Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
28/18.4PESNT.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: VALORAÇÃO DA PROVA
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I- A proibição da valoração da prova tem como consequência, quando a prova é indevidamente utilizada, a invalidade do acto em que se verifica, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar;
II- Tendo o arguido prestado declarações em sede de audiência de discussão e julgamento e não obstante o seu direito à não autoincriminação, podiam as suas declarações, anteriormente feitas nos presentes autos perante o JIC a 19 de julho de 2018 ser valoradas, livremente pelo Tribunal (art. 127.° do CPP) enquanto meio de prova válida e eficazmente obtida, mas só se tal tivesse sido feito publicamente na audiência de discussão e julgamento, e não posteriormente,  em “singular” pela Juiz que efectuou a sentença e revertendo tal audição “privada” para a motivação da matéria de facto da sentença. Ora não valendo em julgamento quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência (art. 355° do CPP) conclui-se que tal audição não pode ser considerada como produzida em audiência;
III-Em conformidade, a sua apreciação está proibida e logo consequentemente a sua valoração. Não podendo assim ser apreciada ou valorada tal prova, dela não podem decorrer quaisquer efeitos, concluindo-se assim que a sentença recorrida enferma de nulidade insanável, impondo-se a sua revogação, por violação quer do disposto no artigo 355.°, n.° 1, do mesmo Código, quer dos princípios processuais penais da imediação e do contraditório, este último também com consagração constitucional (cfr. art. 32.°, n.° 5, da CRP),
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I — Relatório
1. No âmbito do processo comum n.° 28/18.4PESNT, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 3, foi submetido a julgamento, com intervenção de Tribunal Singular, o arguido QQ, filho de AA e BB, nascido a ………….., solteiro, natural e nacional de Cabo Verde, atualmente (e desde 28 de novembro de 2018) preso preventivamente à ordem destes autos no Estabelecimento  Prisional de Caxias, e condenado, por sentença proferida e depositada em 14 de fevereiro de 2019, pela prática do crime, pelo qual estava acusado, em autoria material e na forma consumada, de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea b) e n.°s 2, 4 e 5 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, e, nos termos do artigo 152.°, n.°s 4 e 5 do Código Penal, na pena acessória de proibição de contactos com a vítima, pelo período de 2 (dois) anos, bem como, nos termos do artigo 82.°-A do Código de Processo Penal e 21.°, n.°s 1 e 2 do Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, aprovado pela Lei n.° 112/2009, de 16 de setembro, no pagamento à ofendida da quantia de € 400,00 (quatrocentos euros) a título de reparação pelos prejuízos àquela causados.
2. O arguido, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
"A. O recorrente foi condenado pela prática, como autor material de um crime de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea b) e II° s 2, 4 e 5 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão e ainda, nos termos do artigo 152.°, n.° s 4 e 5 do Código Penal, na pena acessória de proibição de contactos com a vítima, pelo período de 2 (dois) anos.
B. O Douto acórdão condenatório está inquinado por uma nulidade absoluta, por insanável, nos termos dos arts. 119.° a 122.° do CPP, que obrigará à repetição deste julgamento, o que forçará a repetição de toda a produção de prova.
C. O julgador A quo cometeu uma nulidade absoluta ao proceder ás declarações do arguido feitas em 1° interrogatório judicial, e não o fundamentar.
D. Ora, prescreve o art.357.°, n.°s 1 a 3, do Código de Processo Penal, que a valoração das declarações prestadas pelo arguido devidamente informado nos termos do art.141.°, n.°4, alínea b), do mesmo Código, exige a reprodução ou leitura das mesmas em audiência de julgamento, para cumprimento do contraditório e embora de algum modo limitado, dos princípios da imediação e da oralidade.
E. Aliás, o n.°2 do artigo 357.° do CPP consigna mesmo que não valem como confissão nos termos e para os efeitos do disposto do art.344.°, as declarações anteriormente prestadas pelo arguido «reproduzidas ou lidas em audiência» - pois é prova sujeita a livre apreciação em face do disposto no art.141.°, n.°4, alínea b), do mesmo Código.
F. Está ainda a sentença inquinada por mais uma nulidade, e que se reflete na única testemunha dos autos com conhecimento direto dos factos, a ofendida ZZ, advertida da faculdade nos termos do artigo 134°, quase que foi "convencida "a depor, tanto mais, que a mesma vem dizer que pensava que vinha falar do incidente da pulseira eletrónica que o arguido usava.
G. Aliás a testemunha começa a depor, acerca do inicio do relacionamento, quanto tempo viveram juntos, a data em que o arguido foi ouvido a primeira vez, quando foram aplicadas as medidas de cocção (em julho de 2018), se nessa altura ainda tinham um relacionamento, e só depois e que a testemunha foi advertida que poderia usar a faculdade do artigo 134°
H. Pior, foi dada uma lição de direito à testemunha de modo a que esta percebesse que o que tinha sido falado anteriormente não servia para ser usado no julgamento.
I. O Recorrente impugna ainda a matéria de facto e de direito, invocando a contradição da matéria de facto dada como provada com a falta de prova e até mesmo contradição na fundamentação e falta desta, existindo omissão de pronúncia por parte do Douto Tribunal a quo e ainda um erro notório na apreciação da prova.
J. Invoca ainda a Nulidade do douto acórdão, previsto nos artigos 97°, n.° 4 conjugado com artigo 410°, n.° 2 al. a) e b) e 379°, n.° 1 al. a) e c), todos do Cód. Proc. Penal, nomeadamente a falta de prova e falta de fundamentação para determinados factos terem sido dados como provados
Vejamos:
K. O tribunal não valorizou as declarações do arguido em detrimento do depoimento fraco, comprometido e pouco revelador para a descoberta da verdade, por parte da ofendida.
L. Perante tal depoimento deficitário e constrangido e pouco esclarecedor da testemunha, o tribunal a quo, decidiu oficiosamente ouvir as declarações do arguido em sede de 1° interrogatório judicial, sem o fundamentar, constituindo tal uma nulidade absoluta.
Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio
M. O tribunal, errou ao não caracterizar o relacionamento vivido com a ofendida como conflituoso mas o conflito era bilateral, ou seja, as agressões, quer físicas, quer verbais, ocorriam de parte a parte, em que ambos eram ciumentos, tratava-se duma relação possessiva e com agressões de parte a parte e com episódios de ciúmes da parte de ambos.
N. Facto alegado e confirmado pela própria ofendida ZZ que afirmou a instancias do Ministério publico que também era ciumenta.
O. Impugna-se ainda a matéria de facto e de direito, invocando a contradição da matéria de facto dada como provada com a falta de prova e até mesmo contradição na fundamentação e falta desta, veja-se as declarações do arguido sobre os factos ocorridos a dia 21 de dezembro:
QQ- sessão do dia 04-02-2019 11:49:45
"começámos a discutir e eu tinha tranças, primeiro foi ela que começou. Ela me arrancou tranças , primeiro foi ela que me bateu."
Questionado pela juiz, afirma : " Eu tinha tranças e ela me arrancou tranças, ela e que agrediu primeiro" "sim ela é que agrediu primeiro, começamos a bater mas foi ela q me agrediu primeiro"
Questionado se a ofendida o agrediu primeiro a fazer o que; responde : " ela me arrancou 5 tranças, depois estava só a insultar, e de porco" " sim, porco e filho da puta, eu lhe chamei de filho da puta , mas eu não lhe peguei no pescoço"
Questionado se agarrado o pescoço da ofendida. " Não. Ela tava a me bater, eu dei-lhe uma chapada e ela deu me uma chapada , e acabamos discussão"
Ainda declara que " o filho estava com mãe dela, estávamos só os dois". Questionado porque lhe tinha dado uma chapada , arguido responde: " porque ela estava a me bater, sem parar "
Analisemos agora o depoimento da ofendida /testemunha ZZ, acerca dos mesmos factos:
ZZ 04-02-2019 12:09:41
Juiz - A partir de Dezembro de 2017 ter se à passado alguma coisa?
