Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2228/08.6TVLSB.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: ANOMALIA PSÍQUICA
INABILITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/24/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1.Sendo impugnado o julgamento de facto feito pelo Tribunal a quo, o cumprimento do disposto no art. 640º, nº1, alínea a) do novo C.P.C. (art. 685º-B, nº1, alínea a) na anterior redacção) passa pela indicação dos termos em que o recorrente pretende seja alterada a decisão sobre a matéria de facto por parte desta Relação, nos vários sentidos possíveis (eliminação, aditamento e modificação de texto);                                                  

2. O legislador civil não definiu o conceito de anomalia psíquica, sendo que também não encontramos noutros diplomas elementos que auxiliem nessa delimitação. No entanto, é entendimento unânime na doutrina e jurisprudência que a mesma abrange perturbações do intelecto, da vontade e da afectividade;

3. Não tendo o requerido a sua capacidade intelectual e cognitiva diminuída – denotando deficiência na formação e manifestação da vontade –, não tem cabimento a imposição de limitações tão gravosas como as que decorrem da instituição da interdição, quer à sua capacidade de gozo quer de exercício, afigurando-se-nos suficiente ou bastante para a defesa dos interesses do requerido – como se sabe, esse é o principal valor jurídico protegido –, decretar a inabilitação, que não conduz a uma incapacidade geral, antes se reporta apenas a determinados actos (arts. 153º e 154º do Cód. Civil).

(Sumário da Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa  

1. RELATÓRIO

MV, residente na (…), intentou a presente acção, que segue a forma de processo especial, contra CV, residente na (…), pedindo a interdição do requerido.

Para fundamentar a sua pretensão invoca, em síntese, que:

O requerente é irmão do requerido.

O requerido é viúvo, sem ascendentes nem descendentes.

Desde a morte da sua mulher o requerido começou a desleixar quer o relacionamento familiar quer a sua higiene, não cortando o cabelo há anos, não mudando de roupa independentemente da estação do ano, cheirando mal por isso e deixou de cuidar dos seus assuntos pessoais, nomeadamente o pagamento de impostos e condomínio, chegando ao ponto de haver penhoras cuja quantia exequenda o requerente já teve de satisfazer para evitar a venda em execução fiscal da casa do requerido, pese embora o requerido não tenha quaisquer dificuldades económicas, tendo uma reforma de valor mensal substancial.

O requerido recusa-se a abrir a porta da sua residência a quem quer que seja.

Tentada a citação na pessoa do requerido não foi a mesma possível por não ser o mesmo encontrado.

Nomeada curadora provisória ao requerido e citado o mesmo na pessoa dessa curadora, não foi apresentada contestação.

Citado o Mº Pº, em representação do requerido, não foi apresentada contestação.

Proferiu-se decisão provisória de interdição do requerido.

Procedeu-se ao interrogatório judicial do requerido e ao exame médico – fls. 334 a 337.

Elaborado despacho saneador, foi ordenada a realização de segundo exame médico ao requerido – fls. 385 a 388 dos autos.

Procedeu-se a julgamento e proferiu-se despacho fixando a matéria assente, objecto de reclamação, parcialmente deferida.

Proferiu-se sentença, da qual o M.P. interpôs apelação, julgada parcialmente procedente por esta Relação que, por acórdão de 09-04-2013 determinou a anulação parcial do julgamento conforme fls. 657 do processo.

Remetido o processo à primeira instância em 22 de Maio de 2013, ultimou-se aí o julgamento, após o que foi proferida decisão que concluiu nos seguintes termos:

“Em consequência do anteriormente exposto decide-se:

A)

Julgar procedente, por provada, a presente acção e, por via disso, declarar o requerido CV interdito, por situação equiparável à anomalia psíquica.

B)

Fixar o início da incapacidade do requerido em 1.7.2008.

C)

Nomear tutor ao requerido o requerente, MV e, para integrar o conselho de família, nomear ainda R e A.

D)

Depreque o juramento do tutor e dos demais membros do conselho de família, considerando junta a relação de bens.

E)

Custas pelo requerido.

Valor da causa - 30.000,01 Euros ( artºs. 296, 303 e 306 do C. P. Civil, na redacção da Lei nº 41/2013, de 26/6 ).

*

Registe e notifique.

D. n. (comunicações à C. R. Civil)”.

Não se conformando o Ministério Público apelou formulando, em síntese, as seguintes conclusões:

“(…)”

O requerente apresentou contra alegações.

Cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância deu por assente que:

1 - Por escritura pública lavrada no dia 1 de Setembro de 1998 no Cartório Notarial de (…) declararam que no dia 24 de Janeiro de 1987 faleceu, na freguesia e concelho de (…), onde residia e de onde era natural, A, no estado de viúva de JV, tendo a mesma falecido sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade e deixado como herdeiros os seus filhos (…)(por documento constante de fls. 10 a 12 dos autos).

2 - No acto da escritura referida em 1 - foi feito constar que eram arquivadas uma fotocópia do assento de óbito da falecida A e duas certidões de nascimento dos filhos (por documento de fls. 10 a 12 dos autos).

3 - CV nasceu no dia 14 de Setembro de 1936, na freguesia e concelho de (…) e foi registado como filho de (…) (por documento constante de fls. 13 dos autos).

4 - MV faleceu, no estado de casada com CV, no dia 18 de Setembro de 2003 (por fotocópia da certidão de óbito constante de fls. 14 dos autos).

5 - O requerido não tem filhos.

6 - MV era médica e teve, em momento não concretamente apurado, um AVC, tendo vindo, na sequência desse facto a ficar, durante vários meses, completamente imobilizada, dependendo de terceira pessoa para todo e qualquer acto da sua vida diária.

7 - Na sequência do referido em 6. e uma vez que o requerido ainda trabalhava, MV foi para casa do requerente, aí tendo ficado durante cerca de três meses, sendo acompanhada e tratada pela mulher do requerente e pelas filhas do mesmo.

8 - Após o período de três meses referido em 7. MV foi internada num lar, onde ficou até ao momento do óbito referido em 4.

9 - O requerido era engenheiro, trabalhando para a CP – Caminhos de Ferro Portugueses.

10 - O requerido e sua mulher, MV, ora falecida, viviam em Lisboa,(…).

