Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11289/22.4T8LSB.L1-4
Relator: FRANCISCA MENDES
Descritores: INSOLVÊNCIA DO EMPREGADOR
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1A sentença que decretou a insolvência foi notificada às partes.

2Após, foi proferido despacho no sentido de ser aguardado o prazo de exercício do contraditório.

3Não enferma, por isso, de nulidade, por preterição do exercício do contraditório, a decisão que julgou extinta a instância perante a situação de insolvência da entidade empregadora.

4Crédito condicional por força de acção judicial previsto no artigo 50º do CIRE é aquele em que o facto incerto de que o mesmo depende é fixado pela sentença judicial e não qualquer crédito controvertido cujo reconhecimento está dependente de sentença a proferir em processo pendente.


(Elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


I–Relatório


AAA instaurou acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra “Dentina – Importação e Comércio de Material Dentário Lda”.

A R. apresentou articulado de motivação do despedimento.

A A. contestou e requereu que:
a)-Seja declarado ilícito o despedimento da Autora por inexistência de justa causa;
b)-Seja a Ré condenada a reintegrar a Autora e a pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida;
c)-Seja a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de 15.000,00 € (quinze mil euros) a título de indemnização por danos morais;
d)-Em alternativa, e caso improceda o pedido de reintegração da Autora, seja a Ré condenada a pagar-lhe, em substituição da reintegração, e sem prejuízo da indemnização por danos morais, a indemnização que vier a ser apurada até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento e que, à data da cessação do contrato, ascendia a 100.000,00 €, acrescida das retribuições vencidas desde o despedimento e vincendas até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento.

Em 23.11.2022 a R. comunicou que estava insolvente e juntou certidão, com nota de trânsito em julgado, da decisão que decretou a insolvência.

Tal requerimento foi notificado ao ilustre mandatário da A..

Em 24.11.2022 a Exmª Juiz a quo proferiu o seguinte despacho :
«Face ao teor do requerimento entrado no dia de ontem pelas 14h56m, acompanhado da respectiva certidão da sentença declarativa da insolvência da Ré com nota de trânsito em julgado, dou sem efeito a diligência designada para o dia de hoje, mais determinando que se aguarde pelo decurso do prazo para o exercício do contraditório.
Notifique pela via mais célere.»

Este despacho foi notificado às partes.

Em 21.12.2022 a Exmª juiz a quo proferiu a seguinte decisão :
«(…) Por requerimento de 23.11.2022, a Ré veio aos autos informar ter sido a mesma declarada insolvente, por sentença proferida em 29.9.2022, no âmbito do processo nº 22397/22.1T8LSB a correr termos no Juízo de Comércio de Lisboa J5, e transitada em julgado em 20.10.2022.
Notificada a Autora para se pronunciar, a mesma remeteu-se ao silêncio.
Apreciemos.
Preceitua o art 90.º do CIRE, referindo-se à declaração de insolvência, sob o título “Efeitos sobre os créditos”, que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores só podem exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos deste Código. Por outras palavras, os credores têm de exercer os seus direitos no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados no CIRE.
É esta a solução que se harmoniza com a natureza e a função do processo de insolvência, como execução universal, tal como a caracteriza o art. 1.º do CIRE. Um corolário fundamental do que fica determinado é o de que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, têm de nele exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo.
Donde, transpondo o supra explanado para a situação em apreço nos autos, significa isto que a Autora só pode exercer eficazmente o direito reclamado nos presentes autos em sede do processo de insolvência que correu contra a ora Ré na Comarca de Lisboa – juízo de Comércio de Lisboa J5, sob o nº supra citado. Só nesse âmbito a ora Autora poderá lograr a obtenção da satisfação do seu direito contra a Ré. Aliás, a este propósito foi já proferido acórdão unificador de jurisprudência - o Acórdão do STJ nº 1/2014.
Nesta senda, impera considerar que transitada em julgado a sentença que declarou a insolvência da ora Ré, a presente acção, proposta com o objectivo supra elencado, perdeu a sua utilidade relativamente a este face à impossibilidade superveniente da Autor poder alcançar qualquer efeito útil por esta via.
Pelo exposto e nos termos sobreditos, julgo extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, ao abrigo do disposto no art 277 al e) do CPC, aplicável ex vi do art 1 nº 2 al a) do CPT.
Custas a cargo da Ré (art 536 nº 3 do CPC aplicável ex vi do art 1 nº 2 al a) do CPT).»