Minuto 18.37
Testemunha ZZ - lembro que ele me deu um murro na cara
"Lembro que tinha uma calça, que queria vestir e ele me vê e me pergunta
quem é que deu essa calça, ele pergunta , logo de manha quando eu ia para o trabalho"
Instancias do Ministério Publico — "logo de manha , a que horas? "
Testemunha — "eu entrava para trabalhar as 8h"
M.P.-" Estava- se a vestir era isso?"
Testemunha- " sim, ele vem com pergunta logo de manha e eu não queria
dizer....disse que não era da conta dele, depois apertou- me o pescoço contra o guarda
fato"
MP- e depois houve mais alguma coisa?
Testemunha - Não que eu me lembre não
P. Depoimento que não valorado pelo tribunal, pergunta-se porquê? Alias , grande parte do depoimento da testemunha foi sobre factos já tinham sido julgados e
o arguido condenado no âmbito do processo n.° 155/17.5PESNT
Q. Basicamente, a testemunha relatou os factos sobre os quais o arguido já tinha sido anteriormente condenado, violando assim o principio ne bis in idem!
R. O tribunal a quo deu como provado o ponto 5 ( folhas 3 da sentença):" que no dia 21 de Dezembro de 2017, pelas 07h10m, no interior da residência sita na morada indicada, quando ZZ se preparava para ir trabalhar, o arguido iniciou uma discussão com aquela, questionando-a como tinha conseguido arranjar as calças que acabara de vestir, tendo o arguido, no decurso de tal discussão, agarrado ZZ pelo pescoço"
S. E fundamentou a sua decisão com base no depoimento da ofendida e nas declarações do arguido prestadas em sede de 1° interrogatório: "ZZ, confirmou o arrancar de cabelos e o apodar da expressão "porco" ao arguido, não a balizando, porém, temporalmente, sendo que a mesma não se verificou em 21/12/2017, porque o próprio arguido situa esse episódio no início de Julho de 2018,
o que fez nas declarações que prestou no interrogatório ocorrido em 19.07.2018, sendo que o ocorrido em discussão nestes autos, a que alude o ponto 5 da factualidade provada, teve lugar em 21.12.2017 — vide auto de denúncia de fls. 83 a 85."
T. Ora, a contradição da matéria de facto dada como provada com a contradição na fundamentação e falta desta, o tribunal a quo não dá como provado que ZZ arrancou os cabelos, chamou porco ao arguido, mas na motivação de facto confirma o arrancar de cabelos ao arguido e o chamar-lhe porco quando o deveria de ter dado como provado, apenas não o situou temporalmente, mas quer o arguido, quer a testemunha ZZ , o situaram temporalmente, tendo mesmo a testemunha indicado que ia trabalhar as 8h , e que tinha sido antes dessa hora.
U. Ora, não o considerou porquê? Porque assim não poderia condenar o arguido?
V. Estranhamente, foi a testemunha inquirida durante mais de uma hora, tendo o seu depoimento sido " tirado a ferros" , de forma a arranjar algum facto que pudesse levar à condenação do arguido.
W. Quanto á testemunha agente da Psp NN , CONFIRMOU nunca ter visto o arguido, explicando ao tribunal que , foi chamado por uma ocorrência de violência domestica , em que a lesada disse que tinha sido agredida e foi feito o auto, por este foi dito não ter +presenciado absolutamente nada !
X. Erradamente a douta sentença, apresenta ainda um erro notório na apreciação da prova ao dar como provados factos ocorridos a dia 24 de Janeiro de 2018., quando o auto se reporta a factos ocorridos a dia 22 de Janeiro .
Y. Ora não pode o arguido ser condenado sobre factos que se reportam a uma data (errada), porque existe um auto assinado pelo agente da Psp, quando a ofendida no seu extenso depoimento não fala nessa data, nem nesses factos, ao contrário do que se fundamenta na sentença.
Z. A sentença fundamenta os factos do dia 24 de Janeiro (quando deveria referir se ao dia 22 de Janeiro) no depoimento da ofendida que diz ser em termos de localização de espaço e tempo, corroborado pelo depoimento isento e objetivo do agente da PSP, NN, que lavrou o auto de notícia de fls. 18 a 20.
AA. O que se pergunta, é corroborado em quê? Onde é que o depoimento da testemunha identifica factos, tempo, espaço e lugar referentes aos factos datados de dia 22 de janeiro? Em nenhum lado!
BB. Também não e verdade, que o filho menor tenha assistido a todas as discussões, na verdade é o próprio arguido que confessa parcialmente os factos do dia 21 de Dezembro, mas indica perentoriamente que o filho não estava em casa.
CC. Perante tudo isto, não pode o Recorrente conformar-se com a decisão nem com o quantum da pena que lhe foi aplicada.
DD. Sem querermos descurar a gravidade do crime de violência doméstica, a verdade é que o período de convivência entre arguido e ofendida foi sempre marcado por agressões e ofensas mutuas, e crise de ciúmes, e uma dose de imaturidade entre ambos!
EE. As discussões iniciavam-se porque a testemunha não respondia a perguntas do arguido, ou iniciava a discussão porque queria sair com as amigas., por outro lado, a ofendida nunca recorreu a tratamento hospitalar ou médico.
FF. O depoimento da ofendida, atenta as supra aludidas contradições, mostra-se, inevitavelmente, fragilizado.
GG. Mais, o relacionamento entre o arguido e a ofendida , e nas situações que ambos descreveram, houve agressões mutuas , existiu reciprocidade!
HH. Andou mal, o julgador a a quo ao condenar o arguido por um crime de violência domestica agravado, pois considerou já a jurisprudência que havendo reciprocidade de agressões não poderá haver o crime de violência domestica.
II. Veja-se "Na senda do doutamente decidido pelo acórdão da Relação do Porto, datado de 09.01.2013, processo 31/09.5GCVLP.P1, consultado na base de dados da DGSI, consideramos que o crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade, como de facto ocorreu no presente caso.
JJ. "O bem jurídico tutelado pelo art. 152.° do CP, é plural e complexo, visando, essencialmente, a defesa da integridade pessoal (física e psíquica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. II —Este tipo legal de crime previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio ou uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e a reconduz a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação .III - O crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade."
KK. Seguindo de perto o citado acórdão, questionamos se será que pode haver crime de violência doméstica cometido por ambos os cônjuges reciprocamente?
LL. Também, como naquele, consideramos que não. Segundo o Acórdão «intenção do legislador era a de, por essa via, proteger o elemento mais fraco, mais dependente, mais vulnerável do casal.» (...)n«o tipo legal constante do artigo 152° do Código Penal, que cobre ações típicas semelhantes àquelas que se acham já prevenidas noutros tipos legais (artigos 143° ofensas à integridade física, 183° injúrias, 163° coação sexual), não pode ser visto como reconduzindo-se à punição de um qualquer somatório de comportamentos deste tipo ocorridos entre pessoas que, a ligá-las, tenham, ou tenham tido, uma qualquer relação de proximidade familiar ou afetiva; o seu fundamento deve ser encontrado na proteção de quem, no âmbito de uma concreta relação interpessoal - conjugal ou não - vê a sua integridade pessoal, liberdade e segurança ameaçadas com tais condutas.»
MM. Sendo assim, podemos afirmar categoricamente no que concerne ao crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.° do Código Penal, que não pode ser cometido com reciprocidade.
NN. Assim, quando, como no presente caso, duas pessoas ligadas por particulares relações interpessoais, discutem, se insultam e agridem, reações resultantes de uma concreta e determinada situação vivencial de tensão e conflito, sendo os seus comportamentos equivalentes do ponto de vista da censurabilidade, não se alcançando qualquer posição de domínio de um sobre o outro, não se identificando, nem distinguindo um como vítima e o outro como agressor.
00. Ficou amplamente demonstrado que as agressões físicas, as agressões verbais decorriam de forma mútua, e não se demonstrou uma predominância de um dos intervenientes relativamente ao outro.
PP. O tribunal a quo fundamentou a sua decisão fundamentalmente por entender que ocorreu um crime de violência domestica, ignorando que o arguido nunca esteve numa situação de posição de domínio sobre a ofendida, ignorando as discussões e agressões mutuas e que a ofendida também declarou ser ciumenta, questionando-o e discutindo pela hora que o arguido chegava a casa.