11 - Durante a doença da mulher do requerido este deslocava-se todos os fins-de-semana a V.. para ver a mulher e, terminado o fim-de-semana, regressava a Lisboa.

12 - Após a morte de MV o requerido começou a afastar-se do requerente e família deste.

13 - A partir de momento não concretamente apurado o requerido deixou de atender o telefone.

14 - O requerente soube, através de amigos e vizinhos do requerido, que o mesmo usava sempre a mesma roupa, não cortava o cabelo e cheirava mal.

15 - O requerido despediu, algum tempo após a morte da sua mulher, a empregada doméstica que para o mesmo trabalhava.

16 - Por falta de pagamento, pelo requerido, foi instaurada contra o mesmo e contra MV uma acção executiva comum para pagamento de dívida civil, acção essa em que era exequente o condomínio do (…), execução essa que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de (…), sendo a quantia exequenda de 1.542,94 Euros.

17 - Por carta datada de 10 de Outubro de 2008 dirigida à mulher do requerente o administrador do condomínio do prédio sito na (…)em L.., comunicou à mesma que o requerido usava a mesma roupa há meses, cheirava mal, não cortava o cabelo, não recebia nem abria a porta a ninguém, não pagava o condomínio, não respondia às cartas do condomínio e que, por essa razão, tinham receio de que ele pudesse deixar o gás ou a água abertos e ou que pudesse haver um curto-circuito e ele estar sozinho e fechado em casa.

18 - Na carta referida em 17 a administração do condomínio do prédio em causa referia ainda que a mesma administração deveria ser exercida no ano de 2009 pelo (…) mas que dado o estado do requerido seria novamente o remetente a fazer tal administração.

19 - O requerido reformou-se em momento não concretamente apurado mas posterior à morte de sua mulher, MV.

20 - O requerido aufere, de reforma, a pensão mensal de 2.692,47 Euros, com retenção na fonte da quantia de 538,49 Euros (por documento constante de fls. 139 dos autos).

21 - O requerido, a partir de momento não concretamente apurado mas posterior à morte da mulher não tirava, durante muito tempo, o correio que (lhe) era dirigido e que estava na caixa do correio do prédio sito na (…).

22 - O requerido acumulava, em casa e em cima da mesa da sala, a correspondência, por abrir e, na cozinha, embalagens de comida trazida de fora.

23 - Após o decurso de algum tempo sobre a morte da sua mulher o requerido manteve contacto com um primo, VR, sendo a única pessoa a quem o requerido abriu a porta da sua residência durante algum tempo.

24 - VR auxiliou o requerido durante algum tempo, tendo feito alguns pagamentos do mesmo e tendo-o ajudado a tratar da reforma, tendo o requerido deixado de receber, por não ter tratado de tal assunto, a pensão a que teria direito durante pelo menos nove meses.

25 - VR tentou que o requerido fizesse a habilitação de herdeiros na sequência da morte de sua mulher, não tendo o requerido chegado a fazê-lo por não ter renovado o respectivo Bilhete de Identidade, para alteração do estado civil, não tendo chegado a assinar o papel para tal renovação.

26 - O requerido chegou a dizer a VR que não queria viver.

27 - Na altura do Natal de 2008 VR apercebeu-se de que o requerido tinha um sapato roto e que dele saía um líquido escuro, que cheirava mal, apercebendo-se que se tratava de um pé infectado, tendo VR dito ao requerido que tinha de ir ao médico mas o requerido não o quis fazer.

28 - Na sequência do aludido em 27 VR falou com um amigo comum do mesmo e do requerido, AC, tendo ambos combinado que no dia seguinte, às 6.30 horas da manhã, estariam à porta do prédio do requerido para, quando ele saísse para ir ao café, o levarem ao hospital.

29 - Assim e na sequência do combinado, VR e AC conseguiram, com o apoio da polícia, chamada pela cunhada do requerido para tal, levar o requerido ao Hospital de Santa Maria, tendo o mesmo sido assistido, no dia 31.12.2008, no Serviço de Urgência desse hospital por edema da perna esquerda até ao joelho e cheiro fétido, referindo-se que dormia calçado, apresentando-se consciente e orientado.

30 - Na sequência do referido em 29 o requerido teve alta hospitalar em 2 de Janeiro de 2009.

31 - No momento da alta referida em 30 - a família do requerido levou-o para Vila Nova de Gaia, de ambulância, tendo sido internado num lar perto da residência do requerente, denominado “Lar …”, onde ainda hoje permanece e, pelo menos inicialmente, usou fraldas.

32 - Durante o período de internamento hospitalar referido em 29 a 30 o requerido tinha controle dos esfíncteres.

33 - O requerido não gosta de estar no lar.

34 - O requerido não tem condições para viver sozinho sem apoio e gostaria de viver numa casa perto da do requerente.

35 - O requerente tem 85 anos de idade.

36 - A mulher do requerente, RV, (…), sofre de Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica, estando boa parte do dia ligada a uma máquina de oxigénio.

37 - O requerente tem filhas, casadas e que trabalham.

38 - As filhas do requerente têm filhos menores.

39 - O requerido apresentava-se, à data dos exames médicos periciais efectuados nos autos, orientado no espaço e no tempo, apresentando-se limpo e colaborante.

40 - Em 21 de Fevereiro de 2009 o requerido foi assistido na urgência do Centro Hospitalar do Porto por febre recorrente e prostração, apresentando-se colaborante e orientado, com pé diabético e aparentando quadro depressivo.

41 - O requerido sofre de diabetes.

42 - O requerido apresentava-se, em Junho de 2010, orientado no tempo e no espaço, com discurso articulado, lógico e coerente, com um Q. I. dentro dos parâmetros da normalidade e dentro da média, revelando deterioração do funcionamento intelectual, com moderada deterioração da performance cognitiva e não apresentava deficit cognitivo.

À mesma data, o requerido não apresentava deterioração da memória imediata ou de evocação, manifestando capacidade para aprender nova informação e recordar uma previamente aprendida, apresentando comprometimento moderado da memória a curto prazo e a sua capacidade de execução ( que envolve a capacidade do pensamento abstracto, planeamento, iniciação e sequenciação de uma tarefa ) mostrava-se intacta, apresentando depressão moderada.