A A. recorreu desta decisão e formulou as seguintes conclusões:
A.–A Recorrente impugnou a decisão de despedimento, a 04-05-2022, tendo dado origem aos presentes autos. Após a apresentação por ambas partes dos articulados processuais, o tribunal procedeu ao agendamento da Audiência Prévia para o dia 24-11-2022 às 13h30m.
B.–A 23-11-2022, a Recorrida por requerimento (Ref.ª Citius 34270604) veio juntar aos autos Sentença de Declaração de Insolvência, dizendo que: “vem (…) comunicar aos autos que a mesma foi declarada insolvente, por Sentença datada de 29 de setembro de 2022, proferida pelo Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 5, no âmbito do processo judicial n.º 22397/22.1T8LSB, a qual transitou em julgado a 20 de outubro de 2022, consoante certidão que é junta em anexo”.
C.–Chegados ao dia da realização da Audiência Prévia, 24-11-2022, os mandatários de ambas partes foram notificados pela Sra. funcionária judicial, do Despacho Judicial – Ref.ª Citius n.º 420922553 – no qual deu sem efeito a diligência designada, mais determinado que se aguarde pelo decurso do prazo para o exercício do contraditório.
Decorrido o prazo de 10 dias, a ora Recorrente não se pronunciou.
D.–A 21-12-2022, a Recorrente foi notificada da Sentença (Ref.ª Citius n.º 421477634), ora sindicada, na qual declarou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, decorrente da declaração de insolvência da Ré/Recorrida. O Tribunal a quo fundamentou a decisão ora impugnada, com base no entendimento de que, nos termos do disposto no artigo 90º do CIRE, os credores, durante a pendência do processo de insolvência, só podem exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do CIRE, ou seja, - no entendimento do tribunal a quo – os credores têm de exercer os seus direitos no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados no CIRE, nomeadamente, quanto à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo.
E.–O Tribunal a quo invocou para o efeito o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 1/2014, com o propósito de fundamentar o seu entendimento.
F.–Nos termos do artigo 3º n.º 3 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 1º do Código de Processo do Trabalho, resulta o princípio do contraditório e que tem em vista garantir, in casu, que o tribunal só decida depois de a ambas as partes ser facultada a real possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a decidir. Não é lícito ao juiz decidir sem conceder o contraditório aos intervenientes processuais.
G.–O preceito em causa, pretende, precisamente, afastar a decisão-surpresa, isto é, a decisão que se funda numa questão não suscitada por qualquer das partes. A ratio legis subjacente é, portanto, a de que as decisões que vierem a ser proferida sejam previsíveis.
H.–Como nos ensina LEBRE DE FREITAS “a proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para que as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (art.3-3)”
I.–O requerimento apresentado pela Ré, ora Recorrida, consistiu única e exclusivamente, na junção aos autos da Sentença que a declarou Insolvente, não tendo suscitado, para o efeito, a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, com fundamento na sua insolvência. Não resultando da Sentença de Declaração de Insolvência da Recorrida elemento ou aspeto que fizesse prever à ora Recorrente o sentido da decisão ora sindicada do Tribunal a quo.
J.–A Recorrente não se pronunciou quanto à declaração de insolvência porque não configurou – e não configura – a hipótese da inutilidade da decisão que vier a ser proferida nos autos.
Por isso, competia ao Tribunal a quo, à luz do artigo 3º n.º 3 do CPC, dar a possibilidade à Recorrente de exercer o contraditório quanto à concreta e específica questão da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide decorrente da insolvência da Ré.
K.–O tribunal a quo decidiu sem ter conhecimento de requisitos fulcrais para fundamentar a decisão recorrida, designadamente, se (i) a Recorrente reclamou créditos naqueles autos e (ii) em caso afirmativo, se os mesmos foram reconhecidos (iii) e em que termos foram reconhecidos. Elementos estes absolutamente essenciais para aferir do efeito (in)útil da decisão que vier a ser proferida nos autos, e consequentemente da extinção ou prosseguimento da instância.
L.–A Decisão ora sindicada violou o princípio do contraditório (art. 3º, n.º 3 do CPC), sendo por isso nula nos termos gerais do artigo 201º do CPC, na medida em que apreciou uma questão processual que não foi suscitada pela Ré e muito menos configurada pela A., não tendo obrigação de a prever.
Caso assim não se entenda, o que não se concede ou concebe, mas apenas por mero dever de patrocínio se equaciona, sempre se dirá subsidiariamente o seguinte:
M.–Não é, no nosso entendimento, rigoroso concluir que, do disposto das normas citadas na decisão recorrida (arts. 1º, 90º do CIRE) e do Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014, a declaração de insolvência da Recorrida torne inútil a decisão que vier a ser proferida nestes autos.
N.–No processo de insolvência da Recorrida, a Recorrente reclamou os montantes peticionados nos presentes autos como créditos privilegiados sob condição suspensiva (DOC. 1)
O.–Tendo os mesmos sido reconhecidos pela Sra. Administradora de Insolvência, conforme lista de créditos reconhecidos, como créditos comuns sob condição suspensiva, ou seja, como créditos que se encontram sujeitos à verificação, neste caso, de decisão judicial a ser proferida nos presentes autos laborais (DOC. 2). Em conformidade com o disposto no artigo 50º n.º 1 do CIRE, com o artigo 181º do CIRE.
P.–Assim, não se pode ignorar que a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão do STJ n.º 1/2014 não tem aplicação no caso dos autos, uma vez que no caso desse aresto os créditos que foram reclamados e reconhecidos não o foram sob condição suspensiva. Pelo que neste caso, a decisão que vier a ser proferida nestes autos laborais não perde o seu efeito útil, na medida em que no próprio processo de insolvência foi reconhecido a utilidade da ação laboral.
Q.–A extinção da instância por inutilidade superveniente da lide decorrente da declaração de insolvência, como solução preconizada no Ac. Uniformizador do STJ n.º 1/2014, deve ser sempre precedida de uma análise casuística do ponto de vista da utilidade da ação laboral.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, CONSEQUENTEMENTE, SER A DECISÃO RECORRIDA DECLARADA NULA, POR NÃO TER SIDO OBSERVADO PREVIAMENTE O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO, NOS TERMOS DO ART. 3º, N.º 3 E 201º DO CPC..