QQ. Ora, "o crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade"- ac RP 9/1/2013 www.dgsi.pt
RR. É neste sentido e com este propósito, que cremos que os factos não preenchem o ilícito em causa, por não ter sido atingido o bem jurídico lesado, não tendo ocorrido.
SS. Não ficou provada uma relação de domínio ou subjugação e submissão, atingindo a dignidade da pessoa humana, de um agente sobre o outro, como aliás salienta o citado ac RP 9/1/2013"
TT. Na verdade resulta dos factos provados, as agressões reciprocas ,sendo claro o modo de relacionamento entre o arguido e a ofendida, sem que dai resulte qualquer tentativa de domínio ou de subjugação, ou uma vivencia de medo ou de tensão, aliás a ofendida afirmou não ter medo do arguido, simplesmente as discussões lhe causavam stress.
UU. Assim à luz do bem jurídico protegido os factos devem apresentar-se perante a vítima como dotados de um especial desvalor (pondo em causa a dignidade da pessoa enquanto tal, nomeadamente pelo desejo de domínio da relação familiar existente), sob pena de não se verificar o ilícito de violência doméstica.
VV. Cremos ser este o sentido do Ac. RC 21/10/2009 www.dgsi.pt, e do ac. R.P 30/1/2013 www.dgsi.pt/jtrp, sob pena de não revelando a conduta do agente o "especial desvalor da acção" ou a "particular danosidade social do facto" (cf. Valadão e Silveira, Maria Manuela "Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais", in APMJ, Do Crime de Maus Tratos, Lisboa, 2001, pág.21) o crime não se mostrar fundamentado.
WW. Assim, afigura-se-nos que os factos praticados não põem em causa o bem jurídico tal como entendido supra, não podendo tais acções ser qualificadas como tratamento desumano e degradante, pondo em causa a dignidade da pessoa visada pelo que não se mostrando verificada a ofensa do bem jurídico protegido, tais actos não preenchem o ilícito em causa, assumindo autonomia, pelo que não deve o arguido ser condenado por um crime de violência domestica agravada, devendo se por um crime de ofensas a integridade física p.p. pelo artigo 143° do C.Penal.
XX. Na verdade, nem o próprio Tribunal a quo acredita que tenha havido alguma subjugação ou domínio na relação entre o arguido e ofendida, como se comprova a página 15 da sentença : " Efetuado o julgamento e, atenta a factualidade provada, não resultam dúvidas que o arguido, com a sua conduta, molestou a ofendida na sua integridade física, maltratando-a , humilhou-a.
O arguido, ao agir da forma descrita, atuou com o propósito concretizado de molestar física e psicologicamente a ofendida, sua companheira e mãe do seu filho, bem como criar-lhe fundado receio pela sua vida e integridade física, pretendendo atingi-la na sua integridade física e psíquica, o que logrou conseguir, agindo a coberto de um sentimento de impunidade."
YY. Em nenhuma vez o tribunal fundamenta ou sequer refere a posição de domínio e de subjugação no relacionamento entre o arguido e a ofendida ZZ.
EM SUMA:
Deve ser dado provimento ao presente Recurso e, por via dele, serem declaradas as Nulidades invocadas que obrigarão a repetição deste julgamento, o que forçará a repetição de toda a produção de prova.
Sem prescindir, ser analisado o Acórdão recorrido, determinando-se a absolvição do arguido quanto à prática do crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea b) e n.° s 2, 4 e 5 do Código Penal, e ser condenado pelo crime de ofensas à integridade física p.p. pelo artigo 143° do C. Penal, tudo com as legais consequências.
Só assim se fará JUSTIÇA! " (fim de transcrição).

3. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 480.
4. Respondeu o Ministério Público extraindo da sua
motivação as seguintes conclusões:
"1- A douta decisão efectuou uma correcta interpretação e aplicação da lei.
2- Pelo que deve ser mantida na integra.
No entanto V.Excelências farão como for de Lei e Justiça" (fim de
transcrição).
5. Proferido despacho de sustentação (cfr. fls. 497) e subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação apôs o seu "Visto" e emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido, adiantando nada mais se lhe oferecer acrescentar à posição assumida pelo Ministério Público na primeira instância (cfr. fls. 505).
6. Foi cumprido, oficiosamente, o preceituado no art. 417.°, n.° 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido resposta.
7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.
8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir. II — Fundamentação
1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer [cfr., entre outros, os Acs. do Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ) de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP].
As questões suscitadas pelo recorrente, que deverão ser apreciadas por este Tribunal Superior, sem prejuízo do conhecimento de alguma ficar prejudicado pela solução dada àquela que a antecede, são, em síntese, as seguintes:
- A sentença padece de nulidade insanável, nos termos dos arts. 119.° a 122.° do CPP, porquanto declarações do arguido feitas em 1° interrogatório judicial não foram reproduzidas ou lidas na audiência de julgamento, violando o disposto no art. 355.° do CPP e os princípios do contraditório, da imediação e da oralidade.
- Está ainda a sentença inquinada por mais uma nulidade, e que se reflete na única testemunha dos autos com conhecimento direto dos factos, a ofendida ZZ quase que foi "convencida" a depor, tanto mais, que a mesma vem dizer que pensava que vinha falar do incidente da pulseira eletrónica que o arguido usava. Neste contexto a testemunha em causa começa a depor, acerca do início do relacionamento, quanto tempo viveram juntos, a data em que o arguido foi ouvido a primeira vez, quando foram aplicadas as medidas de cocção, se nessa altura ainda tinham um relacionamento, e só depois é que a testemunha foi advertida que poderia usar a faculdade do artigo 134.° do CPP;
- Impugnação da matéria de facto, invocando a contradição da matéria de facto dada como provada com a falta de prova e até mesmo contradição na fundamentação e falta desta, existindo omissão de pronúncia por parte do Tribunal a quo e ainda um erro notório na apreciação da prova. Invoca ainda a nulidade da sentença recorrida, prevista no artigo 97.°, n.° 4 conjugado com o artigo 410.°, n.° 2 al. a) e b) e 379°, n.° 1 al. a) e c), todos do CPP;
- Pugna, finalmente, não se encontrar preenchido o crime de violência doméstica uma vez que o arguido nunca esteve numa posição de domínio e que tal ilícito não pode ser cometido em reciprocidade, como de facto ocorreu no presente caso, pois ficou amplamente demonstrado que as agressões físicas, as agressões verbais decorriam de fauna mútua, e não se demonstrou uma predominância de um dos intervenientes relativamente ao outro, não ficando provada uma relação de domínio ou subjugação e submissão, atingindo a dignidade da pessoa humana, no relacionamento entre o arguido e a ofendida ZZ, devendo, assim, absolver-se o arguido quanto à prática do crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea b) e n.° s 2, 4 e 5 do Código Penal, e ser condenado pelo crime de ofensas à integridade física p.p. pelo artigo 143° do mesmo diploma, tudo com as legais consequências.
2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto:
a) O Tribunal a quo declarou provados os seguintes factos (transcrição):
"Da acusação, provou-se, com relevo para a decisão da causa, que:
1-O arguido e a ofendida iniciaram um relacionamento de namoro, vivendo cada um em sua casa, em data não determinada, mas que se situa no ano de 2011.
2-Desse relacionamento possuem um filho menor em comum, JJ, nascido a 22 de Junho de 2014.
3-Em data não determinada, mas que se situa no ano de 2016, o arguido e a ofendida foram viver para França, país onde passaram a viver como se de marido e mulher se tratassem.
4-Em data não determinada, o arguido e a ofendida vieram viver para Portugal, passando a residir, juntamente com o filho comum, na Avenida ……………. Cacém.
5-No dia 21 de Dezembro de 2017, pelas 07h10m, no interior da residência sita na morada indicada, quando ZZ se preparava para ir trabalhar, o arguido iniciou uma discussão com aquela, questionando-a como tinha conseguido arranjar as calças que acabara de vestir, tendo o arguido, no decurso de tal discussão, agarrado ZZ pelo pescoço.