43 - À data referida em 42 - o requerido encontrava-se dotado de juízo crítico, com um nível de inteligência situado dentro da média para a sua idade, apresentando quadro depressivo.

44 - Em Setembro de 2010 o requerido apresentava-se orientado, limpo e cuidado, com discurso lógico e coerente, humor subdepressivo e discreta ansiedade sintónica à situação, não evidenciando défice cognitivo.

45 - O requerido não sabia e não sabe tratar dos assuntos domésticos.

46 - O requerido deixou de ter interesse pelas actividades da sua vida diária e pelas suas obrigações financeiras.

47 - O requerido não sofre de debilidade mental ou física.

48 - A depressão é, em regra, tratável com antidepressivos.

49 - Em Junho de 2011 o requerido apresentava um quociente intelectual dentro da média, sem revelar indicadores de disfunção cognitiva, à excepção de ligeira deterioração num dos instrumentos utilizados.

À mesma data o requerido apresentava tonalidade depressiva no seu discurso, sempre associada à temática “ lar “, mantendo um quadro depressivo actualizado moderado, sentindo tristeza e desânimo por se encontrar integrado num lar.

50 - O aspecto do requerido antes de ser assistido no Hospital de Santa Maria, em Dezembro de 2008 e do seu internamento no lar onde se encontra era o das fotos de fls. 290 a 293 dos autos.

51 - À data do interrogatório judicial o requerido sabia onde se encontrava e a data correcta, mais sabendo a sua morada em Lisboa.

52 - O requerido teve um quadro depressivo grave, que pôs em causa a sua saúde, quadro não ultrapassado totalmente, com melhorias mas com sintomatologia depressiva.

53 - No lar onde se encontra institucionalizado o requerido apenas toma banho por tal ser uma das regras da instituição e não toma o banho sozinho, sendo levado por funcionários.

54 - No lar o requerido mantém-se, durante todo o dia, no seu quarto, ali tomando inclusive as suas refeições e permanece de pijama e robe de flanela todo o dia, independentemente do tempo atmosférico.

55 - O requerido não participa em qualquer das actividades organizadas pelo lar para os seus ocupantes.

56 - No lar onde o requerido se encontra a viver metade ou mais dos utentes-residentes sofrem de demência, sendo a idade média dos utentes de 72/73 anos e com baixas habilitações literárias.

57 - No lar onde o requerido se encontra a viver o mesmo ocupa um quarto que partilha com outro utente, não demente e que sofre de problemas cardíacos, utente esse que se ausenta de manhã da instituição e apenas regressa à noite.

58 - À noite o requerido sai do seu quarto no lar e passeia, sozinho, pela instituição.

59 - O requerido toma, no lar, actualmente, Metformina 500 mg ( medicamento para a diabetes ) e toma ainda Dumyrox 100 mg ( um antidepressivo ), medicamento este que toma há pelo menos ano e meio, tendo ainda tomado Sertralina 100 mg ( 1 comprimido por dia ) e Risperodona 1 mg ( 2 por dia ), tendo este medicamento sido retirado pelo médico do lar ao requerido por lhe provocar sonolência.

60 - Os medicamentos aludidos em 58 - foram receitados ao requerido por um médico psiquiatra chamado ao mesmo à instituição pelo médico assistente do lar onde o requerido se encontra, HC.

61 - DM, médico psiquiatra, atendeu o requerido por duas vezes, no ano de 2010.

62 - O médico aludido em 61 - diagnosticou ao requerido, no momento aludido em 61 -, síndrome depressivo grave e arrastado, associado a significativa deterioração física, evidenciada, prejudicando o desempenho das actividades do dia-a-dia.

63 - O médico aludido em 61 - recomendou tratamento medicamentoso ao requerido, que o não quis fazer.

64 - O requerido ainda hoje apresenta perda de tecido em três dedos do pé esquerdo devido ao aludido em 27 - a 29 -, sendo visível o osso, por necrose.

65 - O requerido não demonstra qualquer interesse em vir a Lisboa, à sua residência ou em qualquer assunto da sua vida anterior à sua entrada no lar.

66 - O requerido fala com carinho da mulher, falecida.

67 - Em 15 de Abril de 2010 foi lavrada escritura de habilitação de herdeiros de MV.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635º e 639º do novo C.P.C., diploma a que aludiremos sempre que não se fizer menção de origem [ [1] ] – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3.

No caso, impõe-se apreciar:

- da nulidade da sentença por falta de fundamentação da matéria de facto (art. 615º, nº1, alínea b);

- da nulidade da sentença por ininteligibilidade (obscuridade)(art. 615º, nº1, alínea c);

- a impugnação do julgamento de facto e os ónus a cargo do apelante: a “impossibilidade de cumprimento” das especificações a que alude o art. 640º;

- dos pressupostos para a interdição;

- da subsunção do caso em apreço à hipótese de anomalia psíquica: a violação da Constituição da República Portuguesa(CRP);

- da violação do requisito da actualidade ínsito no art. 138º, nº1 do Cód. Civil;

- da inabilitação versus interdição.

2. O apelante sustenta que a sentença da primeira instância incorre em nulidade, por falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, invocando o disposto no art. 615º, nº1, alínea b).

Invoca, basicamente, que a decisão está “viciada” “caso não sejam observadas as regras consagradas no artigo 653º do C.P.C., mormente quando seja descurado o dever de analisar criticamente as provas produzidas e de especificar os fundamentos decisivos para a determinação da convicção do tribunal”, tendo as partes “direito a que lhe sejam comunicados os fundamentos que serviram de base à decisão da matéria de facto” [ [2]  ].

Vejamos.

Na fundamentação da sentença o juiz deve indicar os factos que julga provados, “analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convição”, tomando “ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência” – art. 607º, nº4.

Está em causa, fundamentalmente, salvaguardar o dever de fundamentar as decisões, não bastando a simples adesão aos fundamentos alegados pelas partes – art. 154º –, em consonância com o que dispõe o art. 205.º, n.º 1, da CRP e em ordem a que a decisão seja perceptível aos interessados  a quem a mesma é dirigida e aos cidadãos em geral, permitindo também, de forma mais eficiente, o controlo da sua legalidade.