Juntou documento comprovativo da apresentação de reclamação de créditos no processo de insolvência.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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II–O Importa solucionar no âmbito do presente recurso :
- Se ocorre nulidade por preterição do princípio do contraditório;
- Se o reconhecimento dos créditos pela Sra. Administradora de Insolvência como créditos sob condição suspensiva confere utilidade à presente acção.
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III–Apreciação

Verificamos que ocorrem diversas posições jurisprudenciais quanto às consequências da violação do princípio do contraditório.
Os Acórdãos desta Relação de 19.04.2012 (relator Desembargador Ezaguy Martins) e de 11.01.2011 (relator Desembargador António Santos)- www.dgsi.pt-  defendem que tal  violação integra uma nulidade processual.

Os Acórdãos da Relação do Porto de 08.10.2018 (relatora Desembargadora Ana Paula Amorim) e desta Relação de Lisboa de 19.11.2020 (relatora Desembargadora Cristina Neves)- www.dgsi.pt – defendem que estamos perante uma nulidade da decisão por omissão de pronúncia.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.10.2020- www.dgsi.pt (relator Conselheiro António Magalhães) tomou posição no sentido de a prolação de decisão surpresa integrar uma nulidade por excesso de pronúncia.

Concordamos com este entendimento.

Caso se conclua que o Tribunal a quo proferiu decisão de facto e de direito, sem observância do princípio do contraditório,  o vício seria o da nulidade da sentença por excesso de pronúncia vide arts. 3º, nº3  615º, n1, d) do CPC.

Ora, no caso concreto, verificamos que junção da sentença que decretou a insolvência da entidade empregadora foi notificada às partes e foi proferido despacho no sentido de ser aguardado o prazo de exercício do contraditório. Este despacho também foi notificado às partes.

À ora recorrente foi, assim, assegurada a possibilidade de manifestar a sua posição face à situação de insolvência da entidade empregadora.

Consideramos, por isso, que foi assegurado o exercício do contraditório, pelo que a decisão recorrida não enferma do vício de nulidade.
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Vejamos, agora, se o reconhecimento dos créditos pela Sra. Administradora de Insolvência como créditos sob condição suspensiva confere utilidade à presente acção.

Conforme refere o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1 /2014  in DR 39 SÉRIE I de 2014-02-25 : «Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.».

Estatui o art.  50º, nº1 do CIRE, sob a epigrafe "Créditos sob condição” :  Para efeitos deste Código consideram-se créditos sob condição suspensiva e resolutiva, respetivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico.

No âmbito do processo nº 3398/20.0T8LSB-A.L1 foi proferido Acórdão em 24 de Novembro 2021 (relatado pelo Desembargador Sérgio Almeida e no qual tiveram intervenção a ora Relatora e a ora Juiz Desembargadora 1ª Adjunta)  que versou sobre situação semelhante. Refere o referido Acórdão, citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa  de 21/06/2018 L1 (Relatora Desembargadora Teresa Pardal) in www.dgsi,pt: «(…) o crédito condicional por força de acção judicial previsto no artigo 50º do CIRE é aquele em que o facto incerto de que o mesmo depende é fixado pela sentença judicial e não qualquer crédito litigioso cujo reconhecimento está dependente de sentença a proferir em processo pendente como é o caso dos autos.»

E foi consignado em sede de sumário do Acórdão proferido no citado processo nº 3398/20.0T8LSB-A.L1: « Créditos sob condição por força de decisão judicial são os que dependem de um acontecimento futuro e incerto a que, por força de decisão judicial já proferida, esteja subordinada a manutenção (condição resolutiva) ou a produção de certos efeitos jurídicos (condição suspensiva) emergentes da decisão.»

Não é esta a situação presente.

Importa, por isso, decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide ( art. 277º, e) do CPC). 

Improcede, desta forma, o recurso de apelação.
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IV–Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação e, em consequência:
- Manter a decisão recorrida no que concerne à extinção da instância;
- Determinar que a extinção da instância ocorre por inutilidade superveniente da lide.
Custas do recurso pela apelante, sem prejuízo de eventual apoio judiciário.   

    
Lisboa, 13 de Julho de 2023


Francisca Mendes
Maria Celina de Jesus de Nóbrega

(Entendo que a violação do princípio do contraditório integra uma nulidade processual, sendo certo que, no caso, a mesma não se verifica).

Paula de Jesus Jorge dos Santos