6-O arguido é muito ciumento e não permite que ZZ saia sozinha com as suas amigas.
7-No dia 24 de Janeiro de 2018, pelas 11h30m, no interior da residência sita na morada referida em 4, o arguido desferiu um soco na face de ZZ, comportamento que lhe provocou dores.
8-No dia 05 de Julho de 2018, pelas 061150m no interior da residência referida, quando ZZ se preparava para ir trabalhar, o arguido, depois de ter passado a noite fora, entrou em casa e reparou que tinha uma mala sua junto à porta de entrada.
9-Nessa sequência, o arguido iniciou uma discussão com ZZ, no decurso da qual, agarrou a ofendida pelo pescoço.
10-As agressões referidas foram presenciadas pelo filho comum, JJ.
11-Por sentença proferida no processo n.° 155/17.5PESNT, transitada em julgado em 09 de Novembro de 2017, o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo disposto no artigo 152°, n.°1, alínea B) e n.°2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por factos praticados na pessoa de ZZ.
12-Tendo atuado conforme descrito em pleno decurso da pena aplicada naqueles autos.
13-0 arguido, ao agir da forma descrita, atuou com o propósito concretizado de molestar física e psicologicamente a ofendida, sua companheira e mãe do seu filho, bem como criar-lhe fundado receio pela sua vida e integridade física, pretendendo atingi-la na sua integridade física e psíquica, o que logrou conseguir, agindo a coberto de um sentimento de impunidade.
14-Ao atuar do modo descrito, o arguido, bem sabia que as condutas eram praticadas na presença do seu filho menor, e agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente que a conduta era proibida e punida por lei penal.
Mais se provou que:
15-0 arguido não demonstrou arrependimento sincero nem formulou juízo crítico sobre a gravidade da sua conduta.
16-Não regista outras condenações penais além da descrita no ponto 11.
Do relatório social do arguido:
17-0 processo de socialização de QQ desenvolveu-se em Cabo Verde, na Ilha de Santiago onde nasceu.
18-Filho único de um casal que se separou quando tinha cinco anos de idade, o arguido foi educado pela avó materna uma vez que os progenitores emigraram para França. Da parte da mãe tem três irmãs e do pai tem cinco irmãos, todos mais novos que o arguido, os quais residem todos em França.
19-0 ambiente intrafamiliar foi descrito como afetivo e gratificante entre todos os elementos e a situação financeira seria equilibrada, a progenitora trabalha em limpezas e numa fábrica de roupas e o pai trabalha na construção civil contribuindo estes mensalmente para as despesas quotidianas do arguido enquanto em Cabo Verde.
20-Após o falecimento da avó materna, QQ, então com dezasseis anos, foi para França, passando a integrar o agregado familiar da mãe.
21-QQ iniciou o seu percurso escolar em Cabo Verde, com a idade regulamentada, dando continuidade aos estudos em França, referindo que concluiu o equivalente em Portugal ao 12.° ano de escolaridade.
22-Em termos laborais, o arguido refere que a partir dos dezoito anos, conciliou os estudos e o trabalho e, desta forma, refere ter trabalhado sempre ligado a área da construção civil (eletricidade, pintura).
23-Durante algum tempo, o arguido e a ofendida foram acolhidos pela progenitora da ofendida e, posteriormente, o casal arrendou um apartamento na mesma zona autonomizando-se.
24-Nessa altura, os conflitos intensificaram-se, atribuindo o arguido aos ciúmes da ofendida por este não chegar a horas a casa.
25-Em termos do relacionamento interpessoal, o arguido denota uma atitude reservada, avaliando com imaturidade e diminuta capacidade autocritica os indícios de instabilidade pessoal.
26-Revela dificuldades em identificar os riscos associados ao seu comportamento, agindo com impulsividade e sem ponderar as consequências dos seus atos, o que se configura como um fator de risco, que poderá comprometer a sua ajustabilidade comportamental.
27-Começou a trabalhar ao fim de um mês de se encontrar em Portugal na construção civil e também em limpezas.
28-À data da sua prisão, estava a trabalhar na área da restauração no Centro Comercial Colombo há três meses.
29-QQ encontra-se desde 28/11/2018 no Estabelecimento Prisional de Caxias à ordem destes autos.
30-0 arguido esteve sujeito a medida de afastamento monitorizada por meios de vigilância eletrónica no âmbito deste processo, de 24/07/2018 até 28/11/2018, com registo de vários incidentes.
31-Tem pendente o processo 431/18.0PCSNT, indiciado do crime de tráfico de menor quantidade, com audiência de julgamento marcada para o dia 11/03/2019.
32-Relativamente ao presente processo judicial, o arguido avalia com superficialidade e minimiza as implicações do seu comportamento e desvaloriza a propensão para agir impulsivamente e de forma pouco responsável.
33-Em meio prisional, não regista medidas disciplinares mantendo um comportamento adequado segundo as normas e regras do estabelecimento prisional.
34-Em termos de apoio do exterior, tem registadas duas visitantes que o visitam regularmente, sendo que a ofendida se deslocou a este estabelecimento para o visitar mas uma vez que havia uma medida de afastamento não foi autorizada a sua entrada.
35-Todo o núcleo familiar de QQ se encontra em França (progenitores e irmãos) não havendo até à data nenhum contacto entre ambos.
36-Quando questionado por familiares em Portugal, uma vez que a habitação onde se encontrava pertence a um tio, este referiu que o mesmo se encontra em Cabo Verde.
37-Avalia-se como positiva a sua propensão para trabalhar de forma a obter uma situação de autonomização.
38-Porém, o arguido evidencia imaturidade e diminuta capacidade autocritica relativamente aos indícios de instabilidade pessoal. Revela dificuldades em identificar os riscos associados ao seu comportamento, agindo com impulsividade e sem ponderar as consequências dos seus atos, o que se configura como um fator de risco, que poderá comprometer a sua ajustabilidade comportamental." (fim de transcrição).
b) Factos declarados não provados:
"Da acusação, com relevo para a decisão da causa, não se provou que:
1-Nas circunstâncias descritas em 5 dos factos provados, o arguido atirou ZZ ao chão, após o que agarrou numa cadeira, e mediante exibição da referida cadeira disse que lhe ia bater com a mesma.
2-Nas circunstâncias descritas em 6 dos factos provados, quando a ofendida chega à residência, o arguido aperta-lhe o pescoço e diz-lhe "vou-te matar sua puta, pois já que é para sofrer vou sofrer na prisão", comportamento que adotou um número indeterminado de vezes, em datas não determinadas.
3-Nas circunstâncias descritas em 8 dos factos provados, o arguido bateu em ZZ com as mãos em ambas as faces.
4-Enquanto atuava do modo descrito em 8. dos factos provados, o arguido disse-lhe "não tenho medo de te matar, não tenho medo de ir para a prisão, quando sair da prisão vou-me vingar".
5-De seguida, ZZ quis sair de casa mas o arguido impediu-a, dizendo que lhe dava um murro na cara.
6-Após alguns empurrões e, de modo não concretamente apurado, ZZ conseguiu sair da residência." (fim de transcrição).
c) Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se na sentença recorrida:
"O tribunal fundou a sua convicção quanto ao circunstancialismo provado, segundo as regras normais da experiência comum e de razoabilidade, do conjunto dos elementos de prova recolhidos e examinados em audiência de julgamento, designadamente, prova testemunhal coligida em confronto com o juízo crítico da prova documental reunida.
O arguido prestou declarações, referindo que, na ocasião descrita em 5 dos factos provados, na discussão que tiveram, foi a ofendida quem primeiro lhe arrancou cinco tranças do cabelo e o chamou de "porco" e "filho da puta", o que não coincide, inteiramente, com o referido em sede de 1.° interrogatório judicial de arguido detido, em 19/07/2018;
Reproduzidas as declarações que prestou em 1.° interrogatório judicial de arguido detido, ao abrigo do artigo 357.°, n.° 1, al. b) do C.P.P., no dia 17/08/2018, as mesmas incidiram apenas sobre o incumprimento das medidas de coação até então vigentes.