No entanto, como é pacificamente entendido, apenas a falta absoluta de fundamentação integra o referido vício, e não já a fundamentação deficiente, medíocre, não convincente ou até, como refere o apelante, uma “reduzida fundamentação”.

No caso em apreço, afigura-se-nos que não ocorre o vício aludido. A Meritíssima Juiz fundamentou de forma suficiente o julgamento de facto, nomeadamente referenciando os concretos pontos dos relatórios periciais a que atendeu e aludindo ao depoimento de determinadas testemunhas, com indicação dos motivos pelos quais atendia a esses depoimentos, em suma, explicitando o seu percurso valorativo (cfr. fls. 816-v e 817). Acrescente-se que, para esse efeito e no que à prova testemunhal concerne, não é necessário, ao contrário do que parece entender o apelante, que o tribunal faça “alusão ao conteúdo do depoimento das várias testemunhas inquiridas em julgamento”. Efectivamente, a específica indicação do sentido do depoimento pode relevar para exemplificar ou concretizar uma ideia no discurso mas não mais do que isso, e a actividade que se exige é fundamentalmente analítica e não enunciativa.

Em suma, não ocorre omissão de fundamentação do julgamento de facto, considerando-se que o tribunal de primeira instância justificou suficientemente a formação da sua convicção, de sorte que a decisão proferida não surge como arbitrária, discricionária ou descontextualizada, em face da prova produzida.

Conclui-se que a sentença não enferma da nulidade invocada.

3. Também não pode considerar-se que a sentença padeça de obscuridade que a torne ininteligível e por isso nula – art. 615º, nº1, al) c) do C.P.C..

O art. 669º, nº1, al) a do C.P.C., na redacção anterior à Lei 41/2013 de 26/06, permitia à parte requerer ao tribunal que proferiu a sentença “[o] esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade da decisão ou dos seus fundamentos”, sendo aplicável à 2ª instância nos termos do art. 716º.

Tratava-se, pois, de permitir a aclaração da decisão ou dos fundamentos respectivos com vista, exclusivamente, a esclarecer alguma passagem de texto cujo sentido não se alcance (obscuridade) ou que permita interpretações diferentes (ambiguidade).

Com o novo C.P.C. eliminou-se essa possibilidade mas o legislador ampliou o leque das nulidades de sentença, consagrando a nulidade da decisão quando “ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” – alínea c) do referido preceito. Ou seja, o vício em causa é a ininteligibilidade da decisão, sendo o motivo gerador a obscuridade e/ou a ambiguidade.

Lendo a decisão entendemos que não ocorre qualquer obscuridade e aliás nem sequer o apelante indica qual o texto – ou parte dele – cujo sentido não alcança. Em bom rigor, a crítica do apelante é mais vasta e incide afinal sobre a globalidade da fundamentação expressa pela Meritíssima Juiz, sem que se perceba, acrescente-se, em que concreto ponto da matéria de facto diverge o apelante, o que nos conduz a outra questão a analisar. Acrescente-se que das alegações de recurso resulta igualmente que o Ministério Público bem alcançou o que a Meritíssima Juiz escreveu, acontece é que discorda do juízo valorativo exposto na sentença.

Conclui-se que a sentença não enferma da nulidade invocada.

4. Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas –art. 640º, nº 1.

Salienta-se que as alíneas a) e b) tem correspondência com o que anteriormente dispunha o art. 685º-B, nº1 da lei processual civil, não nos parecendo que o aditamento constante da actual alínea c) introduza qualquer novidade porquanto essa exigência já se continha implicitamente na formulação do juízo de impugnação.  

No caso, é patente que o Ministério Público/apelante não deu cumprimento ao disposto no referido preceito porquanto não cuidou de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, indicando, com precisão:

- quais os factos que o tribunal deu, indevidamente, como provados, e cuja eliminação pretende;

- quais os factos que o tribunal devia ter dado como provados e erradamente omitiu, com vista ao seu aditamento e consequente ampliação (da factualidade assente);

- quais os factos que, dados como assentes pelo tribunal, o deviam ser em termos diferentes, ou seja, qual o conteúdo de texto que pretende ver modificado.

O que passa pela concreta individualização/descrição desses factos, reportados à numeração sob a qual são identificados na sentença, em ordem a que se alcance em que termos o recorrente pretende a alteração da decisão sobre a matéria de facto por parte desta Relação, nos vários sentidos possíveis (eliminação, aditamento e modificação de texto).

Particularizando, o apelante alude ao depoimento das duas testemunhas inquiridas, chegando a enunciar passagens dos depoimentos, sem que se alcance das alegações de recurso quais os específicos pontos da matéria de facto que devem ser modificados, nem o sentido proposto para a alteração.

Como se referiu no Ac. STJ de 13/07/2006, “com as normas atinentes à interposição de recurso e apresentação de alegações, pretendeu o legislador criar um conjunto de regras de natureza prática, a observar pelos recorrentes, que permitam ao Tribunal “ad quem” apreender, de forma clara, as razões fácticas e jurídicas que corporizam a dissidência relativamente ao julgado, de modo a que o Tribunal as aprecie com rigor: nem mais nem menos, do que é pedido, com ressalva das matérias oficiosamente cognoscíveis.

A exigência da apresentação de “conclusões” insere-se neste mesmo propósito mas desta feita, tendo especificamente em vista a apresentação de um quadro sintético – em resumo – das questões que se pretende ver apreciadas, de modo a que o Tribunal percepcione, rápida e facilmente, o fundamento do recurso, assim se assegurando, em última instância, “... a defesa dos direitos e a objectividade da sua realização” (cfr. Ac. T.C. nº 715/96 in D.R. II Série, de 18/3/97)” [ [3] ].

Assim sendo, porque o apelante omitiu por completo essa referência quer no corpo das alegações quer nas conclusões, impõe-se a rejeição da impugnação feita quanto ao julgamento de facto.

O apelante percepcionou a omissão, mas justifica-a indicando nas conclusões de recurso que em virtude das apontadas nulidades, ocorre uma “impossibilidade de cumprimento do ónus a que se reporta o artº 640º do CPC” (6ª conclusão).

Ora, improcedendo essa invocação, como aconteceu, necessariamente se conclui que não tem cabimento a referida justificação.

