CPC.
[3] In Recursos em Processo Civil, Almedina, 6.ª edição actualizada, 2020, págs. 196-198.
[4] Obra citada (Recursos …), págs. 199-200.
[5] Cfr., nesta parte, o defendido pelo acórdão do STJ de 19/02/2015 (Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator Tomé Gomes), no qual se afirmou: “(…) enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.”, in www.dgsi.pt, onde poderão ser consultados todos os acórdão citados.
[6] Cfr. acórdãos do STJ de 20/12/2017 (Proc. n.º 299/13.2TTVRL.G1.S2, relator Ribeiro Cardoso) e de 05/09/2018 (Proc. n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2, relator Gonçalves Rocha).
[7] Como decorre do acórdão da Relação do Porto de 16/05/2005 (Proc. n.º 0550879, relator Cunha Barbosa) – o qual, apesar de ter sido proferido ao abrigo da anterior legislação, mantém plena actualidade -, o ónus imposto ao recorrente na al. b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC não se satisfaz com a simples afirmação de que a decisão devia ser diversa, antes exige que “se afirme e especifique qual a resposta que havia de ser dada em concreto a cada um dos diversos pontos da matéria de facto controvertida e impugnados, pois só desta forma se coloca ao tribunal de recurso uma concreta e objectiva questão para apreciar”.
[8] Obra citada (Recursos …), pág. 333.
[9] Proc. n.º 2124/17.6T8VCT.G1.S1, relatora Graça Amaral.
[10] Dos quais se realça - quanto à testemunha Dalila … (funcionária da Requerida desde 2004, exercendo funções de secretariado): “Desde 2013, sempre foi seu “patrão” A…. Os filhos de A…, Requerentes, iam à Escola esporadicamente, “fazer uma visita”. (…) Mais recentemente, desde o AVC do pai, iam com mais frequência.”; quanto à testemunha Fernando … (funcionário da Requerida até Maio de 2022): “Nunca viu o filho na Escola de Condução … (…) Com o filho, “nunca houve negócio nenhum”, não tinha meios para isso. Havia questões pendentes com os sócios de outra sociedade, e por essa razão o pai pôs os seus bens em nome do filho. // O filho exerce funções de bombeiro, agora é instrutor.”
[11] Do que se destaca – C..: “Trabalhou intermitentemente na secretaria da Escola desde outubro/novembro de 2017, por breves períodos. // Após, comprou metade da quota ao irmão. Em função da compra, emprestou, entregou, € 45 000,00 ao pai, poupanças (de que era contitular a sua avó). O dinheiro tinha por destino a compra do Alvará à segunda testemunha, a reconstrução de casa, e a Escola de Condução X …. Depois, subscreve procuração irrevogável.”; P …: “Subscreveu a procuração irrevogável para que o pai pudesse gerir a sociedade sem limites, ao tempo confiava cegamente no pai. Confiou-lhe dinheiro seu, doado pela avó, avô, mãe, € 40 000,00. “Abriu a Escola com o nosso dinheiro”. A irmã também “entrou com dinheiro dela”, nada lhe pagou pela cessão da quota.“
[12] Cfr., quanto à interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 394.º, n.º 2 do CCivil: VAZ SERRA, Revista da Legislação e Jurisprudência, ano 107.º, págs. 309 e ss., MOTA PINTO, Arguição da simulação pelos simuladores, Prova testemunhal, Parecer, CJ, 1985-III, págs. 9 e ss. e PIRES DE SOUSA, Direito Probatório Material, 2020, reimpressão, pág. 212 e ss., bem como, entre outros,  acórdãos do STJ de 09/07/2014 (Proc. n.º 5944/07.6TBVNG.P1.S1, relator Pinto de Almeida), da Relação de Guimarães de 21/11/2019 (Proc. n.º 503/18.0T8GMR.G1, relator Jorge Teixeira), da Relação de Évora de 08/10/2020 (Proc. n.º 2676/16.8T8ENT.E1, relatora Elisabete Valente) e da Relação de Coimbra de 06/06/2017 (Proc. n.º 472/14.6T8LRA.C1, relatora Maria João Areias).
[13] Proc. n.º 28924/17.1YIPRT.P1, relator Carlos Gil.
[14] Cfr. ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, 2020, 2.ª edição, reedição, pág. 438.
[15] Como defendem os autores a que se aludiu na nota anterior, “Constituem meios jurisdicionalizados, expeditos e eficazes que permitem assegurar os resultados práticos da ação, evitar prejuízos graves ou antecipar a realização do direito (instrumentalidade hipotética), conciliando de forma razoável os interesses da celeridade e da segurança jurídica”, in obra citada, pág. 438.
[16] Segundo COUTINHO DE ABREU, “O dano patrimonial ou não, de sócio(s) e/ou da sociedade, é apreciável quando significativo (não insignificante). Não tem de ser julgado irreparável para que a suspensão seja decretada. Mas, porque o dano apreciável aqui relevante é o que pode resultar da demora do processo principal, há-de ser dificilmente reparável sem a suspensão. Se a tutela conferida pela acção principal (procedente) é suficiente para a reparação dos danos, não há razões para decretar a suspensão de deliberação”, in Código das Sociedades Comerciais Em Comentário, Coordenação de Jorge M. Coutinho de Abreu, Vol. I, 2010, Coimbra Almedina, págs. 698-699.   