Não foi possível a reprodução das declarações que prestou em 1.° interrogatório judicial de arguido detido no dia 19/07/2018, em plena audiência, atenta a deficitária qualidade do sistema de som da sala de audiências, sendo, porém, que o Tribunal valorou as mesmas, em audição posterior, sendo que, nessas, o arguido referiu que:
-só apertou o pescoço à ofendida, em casa, porque ela lhe arrancou tranças do cabelo, o que aconteceu duas semanas antes desse interrogatório de 19.07.2018 (pelo que teria ocorrido em inícios de Julho de 2018), não incidindo sobre o episódio descrito em 5 dos factos provados ocorrido em Dezembro de 2017;
Nega ter-lhe desferido um soco na cara e disse que é a ofendida quem o insulta e o ameaça, dizendo que o arguido vai para a prisão, negando ter referido as demais expressões clencadas na acusação; referiu ter efetuado uma queixa contra a ofendida dois meses antes;
ZZ, confirmou o arrancar de cabelos e o apodar da expressão "porco" ao arguido, não a balizando, porém, temporalmente, sendo que a mesma não se verificou em 21/12/2017, porque o próprio arguido situa esse episódio no início de Julho de 2018, o que fez nas declarações que prestou no interrogatório ocorrido em 19.07.2018, sendo que o ocorrido em discussão nestes autos, a que alude o ponto 5 da factualidade provada, teve lugar em 21.12.2017 — vide auto de denúncia de fls. 83 a 85.
Nisto, o arguido aduziu que lhe deu uma chapada, porque ZZ também lhe deu chapadas, o que não é corroborado pela ofendida, negando, igualmente, a ofendida que lhe tenha atirado objetos que tenham propiciado um empurrão da ofendida ao arguido, conforme este aduziu;
O arguido nega ser ciumento e a demais factualidade imputada.
A ofendida ZZ corroborou a demais factualidade provada, aduzindo, porém, nada mais se recordar, razão pela qual a demais factualidade foi carreada à não provada.
Apesar de jovem e de não ter qualquer perturbação do foro mental, aduziu de nada mais se recordar.
Foi requerida pelo M.P. a leitura das suas declarações, em sede de inquérito, o que não pôde ser concretizado, por falta de acordo da defesa do arguido à sua concretização, nos termos do art.° 356., n.° 2, al. b) e n.° 5 do C.P.P.
É consabido que as vítimas de violência doméstica tendem a "apagar", inconscientemente, da memória muitos dos episódios de agressão sofridos, muitos até violentos, como forma de evitar a revivência de dupla vitimização, sendo, pois, natural que a vítima não se recorde de eventual outra factualidade ocorrida, mormente descrita na acusação.
O tribunal valorou, pois, a sua convicção, pois, quanto aos demais factos provados, no depoimento objetivo, transparecendo veracidade da vítima, apesar de o ter prestado com alguma dificuldade, muito seguramente, porque o arguido tem um ascendente emocional sobre a mesma, pois como a ofendida disse, "teve pena" do arguido e chegou a ir visitá-lo à prisão; descreveu, porém, as agressões físicas perpetradas pelo arguido contra si e descreveu o modo como esta se sentiu como pessoa, como mãe e como mulher, tendo referido que se sentiu sufocada e com medo de sair com amigas, devido aos ciúmes do arguido.
O depoimento da ofendida é, ainda, quanto ao episódio ocorrido em 24/01/2018, em termos de localização de espaço e tempo, corroborado pelo depoimento isento e objetivo do agente da PSP, NN, que lavrou o auto de notícia de fls. 18 a 20.
Valoraram-se, ainda, positivamente, os autos de denúncia de fls. 83 a 85 e fls. 136 a 138.
Valorou-se, ainda, o CRC do arguido de fls. 393 e 394, relatório social do arguido e certidão da sentença proferida no processo n.° 155/17.5PESNT, transitada em julgado em 09 de Novembro de 2017.
Quanto à factualidade não provada, não resultaram elementos de prova testemunhal e/ou documental que permitissem concluir por valoração distinta, mormente, porque as testemunhas inquiridas não os corroboraram.
O arguido não demonstrou qualquer arrependimento em tribunal, porquanto apesar de ter admitido, traços largos, uma agressão física concretizada num apertão de pescoço, banalizou-a e trivializou-a, em nenhum momento demonstrando interiorização crítica sobre a gravidade dos factos perpetrados ou comiseração ou sentimentos de arrependimento ou de vergonha pelo comportamento havido para com a sua ex-companheira.
Não há dúvidas de que o arguido quis maltratar a sua ex-companheira e mãe do seu filho e violentá-la, de forma intolerável e comprometedora da sua dignidade de pessoa humana, na sua integridade física e psíquica.
Não existem elementos probatórios que infirmem os supra referidos." (fim de transcrição).
d) Finalmente, quanto ao enquadramento jurídico-penal
dos factos, expendeu-se na decisão revidenda:
"DIREITO:
Do crime de violência doméstica:
Estatui o artigo 152.°, n.° 1, alínea b) do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 04 de Setembro e pela Lei n.° 19/2013, de 21 de Fevereiro, que, quem de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
Adita o n.° 2 do mesmo comando normativo que se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
O crime de violência doméstica pode ser preenchido pela prática de múltiplas condutas, de forma reiterada ou através de uma só conduta do agente, solução que, anteriormente a esta nova redação do Código Penal, já vinha sendo defendida na jurisprudência, no sentido de se admitir poder integrar um crime de violência doméstica (anteriormente, designado crime de maus-tratos) uma só resolução criminosa, desde que, revestindo uma gravidade tal, que configurasse atentado grave contra a saúde física, psíquica ou moral da vítima, atingindo, inexoravelmente a sua dignidade enquanto pessoa humana, e tornando insustentável a relação com o agressor (Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 31/1/2001 e de 3/7/2002, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
O crime de violência doméstica pressupõe uma especial relação entre o agente e o sujeito passivo, pautada pela união matrimonial, pela união de facto ou ainda em virtude de a vítima ser progenitor (a) de descendente comum, ou então, caso se verifique que as agressões físicas ou psíquicas sejam infligidas a pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com o agente coabite.
A conduta típica pode revestir múltiplas atuações ou uma só atuação, que compreendam o mau trato físico (ofensas corporais), o mau trato psíquico (humilhações, provocações, injúrias, ameaças), tratamento cruel, utilização do subordinado em actividades perigosas, desumanas ou proibidas (ver TAIPA DE CARVALHO, in Comentário Conimbricense, Tomo I, pp. 333), incluindo-se, agora, expressamente e de forma inequívoca, na descrição do tipo legal da violência doméstica, os castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.
Bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime é a saúde — física e mental —da pessoa individual, bem jurídico que pode ser afetado por uma multiplicidade de comportamentos como a privação da liberdade, as ofensas sexuais, as agressões físicas e psíquicas ou por um só comportamento, que atinja o âmago de tais bens jurídicos protegidos, mas de tal forma intensa, que atinja inexorável e cruelmente a dignidade da vítima como ser humano.
A ratio do tipo legal está, pois, em última análise, na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana (cfr. obra citada).
Não basta a existência de uma ofensa física, moral ou qualquer outro ato enunciado no tipo legal para que esteja preenchido o crime de violência doméstica, tendo por base o bem jurídico protegido, que é a saúde na sua tripla vertente -física, psíquica e bem-estar moral e, no fundo, a dignidade da pessoa humana.
Como se diz no Acórdão da Relação do Porto, de 09.01.2013, publicado em www.dgsi.pt. «este tipo legal de crime previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio ou uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e a reconduz a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação.
Este é, segundo cremos, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual.
O bem jurídico tutelado pela incriminação, assim caraterizado, é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal (física e psicológica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.
Desta mesma forma ele se encontra caraterizado por André Lamas Leite, [1], quando refere que o mesmo tem como fim o " (...) asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima de tipo familiar ou análogo (...)" sendo este bem jurídico multímodo "(...) uma concretização do direito fundamental (artigo 25° da C.R.P.) mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26° da C.R.P.), nas dimensões não recobertas pelo artigo 25° da Lei Fundamental, ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana. (...) A degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico-constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguir entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do designado concurso legal, com ele se relacionam"
Entre muitos outros, cremos particularmente feliz a síntese contida no sumário do Acórdão desta Relação do seguinte teor: "No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma 'tutela especial e reforçada' da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.