Mesmo que assim não fosse, isto é, ainda que em hipótese se aceitasse – e não é esse o caso, como já se referiu –, a existência da invocada omissão de fundamentação do julgamento de facto, daí não decorreria a admissibilidade de impugnação do julgamento de facto sem que o apelante indique com precisão os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e o sentido da alteração que propõe (art. 640º, nº1, alíneas a) e c). No caso, e paradoxalmente, o apelante incide a sua análise nos depoimentos dos dois médicos aludidos, de forma estéril porquanto não fornece qualquer indicação quanto aos factos que, em seu entender, o tribunal devia ter dado como provados – e não deu – ou que o tribunal deu, indevidamente, como assentes. E não se vê qualquer obstáculo a que o fizesse, uma vez que esteve presente em audiência tendo, necessariamente, formado a sua convicção quanto ao que se provou e termos respectivos: a Meritíssima Juiz expôs a sua, materializada nos factos dados como assentes, tendo por base o articulado da petição inicial, não se percebe a razão pela qual o Ministério Público não o fez também, em sede de recurso.

Pelas razões apontadas rejeita-se a impugnação do julgamento de facto feita pelo apelante, não se conhecendo da mesma.

5. Nos termos do art. 138º do Cód. Civil pode ser interdito do exercício dos seus direitos quem por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostre incapaz de governar a sua pessoa e bens – nº1.

Tais causas só motivam a interdição se revestirem certas características (cumularivas), a saber, quando sejam incapacitantes – tornando “aqueles que afectam inaptos para o governo de suas pessoas e bens” –, “actuais e não passadas ou previsíveis” e “permanentes (embora se não exija que sejam incuráveis” [ [4] ].

O legislador civil não definiu o conceito de anomalia psíquica, sendo que também não encontramos noutros diplomas elementos que auxiliem nessa delimitação [ [5] ]. No entanto, é entendimento unânime na doutrina e jurisprudência que a mesma abrange perturbações do intelecto, da vontade e da afectividade      [ [6] ].

Lê-se no ac. RP de 03-11-2005:

“A anomalia psíquica compreende qualquer perturbação das faculdades intelectuais ou intelectivas (afectando a inteligência, a percepção ou a memória) ou das faculdades volitivas (atinente quer à formação da vontade, quer à sua manifestação).

Teve-se aqui em conta, nomeadamente, que há enfermidades mentais nas quais o primeiro aspecto permanece suficientemente intacto, mas que a componente volitiva surge alterada.

O nosso legislador prescindiu de fornecer uma definição do conceito de anomalia psíquica, o que constitui um necessário reenvio às correspondentes noções cientificas, medico-psiquiatricas, na sua continua evolução, permitindo a actualização do seu conteúdo.

Não é pressuposto, pois, da interdição por anomalia psíquica, a existência de uma típica enfermidade mental, importando, sobretudo, a presença de uma qualquer perturbação, desarranjo ou defeito patológico das faculdades psíquicas, dando lugar a uma incapacidade para prover aos interesses pessoais.

Decorre desta mesma ideia que a anomalia psíquica, conquanto imprescindível, não releva, em si, mas enquanto causa da inaptidão.

Ou dito doutro modo, o juízo de incapacidade ou impossibilidade para governar a própria pessoa e bens aparece, segundo o ligame de interdependência estabelecido pelo legislador, como medida de relevância da anomalia psíquica.

Sendo certo, no entanto, que e lei - artigo 138º do Código Civil – exige ao julgador que constate um nexo etiológico entre a anomalia psíquica e a incapacidade: esta há-de resultar daquela, ter nela a sua origem”[ [7] ].

A expressão substituiu o termo “demência” que constava do Código Civil de 1867, reportada à “anomalia mental”, referindo Manuel de Andrade que “[t]alvez mais rigoroso seria dizer anomalia psíquica. Não parecem excluídos da demência, neste sentido, os casos em que a anomalia tenha as suas mais salientes revelações no domínio da vontade e não propriamente no do intelecto” [ [8]  ].

É neste contexto que se percebe o posicionamento da primeira instância quanto refere na sentença que o requerido “não está privado de juízo crítico e de entendimento” mas, sofrendo de uma depressão, que “implica uma deficiência volitiva e emocional que atinge, por vezes, situações e estados muito graves”, no quadro que a factualidade assente evidencia, essa depressão “pode, caso não sejam tomadas medidas”, “determinar riscos para a respectiva saúde e património, como os já antes verificados” (fls. 818).

E, nessa dimensão, não pode deixar de aceitar-se esse juízo valorativo, considerando-se que a situação do requerido é susceptível de ser enquadrada no conceito de anomalia psíquica, que é um conceito normativo [ [9] ], sendo despicienda a referência a “doença equiparável à mesma” feita na sentença recorrida. 

Atentemos, então, de forma estruturada, na factualidade dada por assente, salientando-se que aqui, como nos demais casos que a jurisprudência vem dando nota, em processos de interdição, não se encontra, na parte da sentença reservada à indicação dos fundamentos de facto, qualquer referência textual indicativa de que o requerido seja portador de anomalia psíquica.

O requerido CV perfaz os 78 anos em 14-09-2014, o óbito da sua esposa verificou-se em Setembro de 2003 e o requerido foi internado no lar onde ainda hoje se encontra em Janeiro de 2009.

Caracterizando o estado de saúde (física e mental) do requerido temos que:

- manifestou falta de “vontade de viver” (nº26);

- no Natal de 2008 tinha um edema no pé esquerdo que motivou intervenção em hospital ainda hoje apresentando perda de tecido em três dedos do pé esquerdo, sendo visível o osso, por necrose (nºs 27 e 64);

- sofre de diabetes (nº41);

- em Junho de 2011 apresentava tonalidade depressiva no seu discurso, sempre associada à temática “ lar “, mantendo um quadro depressivo actualizado moderado, sentindo tristeza e desânimo por se encontrar integrado num lar” (nº 49);

- teve um quadro depressivo grave, que pôs em causa a sua saúde, quadro não ultrapassado totalmente, com melhorias mas com sintomatologia depressiva (nº52);