[17] A legitimidade substancial não se confunde com a legitimidade processual (a que alude o artigo 30.º do CPC), sendo que esta não constitui uma qualidade pessoal das partes, referente aos processos, mas uma posição delas em face do processo concreto - o interesse de cada uma delas em determinado processo (cfr. ANTUNES VARELA, Revista da Legislação e Jurisprudência, ano 114.º, pág. 139). Já a primeira incide sobre a relação existente entre o sujeito e o objecto do acto jurídico – será legítimo o sujeito que é o efectivo titular do interesse em causa no acto jurídico.
[18] Nos termos do artigo 55.º, n.º 1 do CRComercial, o registo por transcrição compreende a matrícula das entidades sujeitas a registo, as inscrições, os averbamentos e as anotações de factos a elas respeitantes.
[19] O artigo 47.º, sob a epígrafe princípio da legalidade, dispõe: “A viabilidade do pedido de registo a efectuar por transcrição deve ser apreciada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos nele contidos.”
[20] Segundo o n.º 2 do artigo 55.º, “(…) o registo por depósito abrange os documentos arquivados e a respectiva menção na ficha de registo”, acrescentando o seu n.º 3 que o registo por depósito dos factos relativos a participações sociais e respectivos titulares “pode ser efectuado de modo diverso do previsto no número anterior, nos termos a definir por portaria do Ministério da Justiça.
[21] A impossibilidade de recusa do registo por depósito decorre, aliás, da leitura do artigo 48.º do CRComercial, a contrario.
[22] Já a procuração outorgada pela recorrente C… em favor do pai A… data de 28/09/2021 (nos moldes descritos no facto n.º 15), tendo o segundo sido notificado da sua revogação em 12/04/2022 (nos moldes constantes dos factos 18 e 19), não obstante o descrito nos factos 20 e 21.
[23] Este preceito versa sobre os casos de simulação absoluta (que ocorre quando as partes declaram a vontade de celebrar um negócio jurídico mas, na realidade, não pretendem celebrar qualquer negócio, seja o declarado, seja qualquer outro). Já para os casos de simulação relativa rege o artigo seguinte (situações nas quais, sob o negócio simulado, existe um outro que as partes quiseram efectivamente realizar - o negócio dissimulado).
[24] Conclusão que sai reforçada pelo vertido nos factos 13, 22 e 27 e 28, dos quais resulta que o recorrente P… sempre terá estado alheado dos destinos da requerida (antes se tendo dedicado a outras ocupações de natureza totalmente distinta), apenas tendo assumido conduta diversa a partir de Março de 2022 (o mesmo sucedendo relativamente a C… – cfr. factos 15, 25, 26 e 29)
Como sumariou o STJ, no seu acórdão de 19/01/2017 (Proc. n.º 841/12.6TBMGR.C1.S1, relator António Joaquim Piçarra), “(…)VIII – É muito rara e difícil a prova directa da simulação negocial, pois «aqueles que efectuam contratos simulados ocultam os seus propósitos e intenções, não manifestando publicamente a sua vontade de simular, antes se esforçando em tornar verosímil o que há de aparente e fictício no acto que praticam». IX - Por essa razão, «há quase sempre que recorrer para a demonstrar a um conjunto de factos conhecidos, tais como as condições pessoais ou patrimoniais dos outorgantes, as relações em que eles se encontram entre si, os factos que precedem a realização do acto jurídico, as circunstâncias em que foi celebrado, o seu próprio conteúdo e finalmente os factos posteriores à celebração, mas com eles relacionados».
Veja-se, igualmente, o defendido no acórdão da Relação do Porto de 23/03/2020 (Proc. n.º 2620/17.5T8VFR.P1, relator Pedro Damião e Cunha), em cujo sumário se escreveu: “I - Os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (v.g. a determinação da vontade real do declarante, de uma certa intenção, o conhecimento de dadas circunstâncias) não são, em regra, passíveis de prova directa, mas sim de prova indirecta, a realizar nomeadamente com recurso a presunções judiciais. II - Sendo as presunções judicias ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, de acordo com as regras da experiência comum, só serão validamente contraditadas se o impugnante demonstrar a não prova do facto base da presunção, ou o carácter ilógico do facto presumido (isto é, o não se mostrar o mesmo sufragado pelas ditas regras da experiência).
III - Sendo necessário, em matéria de simulação, apurar a vontade real dos simuladores ao outorgarem o negócio impugnado, e sendo rara a prova directa dessa intenção, deverá o juiz socorrer-se dos comuns e consolidados indícios/presunções aqui vigentes. IV - Entre esses indícios/presunções contam-se, por exemplo, o apuramento da causa simulandi (o motivo da simulação), o indício affectio (escolhendo o contraente como parceiro negocial uma pessoa da sua confiança, v. g. familiares), e o indício retentio possessionis (continuando o contraente a exercer poderes de facto sobre o objecto do contrato, do mesmo modo como os exercia antes); mas podem os mesmos ser infirmados (não confirmados) pelos contornos apurados do caso concreto (nomeadamente, por a simulação presumida não se mostrar naquele contexto sufragada pelas regras da experiência e ser, por isso, ilógica). (…)”

[25] Proc. n.º 82/04-6TCFUN-A.L1.S2, relator Fonseca Ramos.