Daqui sobressai o que cremos essencial para a caraterização do crime de violência doméstica, que se evidencia da sua génese e evolução; a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela.
Efetuado o julgamento e, atenta a factualidade provada, não resultam dúvidas que o arguido, com a sua conduta, molestou a ofendida na sua integridade física, maltratando-a —, humilhou-a.
O arguido, ao agir da forma descrita, atuou com o propósito concretizado de molestar física e psicologicamente a ofendida, sua companheira e mãe do seu filho, bem como criar-lhe fundado receio pela sua vida e integridade física, pretendendo atingi-la na sua integridade física e psíquica, o que logrou conseguir, agindo a coberto de um sentimento de impunidade.
Atuou o arguido com dolo direto.
O arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Com esta conduta, o arguido quis maltratar, de forma grave, psíquica e fisicamente a ofendida, causando atentado grave à dignidade da pessoa humana.
O crime decorreu no domicílio da vítima e presenciado pelo filho menor do casal, pelo que há lugar à circunstância agravante da moldura penal prevista no artigo 152.°, n.° 2 do Código Penal.
Estão, pois, preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1, alíneas b) e n.° s 2 do Código Penal.
Inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, não nos resta senão determinar a espécie e medida concreta da pena a aplicar ao arguido
DAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME:
O crime cometido pelo arguido é punido com pena de dois a cinco anos de prisão, nos termos do artigo 152.°, n.° 2 do Código Penal.
Estabelece o artigo 40.°, n.° 1 do Código Penal que "a aplicação das penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade ".
As finalidades da punição cifram-se na satisfação das exigências de prevenção geral, mais positiva do que negativas, e de prevenção especial, quer positiva — de socialização do agente infrator, quer negativa — de dissuadi-lo do cometimento, no futuro, de novos crimes.
«É com uma dimensão positiva que a prevenção geral hoje logra sobretudo reconhecimento (...) tem um cariz compensador, de integração ou estabilizador, em que o que se pretende é assegurar o restabelecimento e a manutenção da paz jurídica perturbada pelo cometimento do crime através do fortalecimento da consciência jurídica da comunidade no respeito pelos comandos jurídico -criminais.
Pelo que diz respeito à prevenção especial, o aspeto negativo consiste na intimidação do agente ou, ainda mais, na sua inocuização.
O aspeto positivo é, pelo contrário, representado pela socialização.» (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A determinação da medida da pena privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995, p.322 e seguintes).
A proteção dos bens jurídicos, sendo estes determinados por referência à ordem axiológica jurídico -constitucional, implica a rejeição de uma legitimação da intervenção penal assente numa qualquer ordem transcendente e absoluta de valores, como que derivada de exigências "metafísicas", fazendo assentar a referida legitimação unicamente em critérios funcionais de necessidade (e de consequente utilidade) social.
Por isso, a aplicação da pena não mais pode fundar-se em exigências de retribuição ou de expiação da culpa, sem qualquer potencial de utilidade social, mas apenas em propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada (Figueiredo Dias, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1, Fascículo 1, 1991, Aequitas, Editorial Noticias, pág. 17 e 18)." (fim de transcrição).
3. Vejamos se assiste razão ao recorrente. Comecemos pelas duas primeiras invocadas nulidades.
3.1. Quanto ao depoimento da ofendida ZZ considera o recorrente que a sentença está inquinada de nulidade por esta testemunha — única com conhecimento direto dos factos em apreço nos autos —, segundo ele, começar a depor, acerca do início do relacionamento, quanto tempo viveram juntos, a data em que o arguido foi ouvido a primeira vez, quando foram aplicadas as medidas de cocção, se nessa altura ainda tinham um relacionamento, e só depois é que a testemunha foi advertida que poderia usar a faculdade do artigo 134.° do CPP, para além de que quase foi "convencida" a depor, tanto mais, que a mesma vem dizer que pensava que vinha falar do incidente da pulseira eletrónica que o arguido usava.
Porém, tendo este tribunal ad quem escutado a gravação do depoimento da testemunha ZZ, prestado na sessão da audiência de discussão e julgamento do dia 4 de fevereiro de 2019, com referência à acta constante de fls. 395 a 398, a partir do CD contido no envelope agrafado na contracapa do 2° volume e ficheiro áudio com a referência 20190204120939_4164733, foi possível constatar que efetivamente tal não sucedeu.
Com efeito, a partir do segundo 45 a Mma Juíza a quo, começa a identificá-la, como se impunha (cfr. art. 138.°, n.° 3, 1' parte, do CPP), perguntando-lhe, passo-a-passo, o nome, idade, estado civil, profissão e morada, ao que testemunha foi respondendo, e, seguidamente passou a perguntá-la, como também se impõe, aos costumes (cfr. art. 138.°, n.° 3, 2' parte, do CPP), começando por questioná-la sobre se conhecia o arguido, ao que ZZ respondeu apenas "é pai do meu filho". Perante o que, seguidamente, a Mma Juíza lhe perguntou se "viveram como marido e mulher em união de facto?" e face a resposta afirmativa "desde quando e quando terminou?" e se "mantêm relacionamento?" e atentas as curtas explicações da depoente e a circunstância de naquele momento não saber precisar temporalmente o fim do dito relacionamento a Mma Juíza tentando apurá-lo, como plenamente se justificava, perguntou-lhe se foi quando o arguido foi ouvido e lhe foram aplicadas medidas de coação, e a resposta afirmativa mas sem que a testemunha se lembrasse da exata data a Exma magistrada interroga-a se foi no "Verão?, em setembro?", para facilitar a localização, o que ZZ confirmou.
Perante todas estas respostas, decorridos que eram 3 minutos e atento o disposto no art. 134.°, n.°s 1, al. b) e 2, do CPP, a Mma Juíza a quo disse: "Por isso, tenho que lhe fazer advertência de que se quiser não é obrigada a prestar depoimento e não é obrigada a fazê-lo. Quer prestar depoimento?" Ao que ZZ diz: "Falar sobre quê? Já falei na polícia!". A Mma Juíza a quo explicou então que "a prova faz-se em julgamento e hoje aqui não é obrigada a fazê-lo. O que disse antes serviu para a investigação mas para aqui e hoje não serve." e como a testemunha não parecesse compreender o alcance desta explicação acrescentou "Se quiser prestar contributo para a descoberta da verdade terá de falar mas não é obrigada a fazê-lo. Qual é a sua vontade?" ao que a depoente disse que sim mas parecendo querer fazê-lo sobre o "aparelho" numa alusão à dispositivos de vigilância eletrónica a Mma Juíza disse "Não é por causa do aparelho" e, finalmente, ZZ, só então cabalmente ciente de que ia ser questionada sobre o seu relacionamento com QQ disse: "Pode ser. Vou falar!". Advertiu-a nesse instante (a Mma Juíza a ZZ) que, assim sendo, tinha que falar com verdade, terminando com: "Pode sentar-se e responda à senhora Procuradora".
Tudo isto, se passou, de ambos os lados, com calma e serenidade e sem que a Mma Juíza a quo tivesse em algum momento pressionado a testemunha a depor, pois, sem nunca levantar as voz nem mostrar exasperação ou impaciência, repetidamente, sempre em tom cordial e pedagógico — como também entendemos caber ao Juiz face aos que se dirigem a justiça sem conhecer os meandros e regras que pautam a sua ação — em três ocasiões, a advertiu, que não era obrigada a falar só o fazendo se quisesse, nunca a tendo tão pouco sequer convencido a depor.
Pelo exposto, também, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, não "foi dada uma lição de direito à testemunha" mas tão-só foi esta elucidada sobre os seus direitos mormente o de não ser obrigada a falar em tribunal atento o tipo de relacionamento que tinha tido com o arguido, com quem, como acabará de informar o tribunal, tinha convivido em condições análogas às dos cônjuges e iria depor relativamente a factos ocorridos durante a coabitação.