- toma, no lar, actualmente, Metformina 500 mg ( medicamento para a diabetes ) e toma ainda Dumyrox 100 mg ( um antidepressivo ), medicamento este que toma há pelo menos ano e meio, tendo ainda tomado Sertralina 100 mg ( 1 comprimido por dia ) e Risperodona 1 mg ( 2 por dia ), tendo este medicamento sido retirado pelo médico do lar ao requerido por lhe provocar sonolência; os medicamentos aludidos em 58 - foram receitados ao requerido por um médico psiquiatra chamado ao mesmo à instituição pelo médico assistente do lar onde o requerido se encontra, HC (nºs 59 e 60º);

- em 2010 o médico psiquiatra DM recomendou tratamento medicamentoso ao requerido, que o não quis fazer (nº63);

- foi-lhe diagnosticada síndrome depressivo grave e arrastado, associado a significativa deterioração física, evidenciada, prejudicando o desempenho das actividades do dia-a-dia (nº62º);

- não sofre de debilidade mental ou física (nº47);

Caracterizando a vivência do requerido na sua casa de … e, posteriormente, no lar para onde o seu irmão o levou:

- a partir de momento não concretamente apurado mas posterior à morte da mulher não tirava, durante muito tempo, o correio que (lhe) era dirigido e que estava na caixa do correio do prédio sito na Rua (…)em Lisboa (nº21);

- acumulava, em casa e em cima da mesa da sala, a correspondência, por abrir e, na cozinha, embalagens de comida trazida de fora (nº22).

- após o decurso de algum tempo sobre a morte da sua mulher o requerido manteve contacto com um primo, VR, sendo a única pessoa a quem o requerido abriu a porta da sua residência durante algum tempo (nº23);

- não gosta de estar no lar (nº33).

- não tem condições para viver sozinho sem apoio e gostaria de viver numa casa perto da do requerente (nº34) .

- não sabia e não sabe tratar dos assuntos domésticos (nº45);.

- deixou de ter interesse pelas actividades da sua vida diária e pelas suas obrigações financeiras (nº46);.

- no lar onde se encontra institucionalizado o requerido apenas toma banho por tal ser uma das regras da instituição e não toma o banho sozinho, sendo levado por funcionários (nº53);.

- nesse lar o requerido mantém-se, durante todo o dia, no seu quarto, ali tomando inclusive as suas refeições e permanece de pijama e robe de flanela todo o dia, independentemente do tempo atmosférico (nº54);

- não participando em qualquer das actividades organizadas pelo lar para os seus ocupantes (nº55);

- à noite o requerido sai do seu quarto no lar e passeia, sozinho, pela instituição (nº58);

- não demonstra qualquer interesse em vir a Lisboa, à sua residência ou em qualquer assunto da sua vida anterior à sua entrada no lar (nº 65);

Intelectualmente e em termos cognitivos:

- em Setembro de 2009 apresentava-se orientado no espaço e no tempo, apresentando-se limpo e colaborante (nº39);

- em Junho de 2010 apresentava-se orientado no tempo e no espaço, com discurso articulado, lógico e coerente, com um Q. I. dentro dos parâmetros da normalidade e dentro da média, revelando deterioração do funcionamento intelectual, com moderada deterioração da performance cognitiva e não apresentava deficit cognitivo. À mesma data, o requerido não apresentava deterioração da memória imediata ou de evocação, manifestando capacidade para aprender nova informação e recordar uma previamente aprendida, apresentando comprometimento moderado da memória a curto prazo e a sua capacidade de execução ( que envolve a capacidade do pensamento abstracto, planeamento, iniciação e sequenciação de uma tarefa ) mostrava-se intacta, apresentando depressão moderada; Ainda nessa data encontrava-se dotado de juízo crítico, com um nível de inteligência situado dentro da média para a sua idade (nºs 42 e 43);

- em Setembro de 2009 o requerido apresentava-se orientado, limpo e cuidado, com discurso lógico e coerente, humor subdepressivo e discreta ansiedade sintónica à situação, não evidenciando défice cognitivo (nº 44);

- em Junho de 2011 o requerido apresentava um quociente intelectual dentro da média, sem revelar indicadores de disfunção cognitiva, à excepção de ligeira deterioração num dos instrumentos utilizados. À mesma data o requerido apresentava tonalidade depressiva no seu discurso, sempre associada à temática “ lar “, mantendo um quadro depressivo actualizado moderado, sentindo tristeza e desânimo por se encontrar integrado num lar (nº49);.

Quanto aos bens e património do requerido, este deixou de cuidar dos mesmos, nomeadamente não acudindo aos pagamentos inerentes à normalidade da vida quotidiana, sendo significativo que, depois de se reformar, tenha estado nove meses sem diligenciar pela obtenção da pensão de reforma, perdendo o correspondente valor (cfr. a factualidade assente sob os números 18 a 20, 24, 25 e 46).

O quadro assim traçado evidencia uma pessoa dotada de razão mas que padece de uma grave deficiência a nível volitivo [ [10] ], enquadrável no conceito de anomalia psíquica para o efeito em apreço e sem preocupação de subsunção, por ora, ao regime da interdição ou da inabilitação porquanto se trata de pressuposto cuja verificação é comum a ambos os regimes, embora com diferente gradação, matéria a que infra aludiremos.

6. O apelante considera que a primeira instância “recorreu à analogia para caracterizar uma hipotética anomalia psíquica do requerido” pelo que, assim sendo, porque estamos perante normativo que restringe direitos fundamentais, a sentença recorrida violou o art. 26º, nº4 da C.R.P., preceito que consagra o direito à capacidade civil, impondo que as restrições a esse direito “só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos”.

“A analogia é a aplicação de um preceito jurídico estabelecido para certo facto a outro facto juridicamente relevante mas sem directa ou implícita regulação (caso omisso) e semelhante ao primeiro” [ [11]  ].   

Do que se expôs decorre que não se recorreu à analogia para considerar que a situação do requerido é susceptível de integrar o conceito (normativo) de anomalia psíquica, pelo que não procede a objecção invocada.

Saliente-se que é questionável se, no que especificamente concerne ao elenco das causas indicadas no art. 138º, nº1 do Cód. Civil – e, identicamente, no art. 152º do mesmo diploma –, estamos perante uma enunciação taxativa ou exemplificativa.