Face ao apurado e supra descrito, igualmente não se verificou ter ZZ começado a depor e só ter sido advertida nos termos e para os efeitos do art. 134.° do CPP já durante a sua inquirição.
Dispõe tal norma no seu n.° 1 que: "Podem recusar-se a depor como testemunhas:
a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2.° grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;
b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação."
Acrescentando o seu n.° 2: "A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento."
Ora, assim sendo, só depois de identificar uma testemunha e a perguntar aos costumes está o tribunal habilitado a verificar do preenchimento de alguma das alíneas do n.° 1 do art. 134.° do CPP e, constatando que a situação fáctica integra a previsão de uma das mencionadas alíneas, proceder à advertência a que alude o n.° 2 do preceito.
Aliás, tal resulta também das "Regras da inquirição" ínsitas no 138.°, do CPP, em cujo n.° 3, a que acima aludimos, se estabelece que: "A inquirição deve incidir, primeiramente, sobre os elementos necessários à identificação da testemunha, sobre as suas relações de parentesco e de interesse com o arguido, o ofendido, o assistente, as partes civis e com outras testemunhas, bem como sobre quaisquer circunstâncias relevantes para avaliação da credibilidade do depoimento. Seguidamente, se for obrigada a juramento, deve prestá-lo, após o que depõe nos termos e dentro dos limites legais."
Tudo isto foi respeitado pela Mma Juíza a quo, como se alcançou da audição do pertinente ficheiro áudio e igualmente resulta da acta da sessão da audiência de discussão e julgamento do dia 4 de fevereiro de 2019, constante de fls. 395 a 398, cuja autenticidade não foi posta em crise.
Termos em que, neste particular, o recurso não pode lograr provimento.
3.2. Atentemos agora se, como alega o recorrente, a sentença padece de nulidade insanável, nos termos dos arts. 119.° a 122.° do CPP, porquanto declarações do arguido feitas em primeiro interrogatório judicial não foram reproduzidas nem lidas na audiência de julgamento, violando o disposto no art. 355.° do CPP e os princípios do contraditório, da imediação e da oralidade.
Desde já importa referir que os artigos 121.° e 122.° do CPP, dizem respeito, respetivamente, à sanação de nulidades e aos efeitos da declaração de nulidade, e que as nulidades, quer insanáveis quer dependentes de arguição, especificadamente elencadas nos artigos 119.° e 120.° do CPP, não tem aplicação ao caso concreto, antes e primordialmente à nulidade prevista no art. 355.° do CPP, onde, no seu n.° 1, se consagra que: "Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.", continuando o n° 2: "Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes."
Por seu turno, de acordo com o disposto no art. 357º, n.° 1, do CPP, na versão aplicável aos autos, "A leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida (..) a sua própria solicitação (..) ou quando, tendo sido feitas perante o juiz, houver contradições e discrepâncias entre elas e as feitas em audiência." Estabelece, assim, esta disposição legal, no seguimento da consagração constitucional do direito ao silêncio do arguido, o Princípio da Proibição da Autoincriminação, ou, o velho brocardo nemo se zpse acusare.
Vejamos, antes de mais e detalhadamente, o que se passou a este respeito na audiência de discussão e julgamento e, para o que ora importa apurar, mais concretamente nas sessões dos dias 4 e 12 de fevereiro de 2019 a que se reportam as actas, constantes, respetivamente, de fls. 395 a 398 e 416 a 419, e também as competentes gravações efetuadas no sistema digital integrado disponível em aplicação informática.
Assim, o arguido QQ pretendeu prestar declarações e fê-lo tendo as mesmas sido gravadas.
Na segunda daquelas sessões a Mma Juíza a quo, a dado momento, proferiu o seguinte despacho: "Determina-se a reprodução das declarações em sede de primeiro interrogatório judicial, ocorrido em 19 de julho de 2018, ao abrigo do artigo 357.°, número 1, alínea a) do CPP."
E, algum tempo depois, estoutro despacho:
"Tentada por diversas vezes a audição das declarações do arguido em primeiro interrogatório judicial, ocorrido em 19 de julho de 2018, a qualidade da gravação é bastante deficitária e não permite a sua audição nesta sala de audiências.
Constata-se que, igualmente, não se encontra nos autos o CD, contendo o primeiro interrogatório do dia 17 de Agosto de 2018, aludindo-se, na ata, que o arguido terá prestado declarações.
Como tal, encete, de imediato, com nota de urgente, contato com a Secção do Juízo de Instrução Criminal de Sintra a fim de diligenciar pela junção aos autos do CD contendo o referido interrogatório.
Face ao exposto, determina-se a suspensão dos trabalhos, pelo tempo estritamente indispensável à remessa do respetivo CD.

Reaberta a audiência discussão e julgamento, pelas 10 horas e 55 minutos, foi entregue à Mma Juiz de Direito o CD ora requerido, que foi inserido nos autos em conformidade com o despacho que antecede, passando-se, de imediato, à audição do CD" (fim de transcrição).
E essa sessão é encerrada sem que tais declarações — do arguido ao JIC a 19 de julho de 2018 — tivessem sido ali reproduzidas ou na seguinte e última sessão (a 14 de fevereiro de 2019) em que apenas a Mma Juíza a quo procedeu à leitura da sentença (vd. acta a fls. 445/446).
Porém, na dita sentença, ora recorrida, a Mma Juíza a quo, em sede de motivação da sua convicção para a fixação da matéria de facto provada e não provada, expendeu o seguinte:
"O arguido prestou declarações, referindo que, na ocasião descrita em 5 dos factos provados, na discussão que tiveram, foi a ofendida quem primeiro lhe arrancou cinco tranças do cabelo e o chamou de "porco" e 'filho da puta", o que não coincide, inteiramente, com o referido em sede de 1.° interrogatório judicial de arguido detido, em 19/07/2018;
Reproduzidas as declarações que prestou em 1.° interrogatório judicial de arguido detido, ao abrigo do artigo 357.°, n.° 1, al. b) do C.P.P., no dia 17/08/2018, as mesmas incidiram apenas sobre o incumprimento das medidas de coação até então vigentes.
Não foi possível a reprodução das declarações que prestou em 1.0 interrogatório judicial de arguido detido no dia 19/07/2018, em plena audiência, atenta a deficitária qualidade do sistema de som da sala de audiências, sendo, porém, que o Tribunal valorou as mesmas,  em audição posterior, sendo que, nessas, o arguido referiu que..
-só apertou o pescoço à ofendida, em casa, porque ela lhe arrancou tranças do cabelo, o que aconteceu duas semanas antes desse interrogatório de 19.07.2018 (pelo que teria ocorrido em inícios de Julho de 2018), não incidindo sobre o episódio descrito em 5 dos factos provados ocorrido em Dezembro de 2017" (fim de transcrição de fls. 426 in fine e 427, com negrito e sublinhado nossos).
Sucede que, tal posterior audição das declarações que o ora recorrente prestou no primeiro interrogatório judicial de arguido detido ocorrido em 19 de julho de 2018 não foi feita em julgamento e a prova daquela resultante não foi nem produzida nem examinada, como legalmente se impunha, em audiência, pelo que ao Tribunal estava vedado valorar as mesmas, contrariamente ao que fez.
As modificações introduzidas, mesta matéria, pela Lei n.° 20/2013 ao CPP, embora traduzam um momento de ruptura com a forma como anteriormente se perceciona na lei a possibilidade de leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas pelo arguido na fase de inquérito ou de instrução, não alteraram a estrutura e natureza intrínsecas do nosso processo penal, designadamente a sua estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação da verdade material, nem abalaram na sua substância princípios processuais penais como o do contraditório, da igualdade de armas, da imediação e da oralidade.
Importando não esquecer que todos os princípios processuais, designadamente, os supra referidos, têm os seus limites, só assim podendo todos eles ser respeitados no seu núcleo essencial.