Não encontramos no preceito, a nível literal, qualquer elemento indicativo em qualquer dos sentidos pelo que, como refere Oliveira Ascensão, quando o legislador tipifica, maxime quando enumera, e não esclarece, como é o caso, se a tipologia é taxativa ou enunciativa, deverá, em princípio, “concluir-se pelo carácter enunciativo das tipologias legais, só lhes devendo atribuir outra natureza quando razões especiais nos convençam nesse sentido. Porque o grande princípio da nossa ordem jurídica é o do tratamento idêntico de casos equivalentes” [ [12] ]. Assim sendo, nenhum obstáculo se colocaria à inclusão de outras causas incapacitantes, posto que se verificassem em concreto os demais requisitos legais.

Meneses Cordeiro, pronunciando-se expressamente sobre a questão, refere que se trata de enumeração exemplificativa que surge por razões de tradição história. “De facto, decisivo é o facto de os visados se mostrarem “incapazes de governar suas pessoas e bens” – 138º/1, in fine. Se compararmos este preceito com o artigo 152º referente à inabilitação, verificamos que este último considera as mesmas “anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira” permanentes mas não tão graves que justifiquem a interdição: a pedra de toque está, pois, na gravidade da deficiência e nas suas consequências. Em compensação – e deixando de lado a prodigalidade – o artigo 152º refere o (ab)uso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes que deixe o visado incapaz de reger convenientemente o seu património. Não poderão essas circunstâncias conduzir à interdição? A resposta é positiva, dependendo apenas de concreta gravidade registada. De resto, o alcoolismo crónico e a toxicomania incurável podem ser convolados para “anomalias psíquicas”” [ [13]  ] [ [14] ].

Em suma, para quem partilha este entendimento, então, nem sequer se colocaria a questão suscitada pelo apelante.

7. O apelante questiona ainda que, à data da decisão, se verifique o pressuposto alusivo à actualidade.

Não tem razão porquanto a factualidade assente reflecte suficientemente o percurso do requerido, afigurando-se-nos poder afirmar-se que se mantém a deficiência existente à data da sua institucionalização, subsequente à ida ao hospital, inexistindo qualquer elemento que indicie que o seu estado é, agora – leia-se, à data de prolação da decisão –, substancialmente diferente.

O apelante não peticionou a realização de novos exames médicos ao requerido, para além daqueles que a lei do processo especificamente prevê e a que se procedeu, sendo que também não se evidencia dos autos qualquer elemento que justifique a realização de novos meios de prova.

Acresce que aquando do julgamento se procedeu à inquirição dos dois médicos, sendo um deles o da instituição e que aí se desloca regularmente.

Nesta matéria, particularmente em casos como o dos autos, exige-se alguma ponderação na análise, conciliando-se razões de segurança jurídica com exigências de celeridade.

Em suma, verifica-se o pressuposto em causa e a que supra aludimos.

8. Retira-se, pois, da factualidade assente que estamos perante uma anomalia (na formação e manifestação da vontade) que é incapacitante e faz perigar a pessoa do requerido e os seus bens, perigo que, aliás, já se concretizou.

A questão que ora se nos coloca é saber se essa anomalia assume gravidade tal que justifique a interdição (art. 152º do Cód. Civil), impondo-se resposta negativa.

Não tendo o requerido a sua capacidade intelectual e cognitiva diminuída, não tem cabimento a imposição de limitações tão gravosas como as que decorrem da instituição da interdição, quer à sua capacidade de gozo [ [15]  ] quer de exercício  [ [16] ], afigurando-se-nos suficiente ou bastante para a defesa dos interesses do requerido – como se sabe, esse é o principal valor jurídico protegido –, decretar a inabilitação, que não conduz a uma incapacidade geral, antes se reporta apenas a determinados actos (arts. 153º e 154º do Cód. Civil). “A especial diferença entre a interdição e a inabilitação mantém-se, nessa altura, no domínio das situações de natureza pessoal; o curador – ao contrário do tutor – não pode tomar quaisquer medidas no tocante ao inabilitado, o qual se conserva livre, na esfera pessoal” [ [17] ].

Concretizando e a título exemplificativo, deixa de ser o tutor a determinar o local de residência do requerido, que é livre de decidir onde vive – e tem discernimento para escolher –, sem prejuízo de ter a assistência do curador na gestão dos seus rendimentos em ordem a suportar os custos respectivos.

Impõe-se, pois, a opção pela solução menos gravosa e mais consentânea com o respeito pelo princípio de que os cidadãos portadores de deficiência gozam plenamente de todos os direitos conferidos aos cidadãos em geral (cfr. os arts. 18º, nºs 2 e 3, 13º e 71º, nº1 da Constituição da República Portuguesa)  [ [18] ]. 

Afastamo-nos, pois, da solução propugnada na sentença recorrida, aceitando-se nessa medida a posição que o apelante sustenta.

 Consequentemente, não estando o tribunal vinculado à pretensão formulada no requerimento inicial (art. 901º, nº1), cumpre decretar definitivamente a inabilitação do requerido, impondo-se delimitar a actuação do curador que lhe presta assistência nos termos dos arts. 901º, nº2 do novo CPC e 153º do Cód. Civil.

Considerando o que supra se indicou quanto aos bens e património do requerido (cfr. a factualidade assente sob os números 18 a 20, 24, 25 e 46), cujo valor assume alguma dimensão (imóveis, depósitos bancários e pensão de reforma, conforme relação de bens apresentada no processo), impõe-se entregar a administração desse património ao curador, nos termos do art. 154º, nº1 do Cód. Civil, competindo-lhe, nomeadamente, assegurar o pagamento das despesas alimentares do requerido, incluindo os encargos com a instituição ou casa que o requerido escolher como sua habitação, para residir, e remunerações das pessoas encarregues de cuidar do requerido.

Os actos de disposição de bens entre vivos estarão sujeitos a autorização do curador, nos termos do art. 153º, nº1 do Cód. Civil.