Pois, se agora, por um lado, a posição do arguido perante os factos que lhe são imputados é perspetivada de uma forma global em relação a todo o processo desde o seu início até ao julgamento, por outro e simultaneamente, o arguido tem conhecimento que as suas declarações têm igual valia, seja qual for a fase processual em que forem prestadas, o que, por alguma forma, é um reconhecimento da sua dignidade como sujeito processual.
Como decidiu o STJ no seu acórdão de 27 de junho de 2007, pronunciando-se sobre idêntica questão embora no âmbito da anterior redação do art. 357.° do CPP: «Tendo o Tribunal recorrido utilizado as declarações dos arguidos feitas perante o JIC (mas que não foram lidas na Audiência de Discussão e Julgamento, desde logo, porque os arguidos não estiveram presentes naquela fase dos autos), para "contextualizar" as actividades ilícitas dadas como provadas e preencher "lacunas" quanto às suas condutas, incorreu na violação do disposto no art. 355.° do CPP.» (in ponto I do sumário deste acórdão publicado na CJ, STJ, ano XV, tomo 2.°, pág. 230).
Também o Ex.m° Conselheiro Oliveira Mendes, fazendo menção àquele aresto do STJ de 27 de junho de 2007, observa que «A valoração de declarações do arguido não lidas na audiência constitui violação do disposto no n.° 1 do artigo 355.°, inquinando a sentença de vício que determina a prolação de nova decisão com extirpação da respetiva anomia, vício que parte da jurisprudência qualifica de nulidade...». (in Código de Processo Penal, comentado pelo Ex.m° Conselheiro António Henrique Gaspar e outros, Almedina, 2014, pág. 591).
Neste sentido decidiu, nomeadamente, o acórdão da Relação do Porto, de 4 de julho de 2001, ao sustentar que se as declarações para memória futura não forem lidas em audiência de julgamento, o Tribunal não pode utilizá-las para fundar a sua convicção e se o fizer serve-se de prova proibida, por força do disposto no art. 355.° do CPP, o que implica a nulidade da sentença (publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, tomo 4.°, pág. 222 e seguintes).
Conforme defende o Prof. Manuel da Costa Andrade, em "Sobre as proibições de prova em processo penal", Coimbra Editora, páginas 313 e 314, o direito português associa as proibições de prova à figura do regime das nulidades.
Mas ao contrário da generalidade das nulidades, cujo conhecimento depende da prévia arguição do interessado, a proibição de prova, nomeadamente a valoração/utilização de provas que "não valem em julgamento" (art. 355.°, n.° 1 do CPP) para fundamentar a convicção da matéria de facto da sentença, deve ser oficiosamente declarada. De outro modo, proibições de prova, que atingem direitos e princípios processuais fundamentais, poderiam transformar, por simples omissão de arguição, vícios insanáveis em vícios sanáveis.
A proibição da valoração da prova tem como consequência, quando a prova é indevidamente utilizada, a invalidade do acto em que se verifica, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar (art. 122.°, n.° 1 do CPP).
Neste mesmo sentido pode ver-se o acórdão da Relação de Coimbra de 4 de fevereiro de 2015, consultável na JusNet.
No seguimento do exposto entendemos declarar a nulidade da sentença recorrida, por utilização, na sua fundamentação da matéria de facto, de prova proibida de valorar nos termos do artigo 355.°, n.° 1, do CPP.
Contudo, contrariamente ao que defende o recorrente (vd. sua conclusão B.), tal não obrigará nem à repetição do julgamento nem forçará a repetição de toda a produção de prova.
Resumindo:
Analisados os autos, verifica-se ter o arguido QQ prestado declarações em sede de audiência de discussão e julgamento e não obstante o seu direito à não autoincriminação, podiam as suas declarações anteriormente feitas nos presentes autos perante o JIC a 19 de julho de 2018 ser valoradas, livremente (art. 127.° do CPP) enquanto meio de prova válida e eficazmente obtida. Porém, não valem em julgamento quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência (art. 355° do CPP) e estas não foram produzidas em audiência. Assim não sendo a sua apreciação está proibida e consequentemente a sua valoração. Não podendo ser apreciada ou valorada tal prova, dela não decorrem quaisquer efeitos.
Deste modo, e face aos preceitos legais a que já acima aludimos, a sentença recorrida padece de nulidade insanável, impondo-se a sua revogação.
Os autos terão de baixar à primeira instância para que a Mma Juíza a quo profira nova sentença que exclua como meio de prova as declarações prestadas pelo recorrente perante o JIC em 19 de julho de 2018.
Em alternativa, no respeito do princípio da descoberta da verdade material, pode a Mina Juíza a quo começar por verificar, com a urgência que um processo de preso preventivo requer, se já existem condições técnicas para boa audição da gravação em causa na sala de audiências do tribunal, seja melhorando o sistema de som aí instalado seja colocando, de forma expedita, outro.
Se o conseguiu fora da sala de audiências, como nós, a partir do CD contido no envelope agrafado na folha de suporte 208 (no 1° volume dos autos), também, em mera amostragem, o conseguimos, quiçá não será muito difícil criar adequadas condições técnicas de reprodução dentro da sala de audiências ou, alternativamente, dentro do seu próprio gabinete no tribunal.
E se tal ocorrer ponderar se é de reabrir a audiência (em sala ou no gabinete, mas sempre no respeito por todos os formalismos legais de um julgamento público), nesta fazendo comparecer o arguido e demais necessários intervenientes processuais, para proceder à audição das declarações que QQ prestou nestes autos no primeiro interrogatório judicial de arguido detido ocorrido em 19 de julho de 2018, assegurando, seguidamente, à defesa o necessário contraditório, produzindo-se novas alegações finais por esta e pelo Ministério Público, antes de prolatar nova sentença.
Se, porventura e ao invés, na sala de audiências tal audição continuar a revelar-se inexequível ou inútil por na reprodução a qualidade da gravação continuar a ser bastante deficitária, tornando ininteligível o conteúdo das declarações produzidas pelo arguido no primeiro interrogatório judicial de detido perante o JIC ocorrido a 19 de julho de 2018, deverá lavrar nova sentença, nos termos supra determinados, ou seja expurgada de quaisquer considerandos quanto ao teor das declarações que QQ prestou nesse indicado interrogatório, tirando daí as devidas consequências.
Destarte, procede o recurso neste segmento.
3.3. Fica, por ora, prejudicada a análise de qualquer outra questão suscitada pelo recorrente.

III — Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9' Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido QQ, declarando nula a sentença recorrida, nos termos do artigo 122.°, n.° 1, do CPP, por violação quer do disposto no artigo 355.°, n.° 1, do mesmo Código, quer dos princípios processuais penais da imediação e do contraditório, este último também com consagração constitucional (cfr. art. 32.°, n.° 5, da CRP), devendo em seu lugar ser proferida nova sentença que exclua como meio de prova as declarações prestadas pelo recorrente perante o JIC em 19 de julho de 2018.

Em alternativa, no respeito do princípio da descoberta da verdade material, pode a Mma Juíza a quo começar por verificar se já existem condições técnicas (sistema de som) para boa audição da gravação em causa na sala de audiências do tribunal. E se tal ocorrer ponderar se deverá determinar a reabertura da audiência para proceder à audição das declarações que QQ prestou nestes autos no primeiro interrogatório judicial de arguido detido ocorrido em 19 de julho de 2018, assegurando, seguidamente, à defesa o necessário contraditório, antes de prolatar nova sentença.
Se, porventura e ao invés, na sala de audiências tal audição continuar a revelar-se inexequível ou inútil por na reprodução a qualidade da gravação continuar a ser bastante deficitária, tornando ininteligível o conteúdo das declarações produzidas pelo arguido no primeiro interrogatório judicial de detido perante o JIC ocorrido a 19 de julho de 2018, deverá lavrar nova sentença, nos termos supra determinados, ou seja expurgada de quaisquer considerandos quanto ao teor das declarações que QQ prestou nesse indicado interrogatório.
Sem custas.
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por vinte e oito páginas, foi processado em
computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo
Exm° Juiz Desembargador Adjunto — art. 94.°, n.° 2, do CPP)

Lisboa, 30 de maio de 2019

Calheiros da Gama
Antero Luís