                                                              *    

Conclusões:

1.Sendo impugnado o julgamento de facto feito pelo Tribunal a quo, o cumprimento do disposto no art. 640º, nº1, alínea a) do novo C.P.C. (art. 685º-B, nº1, alínea a) na anterior redacção) passa pela indicação dos termos em que o recorrente pretende seja alterada a decisão sobre a matéria de facto por parte desta Relação, nos vários sentidos possíveis (eliminação, aditamento e modificação de texto);                                                  

2. O legislador civil não definiu o conceito de anomalia psíquica, sendo que também não encontramos noutros diplomas elementos que auxiliem nessa delimitação. No entanto, é entendimento unânime na doutrina e jurisprudência que a mesma abrange perturbações do intelecto, da vontade e da afectividade;

3. Não tendo o requerido a sua capacidade intelectual e cognitiva diminuída – denotando deficiência na formação e manifestação da vontade –, não tem cabimento a imposição de limitações tão gravosas como as que decorrem da instituição da interdição, quer à sua capacidade de gozo quer de exercício, afigurando-se-nos suficiente ou bastante para a defesa dos interesses do requerido – como se sabe, esse é o principal valor jurídico protegido –, decretar a inabilitação, que não conduz a uma incapacidade geral, antes se reporta apenas a determinados actos (arts. 153º e 154º do Cód. Civil).

                                                                        *

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogando em parte a sentença recorrida, declara-se a inabilitação, por anomalia psíquica, de CV, fixando-se o início da incapacidade na data já indicada na sentença (em 1.7.2008).

Mais se decide, nos termos do art. 901º, nº2 do novo C.P.C. que compete ao curador praticar os actos supra aludidos em 8, no mais se mantendo as nomeações já determinadas na sentença recorrida, com as alterações resultantes do presente acórdão, isto é, o cargo de curador competirá ao requerente, MV, mantendo-se o conselho de família (art. 154º, nº2 do Cód. Civil).

Sem custas, porquanto o requerido a elas não deu causa.

Notifique e oportunamente proceder-se-á à comunicação à C. R. Civil.

Lisboa, 24 de Junho de 2014

(Isabel Fonseca)

(Maria Adelaide Domingos)

(Eurico José Marques dos Reis)


[1] Aprovado pela Lei 41/2013 de 26/06, em vigor desde 1 de Setembro de 2013.

[2] A referência legal reporta-se ao diploma anterior, que não tem directa correspondência no novo Código.
[3] Proferido no processo 06S698 (Relator: Sousa Brandão), acessível in www.dgsi.pt
[4] Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I, AAFDL, 1978, p. 335.  

[5] Cfr. a Lei de Saúde Mental (Lei 36/98 de 24/07 com as alterações resultantes da Lei n.º 101/99, de 26/07, art. 1º) e o C.Penal (art. 20º). 
 

[6] Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, p.146) consideram que a “expressão anomalia psíquica abrange não só as deficiências de intelecto, de entendimento ou de discernimento, como as deficiências da vontade e da própria afectividade ou sensibilidade”. No mesmo sentido, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1983, p.226.
[7] Proferido no processo: 0535475 (Relator: Oliveira Vasconcelos), acessível in www.dgsi.pt,

[8] In Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Coimbra, 1987, Almedina, Coimbra, p.81 (nota1).

[9] João Curado Neves (A problemática da Culpa nos Crimes Passionais, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 169) escreve:“O que é um funcionamento normal ou não normal da mente é algo a que o jurista só pode responder com alguma dificuldade. É certo que qualquer pessoa tem um conhecimento empírico do que é claramente normal ou anormal, e até certo ponto da medida em que a anormalidade do comportamento permite duvidar da saúde psíquica do indivíduo. Mas teremos grande vantagem em ultrapassar este conhecimento superficial e obter uma aplicação mais certa e uniforme do direito, pois esta é uma matéria que é objecto de estudo de várias ciências, nomeadamente a psicologia, a psiquiatria e a psicopatologia.(…)Isto não significa que a “anomalia psíquica” deixe de ser um conceito normativo, cuja extensão tem que ser determinada com recurso à metodologia jurídica. Mesmo quando recolhe conceitos provenientes de outras áreas da ciência, o legislador está a adaptá-los ao quadro legal em que se vão inserir, o que pode implicar uma redefinição dos seus limites. Todavia, esta redefinição é efectuada tendo em consideração o significado do conceito em causa na ciência que tem por objecto o estudo dos fenómenos que lhe são imanentes. O intérprete da lei não pode utilizar um conceito que remete para uma área de conhecimento sobre a qual está insuficientemente informado sem conhecer o sentido que tal conceito pode ter para os especialistas dessa área Só a partir deste conhecimento é possível verificar em que medida o legislador estava a tomar o significado técnico da expressão em consideração e em que medida o pretendia redefinir”.
[10] Salientam-se três acontecimentos (sucessivos) que, habitualmente, nos estudos sobre o idoso, constituem factores associados à depressão: a morte do cônjuge, …, em 2003, a reforma do requerido, em data não concretamente apurada mas posterior ao óbito da mulher e a institucionalização em 2009, que não foi desejada e que se mantém (indesejada) até ao presente.

[11] Galvão Teles, Introdução ao Estudo do Direito, vol. I, 11ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp.261-262.

[12] O Direito, Introdução e Teoria Geral, 13ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, p. 454.

[13] Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, Tomo III , Pessoas, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, p.467.

[14] Em sentido contrário vai o ac. Ac. RP de 03-11-2005, supra referido, podendo aí ler-se:“Atendendo a que a interdição colide necessariamente com a liberdade individual, implicando uma restrição de direitos fundamentais, compreende-se que ela apenas seja possível com fundamento legal inequívoco, pelo que a enumeração das suas causas ou pressupostos contida no artigo 138º do Código Civil deve considera-se exaustiva e não susceptível de ser aplicadas por via analógica”.

[15] O interdito por anomalia psíquica não pode perfilhar (art. 1850.º, n.º 1, do Cód. Civil), nem testar (art. 2189º, alínea b) do Cód. Civil), sendo que há outras limitações que se colocam igualmente ao inabilitado por anomalia psíquica (não podem casar e estão inibidos de pleno direito das responsabilidades parentais (arts. 1601.º, alínea b) e 1913.º, n.º 1, alínea b), todos do Cód. Civil).

[16]  O interdito é equiparado ao menor (art. 139º do Cód. Civil).

[17] Meneses Cordeiro, obr. cit. p. 474.

[18] Sobre a exigência de proporcionalidade na aplicação do regime de interdição/inabilitação aludiu, embora em diferente contexto processual, cfr. o ac. do TC n.º 359/2011, de 12 de Julho de 2011, proferido no processo n.º 58/11 (Relator: João Cura Mariano), acessível in www.dgsi.pt